Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1225/18.8T8TMR.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: PROCESSO DO TRABALHO
PODERES DO JUIZ
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Em processos de natureza laboral, o juiz possui poderes de indagação da verdade material, podendo, nos termos do n.º 1 do art. 72.º do Código de Processo do Trabalho, ampliar a matéria factual articulada, desde que relevante para a boa decisão da causa e debatida em sede de audiência de julgamento.
II – Revelam um contexto de subordinação jurídica típica de uma relação de cariz laboral, as circunstâncias previstas nas alíneas a), b) e d) do art. 12.º do Código do Trabalho (o trabalhador exercer as suas funções nas instalações da R., com os seus equipamentos e instrumentos e auferir 14 remunerações fixas mensais, sendo uma delas como subsídio de férias e outra como subsídio de natal), como também o facto de tal trabalhador exercer essas funções, desde 16-04-1984, em exclusividade, a tempo inteiro e segundo instruções emanadas pela R., ser esta a pagar, directa ou indirectamente, o prémio de seguro de acidentes de trabalho desse trabalhador e a pagar, a título de suplemento, as horas de trabalho efectuadas por tal trabalhador em fins-de-semana e feriados.
(sumário elaborado pela relatora).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
O Ministério Público (A.) intentou a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos artigos 186.º- K a 186.º - R, todos do Código de Processo do Trabalho, entre o trabalhador Luís Ezequiel Venâncio Ferreira e a entidade empregadora “R... ” (R.), solicitando a procedência da presente acção e, em consequência, que seja reconhecida a existência de contrato de trabalho entre o mencionado trabalhador e a R., com efeitos reportados a 16-04-1984.
A R. apresentou contestação, alegando, em síntese, que a relação contratual estabelecida entre si e o trabalhador L... é juridicamente qualificável como prestação de serviços, pelo que a presente acção deve ser julgada improcedente e, consequentemente, a R. ser absolvida do pedido.
O Ministério Público apresentou resposta, requerendo o prosseguimento do processo nos termos do art. 186.º-N, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho.
Proferido despacho saneador stricto sensu, foi o trabalhador L... notificado nos termos do art. 186.º-L, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho, não tendo o mesmo aderido aos factos apresentados pelo Ministério Público, nem apresentado articulado próprio ou constituído mandatário.
Realizado o julgamento foi proferida sentença, em 25-10-2018, que julgou a presente acção procedente, porque provada, e, em consequência, reconheceu que entre a R. "R"... e L... existe, desde o dia 16 de Abril de 1984, um contrato de trabalho.
Não se conformando com esta decisão, veio a R. interpor recurso da mesma, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
1. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
1.1 Impugnam-se assim os factos provados 2.1.9, 2.1.11, 2.1.14, 2.1.16 e 2.1.29 porquanto os mesmos devem ser eliminados da matéria assente.
(a) O factos provados n.ºs 2.1.9 e 2.1.11 devem ser eliminados da matéria assente na medida em que encerram um juízo de natureza jurídico-conclusiva.
(b) O factos provados n.ºs 2.1.14 e 2.1.29 devem ser eliminados da matéria assente na medida em que, por um lado incluem expressões que devem ser entendidas como matéria integrada no thema decidendum dos presentes autos, e, por outro lado, por integrarem conceitos jurídicos e não facto concretos passíveis de integrar o elenco do acervo probatório dado como assente.
(c) O facto provado n.º 2.1.16 deve ser eliminado da matéria assente tal factualidade resultou tão apenas e somente elencada no probatório atendendo às declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, não podendo o Tribunal a quo reconhecer matéria ou factualidade não alegada nos articulados.
2. IMPUGNAÇÃO DE DIREITO
2.1 Veio o presente recurso interposto da douta Sentença que decidiu pela existência de contrato de trabalho entre o interveniente principal E...e a Recorrente.
2.2 No entanto, o Tribunal a quo deveria ter concluído pela inexistência de contrato de trabalho entre o Sr. E... e a Recorrente, porquanto se provou o contexto específico de contratação do interveniente principal, mais se apurando que o mesmo não estava integrado na estrutura hierárquica da Recorrente, não tendo horário de trabalho determinado pela Recorrente, não sendo objeto de controlo e/ou fiscalização dos períodos em que exercer as suas funções, nem recebia ordens e instruções quanto ao modo de execução da atividade.
2.3 Com efeito, os vários dos indícios de subordinação são construídos com base nas circunstâncias e modalidades de desenvolvimento da prestação / atividade, em concreto, contratada.
2.4 O que realmente decide da qualificação é o modo de execução do trabalho, sendo necessário aferir se o mesmo é realizado de forma autónoma ou sob a autoridade e direção do credor.
2.5 Os supostos indicadores de subordinação relacionados com o local e os equipamentos e meios usados na execução dos serviços contratados não têm valor indiciário e como tal não suportam a atuação da presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho.
Desta forma, não é de sobrevalorizar o facto de os serviços serem prestados na sede da Recorrente e utilizando equipamentos desta (como aliás tem sido entendimento da jurisprudência superior).
2.6 O mesmo se refira em relação à sobrevalorização do indício referente à modalidade de pagamento acordada pelo serviço prestado. Com efeito, o critério do pagamento em apreço não é suficiente para daí se concluir, sem mais, pela existência de uma relação de subordinação jurídica.
