Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
247/23.1GCSTB-A.E1
Relator: CARLOS DE CAMPOS LOBO
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
ACTO PROCESSUAL
DEFENSOR
ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A busca, domiciliária ou não, assume o cariz de ato processual na sua plenitude e dimensão para os efeitos a que alude o artigo 64º, nº 1, alínea d), do C. P. Penal, considerando não só toda a filosofia processual advinda do disposto nos artigos 92º a 102º do C. P. Penal, como também porque se trata de passo tomado no âmbito de um processo com relevância para a prossecução do mesmo e, essencialmente, porque tem conexão com o arguido e sua posição processual e seu destino.
II - O processo penal, tal como se mostra encarado no sistema vigente, abarca uma vasta panóplia de passos/momentos, onde exultam os mais diversos atos que vão desde os mais imediatamente visíveis/encarados como tal – constituição de arguido, inquirição de testemunha, acareação, reconhecimento, reconstituição – até aos de mais elaborada/complexa visualização – buscas, revistas, exames.
III - A exigência legal consignada no artigo 64º, nº 1, alínea d), do C. P. Penal, tem como fundamento/alicerce a ideia de que estando em causa arguido especialmente vulnerável e/ou com menores capacidades de perceção do alcance e significado de determinados procedimentos, deve o sistema acautelar o seu posicionamento processual, conferindo-lhe todas as garantias possíveis, onde desponta o estar acompanhado/assistido por advogado.
IV - Nessa senda, por princípio, em caso de buscas domiciliárias, o arguido em quadro de especial vulnerabilidade integrável em qualquer das situações avocadas na dita normação deve estar assistido por advogado.
V - Todavia, havendo uma busca domiciliária ou exame com base numa ordem judicial, como se está perante quadro que não pressupõe qualquer vontade/decisão/opção do arguido particularmente vulnerável, ao que se pensa, tal não comporta essa restrita leitura pois, havendo uma ordem/determinação judicial a mesma será para cumprir, nada havendo que possa por algum modo estar dependente de um ato de vontade do visado que, para decidir tem que estar devidamente informado, esclarecido, livre e consciente.
VI - Se a realização da busca domiciliária foi legitimada, não pelo consentimento, mas antes por um despacho judicial que a autorizou e deu origem à emissão do correspondente mandado de busca e apreensão, não há qualquer necessidade/exigência de presença de defensor a coberto do preceito em referência já que, o despacho judicial que ordenou/demandou a diligência ponderou/sopesou a sua necessidade, independentemente da vulnerabilidade/fragilidade/desproteção/indefensabilidade do visado ou até a ponderou/considerou, inexistindo por isso motivos para a obrigatoriedade da assistência de advogado.
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório

1. No processo nº 247/23.1GCSTB da Comarca de Setúbal– Juízo de Instrução Criminal de Setúbal – Juiz 2, e no âmbito dos interrogatórios judicias de arguidos detidos – (A), melhor identificado a fls. 2 e (B), melhor identificado a fls. 2 vº -, tendo sido questionada a validade de buscas levadas a cabo no âmbito do inquérito, foi decidido que as mesmas não enfermam de algum vício, inexistindo nulidade insanável ou qualquer outra.

2. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido (A) questionando a decisão proferida neste matiz, concluindo: (transcrição)

