Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1110/13.0 T2STC. E2
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PASSAGEM DE NÍVEL
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
A figura do abuso de direito, na modalidade especial do “venire contra factum proprium”, conhecida por supressio é inaplicável, por natureza, para reverter a supressão de uma passagem de nível particular.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório
BB, S.A., com sede na rua B…, nº …, Lisboa, intentou a presente ação declarativa, na forma de processo comum, contra a Rede Ferroviária Nacional-Refer, EPE, com sede na Estação de Santa Apolónia, na mesma cidade, pedindo que se reconheça o seu direito ao atravessamento, por passagem de nível de peões e viaturas, à parcela de terreno que integra a sua propriedade, denominada Herdade do V…, freguesia de Santa Maria, concelho de Alcácer do Sal, declarando-a passagem de nível particular, nos termos do artigo 24º., nºs 1, b) e 3 do Decreto-Lei nº 568/99, de 23 de dezembro, e a sua condenação no pagamento das importâncias de €29.000,00 e € 56.000,00, a título de reparação de prejuízos, decorrentes “da supressão ilegal da passagem de nível que impediu o acesso à propriedade da A.”, para tanto articulando factos que, em seu critério, conduzem à sua procedência, a qual, porém, foi julgada improcedente.

Inconformada com o decidido, recorreu a demandante culminando com as seguintes conclusões[1]:
- A sentença impugnada é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão;
- Os pontos 27 dos factos provados e 1.h dos não provados encontram-se mal julgados;
- O primeiro deve ser considerado não provado e o segundo provado;
- A requerida modificação fundamenta-se nos elementos probatórios indicados;
- Ocorreu um erro na aplicação do direito aos factos.

Contra-alegou a recorrida Rede Ferroviária Nacional-Refer E.P.E., pugnando pela manutenção do decidido.

O objeto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) a alegada nulidade da sentença recorrida; b) o invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração da matéria de facto constante dos pontos 27 dos factos provados e 1.h dos não provados; c) o invocado erro na aplicação do direito aos factos assentes.

Foram colhidos os vistos legais.