2.7 Não se provou que a Sr. E... estivesse sujeito a ordens ou instruções com natureza laboral ou que sobre ele impendesse um poder hierárquico conformador da atividade desenvolvida por parte da Recorrente. Antes pelo contrário.
2.8 Não logrou ainda provada a existência de um horário de trabalho determinado pela Recorrente nem que esta exercesse qualquer tipo de controlo sobre um horário, sobre a sua entrada e saída e que sancionasse, de alguma forma, qualquer incumprimento do mesmo horário.
2.9 Acresce que não resultou provado que, por qualquer forma, o Sr. E... estivesse sujeito ao poder disciplinar da Recorrente.
2.10 Ora, os indícios respeitantes à prestação da atividade nas instalações da Recorrente (local de trabalho), à utilização de equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à Recorrente não se afiguram como relevantes para a qualificação da relação existente entre o Sr. E... e a Recorrente como uma relação de natureza laboral.
Acresce que o pagamento de uma avença mensal constitui já uma modalidade bastante comum no âmbito das relações de prestação de serviços. Com efeito, nada impede e até se tem tornado bastante comum, que tal remuneração tenha uma natureza fixa, não se entendendo como tal modalidade de pagamento poderá ser contrária a um vínculo autónomo.
2.11 É apodítico concluir que no caso dos presente autos, não deve o Tribunal olvidar a real vontade negocial das Partes, assumindo tal vontade especial relevância no que toca à qualificação do contrato em apreço como uma prestação de serviços e não como um contrato de trabalho.
2.12 Salvo melhor opinião, consideramos os factos respeitantes à inobservância de um horário de trabalho determinado pela Recorrente, à ausência de controlo ou fiscalização por parte da Recorrente em relação do Sr. E... assim como a não sujeição deste último a ordens e instruções são de muito maior relevância (pois respeitam ao modo concreto de execução da atividade contratada) e devem prevalecer sobre critérios absolutamente formais e artificiais (e.g. local de prestação da atividade, utilização de equipamentos e instrumentos da Recorrente, modalidade de pagamento pelo serviço prestado e atribuição de benefícios adicionais), que não permitem concluir se, no dia a dia, o prestador de serviços desenvolve a sua atividade com autonomia ou de forma subordinada.
2.13 Certo é que a vontade contratual manifestada pelas Partes durante mais de 34 anos, juntamente com os factos e circunstâncias acima referidos, respeitantes ao modo de execução da atividade, são muito mais reveladores da natureza autónoma do vínculo existente com o Sr. E... do que os critérios formais relevados e sobrevalorizados na sentença sub judice.
2.14 O juiz não está dispensado de proceder a um juízo crítico e corretivo do resultado da aplicação da presunção de laboralidade no caso concreto. Na situação vertente, apreciando globalmente os indícios que emergem da relação contratual estabelecida entre as partes, impõe-se concluir que não se apuraram factos bastantes para caracterizar tal relação como contrato de trabalho.
2.15 Pelo exposto, não pode senão concluir-se pela inexistência de contrato de trabalho entre a Recorrente e o Sr. L....
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Sentença do Juízo do Trabalho de Tomar. Assim decidindo, farão V. Exas. JUSTIÇA!
Contra-alegou o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito devolutivo, e, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, foi tal recurso mantido nos precisos termos, tendo sido colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objecto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Impugnação da matéria de facto; e
2) Qualificação jurídica da relação contratual existente entre Luís Ezequiel Venâncio Ferreira e a R..
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
2.1.1. A ré R... tem por objecto social a actividade de fabricação de artigos de papel para uso doméstico e sanitário;
2.1.2. Com início no dia 16.4.1984, L... e a ré R... acordaram verbalmente que aquele exerceria para esta as funções de programador informático na Fábrica 1, em ...;
2.1.3. Tais funções consistiam essencialmente na programação e parametrização de sistemas informáticos (ultimamente o sistema “SAP”), aplicável nas diversas áreas de actividade e departamentos da Ré;
2.1.4. Inicialmente tais funções teriam que ser necessariamente prestadas nas instalações da ré, por ser imprescindível aceder directamente aos seus computadores, e de contactar facilmente com os utilizadores que aí se encontravam (sem prejuízo das ocasionais deslocações a Lisboa, infra consignadas);
2.1.5. Nos últimos anos, pelo menos, uma parte significativa dessas funções já não carece necessariamente de ser prestada nas instalações da ré, podendo ser realizada noutro local com recurso a um computador compatível;
2.1.6. Durante os dias da semana, L... geralmente exerce as funções para a ré R... no período em que os restantes funcionários do escritório aí prestam trabalho;
2.1.7. A Ré R... não acordou com o L... qualquer horário de trabalho, nem determinou qualquer método para controlar os períodos de tempo em que aquele exerce as suas funções;
2.1.8. Desde aquela data que aquele exerce a sua actividade em gabinete, composto por secretária, cadeira, computador e telefone e bem como outros utensílios como papel, canetas, etc., pertença da Ré;