1º O presente Recurso tem como objeto o despacho judicial proferido pelo Tribunal recorrido, que decidiu declarar improcedente a nulidade da busca domiciliária arguida pelo recorrente invocando, para o efeito, fundamentos com os quais se discorda.
2º Refere o Douto Despacho recorrido que a busca domiciliária efetuada pelos órgãos de polícia criminal é válida e legal por ter sido autorizada pelo Juiz de Instrução Criminal, não sendo um acto processual, uma vez que não tem cabimento na previsão da al. d) do nº 1 do art. 64º do Código de Processo Penal.
3º De Notar que a situação dos autos não integra um caso de flagrante delito aquando da realização da busca domiciliária, dispondo o Órgão de Polícia Criminal ter total conhecimento da idade do recorrente.
4º Salvo o devido respeito, não pode o recorrente concordar com os fundamentos apresentados no Douto Despacho, nomeadamente, os que referem não ser necessária e obrigatória a presença de um defensor na busca ao seu domicílio, por não se tratar de um acto processual.
5º Assim, não pode o arguido concordar nem aceitar a decisão do despacho recorrido que considera que a busca domiciliária foi realizada em plenas condições de legalidade.
6º Nem tão pouco concorda o recorrente com o argumento dado no despacho recorrido que afirma que, a busca domiciliaria não é, para efeitos de assistência jurídica, um acto processual … foi devidamente autorizada por JIC por se verificarem os requisitos legais e cumprido por OPC.
7º Razão pela qual se impõe uma decisão diversa da recorrida declarandose, necessariamente, a nulidade da busca domiciliária efetuada na casa do recorrente e declararse a consequente nulidade da prova obtida com a mesma, bem como todos os atos que dele dependerem e aquelas que puderem afetar.
8º Houve, no entender do recorrente, uma errada interpretação das normas constantes nos art.ºs 177º, nº 2, al. b) com referência ao Art.º 174º, nº 5, al. b) e consequente violação na aplicação do Art.º 64º, nº 1, al. d), todos do Código de Processo Penal.
9º O arguido, na data dos factos, tinha apenas 20 anos de idade sendo, por isso, considerado menor para efeitos de aplicação da legislação processual penal devendo ter sido prestada a assistência de um defensor, aplicandose necessariamente o Art.º 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal e somente, dessa forma, se poderia validar as buscas realizadas.
10º Nesse sentido, o Tribunal a quo deveria ter feito uma interpretação diferente da norma processual e, assim, ter declarado a nulidade da busca domiciliária na residência do arguido e, consequentemente, considerar as provas aí obtidas como ilegais e ilícitas e, por isso, nulas, não podendo as mesmas serem utilizadas como provas, nos termos dos Art.ºs 126º, nº 3 e 122º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal.
11º Apesar do visado pela busca domiciliária ainda não ter a qualidade de arguido, deverlheia ter sido aplicadas, na mesma, as normas que visam a proteção dos arguidos que a lei entende como particularmente mais débeis, nomeadamente, aquela que exige a assistência de defensor à prática de certos atos processuais Art.º 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal uma vez que dessa busca poderá resultar a sua responsabilização criminal.
12º Acrescendo que, no caso concreto, pela factualidade constante nos autos já existiam indícios suficientes para a responsabilização criminal e constituição de arguido do recorrente, pelo que, necessária e obrigatoriamente, teria que ter sido aplicado a norma constante no Art. 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal.
13º É do entendimento do recorrente, sustentado pela maioria da jurisprudência portuguesa, que não se pode considerar válido e legal a busca domiciliaria efectuada à residência do recorrente menor de 21 anos, sem que o mesmo se encontre assistido por defensor, em virtude de poder vir a ser responsabilizado criminalmente.