Fundamentação

A- Os factos
Na sentença recorrida, foram considerados os seguintes factos:
1 - A Autora é uma sociedade que tem como objeto social o planeamento, promoção e desenvolvimento de projetos, no âmbito de atividades agrícola, pecuária, florestal, imobiliária, turística e cinegética;
2 - A Ré é uma empresa pública, com a natureza de pessoa coletiva de direito público e autonomia administrativa e financeira, responsável pela prestação do serviço público de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional;
3 - A Autora é proprietária do prédio misto, com a área de 3.148,7282 ha, denominado Herdade do V…, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Alcácer do Sal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal, sob o nº …/150391 e inscrito, a parte rústica, na matriz cadastral daquela freguesia, sob o artigo …º, secções H, H1, H2, H3, H4 e H5, sendo que a aquisição está averbada na referida conservatória, pela Ap. 1995/01/10;
4 - O imóvel é atravessado pela Linha Férrea do Sul, cuja gestão cabe à Ré, desde a data da sua construção;
5 - A Linha Férrea do Sul foi construída sem expropriação;
6 - A Linha Férrea do Sul atravessa a zona sudoeste da propriedade, deixando completamente isolada uma parcela com a área de 31 ha, que fica limitada pela referida linha férrea, o rio Sado e várzeas de arroz de outras propriedades;
7 - Na parcela isolada, eram realizadas culturas de arroz e estão instaladas várias áreas de pinhal e de montado de sobro;
8 - Aquando da construção da linha férrea, criaram-se três passagens de nível, que permitiam o atravessamento da referida linha férrea e, consequentemente, a circulação dentro da propriedade, designadamente, de pessoas, viaturas e maquinaria agrícola;
9 - Entretanto, foram fechadas duas das três passagens de nível, tendo a Ré mantido uma que era constituída por tábuas de madeira entre carris e protegida por cancelas, que apenas são abertas, quando existe necessidade de atravessamento;
10 - Entre finais de abril e princípios de maio de 2006, a Ré propôs à Autora a celebração de contrato com vista à concessão de licença de atravessamento da passagem de nível em causa, o que a Autora recusou;
11 - Na sequência dessa recusa, a Ré informou que procederia ao encerramento da passagem de nível, o que veio a acontecer, em 9 de junho de 2006, tendo sido colocados cadeados nas cancelas, que foram selados;
12 - Desta forma, a Autora ficou, desde 9 de junho de 2006, impossibilitada de aceder à predita parcela;
13 - A criação das três passagens de nível permitia o atravessamento da linha férrea e a circulação dentro da propriedade de pessoas, viaturas e maquinaria agrícola
14 - A passagem de nível em causa era utilizada apenas no âmbito da exploração agrícola do prédio e para trânsito de pessoas relacionadas com essa exploração e das viaturas e maquinaria necessária à mesma;
15 - A Autora cedia a exploração da várzea de arroz da propriedade, isolada e sem acesso, desde 9 de junho de 2006, todos os anos, a título de arrendamento;
16 - Na sequência do encerramento da passagem de nível pela Ré, um dos rendeiros, a quem a Autora cedia a exploração das várzeas de arroz, ficou impedido de prosseguir com os trabalhos agrícolas, designadamente, mondas, fertilizações e controlo de águas indispensáveis ao desenvolvimento da cultura;
17 - Para além de impossibilitado de prosseguir com as explorações agrícolas e, em virtude do encerramento da passagem de nível, a Autora fica também impedida de proceder aos cuidados necessários na área de pinhal e montado de sobro, situados na propriedade isolada;
18 - Na sequência do encerramento da passagem de nível, o rendeiro acima aludido teve, nesse ano, uma perda total da sementeira de arroz;
19 - Desde 2006 até à presente data, a Autora perdeu os montantes relativos a rendas que poderia ter recebido se a propriedade tivesse acesso garantido pela passagem de nível;
20 - Na sequência de celebração de contrato, a sociedade CC-Serviços Agrícolas, Unipessoal, procedeu ao pagamento da quantia de €8.000,00, a título de rendas, desde 1 de março de 2006 até 30 de novembro de 2006;
21 - Desde junho de 2006 e até final do contrato - novembro de 2006 - a sociedade CC-Serviços Agrícolas, Unipessoal, viu-se impedida de prosseguir com a exploração da parcela de terreno, em virtude do encerramento da passagem de nível;
22 - A Autora indemnizou a sociedade CC-Serviços Agrícolas, Unipessoal, por todos os investimentos realizados para proceder à colheita de arroz naquele período, bem como dos lucros que aquela sociedade deixou de obter, na sequência da perda das colheitas de arroz, no valor global de €29.100,00;
23 - Em 25 de outubro de 1988, a CP celebrou com a Cooperativa DD, o contrato nº 150/88 de licença de concessão de passagem de nível particular referente à passagem de nível em causa nos autos, mediante o pagamento de uma taxa, que se manteve em vigor até a cooperativa deixar de explorar o prédio;
24 - Em 19 de março de 1991, foi celebrado novo contrato, 9/91, com outro concessionário, no âmbito do qual foi concedida a licença de utilização da mesma passagem de nível, mediante o pagamento de uma taxa;
25 - Tal contrato veio a ser denunciado, pelos herdeiros do titular da licença, em 28 de setembro de 2005, com a comunicação à Ré do falecimento do cessionário e a interrupção da atividade agrícola da parcela referida;
26 - A Ré, em carta da resposta aos herdeiros do concessionário informou que, face à denúncia do contrato, iria proceder ao encerramento da passagem de nível;
27 - Existe a possibilidade de acesso à parcela de terreno em causa, através de tereno vizinho, de particulares.

Na mesma sentença, foi julgado não provado o seguinte facto, nomeadamente:
1.h- Desde 2006 e até à presente data, a Autora esteve e está impossibilitada de aceder à parcela isolada de terreno, pelo encerramento da passagem de nível.

B - O direito/jurisprudência/doutrina

Quanto à alegada nulidade da sentença recorrida
-“Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se” [2].