2.1.9. L... também desempenha a função de coordenação e execução de projectos informáticos desenvolvidos por entidades externas (p. ex., a sociedade ROFF) que prestam serviços de informática à Ré;
2.1.10. A referida actividade é decidida pela ré e desenvolvida por aquele, sendo partilhada com outros responsáveis na área informática, nomeadamente com P...., admitido em Novembro de 1993, com a categoria de sistemas e J..., admitido em Julho de 1989, com a categoria de programador de software, ambos com vínculo laboral de "contrato de trabalho sem termo”;
2.1.11. L... executa, acompanha e supervisiona a implementação de projectos na área da informática, tal como os restantes responsáveis identificados no ponto anterior;
2.1.12. Tem ainda como função, a verificação de facturas emitidas à Ré pela empresa de consultadoria ROFF (atrás identificada), através do envio das mesmas para a área de gestão documental do sistema SAP e respectiva afectação àquele;
2.1.13. Em diversas ocasiões, L... autorizou que alguns funcionários da empresa de consultadoria ROFF, que se tinham deslocado às instalações da Renova, aí consumissem refeições, sendo que cada uma importava em cerca de € 4;
2.1.14. Desde 16.4.1984 que presta as aludidas actividades de forma exclusiva, a tempo inteiro, e mediante uma contrapartida pecuniária;
2.1.15. Tal contrapartida pecuniária incluí:
- Uma componente fixa, que era inicialmente de 80 contos e que é ultimamente de € 4.729,74, paga 14 vezes por ano, sendo que tais pagamentos ocorrem todos os meses do ano, na altura em que o L... vai de férias e ainda cerca do Natal;
- Uma componente variável, que é paga mensalmente pela ré R..., em função das horas em que o L... presta tais funções aos fins-de-semana e nos dias feriados e que o mesmo comunica à ré R...;
2.1.16. Tal quantia mensal de € 4.729,74 é paga pela R. R...ao L... mesmo nos dias e meses em que este se encontra de férias e/ou não exerce qualquer função para aquela;
2.1.17. L... recebeu no mês de Janeiro de 2018 o montante de € 3.598,56, referente a prestação de trabalho realizado nos fins-de-semana de Dezembro de 2017;
2.1.18. A Ré aceitou e pagou ao L... recibos electrónicos com a designação de subsídios de Natal e férias nos anos de 2011 e 2012;
2.1.19. Posteriormente a designação dos recibos emitidos pelo L...e pagos pela ré R... passou para a rúbrica de “prestação de serviços”;
2.1.20. Além das referidas contrapartidas, em 2018 a Ré R... acordou com o L... no reembolso ao mesmo do prémio do seguro anual de acidentes de trabalho da seguradora Tranquilidade, no valor de € 810,58;
2.1.21. Até ao ano de 2016, era a R..., a tomadora e empregadora do prémio de seguro de acidentes de trabalho do qual aquele era beneficiário;
2.1.22. A partir de 1990, a ré R...., disponibilizou ao L... um carro de serviço, que o mesmo utiliza diariamente nas deslocações de casa para as instalações daquela, nas deslocações esporádicas ao serviço daquela a Lisboa e nas deslocações que este realiza no seu interesse pessoal;
2.1.23. A ré R..., deduz mensalmente ao L... a quantia de € 100, por motivo do mesmo ter optado por um carro de serviço de gama superior ao que lhe tinha sido proposto, o qual também importa para a ré em maiores encargos;
2.1.24. A ré R...., paga ao L... o combustível e a refeições consumidas por este quando se desloca ao serviço daquela ocasionalmente a Lisboa;
2.1.25. A ré R..., disponibilizou ainda a L... um telemóvel com cartão de operadora ... em nome da empresa, telefone fixo, bem como um endereço electrónico com o domínio titulado pela R...;
2.1.26. No exercício da sua actividade, L... cumpre instruções emanadas pela administração da Ré, na pessoa de um dos elementos que a compõe, o Sr. Engenheiro A..., em sede de reunião ou através de envio de correio electrónico;
2.1.27. No dia 12 de Julho de 2018, pelas 14H50, nas aludidas instalações da Ré, a Sra. Inspectora de Trabalho da ACT, M..., verificou que L... se encontrava no local de trabalho supra referido, a prestar a sua actividade de programador informático, mais concretamente no departamento de contabilidade/Informática, numa sala partilhada com LP...., admitido em Abril de 2008 com contrato de trabalho, com a categoria profissional de programador de software e que ali se encontrava por estar a aprender as tarefas desenvolvidas por aquele;
2.1.28. Durante a semana L... ocupa a maior parte do seu tempo disponível no exercício das aludidas funções e também, ocasionalmente, nalguns fins-de-semana e feriados;
2.1.29. Desde 16.4.1984, L... apenas exerce a sua actividade para a R. R... e daí retira em exclusivo os seus rendimentos;
2.1.30. Daí que o Instituto da Segurança Social tenha participado a situação à Autoridade para as Condições do Trabalho para averiguação;
2.1.31. L... declarou ser prestador de serviços para efeitos de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (“IRS”) e de incidência contributiva junto da Segurança Social;
2.1.32. A R. R... nunca exerceu qualquer acção ou advertência disciplinar sobre o L..., sendo certo que também nunca se evidenciaram factos que a pudessem motivar;
2.1.33. L... nunca pediu autorização à Ré para se ausentar, limitando--se apenas a comunicar que não comparecerá em determinado dia ou quando vai de férias.
