Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
996/06-1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 10/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário:
1. É mera assunção constitucional do princípio do acusatório a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento e a distinção entre fases do processo, estabelecendo o legislador , de forma clara, o papel do Ministério Público enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação.
2. Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direcção da fase de julgamento.
3. O legislador viu-se obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”, mas fê-lo de forma clara e excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema que fizesse repristinar o artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929.
4. O papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal é o de evitar que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório.
5. Sujeitando-se ao risco de inconstitucionalidade, já que atribui ao mesmo juiz o papel de fiscalizador moderado da acusação e de presidente da fase de julgamento, algo afastado pelo processo acusatório, risco excluído pela interpretação tendencialmente taxativa e restritiva a que haverá que sujeitar o citado preceitos.
6. Essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal.
7. As alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal consagram uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício, em contraposição com as nulidades sanáveis previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Proc. Nº 996/06.1

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
No processo comum com intervenção de tribunal singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal de ………..por despacho proferido em 8 de Novembro de 2005, a fls. 68-70, o Exmo. Juiz, rejeitou a acusação deduzida nos autos pelo MºPª com fundamento na manifesta improcedência da mesma por ausência de um elemento objectivo do crime de desobediência imputado ao arguido, designadamente a data do trânsito em julgado de condenação anterior.
Inconformado com uma tal decisão, dela interpôs o Mº Pº recurso, que subiu em separado, pedindo seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida nos presentes autos, com as seguintes conclusões:
1. De acordo com o artigo 348º do Código Penal, o crime de desobediência apresenta os seguintes elementos objectivos: 1) - falta a obediência devida a ordem ou mandado legítimos; 2) - que tenham sido regularmente comunicados; 3) - emanados de autoridade ou funcionário competente.
2. Exige-se, ainda, que o dever de obediência provenha de uma disposição legal que comine a desobediência ou, na ausência da aludida disposição legal, que funcionário ou autoridade efectuem a correspondente cominação.
3. Para que se considere preenchido este tipo legal de crime, aos elementos objectivos descritos há-de acrescer o dolo do agente (elemento subjectivo), nos termos dos art. 13" c 14" do CP
4. São estes. e não outros. os elementos constitutivos do crime em análise.
5. Na acusação deduzida nos autos constam claramente todos os elementos objectivos e subjectivos acabados de apontar
6. Provando-se a factualidade constante da acusação, parece-nos evidente que o arguido terá de ser condenado pela prática do crime de que foi acusado.
7. Porém, entendendo diversamente, o tribunal “a quo” considerou que faltava um elemento objectivo do crime em causa: a data do trânsito em julgado da decisão que condenou o arguido na sanção acessória . Pois, segundo o despacho recorrido só na presença deste elemento poderá o tribunal concluir se o arguido faltou ou não à obediência devida à ordem que lhe foi dada.
8. Não vislumbramos qualquer sustentação legal, jurisprudencial ou doutrinária, para tal exigência, sendo que, apesar das diversas pesquisas que efectuamos, em lado nenhum encontramos literatura que considerasse tal facto um elemento objectivo do crime de desobediência.
9. Por outro lado, tendo em conta a forma como a acusação se encontra redigida, não vislumbramos, em termos de elementos constitutivos do crime, qualquer relevância daquela data.
10. Refere-se na acusação que a decisão que condenou o arguido transitou em julgado e que nos dez dias seguintes ao aludido trânsito, o arguido não entregou a sua carta de condução.
11. Parece-nos, assim evidente, a descrição no libelo acusatório da falta de obediência à ordem que foi transmitida ao arguido.
12. Embora a data em que terminava o prazo para o arguido entregar a sua carta de condução não se encontre determinada na acusação, ela é perfeitamente determinável, sendo que, em nosso entendimento, aquela data apenas poderá ter alguma relevância em sede de audiência de julgamento, quando se proceder à produção da prova, não sendo lícito, nesta fase, ao tribunal “a quo” efectuar tal apreciação.
13. De acordo com a jurisprudência dominante, a acusação só é manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do Código de Processo Penal, quando por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis à norma ou normas invocadas.
14. Nada disto se verifica no caso concreto, pois da acusação constam todos os elementos integrativos do crime em apreço, sendo em, em nosso entendimento o que é manifestamente infundado é o despacho que rejeitou a aludida acusação.
15. Pelo exposto. ao rejeitar a acusação formulada nos presentes autos, violou o Tribunal “a quo” o disposto no art. 311º nº 2, aI. a) e nº 3, aI. d). do Código de Processo Penal e o artigo 348º. Al. b) do Código Penal.
*
Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto, secundando o entendimento expresso no recurso, emitiu parecer no sentido da procedência do mesmo.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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B - Fundamentação:
São estes os elementos de facto relevantes, decorrentes do processo:
I. No processo comum com intervenção de tribunal singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal de …, em 8 de Novembro de 2005, a fls. 68-70, o Exmo. Juiz, proferiu o seguinte despacho:

Rejeição da acusação por manifestamente infundada.
O M". P". veio deduzir acusação contra A. … imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348", n" 1. als. a) e b) do Código Penal conjugado com o art. 500º n" 2 do Código de Processo Penal. invocando ter o arguido sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, além do mais, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses. nos termos do art. 69°. n" 1. aI. a) do Código Penal ter sido advertido de que, para cumprimento da sanção acessória, deveria no prazo de dez dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença entregar a carta de condução de que é titular na secretaria judicial deste Tribuna!, sob pena de, não o fazendo, incorrer em crime de desobediência; apesar disso não ter procedido à entrega do referido documento no prazo supra indicado, tendo agido livre, voluntária e conscientemente. bem sabendo que ao não entregar a carta de condução estava a desobedecer a uma ordem legitimamente emanada e que a sua conduta era proibida e criminalmente censurável, não se abstendo mesmo assim de a levar a cabo.
Em nenhum lugar da acusação deduzida nos autos consta a indicação da data do trânsito em julgado da sentença que condenou o arguido em sanção acessória.
A descrição de tais elementos na acusação é essencial. pois a data do trânsito em julgado da sentença constitui elemento objectivo do crime em causa. pois só por referência a este elemento se pode saber se o arguido desobedeceu à ordem emanada da autoridade judiciária.
Com efeito, se o arguido, tal como consta da acusação, apenas estava obrigado a entregar a sua carta de condução no prazo ele 10 dias a contar do transito em julgado da sentença, apenas sabendo-se em que data transitou em ju1gado a sentença (nomeadamente se foi mais de 10 dias antes da data em que foi deduzida a acusação), se poderá concluir que o arguido faltou à obediência devida à ordem que lhe foi dada.
É certo que a fls. 17 a 19 dos autos consta certidão da qual resulta qual a data do transito em julgado da sentença (13/04/2004). Todavia, em nenhuma parte da acusação se indica tal data, sendo certo que quando o arguido e notificado da acusação, não lhe é enviada qua1qucr cópia da referida certidão.
É também certo que na acusação se descrevem factos susceptíveis de integrar o elemento subjectivo da infracção. Porém, não podem os mesmos colmatar a lacuna consistente na falta de factos que Integram o elemento objectivo.
Os factos, tais como se encontram descritos na acusação, não poderão conduzir a uma condenação do arguido pela prática do crime de que se encontra acusado. Só com a prova do facto supra referido (data do trânsito em julgado da sentença), conjugado com os outros factos que constam da acusação se pode concluir pela prática do crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348°, nº 1, ais. a) e b) do Código Penal, conjugado com o ar. 500° do Código de Processo Penal.
Em conclusão: Não constando da acusação todos os factos que integram o elemento objectivo do crime imputado ao arguido na acusação, impõe-se a rejeição da mesma com fundamento no disposto no art. 311°, nº 2, aI. a), por referência ao disposto na alínea d) do nº 3 do mesmo artigo.
Face a tudo o exposto, rejeito a acusação deduzida nos autos.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Notifique e, após trânsito, remeta os autos aos Serviços do Ministério Público.