Quanto ao invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração da matéria de facto constante dos pontos 27 dos factos provados e 1.h dos não provados
- “A prova, no processo, pode (…) definir-se como a atividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjetiva) da realidade de um facto. Para que haja prova é essencial esse grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva[3];
- “Se o juiz fica em dúvida sobre determinado facto, por não saber se ele ocorreu ou não, o non liquet do julgador converte-se, na sequência da diretiva traçada pelo nº 1 do artigo 8º. do Código Civil, num liquet contra a parte a quem incumbe o ónus da prova do facto” [4];
- “A quem invoca um direito em juízo incumbe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer o facto seja positivo, quer negativo. À parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito” [5];
- “A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição; para que o segundo grau reaprecie a prova, não basta a alegação por banda dos recorrentes em sede de recurso de apelação que houve erro manifesto de julgamento e por deficiência na apreciação da matéria de facto devendo ser indicados quais os pontos de facto que no seu entender mereciam resposta diversa, bem como quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração daquela resposta” [6];
-“No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto (…), a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova” [7];
- A Relação deve alterar a decisão proferida sobre pontos concretos da matéria de facto, indicados pelo recorrente, se os factos não impugnados, a prova produzida, a indicar, também, pelo recorrente, ou documento superveniente impuserem decisão diversa da recorrida e com o conteúdo requerido[8];
- “O que, em linha de princípio, justifica a produção de prova por peritos, é a natureza dos factos; o uso desta prova tem cabimento perfeito quando se trata de recolher, interpretar e apreciar factos que, pela sua índole especial, exigem uma cultura e experiência superior à comum, cultura e experiência de pessoas especializadas, de técnicos, e portanto cultura e experiência que o juiz não possui” [9].

Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos
- O proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, “(…) dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (…)”[10];
- Além da restrição de direito público decorrente do sacrifício imposto ao titular da propriedade, em caso de expropriação por utilidade pública, outras existem como as resultantes da “ (…) proximidade de certas vias de comunicação (…)”; “o seu número cresce dia a dia com a sobreposição frequente dos interesses da coletividade, dos grandes grupos sociai ou das chamadas classes trabalhadoras, aos interesses dos particulares”;
- “A figura do abuso de direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima “perde o direito quem dele abusa” e em oposição ao velho adágio romano “qui suo jure utitur neminem laedit” [11]; por outras palavras: “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira “válvula de segurança” vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer ato ilícito” [12];
- Existe abuso do direito “(…) quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apoditicamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado” [13];
- “Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se (…) a do “venire contra factum proprium”; na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciados no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”)” [14];
- “I - A inércia, omissão ou não exercício do direito por um período prologado, sem que possa sê-lo tardiamente se contundir com os limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do “venire contra factum proprium”, conhecida por supressio (ou verwirkung, no alemão origianal. II - À sua caraterização não basta, contudo, o mero não-exercício e do decurso do tempo, impondo-se a verificação de outros elementos circunstanciais que melhor alicercem a justificada/legítima situação de confiança da contraparte” [15];
- “5. O nosso sistema jurídico acolheu a conceção objetiva do abuso de direito. 6. Estamos perante a supressio quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, se atentar contra a boa fé; ocorrendo, pois, uma supressão de certas faculdades jurídicas pela conjugação do tempo com a boa fé” [16];
-“As passagens de nível, como um das componentes mais perturbadoras do sistema de exploração ferroviária, são também pontos de conflito geradores de permanente insegurança. Nos últimos tempos anos tem-se assistido a uma redução do número de acidentes ali verificados, situação que se pode relacionar diretamente com o incremento do esforço de supressão de passagens de nível. (…) Dado o elevado número de passagens de nível ainda existente, considera-se necessária uma intervenção planeada com vista ao incremento das ações de supressão. O presente diploma define um quadro institucional para esse fim” [17];
- As passagens de nível particulares podem resultar de licença de atravessamento passada pela entidade gestora da infraestrutura ferroviária ou de compromisso por ocasião da constituição da via férrea, cujo direito de servidão tenha sido comprovado[18];
- As passagens de nível particulares devem estar dotas de obstáculos físicos fechados a cadeado e demais requisitos que a entidade gestora da infraestrutura ferroviária venha a considerar necessários[19];
- O juiz deve “conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (…)”[20].

