Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
248/12.5TAELV-D.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Para que o tribunal possa determinar a realização de perícia psiquiátrica ao arguido, com vista a apurar da sua inimputablidade (ou da sua imputabilidade diminuída), não basta a comprovação da existência de doença do foro psíquico. Exige-se ainda que da anomalia psíquica resulte uma incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação.

II - Para efeitos de deferimento, pelo tribunal, de perícia psiquiátrica requerida pelo arguido, além da comprovação da existência de "doença bipolar", impõe-se também a alegação e demonstração duma afetação em concreto, decorrente dessa doença: afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação nos autos.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 248/12.5TAELV, que correm termos no Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre (Juiz 1), e mediante pertinente despacho (datado de 01-07-2019), o tribunal indeferiu um pedido de realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido MAFC.

Inconformado com tal decisão, o referido arguido interpôs recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“a) O presente recurso vem interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo na 23.ª sessão de audiência e discussão de julgamento que teve lugar no dia 01.07.2019, pelas 9h30 (ref.ª 29532026), e que indeferiu o requerimento de realização de perícia sobre o estado psíquico do Arguido, ora Recorrente.

b) O Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por entender que a mesma carece de fundamento legal, sendo lesiva, de forma absolutamente gravosa e irreparável, dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados do Arguido.

c) Conforme já decorria dos autos, o Recorrente é doente bipolar (relatório médico e documentos comprovativos da existência de consultas e internamentos juntos à Contestação e Relatório Social elaborado em 24.08.2018).

d) Por se tratar de uma patologia cujo alcance e compreensão exige, evidentemente, uma abordagem técnico-científica especial, o Recorrente, arrolou como testemunha o seu psiquiatra, AS.

e) A testemunha relatou factos e esclareceu questões concretas relacionadas com a doença de que o Recorrente padece e que suscitaram, de forma fundada, a questão da sua eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente.

f) Da conjugação do depoimento da testemunha AS e da restante prova produzida, resulta uma forte probabilidade de que, aquando da alegada prática dos factos de que vem acusado, a doença bipolar da qual o Recorrente sofre tenha tido reflexos na sua capacidade de avaliar ilicitude dos factos ou de se determinar de acordo com a mesma.

g) Apesar da questão da inimputabilidade (absoluta ou diminuída) do Recorrente ser absolutamente evidente em face dos elementos clínicos trazidos aos autos, o Tribunal entendeu “inexistir, pois, qualquer razão para avaliar neste momento o arguido do ponto de vista psíquico”, proferindo o despacho de que ora se recorre.

h) O Tribunal a quo como parece querer olvidar-se dos princípios gerais subjacentes ao direito processual penal, designadamente – e no que ao caso sub judice diz respeito – o da investigação, oficiosidade e da busca da verdade material, previstos inclusivamente no artigo 340.º do CPP.

i) A questão da inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) constitui uma circunstância absolutamente decisiva para a prolação de um juízo de culpa essencial à punição criminal ou do respetivo grau, pelo que, o indeferimento da realização perícia é grave e lesiva dos direitos de defesa do Recorrente, pelo simples facto de o Tribunal não poder ignorar sem mais se a livre vontade humana do Recorrente em que a assenta a responsabilidade penal se encontra(va) comprometida, hoje e à data dos factos.

j) Decidindo como decidiu (pela terceira vez), o Tribunal a quo mostrou-se seguro (ainda que sem qualquer base científica) de que a perturbação bipolar que afeta o ora Recorrente há mais de 20 anos não é elemento passível de suscitar qualquer dúvida sobre a sua imputabilidade, fazendo tábua rasa dos princípios gerais do direito penal e direito processual penal.

k) A falta de realização da perícia psiquiátrica consubstancia indubitavelmente a preterição de uma diligência indispensável à descoberta da verdade.

l) O Tribunal a quo fundou a sua decisão na inexistência de dúvidas sobre a inimputabilidade do Recorrente em 4 (quatro) argumentos, sendo todos eles absolutamente falaciosos e desprovidos de sentido lógico legal.

m) O Tribunal a quo afirma que a Testemunha AS “não manifestou ter qualquer conhecimento sobre os factos concretos em discussão, nem sobre o comportamento do arguido nesse período temporal”.

n) A ser assim devemos então concluir que, na entender do Tribunal a quo, o facto da Testemunha AS ser (ou não) médico psiquiatra do Recorrente à data dos factos é condição sine qua non para que o conteúdo das suas declarações sejam aptas a suscitar dúvidas fundadas no que à (in)imputabilidade do Recorrente diz respeito?

o) É que, como bem sabemos, na sua qualidade de médico psiquiatra, a Testemunha AS é pessoa qualificada e detentora de conhecimentos técnico-científicos para a realização de tal avaliação - inclusivamente póstuma.

p) Numa perspetiva médico-legal, a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, consiste na destruição, por essa anomalia, das conexões reais e objetivas entre o agente e o facto, de tal modo e em grau, que torne impossível a compreensão do facto (ilícito) como facto do agente. Desta forma o agente torna-se como um objeto passivo de processos funcionais

q) Do ponto de vista da teoria geral do crime, a inimputabilidade em razão da anomalia psíquica obsta à condenação do agente respetivo com base na culpa, apenas podendo ser-lhe aplicada medida de segurança como reação à perigosidade já verificada no facto típico e ilícito.

r) A inimputabilidade em razão da anomalia psíquica a que se reporta o artigo 20º, nº 1, do CP, depende da verificação do elemento biopsicológico e de um elemento normativo.

s) É precisamente no decurso do depoimento da Testemunha AS, médico psiquiatra, que a defesa do Recorrente compreende os efeitos e o alcance da referida psicose, bem como da elevada probabilidade de, à data dos factos, o Recorrente, em virtude da mesma, não ser capaz de avaliar a ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação.

t) A Testemunha referiu que o Recorrente tinha o diagnóstico de doença bipolar desde os 27 anos de idade, ou seja, há cerca de 20 anos.

u) Explicou ainda, de forma clara e absolutamente credível, que a doença bipolar, quando não se encontra controlada por fármacos, oscila entre estados de depressão e de euforia (mania), podendo cada um desses estados serem despoletados por “fatores desencadeantes”.

v) Do depoimento da Testemunha AS resulta que a psicose do qual o Recorrente padece é uma doença crónica – sendo irrelevante, para a apreciação de uma eventual dúvida sobre a questão de inimputabilidade, o facto de a testemunha ter, ou não, acompanhado clinicamente o Recorrente no período em questão.

w) Desde logo, porque se assim fosse, nenhuma perícia ao estado psíquico do Arguido (nos termos do artigo 351º do CPP) seria passível de demonstrar e comprovar a eventual inimputabilidade dos agentes do crime dado que, à semelhança do que sucede no caso concreto, o perito designado para o efeito não terá qualquer conhecimento sobre os factos concretos em discussão, nem acompanhou o Recorrente durante o período em questão.

x) Aliás, incompreensível seria admitir a realização da perícia sobre o estado psíquico dos Arguidos, nos termos do artigo 351º do CPP, apenas e só quando a questão da inimputabilidade (ou imputabilidade diminuída) fosse demonstrada (e não “suscitada”, como refere a referida disposição legal).

y) Imprescindível é sim que, durante a audiência de julgamento, sejam invocados motivos fundamentadamente capazes de fazer suscitar a dúvida (plausível) sobre uma eventual imputabilidade.

z) O legislador penal consagrou, em matéria de pressupostos aferidores da inimputabilidade, um modelo misto. Modelo esse que nem prescinde do contributo dos cientistas do homem (médicos psiquiatras, psicólogos, criminólogos, etc.), nem deixa de cometer ao juiz a competência para a declaração de inimputabilidade como problema normativo que é.

aa) Ou seja, para a verificação do elemento biopsicológico, o legislador atribui a competência para aferir sobre tal matéria aos “cientistas do homem”.

bb) Tendo sido por aqueles apurada a existência de anomalia psíquica (assim como o seu alcance e consequências do caso concreto), passar-se-á, então, para a apreciação do elemento normativo e cuja competência cabe ao Tribunal.

cc) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo encontra-se numa manifesta usurpação de competências na apreciação do elemento biopsicológico da inimputabilidade.

dd) O Tribunal a quo insiste em negar ao Recorrente, de forma absolutamente injustificada e violadora dos seus deveres de investigação e respeito pelos direitos de defesa, a realização de uma perícia psiquiátrica ao Recorrente.

ee) Para a prova da inimputabilidade, somente a perícia psiquiátrica resultará idónea a uma conformação médico-legal.

ff) Ora, se não foi realizada nenhuma perícia psiquiátrica, como terá o Tribunal a quo fundado a sua convicção de que o Recorrente padece duma doença bipolar e, consequentemente, que se encontra demonstrado o elemento biopsicológico?

gg) Mais, se não foi realizada nenhuma perícia psiquiátrica, como poderá o Tribunal a quo firmar a sua convicção em relação ao elemento normativo dos pressupostos da inimputabilidade, ou seja, de que a anomalia psíquica do Recorrente não afetou, de modo algum, a sua capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

hh) A intransigência demonstrada pelo Tribunal a quo na admissão da realização de perícia psiquiátrica ao Recorrente não é inédita. É, aliás, tema de estudo na nossa doutrina – designadamente entre juízes dos nossos Tribunais

ii) A perícia psiquiátrica é, como referido, o meio de prova apto para verificação do pressuposto biopsicológico da inimputabilidade – o que há muito se tem vindo a requerer.

jj) Por seu turno, o juízo de desnecessidade de realização de perícia psiquiátrica proferido pelo Tribunal a quo constitui uma “opinião” que, a proceder, configurará uma “entorse” ao princípio da culpa e dos direitos de defesa do Recorrente.

kk) Por fim, o Tribunal a quo conclui inexistir fundamento para equacionar a realização de perícia psiquiátrica ao Recorrente por referência aos depoimentos do Arguido Fernando Gouveia e Testemunhas José Raposo Ferreira e Marco Lopes.

ll) Com tais considerações de facto, o Tribunal a quo demonstra um absoluto desconhecimento da anomalia psíquica em questão, parecendo confundir a doença bipolar (que é uma psicose endógena) com, por exemplo, uma oligofrenia.

mm) A capacidade intelectual não é diretamente afetada pela doença bipolar. O que é afetado é, como resulta do depoimento da Testemunha assim como da doutrina e jurisprudência citadas, o discernimento dos doentes para avaliar o caso concreto durante os estados de euforia ou mania.

nn) Nunca foi posta em causa, por nenhuma das Testemunhas supra referidas, o quociente de inteligência do Recorrente. Não é disso que trata. O doente bipolar pode, dependendo da fase da doença em que se encontra, ter uma vida de sucesso profissional, mas ter episódios durante a mesma que lhe toldam o discernimento. E a essa avaliação apenas uma perícia psiquiátrica pode ajuizar.

oo) Do exposto resulta, desde logo, que os argumentos invocados pelo Tribunal a quo carecem de fundamento, devendo, por consequência, o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que ordene a realização da perícia sobre o estado psíquico do ora Recorrente, nos termos do artigo 351º do CPP.

pp) Do depoimento da Testemunha AS constata-se a existência de uma mais do que dúvida plausível quanto à capacidade do Recorrente entender e querer a sua conduta nos estados de euforia, de forma livre e consciente, como se exige no direito penal.

qq) A apreciação dos efeitos e consequências, no caso concreto, da anomalia psíquica para efeitos de (in)imputabilidade constitui uma questão de cariz técnico/científico e relativamente aos quais o Tribunal a quo não se deveria considerar competente para aferir, per si e sem o contributo de profissionais do foro.

rr) Existindo nos autos evidências de que: o Recorrente é doente bipolar - doença psiquiatra grave que afeta o discernimento dos doentes e é causa de inimputabilidade penal, diagnosticada pelo menos desde os 27 anos - (cfr. depoimento do seu médico); (ii) durante o período em questão (2005-2009) foram relatados episódios passiveis de serem considerados como indícios de desvios à estabilidade psíquica do Recorrente e manifestações de crises de euforia, não tem o Tribunal competência técnica para aferir se o Recorrente tinha ou não a sua imputabilidade afetada à data dos factos.

ss) Por responder fica igualmente outra questão de extraordinária relevância e que diz respeito à capacidade do Recorrente, mercê da sua anomalia psíquica, representar racionalmente os seus interesses, exercer os seus direitos e de conduzir a sua defesa de forma inteligente e inteligível. Ao contrário do firmado pelo Tribunal a quo no despacho ora em crise, a sua anomalia psíquica não condiciona só a possibilidade do Arguido prestar ou não depoimento “cabendo ao mesmo decidir se pretende prestar ou não declarações”.

tt) Sucede que, apesar de ser notória a incapacidade do Recorrente para estar em juízo, o Tribunal a quo continua a considerar que a sua manifesta debilidade psicológica (visível, inclusivamente, a olho nu) é um mero pormenor, sem absoluta relevância no ordenamento jurídico nacional e internacional.

uu) A incapacidade dos Arguidos para o processo é matéria regulada noutras legislações contemporâneas – como é o caso do Código de Processo Penal italiano, determinando a suspensão do processo no caso de arguido incapaz de nele participar conscientemente.

vv) A questão da imputabilidade do Recorrente não é assim um pormenor, mas uma questão essencial à boa aplicação da Justiça e que tem que ser dilucidada por quem tem capacidade técnica para o fazer: um Perito, mediante a realização de uma perícia psiquiátrica.

ww) Enferma assim de erro grave a decisão tomada pelo Tribunal a quo ao considerar não existirem dúvidas acerca de imputabilidade do Recorrente à data dos factos (2005- 2009), quando todo os elementos no processo apontam em sentido diverso.

xx) Acresce que, se analisarmos a jurisprudência produzida sobre esta matéria, constatamos que a doença bipolar é uma doença considerada pelos nossos Tribunais como suscetível de gerar uma situação de inimputabilidade, certamente em face do compromisso do discernimento que a mesma causa a quem dela sofre – decisões todas elas tomadas com base em relatórios periciais recolhidos nos respetivos processos

yy) Em síntese, o diagnóstico de patologia psíquica, o parecer sobre a eventual inimputabilidade, bem como a prognose clínica da perigosidade dizem respeito a quesitos a que o perito deve responder no relatório pericial. Pelo que, não cabe ao Tribunal a quo assumir as vestes de peritus peritorum, assumindo e emitindo a sua própria valoração sobre a inimputabilidade do Recorrente.

zz) Impunha-se ao Tribunal a quo, sim, ao abrigo do princípio da investigação e descoberta da verdade material, expressamente previsto no artigo 340º do CPP, que, em virtude dos elementos probatórios constantes dos autos, ordenasse a realização da perícia psiquiátrica que permita chegar a uma conclusão quanto à inimputabilidade do Recorrente.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser proferida decisão que revogue o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que, por se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade do Recorrente, ou a sua imputabilidade diminuída, ordene a realização de perícia psiquiátrica”.

*

O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo do seguinte modo (em transcrição):

“- O simples depoimento de uma testemunha não pode fundamentar uma alegada inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido, designadamente no período de tempo em que ocorreram os factos de que vem acusado.

- A decisão do Tribunal a quo não violou qualquer norma legal, nomeadamente não violou o estatuído nos artigos 20º do Código Penal e/ou 340º e 351º do Código de Processo Penal.

- Decisão que foi corretamente aplicada face aos elementos constantes dos autos.

- Revelando cuidadosa fundamentação no que concerne ao indeferimento da pretendida perícia psiquiátrica.

- Expressando uma acertada subsunção dos factos à lei.

- Louvando-nos, pois, no bem fundado da douta decisão recorrida, somos de parecer que o recurso dela interposto não merece provimento”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso dever improceder, na esteira da fundamentação apresentada pelo Exmº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância na resposta ao recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e o processo foi à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Tendo em conta as conclusões acima enunciadas (e apresentadas pelo recorrente), as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma a questão que vem suscitada no presente recurso: saber se o despacho recorrido deve (ou não) ser revogado e substituído por outro que defira a pretensão do recorrente e ordene a realização de perícia sobre o estado psíquico do mesmo (com base no depoimento da testemunha AS, médico psiquiatra, que relatou que o recorrente padece, desde os 27 anos de idade, de “doença bipolar”, o que suscita, de forma fundada, a questão da sua eventual inimputabilidade, ou, também eventualmente, da sua imputabilidade diminuída).

2 - A decisão recorrida.

O despacho sub judice é do seguinte teor (na parte aqui relevante):

“O arguido MAFC veio pedir, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351º do Código de Processo Penal, e na sequência do depoimento prestado pela testemunha AS, médico psiquiatra, a realização de perícia sobre o seu estado psíquico, invocando, para tanto, a doença psíquica de que padece - doença bipolar -, de natureza endógena, e com efeitos ao nível comportamental, nomeadamente ao nível do seu estado de consciência.

Diz, ainda, o arguido, que a dita testemunha não o acompanhava à data dos factos, mas que esclareceu que aquele tem a doença há cerca de vinte anos, que atravessou períodos graves, e, quando questionado acerca da possibilidade de o arguido prestar declarações em sede de audiência de julgamento, salientou, com preocupação, o estado de equilíbrio precário da saúde mental daquele.

Deste modo, entende o arguido, em face das explicações médicas dadas em audiência de julgamento, que existe uma fundada suspeita em relação à inimputabilidade do arguido, ou, no limite, à sua imputabilidade diminuída, pelo menos nas fases agudas/de descompensação da doença, quer presentemente, quer à data da prática dos factos em apreço nos autos, que não pode ser ignorada, pedindo, em consequência, que se ordene a realização de perícia psiquiátrica, por existirem dúvidas bastantes sobre a capacidade de avaliação e autodeterminação do arguido em relação à ilicitude dos factos de que vem acusado.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da pretensão do arguido, em virtude das declarações do médico psiquiatra que foi ouvido em julgamento não poderem sustentar a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido MC, designadamente no período de tempo em que ocorreram os factos de que vem acusado.

Cumpre decidir.

Dispõe o artigo 351º do Código de Processo Penal:

“1. Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.

2. O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.

3. Em casos justificados pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado”.

De acordo com o disposto no artigo 20º, nº 1, do Código Penal, “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”, daqui se inferindo que o nosso Código Penal acolheu, na determinação da imputabilidade/inimputabilidade do agente, o denominado “método misto”, isto é, um método que combina um elemento biológico - traduzido na necessidade de existência de uma anomalia psíquica, pese embora a mesma, apenas por si, não seja suficiente para produzir os efeitos normativos - com um elemento normativo ou psicológico, de acordo com o qual é inimputável quem for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ou seja, não tiver capacidade de valoração nem a capacidade de se determinar de harmonia com tal valoração.

O arguido MC entende que, em resultado das declarações da testemunha ASF, médico psiquiatra, e que o acompanha do ponto de vista médico desde o ano de 2012, existem razões fundadas para poder crer que à data dos factos era inimputável, ou seja, que em consequência da doença de que já então padecia - doença bipolar - era incapaz, no momento dos factos em discussão, de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ou seja, que era destituído de capacidade de valoração ou capacidade de se determinar de harmonia com tal valoração (cfr. artigo 20º do Código Penal).

A testemunha já identificada deu conta do quadro clínico do arguido a partir do momento em que o mesmo passou a ser seu paciente - em 2012 -, prestou esclarecimentos sobre a doença de que padece, os períodos de crise que vivenciou após aquele momento, e confirmou, efetivamente, que a doença já estava diagnosticada quando o arguido o procurou para efeitos de acompanhamento clínico.

Não obstante tudo quanto disse a propósito da doença, quer em termos genéricos, quer a propósito da manifestação da mesma em comportamentos do arguido a partir do ano de 2012, aquela testemunha não manifestou ter qualquer conhecimento sobre os factos concretos em discussão, nem sobre o comportamento do arguido nesse período temporal.

Acresce, por outro lado, que a imputabilidade do arguido à data dos factos é evidenciada por outros meios de prova já produzidos, nomeadamente, e de forma muito sintética, como aqui se impõe, pelas declarações do arguido FG, que salientou a inteligência de MC e deu conta da atividade empresarial e de consultoria que levava a cabo e com quem firmou vários contratos, no valor de milhares de euros à data dos factos em discussão, e designadamente, no âmbito da situação factual descrita na acusação pública, estando tal contrato junto aos autos; pelo testemunho de JRF, diretor da banca institucional da ……….. e que, nessa qualidade, deu conta do trabalho que MC então desenvolvia, nomeadamente ao nível de acompanhamento de projetos de parcerias público privadas e em ações de promoção/esclarecimento deste modelo, promovidos inclusivamente pela……. e pelo testemunho de ML, trabalhador da ………, que recebia ordens diretas daquele arguido e que deu conta de trabalho desenvolvido a pedido deste, nomeadamente de estudo de viabilidade a que também se reportam estes autos.

Inexiste, pois, qualquer razão para avaliar neste momento o arguido do ponto de vista psíquico, cabendo ao mesmo decidir se pretende prestar ou não declarações em audiência de julgamento face ao invocado estado de saúde atual.

Notifique”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega o recorrente, em breve síntese, que padece de “doença bipolar”, doença crónica, diagnosticada aos 27 anos de idade, doença confirmada, em audiência de discussão e julgamento, pela testemunha AS (médico psiquiatra que acompanha medicamente o recorrente desde 2012) e doença que suscita, de modo inteiramente fundado, a questão da existência de uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do ora recorrente.

Por tudo isso, assim sumariamente apresentado, o recorrente requereu a realização de perícia sobre o seu estado psíquico, requerimento que foi indeferido pelo despacho revidendo.

Cumpre apreciar e decidir.

Analisando o despacho revidendo e lendo a motivação do recurso, e ao que conseguimos entender, verificamos que o tribunal a quo e o ora recorrente estão de acordo nos seguintes elementos:

1º - A testemunha AS (médico psiquiatra) acompanha o recorrente, do ponto de vista da sua especialidade médica, desde 2012;

2º - Face ao relatado por tal testemunha, o recorrente padece de “doença bipolar”;

3º - No período de tempo em que ocorreram os factos delitivos dos quais o ora recorrente está acusado nestes autos, a testemunha AS ainda não acompanhava medicamente o recorrente.

4º- O recorrente padece, desde há muitos anos, de “doença bipolar” (conforme resulta do depoimento da testemunha AS, do depoimento da testemunha mulher do arguido e de diversa documentação clínica junta aos autos).

Até aqui, tudo é indiscutido e pacífico.

Também parece indiscutido nos autos, por resultar das regras da “experiência comum” (a nosso ver, e com o devido respeito por diferente opinião), que a chamada “doença bipolar”, em termos genéricos, se manifesta nos respetivos doentes pela existência, alternadamente, de estados de depressão com estados de euforia (ou de “mania”).

Ora, mesmo perante essa doença mental do ora recorrente (doença cuja existência o tribunal a quo, em boa verdade, inteiramente reconhece), a questão que se coloca consiste em saber se tal doença mental, só por si, basta (ou não) para suscitar a dúvida sobre a imputabilidade do arguido (ou sobre a sua plena imputabilidade).

Ou seja, o dissídio efetivamente existente e colocado à nossa apreciação consiste em saber se a “doença bipolar” do ora recorrente, diagnosticada há dezenas de anos, e mesmo que existente à data dos factos delitivos em apreço, justifica ou não, já no decurso da audiência de discussão e julgamento, em 2019, a realização de perícia psiquiátrica, com vista a apurar da eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do ora recorrente.

Ora, e em nosso entender, não justifica.

Com efeito, e como muito bem se assinala no Ac. deste T.R.E. de 04-06-2019 (relatora Ana Brito, e disponível in www.dgsi.pt), “para a declaração de inimputabilidade (e a dúvida sobre a imputabilidade, que a precede) não basta a existência de doença do foro psíquico. Exige-se que da anomalia psíquica resulte uma incapacidade para avaliar a ilicitude do facto ou se determinar de harmonia com essa avaliação. Para além da comprovação da doença bipolar, impõe-se ainda a alegação e demonstração duma afetação em concreto, decorrente dessa doença: afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação no julgamento”.

Do depoimento da testemunha AS é possível concluirmos que o recorrente sofre de “doença bipolar”, tudo indicando também que já padeceria dessa doença à data dos factos delitivos em apreço nos autos.

Contudo, essa conclusão refere-se tão-só ao “elemento biológico”, não existindo nos autos nenhum elemento de prova (ou sequer alguma alegação concreta e consistente) que nos permita, minimamente, considerar como verificado também o “elemento normativo”, elemento este que a lei exige, cumulativamente, para a eventual ponderação sobre a imputabilidade de qualquer arguido (“elemento normativo” que se traduz, repete-se, e citando o aludido acórdão deste T.R.E., na “afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação no julgamento)”.

É que, nem do depoimento da testemunha AS (médico psiquiatra) nem de qualquer outro meio de prova é possível retirar, como é exigível, qualquer facto concreto, ocorrido no período temporal referenciado na acusação, que permita indiciar, sequer, e com referência aos factos narrados na acusação, qualquer “afetação da capacidade de discernimento e de avaliação pelo arguido da ilicitude dos concretos factos delituosos em apreciação”.

Por outras palavras: a “doença bipolar” do ora recorrente, ainda que já existente à data dos factos delitivos em discussão neste processo, não significa, automaticamente, que a mesma lhe tenha afetado a respetiva capacidade de avaliação da ilicitude dos factos que lhe estão imputados e, bem assim, a capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.

Bem pelo contrário: não podendo a questão sobre a imputabilidade do arguido ser apreciada em abstrato, a partir da mera ocorrência biológica de uma “doença bipolar”, conforme por nós já assinalado, o tribunal de primeira instância, com inteiro acerto, socorreu-se de toda uma panóplia de elementos, retirados dos autos, que lhe permitiram, fundadamente, indeferir a pretendida realização de perícia psiquiátrica ao ora recorrente. Para tanto, e muito bem, esse tribunal deixou consignado no despacho revidendo: “a imputabilidade do arguido à data dos factos é evidenciada por outros meios de prova já produzidos, nomeadamente, e de forma muito sintética, como aqui se impõe, pelas declarações do arguido FG, que salientou a inteligência de MC e deu conta da atividade empresarial e de consultoria que levava a cabo e com quem firmou vários contratos, no valor de milhares de euros à data dos factos em discussão, e designadamente, no âmbito da situação factual descrita na acusação pública, estando tal contrato junto aos autos; pelo testemunho de JRF, diretor da banca institucional…………… e que, nessa qualidade, deu conta do trabalho que MC então desenvolvia, nomeadamente ao nível de acompanhamento de projetos de parcerias público privadas e em ações de promoção/esclarecimento deste modelo, promovidos inclusivamente pela ……; e pelo testemunho de ML, trabalhador da ………. que recebia ordens diretas daquele arguido e que deu conta de trabalho desenvolvido a pedido deste, nomeadamente de estudo de viabilidade a que também se reportam estes autos”.

O sucesso profissional do arguido, a sua capacidade de avaliação de factos complexos e a sua capacidade de decisão são, a nosso ver também, elementos incompatíveis com o questionamento, no decurso da audiência de discussão e julgamento, da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido/recorrente à data e no momento dos factos que lhe são imputados nestes autos.

Em suma: no momento da prática dos factos delitivos em apreciação nos autos, não existe a mínima dúvida sobre a capacidade de o ora recorrente avaliar a ilicitude dos mesmos e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação

O mesmo sucede no momento presente, onde, ao que resulta dos autos e ao que é alegado na motivação do recurso, nada permite questionar, com a mínima concretude, substância e legitimidade, a plena imputabilidade do arguido/recorrente, apesar de o mesmo continua a padecer, como padece desde há muitos anos, de “doença bipolar” (doença mental crónica, acima sumariamente caracterizada).

Ou seja, nada justifica a realização da pretendida perícia psiquiátrica (com vista a apurar da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do ora recorrente).

Aliás, e com o devido respeito pelo recorrente, a questão da existência de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída do mesmo, suscitada nos termos e no momento em que o foi, afigura-se-nos constituir, sem mais, a mera utilização de um puro estratagema processual, com fins manifestamente dilatórios, como que numa tentativa (baldada) de conseguir uma “desresponsabilização” criminal do ora recorrente a todo o preço, isto é, ainda que obtida através do simples decurso do tempo (tempo contado a partir do momento dos factos delitivos em causa).

Face ao predito, o presente recurso não merece provimento, sendo de manter a decisão revidenda.

III - DECISÃO.

Pelo exposto, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 21 de janeiro de 2020

(João Manuel Monteiro Amaro)

(Laura Goulart Maurício)