II. O MºPº havia deduzido acusação, na qual constava, de entre outros factos:
…..
Foi ainda o arguido devidamente advertido de que, para cumprimento da sanção acessória, deveria no prazo de dez dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença acima referida, entregar a carta de condução de que é titular na secretaria judicial deste tribunal, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
Apesar disso o arguido não procedeu à entrega do referido documento no prazo supra indicado.
*****
O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A questão abordada no recurso reconduz-se, pois, a apurar se à acusação deduzida pelo MºP falta um dos elementos objectivos do ilícito penal imputado ao arguido e, por isso, se é manifestamente infundada.
***
1 – A questão que vem de suscitar-se a este tribunal é, na aparência, de manifesta simplicidade.
Deve a data do trânsito em julgado da decisão fonte da desobediência constar da acusação pela prática daquele crime?
Esta manifesta simplicidade é enganadora, pois que nos reconduz a abordar dois tópicos, um de cariz substantivo, outro de cariz processual.
a) - Quanto ao primeiro, apurar se da acusação constam todos os elementos objectivos do crime de desobediência, dir-se-á que seria aconselhável que tal ocorresse.
Daqui não resulta que o facto integrador do elemento objectivo do tipo imputado e em análise se não encontre já ínsito naquela peça, como se deduz da sua simples leitura:

Foi ainda o arguido devidamente advertido de que, para cumprimento da sanção acessória, deveria no prazo de dez dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença acima referida, entregar a carta de condução de que é titular na secretaria judicial deste tribunal, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
Apesar disso o arguido não procedeu à entrega do referido documento no prazo supra indicado.

Como afirma Germano Marques da Silva, o arguido tem que se defender de “factos juridicamente qualificados”, com relevância normativa, e esse está contido na acusação, não obstante se possa afirmar que melhor estaria se contivesse aquela data.
Daí não resulta – da ausência da data – que se possa afirmar que a acusação não poderá proceder ou que o arguido se não possa dela defender.
Os factos citados como constando da acusação serão suficientes, mesmo que se venha a entender proceder ao seu complemento em audiência de julgamento, já que o tribunal não está impedido de o fazer, ainda que o considere como alteração não substancial, nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal.
No entanto, não nos parece que tal ocorra, pois que a aposição de tal data será mera decorrência do facto já contido na acusação.
Como se afirmava no acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997 (BMJ, 467, 419):

I - A acusação, à semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, não pode ser lida e interpretada sectorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente.
II - É lícito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam, desde que não saia do âmbito do seu conteúdo fáctico, nem com essa pormenorização agrave a posição processual do arguido. (Ac. STJ de 7 de Maio de 1997; BMJ, 467, 419);

b) - Estes considerandos preliminares reenviam-nos para a questão essencial do presente recurso. Poderia o Sr. Juiz recorrido, com tal enquadramento, rejeitar a acusação por manifestamente infundada?
É um dado assente, não obstante nem sempre apreendido, que o actual Código de Processo Penal Português se perfila como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, [1] expressão que ficou a constar do nº 4, nº 2 do artigo 2º da Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, Lei nº 43/86, de 26 de Setembro.
Enfim, a consagração do sistema acusatório com princípio da investigação, já defendido por aquele ilustre penalista nas suas lições de 1974, [2] reafirmadas no processo legislativo [3] e elogiado pelo que significa de “superação da tradicional antinomia entre os modelos «inquisitório» e «acusatório»”, como salientou a Prof. Mireille Delmas--Marty. [4]
Daqui resulta, incontestavelmente, como mera assunção constitucional do princípio do acusatório, a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento (dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório) e a distinção entre fases do processo (no caso, acusação e julgamento), no que é definido como a dimensão material daquele princípio. [5]
É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º e 53º do Código de Processo Penal (com as naturais limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).
Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direcção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição), no que seria uma manifestação de alguma disponibilidade das “partes” na definição do que se pretenda seja apreciado pelo tribunal.
Naturalmente que o nosso legislador se viu obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”.
Mas fê-lo de forma clara e mitigada, excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema inquisitorial, mesmo que mitigado, que fizesse repristinar o polémico e sarilhento artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929.
É esse o papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. Evitar a todo o custo que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório.
Naturalmente sujeitando-se ao risco de inconstitucionalidade, já que atribui ao mesmo juiz o papel de fiscalizador moderado da acusação e de presidente da fase de julgamento, algo excluído pelo processo acusatório. Esse risco, no entanto, parece estar limitado, excluído, diríamos, pela interpretação restritiva a que haverá que sujeitar os citados preceitos.
*
2 - Aliás, é bem elucidativo o desenvolvimento legislativo e jurisprudencial sobre o tema.
A primeira versão de tal artigo apenas continha os dois primeiros números:
ARTIGO 311º
(Saneamento do processo)
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidcntais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente na parte em que ela representa uma alteração substancial da acusação do Ministério Público, nos termos do artigo 284.°, n.o 1.