E deu como não provados os seguintes factos:
2.2.1. O L... era o responsável pelas áreas de contabilidade de custos, financeira, materiais, compras, tesouraria e produção da ré;
2.2.2. L... cumpre um horário flexível, sujeito ao período normal de trabalho de 39 horas semanais;
2.2.3. As suas ausências são compensadas com dias de férias.
2.2.4. Em momento algum L... manifestou à R. Renova descontentamento, desagrado ou até desacordo com o enquadramento da relação como sendo uma prestação de serviços;
2.2.5. L... prestava actividade para outras entidades.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é (i) se existe fundamento para a impugnação da matéria de facto; e (ii) qual é a qualificação jurídica da relação contratual existente entre L... e a R..
1 – Impugnação da matéria de facto
A Apelante veio impugnar os factos provados em 2.1.9, 2.1.11, 2.1.14, 2.1.16 e 2.1.29 porquanto os mesmos devem ser eliminados da matéria assente, sendo que os factos provados em 2.1.9 e 2.1.11 devem ser eliminados da matéria assente na medida em que encerram um juízo de natureza jurídico-conclusiva; os factos provados em 2.1.14 e 2.1.29 devem ser eliminados da matéria assente na medida em que, por um lado incluem expressões que devem ser entendidas como matéria integrada no thema decidendum dos presentes autos, e, por outro lado, por integrarem conceitos jurídicos e não facto concretos passíveis de integrar o elenco do acervo probatório dado como assente, e o facto provado em 2.1.16 deve ser eliminado da matéria assente, visto que tal factualidade resultou tão apenas e somente elencada no probatório atendendo às declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, não podendo o Tribunal a quo reconhecer matéria ou factualidade não alegada nos articulados.
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Estipula igualmente o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que:
1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Regulamenta o art. 5.º do Código de Processo Civil, que:
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Por fim, estatui o art. 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, que:
1 - Se no decurso da produção da prova surgirem factos que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve ampliar a base instrutória ou, não a havendo, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre eles tenha incidido discussão.

Vejamos, então.
a) Factos 2.1.9 e 2.1.11
Consta do facto 2.1.9 que:
L... também desempenha a função de coordenação e execução de projectos informáticos desenvolvidos por entidades externas (p. ex., a sociedade ROFF) que prestam serviços de informática à Ré.

Consta do facto 2.1.11 que:
L... executa, acompanha e supervisiona a implementação de projectos na área da informática, tal como os restantes responsáveis identificados no ponto anterior.

No entender da R., as expressões “coordenação e execução de projectos informáticos” e “acompanha e supervisiona a implementação de projectos” encerram um juízo de natureza jurídico-conclusiva, pelo que tais factos devem ser eliminados do elenco da matéria assente.
Na realidade, mais do que proceder à análise dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação no processo realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, o que a Apelante pretende é que o tribunal ad quem elimine os factos elencados, por os mesmos não se reportarem a matéria factual (n.º 1 do art. 662.º do Código de Processo Civil).
Dúvidas inexistem de que a decisão sobre a matéria de facto deve incidir sobre factos, porém, apesar da reiterada menção na lei processual a factos, esta não define o que sejam “factos”.
Conforme bem referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (no Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 406), os factos «abrangem as ocorrências concretas da vida real», ou melhor esclarecendo Obra citada, pp. 406 a 408.:
Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem – ex propiis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. vontade real do declarante (…); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário; (…) o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (…); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria.
[…]
Anote-se, por fim, que a área dos factos (selecionáveis para o questionário) cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas; mas pode abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não factos, mas verdadeiros juízos de facto.
[…]
São realidades de uma zona empírica que se inscreve ainda na área da instrução da causa (…). Mas trata-se da zona imediatamente contígua à dos juízos de valor e à dos juízos significativo-normativos, que, integrando a esfera do direito, embora estritamente ligados ao circunstancialismo concreto pertencem já a uma outra jurisdição.

No caso em apreço, expressões como “coordenação e execução de projectos informáticos” e acompanhamento e supervisionamento da “implementação de projectos” narram uma realidade perfeitamente perceptível aos seus destinatários, aliás, materialmente apreendida pelos sentidos e a que correspondem determinadas funções daquele trabalhador (de coordenação, execução, acompanhamento e supervisionamento), traduzindo-se num juízo factual, e não de natureza jurídica-conclusiva, integrador de diversas actividades que se subsumem nos factos dados como assentes. E, apesar de não se mostrarem descritos, em concreto, os projectos informáticos que, desde 16-04-1984, L... coordenou, executou, acompanhou e supervisionou para a R., são facilmente apreensíveis pelos sentidos as actividades susceptíveis de se subsumirem a este juízo factual.
Nesta conformidade, improcede a invocada impugnação quanto a estes factos.
b) Factos 2.1.14 e 2.1.29
Consta do facto 2.1.14 que:
Desde 16.4.1984 que presta as aludidas actividades de forma exclusiva, a tempo inteiro, e mediante uma contrapartida pecuniária.

Consta do facto 2.1.29 que:
Desde 16.4.1984, L... apenas exerce a sua actividade para a R. R...e daí retira em exclusivo os seus rendimentos.

No entender da R., expressões como “de forma exclusiva”, “em exclusivo” e “contrapartida pecuniária”, não só integram o conceito legal de contrato de trabalho, envolvendo, desde logo, um juízo conclusivo sobre a existência do mesmo, como, quanto à expressão “contrapartida económica” esta traduz-se num conceito jurídico e não num facto.