C - Aplicação do direito aos factos assentes

Quanto à alegada nulidade da sentença recorrida
A demandante/recorrente fundamenta a nulidade da sentença, na circunstância de ser “(…) contraditório do ponto de visto lógico considerar provados documentos, relatório pericial e prova testemunhal que atestam a impossibilidade da recorrente aceder a toda a sua propriedade, nomeadamente à parcela da terreno que ficou isolada devido ao encerramento da passagem de nível, acrescendo o facto do (…) tribunal ter considerado o depoimento da testemunha José P…, como isento e prestado com objetividade quando confirma a referida impossibilidade (…) para, no final, vir o (…) Tribunal concluir que, eventualmente, exista outra passagem mais distante cujo atravessamento depende da boa vontade de outros proprietários”.
Invoca, assim, a referenciada um erro na fixação dos factos.
Ora, um eventual erro, neste segmento da sentença, não gera a sua nulidade, mas, apenas, a possibilidade da sua correção, através da figura da impugnação da matéria de facto.
Neste sentido, aponta a circunstância de a demandante/recorrente, a propósito da existência ou não de outra passagem, para aceder à parcela de terreno que, alegadamente, ficou isolada, devido ao encerramento da passagem de nível, ter impugnado, em sede do presente recurso, a matéria de facto com ela relacionada - a vertida nos pontos 27 dos factos provados e 1.h dos não provados.
A nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, situa-se, não no domínio da fixação dos factos, mas no das consequências jurídicas resultantes dos factos apurados.
Na verdade, é, apenas, nesta área da sentença que se começam a desenhar as consequências jurídicas da matéria de facto assente.
Ora, sob pena de nulidade da sentença, a indiciada conclusão deve estar em linha com o resultado final.
Acontece que a sentença impugnada não padece, neste segmento, de “vício lógico” [21].
Improcede, pelo exposto, esta parte da apelação.

Quanto ao invocado erro na apreciação da prova, que determine a alteração da matéria de facto constante dos pontos 27 dos factos provados e 1.h dos não provados
Devendo a Relação “formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova”, procedeu-se à audição, na íntegra, do registo de todos os depoimentos prestados.
No essencial, é possível extrair dos mesmos as seguintes notas, tendo em consideração o teor da matéria de facto impugnada:
- São irrelevantes os depoimentos das testemunhas António M… e José M…;
- Testemunha António C… - disse que, relativamente ao acesso de viaturas e maquinaria à parcela de terreno que alegadamente, ficou isolada devido ao encerramento da passagem de nível, a mesma é possível “pedindo aos vizinhos”;
- Testemunha Laureano V… - mencionou que “não sabe onde é que isso fica” (o caminho alternativo à passagem de nível), mas que só se consegue, ”por terceiros”;
-Testemunha José P… - aludiu “desconhecer esse caminho”, mas considerou-o “perigoso”;
-Testemunha Manuel C… - disse conhecer o caminho alternativo - “estrada ruim” e “terra de barro”-, que se passa pelos vizinhos.
Ora, estes elementos probatórios e o relatório pericial possibilitam a esta Relação a seguinte convicção:
Ponto 27 - Não provado;
Ponto 1.h - Provado.
Na verdade, a privação do acesso à parcela com a área de 31 ha, do prédio misto, com a área de 3.148,7282 ha, denominado Herdade do V…, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Alcácer do Sal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal, sob o nº …/150391 e inscrito, a parte rústica, na matriz cadastral daquela freguesia, sob o artigo …º, secções H, H1, H2, H3, H4 e H5, em consequência do encerramento da passagem de nível, consta já do ponto 15 dos factos provados - que não foi impugnado.
Além disso, a matéria de facto objeto de impugnação deve ser decidida em função das utilidades, proporcionadas à recorrente/demandante, no domínio da circulação de viaturas e maquinaria, pela passagem de nível encerrada, e as garantidas pelo caminho alternativo, de utilização, por sinal, dependente da vontade de terceiros.
Tal comparação não é, no caso dos autos, razoável.
Pelo exposto, procede este segmento da apelação.