Face à profusão de posições sobre o conceito de “acusação manifestamente infundada”, reconduzindo algumas delas à prolação de jurisprudência obrigatória (já caduca) que, no extremo, veio a consagrar a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária (acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, in DR. I-A, de 26 de Março), o legislador [6] vem a propor a alteração do preceito, alterando os números 1 e 2 e aditando o nº 3 com três alíneas, como segue:
ARTIGO 311
(Saneamento do processo)
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem a apreciação do mérito da causa e de que possa, desde logo, conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido Instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada:
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.°, n. ° 1, e 285.°, n. ° 3, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
c) Se os factos não constituírem crime.

Será assim que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto virá a alterar neste sentido o artigo 311º do Código de Processo Penal, aditando-se, no entanto, uma quarta alínea por sugestão do Cons. Maia Gonçalves, [7] ficando o preceito com a actual redacção, a saber:

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.

Esta evolução, fazendo caducar a doutrina do acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, é esclarecedora do reforço claro das dimensões orgânico-subjectiva e material do princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado.
E as diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal definem, de forma clara, a área de actuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.
*
3 - Aliás, é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.
As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.
Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
Naturalmente que essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal. Veja-se o exemplo citado por Simas Santos, Leal Henriques, Borges de Pinho, de acusação do lesado em vez do arguido [8] ou de familiar deste em vez do arguido.
Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º.
*
4 - Estas maiores cautelas - e necessidade de uma interpretação restritiva – na ingerência na acusação mais se justificam se recordarmos que estamos face a casos em que o processo foi remetido a julgamento sem instrução. É que, nestes casos e face à dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório, exigir-se-ia que fossem diversos os juízes: o que aprecia a acusação e o juiz de julgamento.
Não sendo isso possível ou exequível, melhor se entende a tendencial taxatividade e necessidade de interpretação restritiva das hipóteses de rejeição por manifesta improcedência, única forma de evitar que o juiz que irá proceder ao julgamento se pronuncie sobre a substância da acusação, com a consequente desconformidade ao texto constitucional.
Ora, o caso sub judicio está longe de configurar a hipótese da alínea b) do nº 3 do artigo 311º, que deverá ser interpretada, de forma extrema, como de ausência total ou parcial mas grave, “manifesta”, de factos.
Por tudo, o recurso deve proceder.
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B - Dispositivo:
Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, o qual, oportunamente, deverá ser substituído por outro que designe data para julgamento.
Notifique.
Não são devidas custas.
Évora, 10 de Outubro de 2006
(Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
António Pires da Graça
Rui Maurício




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[1] - “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pag. 330.
[2] - “Direito Processual Penal” – Coimbra Editora, 1974, pags. 71-72.
[3] - “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, vol. II – Tomo II, Assembleia da República, 1999, pag. 24.
[4] - Delmas-Marty, Prof. Mireille - “A caminho de um modelo europeu de processo penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 9, Fasc. 2º, Abril-Junho, pag. 229-231, 1999 e “Conferência Parlamentar – A Revisão do Código de Processo Penal”, in “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, Vol. II – Tomo II, Assembleia da República, Lisboa, pag. 33, 1999.
[5] - “Constituição da República Portuguesa Anotada – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 1993, pag. 206.
[6] - Projecto de Revisão do Código de Processo Penal – Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República – Ministério da Justiça, 1998.
[7] - V. g. “Código de Processo Penal Anotado” – 2004, pag. 616.
[8] - In “Código de Processo Penal” – 2º Vol., Rei dos Livros, pag. 202.