14º Deve, por isso, o recorrente poder beneficiar da aplicação do Art.º 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal.
15º O entendimento do Tribunal recorrido ao considerar que a busca domiciliária, não é, para efeitos de assistência jurídica, um acto processual é subverter, por completo, o que o legislador pretendeu salvaguardar, ou seja, proteger os direitos do arguido ou de um cidadão que, em virtude de certos atos, pode vir a ser responsabilizado criminalmente.
16º A própria busca domiciliária, fora de flagrante delito, deveria ter sido feita na presença de defensor por tal ato processual cair também no âmbito de aplicação do Art.º 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal.
17º No caso dos autos, os agentes da P.S.P. poderiam ter nomeado um defensor de escala e acompanhados da competente autorização judicial para a realização das buscas uma vez que já tinham conhecimento da idade do recorrente e assim não existiria, à partida, perigo para a aquisição de prova.
18º Esta ilegalidade da busca conduz a que a mesma se torne um meio proibido de prova, por violação do direito à privacidade e do domicílio e, consequentemente, à nulidade da prova obtida com a mesma.
19º Entende, assim, o recorrente que não pode esse Tribunal Superior esquecer que o legislador constitucional ao consagrar, que a busca domiciliária, é um acto processual, devendo o seu âmbito ser exercido de modo a comprimir ao mínimo indispensável os direitos fundamentais para salvaguarda de outros direitos – Segurança, Realização da Justiça – em cumprimento do Art.º 18º da C.R.P.
20º Parece que a argumentação tida pelo Tribunal a quo não poderá proceder porque violadoras dos artigos 177º, nº 1; 174º, nº 3; 64º, nº 1, al. d); 118º, nº 1; 119º, al. c);122º, nº1 e 126º, nº1, todos do Código de Processo Penal.
21º A Meritíssima Juíza a quo não assegurou as garantias de defesa do arguido e impediuo de exercer os seus direitos processuais, violando o disposto nos artigos 10º e 11º nº 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do que estabelecem o nº1 e as alíneas d) e) do nº 3 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos dos Homens.
22º Foram ainda violados os artigos da Constituição da república Portuguesa: artigo 8º nº 3 e artigo 32º nº 1 a 5, o que jamais se poderá admitir.
23º Mal andou o Tribunal a quo que, na ânsia de encontrar justificação para a validade e legalidade da busca domiciliária, acabou por interpretar e aplicar a lei de forma errada, violando, desse modo, as normas processuais e constitucionais, garantes dos direitos dos arguidos, visados e cidadãos.
24º Razão pela qual se pede a intervenção desse Tribunal Superior, designadamente no que se refere à reposição da legalidade, dando dessa forma como nula a busca domiciliária, por não ter sido respeitada a norma constante no Art.º 64º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Penal, por quanto o recorrente ser, na data dos factos, menor de 21 anos de idade e, assim, ser alvo da proteção de direitos que a legislação processual penal pretenderia salvaguardar através da assistência por parte de defensor em todo e qualquer ato processual a ser realizado.
Nos termos anteriormente expostos e, sempre sem olvidar o Douto Suprimento de Vªs. Exªs.,Venerandos Desembargadores, requerse que Vªs. Exªs. recebam e deêm provimento ao presente Recurso e que a decisão recorrida seja revogada e substituída por decisão que declare a nulidade da busca domiciliária na residência do recorrente e, consequente, nulidade das provas aí obtidas por serem ilegais e ilícitas, não podendo as mesmas serem utilizadas como prova, não se considerando, desse modo, os objetos apreendidos à ordem dos presentes autos.
Está certo o recorrente que, decidindo Vªs. Exªs. dessa forma, farão a costumada JUSTIÇA!”
3. O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação do despacho proferido, referindo nas suas conclusões (transcrição):

1) O recorrente recorreu do despacho da Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, datado de 13 de outubro de 2023, que indeferiu a arguição de nulidade da busca domiciliária precedida de despacho judicial que a autorizou e das provas nela obtidas, por entender que se impunha a nomeação de defensor para assistir o então suspeito, agora arguido, durante a realização da busca por o mesmo ter 20 anos à data da diligência.
2) Entendeu o recorrente que tal decisão consubstanciaria uma errada interpretação e aplicação do direito, nomeadamente dos artigos 177.º n.º 2 alínea b) e do 174.º n.º 5 alínea b) do Código de Processo Penal.
3) De acordo com o recorrente, ao entender e decidir que as buscas não enfermam de nulidade, em virtude da falta de nomeação de defensor para assistir o então suspeito, o Tribunal a quo incorreu na violação:
I. dos artigos 177.º, n.º 1; 174.º, n.º 3; 64.º, n.º 1, alínea d); 118.º, n.º 1; 119.º, alínea c); 122.º, n.º 1 e 126.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal;
II. dos artigos 8.º n.º 3 e artigo 32.º n.º 1 a 5 da Constituição da República Portuguesa;
III. dos artigos 10.º e 11.º n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
IV. do n.º 1 e as alíneas d) e) do nº 3 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos dos Homens.
4) Não assiste qualquer razão ao recorrente na medida em que, à data da busca, o recorrente ainda não era arguido, mas mero suspeito, sendo por isso inaplicáveis ao mesmo os direitos estabelecidos do artigo 64.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Penal para os arguidos (e não para suspeitos ou qualquer outro visado pela busca).
5) Ainda que assim não fosse, a busca é uma diligência e não um ato processual, tanto que pode ser realizada por OPC, enquanto medida cautelar urgente de polícia, mesmo na ausência de qualquer processo, se verificados os pressupostos legais, donde claramente não tem a natureza de ato processual nem é, nem seria, legalmente exigível, a nomeação de defensor para sua realização.
6) Mesmo que se defendesse entendimento diverso, no caso, a busca foi precedida de despacho judicial que apreciou a sua pertinência e proporcionalidade, de forma fundamentada, antes de determinar a emissão dos mandados de busca domiciliária e apreensão, os quais foram emitidos, se necessário com recurso a arrombamento.
7) Alicerçando-se a busca em mandado judicial (e não no consentimento), a mesma tem lugar mesmo na ausência do visado (arguido, suspeito ou terceiro), sendo sua efetivação independente da vontade, presença ou de qualquer ato daquele, dado que não tem na mesma qualquer intervenção.
8) A nomeação e a presença de defensor para uma busca precedida e fundada em despacho judicial é desnecessária e inócua, pois em nada afeta a realização da diligência, razão pela qual a lei não a exige, sem prejuízo de ser passível de ser sindicada, através de contraditório, por defensor/mandatário, em momento próprio, posterior.
9) Nos presentes autos a busca domiciliária não assentou no consentimento do visado, mas em mandado, determinado por despacho judicial, pelo que não têm aplicação os artigos 177.º n.º 2 alínea b) e do 174.º n.º 5 alínea b) do Código de Processo Penal, nem tem qualquer pertinência a convocação do artigo 64.º, n.º 1, alínea d) do mesmo diploma.
10) Assim sendo, não está em causa ato para o qual a lei exija a presença do arguido, ou do seu defensor (artigo 119.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal), pelo que a circunstância de não ter sido nomeado defensor ao recorrente (não obstante a sua idade ser inferior a 21 anos), em nada afeta a validade da busca, que foi realizada em conformidade com a lei, sendo consequentemente válidas e lícitas todas as provas por esse meio obtidas.
11) Nem a busca nem as provas nela obtidas estão feridas de qualquer nulidade, falecendo todos os argumentos do recorrente.
12) Toda a prova recolhida e apreendida no âmbito da busca que se seguiu aos mandados judiciais, cuja apreensão foi devida e oportunamente validada, é lícita e foi licitamente obtida, pelo que pode ser validamente utilizada para prova dos factos objeto de inquérito, não se encontrando inquinada por qualquer tipo de invalidade.
13) Bem andou o Tribunal a quo na decisão proferida a qual interpreta corretamente o direito e não viola nenhuma das normas indicadas pelo recorrente, nem beliscou os seus direitos ou garantias de defesa.
14) Dada a conformidade das buscas e da licitude da prova nela obtida, bem decidiu o Tribunal a quo, ao proferir o despacho recorrido que é conforme à lei, à Constituição da República Portuguesa, à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Convenção Europeia dos Direitos dos Homens, pelo que não merece qualquer censura.
Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, o despacho recorrido ser mantido nos seus exatos termos, com o que se fará JUSTIÇA!

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu parecer pronunciando-se também no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando o posicionamento apresentado pelo Ministério Público na 1ª instância, enunciando (…) Aderimos à fundada argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância pela sua correção jurídica e clareza, bem se pronunciando acerca das questões a dirimir (…) Não é necessária a nomeação de interprete e de defensor oficioso, na circunstância e ocasião da realização de uma busca domiciliária emanada de um mandando judicial, à residência um suspeito estrangeiro que não entenda a língua portuguesa escrita e falada, uma vez que tal diligência não se enquadra na noção de um ato judicial nos exatos termos dos artigos 92º, n.º 2 e 64º, n.º 1, alínea d) , 176º, 177º e 251 nº 1 a) do Código de Processo Penal (…)[1]

Não foi apresentada qualquer resposta.

5. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Questões a decidir

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é dado, nos termos do artigo 412º, nº1 do CPPenal - cf. também artigo 403º, nº 1 do mesmo diploma legal -, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões fundamentais:
a) Busca domiciliária – ato processual;
b) Nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c) do CPPenal, por desrespeito do estatuído no artigo 64º, nº 1, alínea d) do CPPenal.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido, no que ao aspeto em discussão concerne, assentou a sua decisão no seguinte: (transcrição)

Considerando que a busca domiciliária não é, para efeitos de assistência jurídica, um ato processual como o define o artigo 64.º/d) do CPP, foi devidamente autorizada por JIC, por se verificarem os requisitos legais e cumprido por OPC no prazo concedido para o efeito, entende-se que não há qualquer nulidade insanável, nem qualquer outra, que seja de assacar à referida busca, sendo que, e no caso do Arguido (B) os seus pais estavam presentes e assinaram o expediente.
Podendo dar-se a realização de uma busca sem a presença dos suspeitos, por maioria de razão, a sua presença na casa buscada, ainda que desacompanhados de advogado, não enferma o que foi descoberto de qualquer nulidade de prova, nem qualquer outra.
Pelo exposto, indefere-se a arguida nulidade.
Notifique.

2.2. Das questões a decidir

Busca domiciliária, enquanto ato processual
No entendimento do arguido recorrente, a busca domiciliária deve ser vista como um ato processual, sendo que o tribunal recorrido, secundado pelo Digno Mº Pº, defende que (…) a busca domiciliária não é, para efeitos de assistência jurídica, um ato processual como o define o artigo 64.º/d) do CPP.
Parece cristalino, crê-se, que as buscas se apresentam como instrumentos ligados à prova, inscrevendo-se no domínio do exercício da atividade probatória, que abrange o conjunto de atos dirigidos a fornecer à autoridade judiciária os elementos com base nos quais poderá formar a sua convicção sobre a existência e a veracidade de determinados factos.
As buscas assumem-se, assim, como um meio de obtenção de prova, um modo de reunir / coligir / colecionar indícios que possam a vir ser usados para elucidar / desenhar / denotar o cometimento de um crime e a sua autoria[2], sendo, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no nº 5 do artigo 174º do CPPenal, ser efetuadas por órgão de polícia criminal sem a mencionada ordem ou autorização.
De outra banda, importa reter que estando em causa uma busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada, a competência para a ordenar ou autorizar pertence ao juiz de instrução - artigo 177º, nº 1 do CPPenal -, sem prejuízo de, em determinados casos, poder ser ordenada pelo Mº Pº ou efetuada por órgão de polícia criminal – nº 3 do dito inciso legal.
Cabe, igualmente, fazer notar que o regime da busca domiciliária previsto nos normativos combinados dos artigos 177º e 174º do CPPenal, emana da filosofia anunciada pelo 34º da CRP, que consagra o domicílio como um direito inviolável, determinando o nº 2 desse preceito que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Sublinhe-se, ainda, que por força dos artigos 34º nº 2 e 202º, nº 2, da CRP, 177º, nº 1 e 269º, nº 1, alínea c), do CPPenal, a autoridade competente para decretar - autorizar ou ordenar - a busca domiciliária é, como já se disse, o juiz de instrução, sendo que o consentimento do visado, documentado por qualquer forma, legitima a realização de busca domiciliária, a qualquer hora e no âmbito de quaisquer infrações criminais - alínea b) do nº 5 do artigo 174º e nº 3 do artigo 177º do CPPenal.
Ora, concatenando todos estes considerandos e contrariamente ao pensamento extravasado no despacho em sindicância, parece óbvio que a busca, domiciliária ou não, assume o cariz de ato processual na sua plenitude e dimensão.
A visão restritiva de ato processual que parece despontar da tese perfilhada pelo tribunal a quo, não exubera como acolhida quer na doutrina, quer na jurisprudência, assumindo-se como posicionamento que, salvo melhor e mais avisada opinião, não tem qualquer acalento no regime processual vigente, desde logo do que aponta o disposto nos artigos 92º a 102º do CPPenal.
Na verdade, qualquer passo tomado num processo com relevância para a prossecução do mesmo e, essencialmente, que tenha conexão com o arguido e sua posição processual e destino, não pode deixar de ser visto como ato processual, lido e afirmado no artigo 64º, nº 1, alínea d) do CPPenal[3].
O processo penal, tal como se mostra encarado no sistema vigente, abarca uma vasta panóplia de passos / momentos onde exultam os mais diversos atos que vão desde os mais imediatamente visíveis / encarados como tal – constituição de arguido, inquirição de testemunha, acareação, reconhecimento, reconstituição – até aos de mais elaborada / complexa visualização – buscas, revistas, exames.
Face a todo este expendido, ao que se pensa, não restam dúvidas de que a busca domiciliária deve / tem / exige ser vista como um ato processual para os efeitos do disposto no artigo 64º, nº 1, alínea d) do CPPenal, o que determina que se pondere o segundo vetor recursivo.

*
Nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c) do CPPenal, por desrespeito do estatuído no artigo 64º, nº 1, alínea d) do mesmo diploma
Emerge do instrumento recursório, de acordo com o posicionamento ali envergado, que foi cometida nulidade insanável – figura mais grave das invalidades processuais – porque, contrariamente ao legalmente imposto, a busca domiciliária levada a cabo na residência do arguido recorrente o foi sem ser na presença / assistência de defensor, em confronto com o que determina o artigo 64º, nº 1, alínea d) do CPPenal, considerando a idade do mesmo.
Ao que se pensa, esta exigência legal tem como fundamento / alicerce a ideia de que estando em causa arguido especialmente vulnerável e / ou com menores capacidades de perceção do alcance e significado de determinados procedimentos, deve o sistema acautelar o seu posicionamento processual, conferindo-lhe todas as garantias possíveis, onde desponta o estar acompanhado / assistido por advogado.
Mostrando-se pacífico, pensa-se, que no caso de buscas domiciliárias o arguido em quadro de especial vulnerabilidade integrável em qualquer das situações avocadas na dita normação, deve, por princípio, estar assistido por advogado, já quando existe uma busca domiciliária ou exame com base numa ordem judicial, como se está perante quadro que não pressupõe qualquer vontade / decisão / opção do arguido particularmente vulnerável, ao que se pensa, tal não comporta a mesma leitura.
Com efeito, havendo uma ordem / determinação judicial a mesma será para cumprir, nada havendo que possa por algum modo estar dependente de um ato de vontade do visado que, para decidir tem que estar devidamente informado, esclarecido, livre e consciente[4].
Se a realização da busca domiciliária foi legitimada, não pelo consentimento, mas antes por despacho judicial que a autorizou e deu origem à emissão do correspondente mandado de busca e apreensão (…)[5] não há qualquer necessidade / exigência de presença de defensor a coberto do preceito em referência.
E tal assim é porque o despacho judicial que ordenou / demandou a diligência ponderou / sopesou a sua necessidade, independentemente da vulnerabilidade / fragilidade / desproteção / indefensabilidade do visado ou até a ponderou / considerou, inexistindo por isso motivos para a obrigatoriedade da assistência.
Nos casos em que está em causa uma busca que foi determinada por entidade que avaliou da sua necessidade e a fundamentou, para além de não ser necessária a presença do arguido ou suspeito, também a sua realização não pode por este ser impedida e, nessa senda, não há qualquer obrigatoriedade da presença de defensor[6].
Resulta cristalino que o arguido recorrente traz na sua invocação, o que defende ser a jurisprudência dominante, posicionamento tomado em dois arestos que, no seu entender aqui devem ser seguidos.
Salvo melhor e mais avisada opinião, nos ditos acórdãos[7], as buscas domiciliárias foram realizadas tendo por base o consentimento dos visados – que deverá ser livre e esclarecido -, pelo que assume relevância, para aferir da validade desse consentimento, a circunstância de ter sido prestado por menor de 21 anos, por pessoa analfabeta ou por estrangeiro desconhecedor da língua portuguesa.
Todavia, no caso ora em presença, a realização da busca domiciliária foi legitimada não pelo consentimento, mas antes por despacho judicial que a autorizou e deu origem à emissão do correspondente mandado de busca e apreensão, onde foi claramente ponderada a idade do arguido recorrente, conforme está documentado nos autos – despacho proferido no dia 29 de setembro de 2023[8] e mandado emitido em 2 de outubro de 2023[9]- surgindo assim afastada, como se disse, a necessidade / imposição da assistência de defensor.
Por conseguinte, a argumentação expendida como tem por base o consentimento como fonte de legitimação da busca domiciliária é totalmente inaplicável ao caso sub judice.
Ensaia o arguido recorrente, ainda que de forma subtil, ao que se pensa, que o caminho traçado pelo tribunal recorrido e aqui acabado de sufragar, acarreta eventual inconstitucionalidade pois foram violados os artigos da Constituição da república Portuguesa: artigo 8º nº 3 e artigo 32º nº 1 a 5.
Percorrendo todo o articulado em exame, salvo mais avisada e atenta opinião, soçobram dúvidas quanto a esta variante, não se alcançando, efetivamente, quais os verdadeiros fundamentos em que se assenta este traço.
Brota de todo o descrito que aqui o arguido recorrente não segue uma precisa delimitação e enunciação da questão e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte suficientemente argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade que vem defender[10].
Na verdade, limita-se o arguido recorrente à majestática alocução acima referida sem a menor concretização / delimitação.
Como se disse, as buscas domiciliárias foram realizadas a coberto de decisão judicial que ponderou todos os fatores em causa, mormente a idade do arguido recorrente.
Soma que o arguido recorrente teve oportunidade de se pronunciar, de se defender, de se posicionar relativamente ao manancial probatório advindo de tal diligência de obtenção de prova em sede de interrogatório judicial de arguido detido – não o fez no exercício de um direito ao silêncio que se lhe assiste -, não estando, no entanto, impedido de pronunciamento nos diversos momentos processuais que se seguirão.
Nesta esteira, não se descortina como foram cerceados os seus direitos de defesa e, nessa medida, como se violaram comandos constitucionais, mormente os declarados.
Assim, igualmente, sucumbe este momento recursivo.
Perante todo o narrado, nada mais resta que não seja o insucesso do recurso interposto.

III – Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal - 2ª Subsecção - desta Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido (A) e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Comunique de imediato ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Notifique de imediato.


Évora, 6 de fevereiro de 2024
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPPenal)
Carlos de Campos Lobo (Relator)
Fátima Bernardes (1ª Adjunta)
Renato Barroso (2º Adjunto)

__________________________________________________
[1] Cf. a fls. 32.
[2] Neste sentido, BELEZA, Teresa Pizarro, Apontamentos de Direito Processual Penal, Vol. 2, 1993, AAFDL, p. 149.
[3] Neste sentido GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo I, Artigos 1º a 123º, 2ª Edição, 2022, Almedina, p. 735.
Na mesma linha, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/05/2019, proferido no Processo nº 22/13.1GBPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê (…) no processo são praticados por força policial actos de grande relevo processual, auto de notícia, de apreensão, de constituição de arguido, de busca domiciliária, Termo de Identidade e Residência, auto de Direitos de Detido, termos de notificação (…).
[4] Neste sentido, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, ibidem, p. 736.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/01/2019, proferido no Processo nº 401/18.8PBBRR-B.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/12/2017, proferido no Processo nº 45/15.6GAMDL.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/05/2019, proferido no Processo nº 22/13.1GBPTM.E1, já referenciado em 3 onde se lê, neste particular, (…) Ora, sendo o arguido desconhecedor da língua portuguesa, como a Mmª JIC salientou, a força policial deveria ter providenciado para que fosse constituído defensor ao arguido, antes de dar vazão ao voluntarismo (…) apesar disto a força policial avançou para proceder a uma busca domiciliária sem mandado judicial, invocando normas que não poderia invocar, pois que o flagrante delito só ocorreu durante a busca ilegal, ou seja, depois de se ter introduzido na residência do arguido sem consentimento, essa busca é nula, insanavelmente.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/01/2016, proferido no Processo nº 360/15.9PBLRS-A.L1-9, onde se escreve, a este propósito, Sendo o arguido menor de 21 anos impunha-se que o consentimento para a realização da busca domiciliária fosse dado na presença de defensor (…) Não tendo havido consentimento válido para a realização da busca domiciliária nocturna nem um caso de flagrante delito, aquando da mesma, é a busca realizada pelo órgão de policial criminal ilegal e, consequentemente, um meio proibido de prova, não podendo ser utilizadas as provas obtidas através dela, nos termos do disposto nos arts. 125.º e 126.º, n.º 3, ambos do CPP.
[8] Nos presentes autos investiga-se a eventual prática de crimes de roubo e detenção de arma proibida, previstos e punidos pelos artigos 210.º do Código Penal e 86.º, n.º 1 do Regime Jurídico das Armas e Munições, cuja suspeita da prática recai sobre RAFAEL ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO MARTINS DE
SOUSA e CRISTIANO RICARDO BARROCAS DOS SANTOS.
Os factos em investigação datam de 17.08.2023 (…) se queixou de ter sido abordados por dois indivíduos encapuzados, que lhe bateram, tiraram objetos e empunhavam arma de fogo, tendo a vítima sido assistida como consequência do sucedido.
(…)
De acordo com os indícios até ao momento recolhidos nos autos, afigura-se de relevo para o sucesso da investigação a realização da busca domiciliária como promovido pelo Ministério Público, já que os suspeitos poderão ter ainda na sua residência o produto do saque realizado, além de ser importante retirar-lhes a(s) arma(s) que possam ter guardadas.
Como tal e nos termos e para efeitos do disposto no artigo 177.º do Código de Processo Penal, autorizo a realização da busca domiciliária aos suspeitos em causa, uma vez que com os indícios dos autos, é justificável e proporcional violar o domicílio destas pessoas sobre as quais recaem fortes suspeitas da prática dos crimes em investigação.
Pelo exposto, determina-se a emissão de novos mandados de busca e apreensão:
SUSPEITO 1: RAFAEL ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO MARTINS DE SOUSA, nascido a 18.07.2003 (20 anos)
[9] MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO
A Mmª Juiz de Direito (…) Juízo de Instrução Criminal de Setúbal - Juiz 2:
MANDA que, nos termos dos art.ºs 174º, n.º 1,2,4; 177º, nº 1, 178º e 269º al. c), todos do C.P. Penal, seja efetuada BUSCA, às instalações abaixo identificadas, com observância das formalidades legais previstas nos art.ºs 176º e 177º do mesmo diploma legal, PARA EFETIVA APREENSÃO de todos os elementos que possam esclarecer a investigação e instrução do processo, a cumprir no prazo máximo de 30 DIAS - artºs 178º e 174º, nº 4, ambos do C. P. Penal.
A busca deverá incidir sobre a totalidade do imóvel, mesmo na parte ocupada por pessoas diferentes do aqui suspeito, com recurso ao arrombamento de anexos, arrecadações, garagens e outros espaços fechados daquela dependentes (incluindo caixas de correio).
Antes de se proceder a busca, é entregue cópia do despacho que a determinou a quem tiver a disponibilidade do lugar, fazendo-se menção de que pode assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por pessoa de sua confiança, que se apresente sem delonga. Faltando as pessoas referidas, a cópia do despacho pode ser entregue, sempre que possível, a um parente, vizinho ou porteiro ou alguém que o substitua - art.º 176º, nº 1 e 2, do C.P. Penal.
Nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal, juntamente com a busca ou durante ela pode proceder-se a revista de pessoas que se encontrem no lugar, se quem ordenar ou efetuar a busca tiver razões para presumir que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova.
No que dispõe o artº 173º do referido diploma legal, a autoridade competente pode determinar que alguma ou algumas pessoas não se afastem do local do exame e obrigar, com o auxilio da força pública, se necessário, as que pretenderem afastar-se a que nele se conservem, enquanto o exame não terminar e a sua presença for dispensável.
De tudo se lavrará auto.
LOCAL e OBJETIVO DA DILIGÊNCIA: Suspeito - Rafael Alexandre da Conceição Martins de Sousa (…).
Setúbal, 02-10-2023.
[10] Neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 630/2008, de 18/12/2008, proferido no Processo nº 854/08, onde se pode ler (…) não basta a referência a que um preceito legal ou determinada interpretação dele viola a Constituição. É necessário um módico de argumentação dirigida a colocar o juiz perante a necessidade de apreciar tal questão sob pena de incorrer em omissão de pronúncia, porque não é exigível que os tribunais decidam questões (designadamente questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem as razões porque entendem que elas devem ser decididas num sentido e não noutro