No caso em apreço, e fazendo alusão à descrição supra mencionada sobre a definição de “factos”, importa sublinhar que relativamente às expressões “de forma exclusiva” e “em exclusivo”, para além da exclusivamente de funções não integrar a definição legal prevista no art. 11.º do Código do Trabalho, sempre se dirá que se reportam a expressões materialmente apreendidas pelos sentidos, a juízos de natureza factual, e não jurídica, que densificam e concretizam a própria realidade factual.
Cita-se sobre este assunto, o acórdão do STJ, proferido em 28-09-2017, no âmbito do processo n.º 659/12.6TVLSB.L1,S1, consultável em www.dgsi.pt:
III - Tendo o tribunal da Relação com base no relatório do Laboratório da Polícia Científica dado como provada matéria relativa à disparidade entre assinaturas em confronto, fazendo constar da matéria de facto os adjectivos «numerosas» e «escassas» referindo-se, respectivamente, às diferenças e às semelhanças que as assinaturas apresentadas para exame pericial apresentavam, no contexto em questão, tais adjectivos não se reconduzem a puros conceitos normativos.
IV - Ao invés, tais adjectivos, se devidamente, interpretados, densificam e concretizam uma realidade de facto, de acordo com a qual as diferenças entre as assinaturas superam as semelhanças, pelo que não sendo tal matéria susceptível de quantificação nem exigível que se proceda à descrição da concreta análise comparativa das assinaturas submetidas à perícia, não exorbitou a Relação os poderes que a lei lhe confere relativamente ao julgamento da matéria de facto.

Já a expressão “contrapartida económica”, a mesma traduz-se efectivamente num conceito jurídico, cuja integração deveria ocorrer por menção a factos (designadamente, pela indicação concretamente auferida por mês), pelo que tal expressão, por não se traduzir em realidade factual, será eliminada.
Assim, procede parcialmente a invocada impugnação de facto, passando o facto 2.1.14 a ter a seguinte redacção:
Desde 16.4.1984 que presta as aludidas actividades de forma exclusiva e a tempo inteiro.
c) Facto 2.1.16
Consta do facto 2.1.16 que:
Tal quantia mensal de € 4.729,74 é paga pela R. R... ao L... mesmo nos dias e meses em que este se encontra de férias e/ou não exerce qualquer função para aquela.

Veio a R. alegar que este facto, na redacção que lhe é dada na sentença recorrida, não encontra correspondência directa na factualidade alegada pelo Ministério Público no respectivo articulado inicial nem por qualquer outra parte, tendo, por isso, sido violado o disposto no art. 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 1.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo do Trabalho, pelo que tal facto deverá ser eliminado do elenco da matéria assente.
Conforme a própria Apelante mencionou, na redacção que lhe foi dada na sentença recorrida, não se encontra efectivamente correspondência directa na factualidade alegada pelo Ministério Público no seu articulado inicial, porém, tal factualidade mostra-se indirectamente abrangida pelo art. 13.º desse articulado, quando é feita menção ao recebimento de subsídio de férias, não se impondo ao juiz que tenha que redigir os factos em termos totalmente idênticos aos que constam dos articulados apresentados.
Mas, mesmo que dúvidas existissem, sempre tal factualidade estaria a coberto do disposto no art. 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, por se tratar de matéria factual relevante e debatida, possuindo o juiz, em processos de natureza laboral, poderes de indagação da verdade material.
Atente-se que é a própria Apelante, em sede de conclusões, quem confirma que a matéria factual referente ao ponto 2.1.16 resultou das declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento (aliás, das declarações prestadas pelo próprio administrador da R.).
Nesta conformidade, improcede a invocada impugnação quanto a este facto.
Em conclusão, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto requerida pela Apelante e, em consequência, procedeu-se à alteração do facto 2.1.14, que passou a ter a seguinte redacção:
Desde 16.4.1984 que presta as aludidas actividades de forma exclusiva e a tempo inteiro.
2 – Qualificação jurídica da relação contratual existente entre L... e a R.
De acordo com as conclusões formuladas pela Apelante, não se deveria ter concluído pela existência de um contrato de trabalho entre si e L..., uma vez que este não estava integrado na estrutura hierárquica da Recorrente, não tinha horário de trabalho determinado pela Recorrente, não era objecto de controlo e/ou fiscalização dos períodos em que exercia as suas funções e nem recebia ordens e instruções quanto ao modo de execução da sua actividade, sendo manifestamente insuficiente para caracterizar tal relação como de contrato de trabalho a circunstância de o referido L... prestar a sua actividade nas instalações da Recorrente (local de trabalho), utilizar os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à Recorrente e receber uma remuneração mensal fixa.
Dispõe o art. 11.º do Código do Trabalho que:
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.

Estipula o art. 12.º do
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
2 - Constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
3 - Em caso de reincidência, é aplicada a sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, por período até dois anos.
4 - Pelo pagamento da coima, são solidariamente responsáveis o empregador, as sociedades que com este se encontrem em relações de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, bem como o gerente, administrador ou director, nas condições a que se referem o artigo 334.º e o n.º 2 do artigo 335.º.

Por fim, o art. 1154.º do Código Civil estatui que:
Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Apreciemos.
De acordo com a sentença recorrida, a relação contratual existente entre L... e a Apelante consubstancia um contrato de trabalho devido à seguinte fundamentação:
Tendo sido longamente entendido que a relação laboral é caracterizada pela prestação de trabalho subordinado. Os problemas da comprovação directa da situação de subordinação jurídica, em situações diversas e individualizadas, aliadas à informalidade das relações, convocaram o recurso a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios. A integração numa ou outra das categorias contratuais poderá assim resultar de um mero juízo de aproximação ou semelhança, que terá de ser formulado no contexto geral e em face de todos os elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo (vd. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, pág. 137; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro, de 26 de Setembro de 2001, e 9 de Março de 2005 - Processos n.ºs 3109/00, 1809/01 e 8979/04, disponível na base de dados da DGSI).
Mais recentemente e já no domínio da actual Lei, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/7/2013 refere a propósito que “Como resulta, da citada norma, basta que se verifiquem duas das características nela afirmadas para que possa operar a presunção de laboralidade (o que se retira da expressão “se verifiquem algumas das seguintes características”, que induz – do plural usado - que não basta uma, sendo necessária a reunião de mais do que uma das características).
A presunção em causa visa concerteza facilitar a demonstração da existência de contrato de trabalho, em casos de dificuldade de qualificação, e tem a sua inspiração no chamado método indiciário usado na nossa jurisprudência para alcançar a qualificação do contrato [com o recurso a índices negociais internos – p. ex., o local da actividade pertencer ao beneficiário da mesma, ou ser por ele determinado; a existência de um horário de trabalho; a utilização de bens ou de utensílios fornecidos pelo beneficiário da actividade; a existência de uma remuneração certa, com aumento periódico; o pagamento de subsídio de férias e de Natal; a integração na organização produtiva, a submissão do prestador ao poder disciplinar - e externos - p. ex., a sindicalização do prestador da actividade, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem e a exclusividade da actividade a favor do beneficiário]. Mas, diversamente desse método indiciário, que determinava a busca de um numeroso e convincente conjunto de indícios, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho basta-se com a verificação de dois dos indícios/características apontados.
Do nosso ponto de vista, a verificação de duas dessas características têm, apesar de tudo, de ser enquadrada num ambiente contratual genético e de execução que permita dúvidas consistentes sobre a qualificação. Só assim a presunção revestirá uma operação útil. Noutra perspectiva que parta do fim do percurso da indagação para o seu princípio, o resultado será afinal o mesmo, já que não se verificando aquele ambiente então terá de se considerar ilidida a presunção” – disponível na base de dados da DGSI, proc. n.º 446/12.1 TTCBR.C1.
Ora, vistos os principais factos provados, nota-se que, se as partes contraentes não queriam submeter a sua relação às regras laborais, a verdade é que estabeleceram cláusulas e executaram o acordo em moldes coincidentes com o contrato de trabalho. Aliás, até muito se estranha que as partes tenham estabelecido regras e práticas que vincam acentuadamente a natureza laboral da sua relação.
Na verdade, a situação do trabalhador LP... apenas poderá ser considerada sui generis em termos de verificação de um contrato de prestação de serviços. Em termos de verificação de um contrato de trabalho, a situação do trabalhador LP... nada tem de sui generis em relação a vários e importantíssimos aspectos, tais como:
a) Prestar a sua actividade nas instalações da ré, sendo certo que nos últimos anos já não será necessária essa presença imediata e contínua;
b) Receber uma contraprestação pecuniária que comporta uma substancial quantia certa;
c) Receber uma quantia certa mesmo quando não presta qualquer actividade para a ré;
d) Receber uma quantia certa 14 vezes por ano, sendo que tais pagamentos ocorrem todos os meses do ano, na altura em que o L... vai de férias e ainda cerca do Natal;
e) A aceitação e processamento dos pagamentos pela ré sob a designação de “subsídios de Natal e de férias”;
f) Inclusão do trabalhador no seguro de acidentes de trabalho da ré;
g) Posterior reembolso ao trabalhador do valor do prémio do seguro de acidentes de trabalho (quando deixou de estar incluído no seguro da ré);
h) Disponibilização de um carro de serviço e de um telemóvel para uso de serviço e pessoal;
i) Disponibilização total só para o trabalho ao serviço da ré, geralmente, durante toda a semana e ainda ocasionalmente aos fins-de-semana e feriados;
j) Efectiva dedicação exclusiva para prestar trabalho para a ré e daí retirar todos os seus rendimentos; e,
k) Desde o longínquo ano de 1984.
Estes factos nada traduzem de sui generis em relação a milhões de outras pessoas que prestam trabalho subordinado em Portugal. Pelo contrário, revelam muitas das características essenciais ou acessórias próprias da relação laboral.
Por conseguinte, se desde o ano de 1984 a vontade das partes era a de celebrarem e executarem uma prestação de serviços – como invocou a ré – desde já se consigna que se revelaram longamente muito ineptas. De forma repetida, insistente e, nalguns aspectos, concludente, assumiram uma conduta própria da relação laboral e incompatível com o regime do contrato de prestação de serviço. E a falta de comprovação de outros aspectos, tais como a subordinação a um horário de trabalho não afasta a verificação do contrato de trabalho (consabidamente, pode haver prestação de trabalho com isenção deste elemento).
Como é evidente, um prestador de serviço, por regra:
- Não passa 34 anos a desempenhar a sua actividade só para uma empresa, nas instalações desta;
- Não recebe quantias certas;
- Mesmo quando não presta qualquer actividade;
- Não recebe as contrapartidas pelo trabalho coincidentemente no momento em que os outros trabalhadores recebem o salário, isto 14 vezes ao ano;
- Quando apresenta recibos sob a designação de “subsídios de Natal e de férias”, vê os mesmos serem recusados e devolvidos;
- Não é incluído no seguro de acidentes de trabalho da empresa;
- Muito menos recebe um posterior reembolso do valor do prémio do seu seguro de acidentes de trabalho;
- Não recebe um carro de serviço e de um telemóvel para uso de serviço e pessoal; e,
- Não dedica longamente a sua disponibilidade de trabalho para uma só entidade e daí retirar todos os seus rendimentos.
Pode suceder que todas estas situações também se verifiquem no domínio da execução de um contrato de prestação de serviços? Não! Nem com o melhor esforço e boa vontade se pode aceitar que a generalidade dos factos provados possa também ocorrer mesmo numa atípica prestação de serviços. Geralmente, até poderá ser apresentada uma justificação, mais ou menos convincente, para ilidir uma determinada presunção quanto à laboralidade da relação. No entanto, provaram-se numerosos factos que são de tal maneira categóricos que afastam por completo o apelo à figura da prestação de serviço.
[…]
Algo de muito estranho se nota na conduta da ré Renova, S.A., pois se queria acordar e executar com o L... uma prestação de serviços, a verdade é que inequivocamente praticou os referidos actos que são, em maior ou menor grau, incompatíveis com tal contrato e próprios da relação laboral. Como dizer que não há subordinação do L... à ré R...., se desde 1984 ele aí se desloca para prestar trabalho, de forma exclusiva, recebendo todos os proveitos do seu trabalho e demais circunstâncias? Poderá haver maior evidência de subordinação?
Actualmente, nem sequer é preciso recorrer aos vários indícios em que a lei faz funcionar a presunção de laboralidade (art.º 12.º, do actual Código do Trabalho), pois os factos claramente se subsumem à noção do art.º 11.º, do Código do Trabalho, tal como já acontecia desde o dia 16/4/1984.
Em face do exposto, conclui-se pela verificação de factos que se reconduzem ab initio ao contrato de trabalho, pelo que a acção será julgada procedente.

Diga-se, desde já, que, no essencial, concordamos com a mencionada fundamentação.
Na realidade, em face da matéria de facto que se mostra assente (incluindo a alteração efectuada ao facto 2.1.14), denotam a existência de um contrato de trabalho os seguintes factos:
1) L... exerce, desde 16-04-1984, para a R., as funções de programador informático, na Fábrica 1, em ... (instalações da R.) e, apesar de, no início, por inerência das funções exercidas, tal actividade ter de ser desempenhada em tais instalações, nos últimos anos, pelo menos, uma parte significativa dessas funções já não carecia de ser prestada nas instalações da R., mantendo-se aquele, porém, a prestá-las em tais instalações;
2) L..., durante os dias da semana, geralmente, exerce as suas funções para a R. no período em que os restantes funcionários do escritório aí prestam trabalho;
3) Desde 16-04-1984, L... exerce a sua actividade em gabinete, composto por secretária, cadeira, computador e telefone e bem como outros utensílios como papel, canetas, etc., pertença da R.;
4) L... também desempenha a função de coordenação e execução de projectos informáticos desenvolvidos por entidades externas (p. ex., a sociedade ROFF) que prestam serviços de informática à R.;
5) A actividade desenvolvida por L... é decidida pela R., sendo partilhada com outros responsáveis na área informática, nomeadamente com P..., admitido em Novembro de 1993, com a categoria de sistemas e J..., admitido em Julho de 1989, com a categoria de programador de software, ambos com vínculo laboral de "contrato de trabalho sem termo”, sendo que L... executa, acompanha e supervisiona a implementação de projectos na área da informática, tal como aqueles;
6) No exercício da sua actividade, L... cumpre instruções emanadas pela administração da R., na pessoa de um dos elementos que a compõe, o Sr. Engenheiro A..., em sede de reunião ou através de envio de correio electrónico;
7) Em diversas ocasiões, L... autorizou que alguns funcionários da empresa de consultadoria ROFF, que se tinham deslocado às instalações da R., aí consumissem refeições, sendo que cada uma importava em cerca de €4,00;
8) As actividades que L... presta para a R. desde 16-04-1984 são exercidas de forma exclusiva e a tempo inteiro;
9) Pela sua actividade, L... recebe uma componente fixa de rendimento, paga 14 vezes ao ano, sendo que tais pagamentos ocorrem todos os meses do ano, na altura em que o L... vai de férias e ainda no Natal, e uma componente variável, paga mensalmente pela R., em função das horas, que aquele comunica a esta, em que presta tais funções aos fins-de-semana e nos dias feriados;
10) Nos anos de 2011 e 2012 a R. aceitou e pagou ao L... recibos electrónicos com a designação de subsídios de Natal e férias;
11) Até ao ano de 2016, era a R. a tomadora e empregadora do prémio de seguro de acidentes de trabalho do qual L... era beneficiário, sendo que, a partir de 2018, apesar de este pagar tal seguro directamente à seguradora, acordou com a R. o reembolso desse valor, no montante de € 810,58;
12) A partir de 1990, a R. disponibilizou ao L... um carro de serviço, que o mesmo utiliza diariamente nas deslocações de casa para as instalações daquela, nas deslocações esporádicas ao serviço daquela a Lisboa e nas deslocações que este realiza no seu interesse pessoal, pagando a R., não só o combustível dessa viatura, como as refeições consumidas por este quando se desloca ao serviço daquela ocasionalmente a Lisboa; e
13) A R. disponibilizou ainda a L... um telemóvel com cartão de operadora (MEO) em nome da empresa, telefone fixo, bem como um endereço electrónico com o domínio titulado pela R..
Do elenco desta pluralidade de factos, mostram-se, desde logo, verificadas as presunções constantes das alíneas a), b) e d) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho e mostram-se verificadas ao longo de mais de trinta anos.
Mas a essas três presunções (local de trabalho e equipamentos e instrumentos pertencentes à R. – onde se inclui a disponibilização pela R. a L... de automóvel, telemóvel, telefone fixo e endereço electrónico – e pagamento de determinada quantia certa 14 vezes ao ano, tendo chegado a ser emitidos recibos com a designação subsídio de férias e de natal), acresce a circunstância de a actividade desenvolvida por L... ser decidida pela R. (facto 2.1.10) e L..., no exercício da sua actividade, cumprir instruções emanadas pela administração da R. (facto 2.1.26), o que demonstra, sem margens para dúvidas, o grau de subordinação e dependência daquele a esta.
Denotam igualmente este grau de dependência e subordinação a circunstância de a R. até 2016 (atente-se que a relação contratual entre ambos iniciou-se em 1984) ser a tomadora e empregadora do prémio de seguro de acidentes de trabalho do qual L... era beneficiário e, mesmo quando este começou a pagá-lo à seguradora, a R. ter acordado reembolsá-lo de tal valor, continuando, assim, a assumir o pagamento desse seguro; de L... exercer as suas actividades profissionais, desde 16-04-1984, apenas para a R. e fazê-lo a tempo inteiro; e de a R. proceder ao pagamento, para além do montante fixo acordado, das horas de trabalho efectuadas por L... em fins-de-semana e feriados, o que, desde logo, afasta a qualificação desta relação contratual como sendo de prestação de serviços, visto que nesta remunera-se determinado resultado e não as horas, e concretamente as horas em dias específicos, em que o trabalho que permite atingir tal resultado foi realizado.
Esse pagamento suplementar por trabalho realizado em fins-de-semana e feriados permite inferir que, apesar de a R. não ter acordado com L... qualquer horário fixo de trabalho, ficou, porém, acordado que a remuneração fixa mensal a que este tinha direito reportava-se apenas às horas de trabalho despendidas durante os dias da semana, já não abrangendo os fins-de-semana e feriados.
Efectivamente, a R. não determinou qualquer método para controlar os períodos de tempo em que L... exercia as suas funções, porém, como o mesmo as exercia nas instalações da R., com os seus equipamentos e instrumentos e segundo instruções por si emanadas, sempre esta acabava por ter conhecimento do desempenho profissional de L... e, obviamente, se durante mais de trinta anos, a relação de confiança estabelecida entre ambos tivesse sido quebrada, a R, teria, seguramente, terminado tal relação.
Daí que a circunstância de a R. nunca ter exercido o seu poder disciplinar sobre L..., não significa que não o pudesse exercer, mas tão-somente que não houve comportamentos por parte deste que tivessem levado aquela a agir desse modo; e o facto de directamente não controlar os períodos de tempo em que L... exercia as suas funções, não implica que indirectamente não o fizesse, uma vez que, como se disse, este exercia tais funções nas instalações da R., com os seus equipamentos e instrumentos e segundo instruções pela R. emanadas.
Os aparentes sinais de autonomia e independência (a inexistência de um horário de trabalho fixo – ainda que tenha existido um acordo sobre este como supra evidenciámos -, a inexistência de um evidente sistema de controlo de assiduidade e a inexistência de qualquer sanção disciplinar), não correspondem, efectivamente, a relações contratuais realmente exercidas com autonomia e independência, uma vez que tais elementos possuem pouco significado nas concretas circunstâncias do presente caso, designadamente perante o facto de tal trabalhador exercer, desde 16-04-1984, as suas funções, em exclusividade e a tempo inteiro, nas instalações da R., com os seus equipamentos e instrumentos e segundo instruções por si emanadas, auferir 14 remunerações fixas mensais, sendo uma delas como subsídio de férias e outra como subsídio de natal, ser a R. quem pagava, de forma directa ou indirecta, o prémio de seguro de acidentes de trabalho desse trabalhador e procedendo a R. ao pagamento suplementar das horas de trabalho efectuadas por tal trabalhador em fins-de-semana e feriados.
Deste modo, o Ministério Público, não só logrou provar a verificação da base da presunção prevista no art. 12.º, n.º 1, do Código do Trabalho (relativamente às quais a R. não provou elementos susceptíveis de ilidir tal presunção), como outras características igualmente reveladoras de um contexto de subordinação jurídica típica de uma relação de cariz laboral.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir que andou bem a sentença recorrida ao configurar a relação contratual existente, desde 16-04-1984, entre a R. e L..., como sendo de um contrato de trabalho, improcedendo, deste modo, nesta parte, a apelação da R..
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Emília Ramos Costa (relatora)
Moisés Pereira da Silva
Mário Branco Coelho