Quanto ao invocado erro na aplicação do direito aos factos
A demandante/recorrente invocou uma única causa de pedir - o abuso de direito -, resultante da circunstância de ter sido assumido “(…) um comportamento contrário ao assumido durante décadas e muitíssimas vezes garantido à A. que sempre confiou na conduta expectável da R. que lhe garantiu que seria mantido o acesso ao seu terreno”.
Com tal, é, apenas, com este fundamento que o mérito da ação deve ser considerado.
Sucede que, face à matéria de facto que emergiu da discussão, não se vislumbra que a mesma seja “subsumível na figura do abuso de direito” [22].
Resulta, pelo contrário, dos factos provados que o acesso de viaturas e maquinaria à parcela com a área de 31 ha, do prédio misto, com a área de 3.148,7282 ha, denominado Herdade do V…, sito na freguesia de Santa Maria, concelho de Alcácer do Sal, se faz, desde, pelo menos, 1988, mediante de licença de atravessamento, sendo irrelevante, dado o interesse em causa - a segurança ferroviária -, que o titular da mesma seja o rendeiro ou o proprietário do imóvel.
Acresce que, nesta sede - a da segurança ferroviária -, é inaplicável a figura do abuso de direito, moldada que foi, em princípio, para regular situações/conflitos de interesses privados, o que não ocorre nos presentes autos.

Em síntese [23]: a figura do abuso de direito, na modalidade especial do “venire contra factum proprium”, conhecida por supressio é inaplicável, por natureza, para reverter a supressão de uma passagem de nível particular.

Decisão
Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter a sentença impugnada.
Custas pela recorrente.

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Évora, 28 de março de 2019
Sílvio José Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
Manuel António do Carmo Bargado

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[1] Conclusões elaboradas esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” da recorrente.
[2] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II,2ªedição, pág. 704, e artigo 615º., nº 1, c), 1ª parte, do mesmo diploma.
[3] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 436.
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 452, e artigo 342º., nºs 1 e 2 do Código Civil.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 552, e artigo 342º., nºs 1 e 2 do Código Civil.
[6] Acórdão do STJ, de 2 de dezembro de 2013 (processo nº 34/11.0 TBPNL.L1.S1), in www.dgsi.pt..
[7] Acórdão do STJ de 14 de fevereiro de 2012 (processo nº 6823/09.3 TBBRG.G1.S1.), in www.dgsi.pt. (no mesmo sentido, os acórdãos do STJ, de16 de outubro de 2012 (processo nº 649/04.2 TBPDL.L1.S1), 6 de julho de 2011 (processo nº 450/04.3 TCLRS.L1.S1), 6 de julho de 2011 (processo nº 645/05.2 TBVCD.P1.S1), 24 de maio de 2011 (processo nº 376/2002.E1.S1), 2 de março de 2001 (processo nº 1675/06.2 TBPRD.P1.S1), 16 de dezembro de 2010 (processo nº 2410/06.1 TBLLE.E1.S1) e 28 de maio de 2009 (processo nº 4303/05.0 TBTVD.S1), no mesmo sítio), e artigo 662º., nº 1 do Código de Processo Civil).
[8] Artigos 640º., nº 1 e 662º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[9] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo civil Anotado, vol. IV, 1981, págs. 182 e 183.
[10] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 92, e artigo 1305º. do mesmo diploma.
[11] Acórdão do STJ de 18 de março de 2010 (processo nº 387/1993.S1), in www.dgsi.pt..
[12] Acórdão do STJ de 16 de dezembro de 2010 (processo nº 1584/06.5 TBPRD.P1.S1), in www.dgsi.pt..
[13] Acórdão do STJ de 15 de dezembro de 2011 (processo nº 2/08.9 TTLMG.P1.S1), in www.dgsi.pt. e artigo 334º. do Código Civil.
[14] Acórdão do STJ de 15 de dezembro de 2011 (processo nº 2/08.9 TTLMG.P1.S1), in www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do STJ de 11 de dezembro de 2013 (processo nº 629/10.9 TTBRG.P2.S2 / 4ªsecção), in www.dgsi.pt..
[16] Acórdão do STJ de 18 de março de 2010 (processo nº 387/1993.S1), in www.dgsi.pt..
[17] Preâmbulo do Decreto-lei nº 568/99, de 23 de dezembro.
[18] Artigo 24º., nº 1 do Decreto-lei nº 568/99, de 23 de dezembro.
[19] Artigo 25º., nº 1 do Decreto-lei nº 568/99, de 23 de dezembro.
[20] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo civil Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 704, e artigos 608º., nº 2 e 615º., nº 1, d) do Código de Processo Civil.
[21] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, pág. 141.
[22] Sentença impugnada (fls.406).
[23] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil.