Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
268/13.2TBACN.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: CONSUMIDOR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A intervenção de interposta pessoa entre a A. e a R., não profissional do ramo, na aquisição do produto, não afasta a conclusão de que o respectivo contrato de compra e venda foi celebrado entre a própria A. e a R. (por via da figura do mandato sem representação)
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 268/13.2TBACN.E1-2ª (2014)
Apelação-2ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
*
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção sumária que (…) intentou, no Tribunal de (…), contra (…), alegou a A. ter adquirido à R., que se dedica ao comércio de produtos cosméticos, e por intermédio de uma amiga que se deslocou ao estabelecimento desta, uma bisnaga de tinta para pintura de cabelo, da qual fez a respectiva aplicação e que se veio a revelar estar defeituoso, causando-lhe lesões várias no couro cabeludo e cabelo (queda de cabelo, peladas, etc.), com prejuízo para a sua saúde e imagem – pelo que pediu a condenação da R. a pagar-lhe indemnização, destinada a compensar a A. dos custos do tratamento a efectuar para repor o estado normal do cabelo, em montante a liquidar em execução de sentença, e dos danos não patrimoniais sofridos, no montante de 25.000,00 €.

Na contestação, a R. opôs-se ao pedido, sustentando, no essencial, que o produto vendido não tinha qualquer defeito e não existia qualquer nexo de causalidade entre os danos sofridos e o produto vendido, podendo os sintomas que a A. afirmou ter sofrido se deverem a uma reacção alérgica potenciada pela aplicação inadequada do produto, pelo não cumprimento de precauções e condições de utilização do produto ou por hipersensibilidade imunológica da própria A., não imputáveis a quem vendeu, produziu ou disponibilizou o produto – pelo que reclamou a improcedência da acção.

A A. beneficia de apoio judiciário, conforme documentado a fls. 17-19.

Após o saneamento do processo e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção, condenando a R. a pagar à A. a quantia de 10.000,00 €, para ressarcimento de danos não patrimoniais.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: não é aplicável o regime de responsabilidade civil objectiva do produtor, decorrente de produtos defeituosos, previsto no Decreto-Lei nº 383/98, de 6/11, por a R. não ter a qualidade de “produtor”, para efeitos do referido diploma; é, porém, aplicável o regime da venda de bens de consumo (Decreto-Lei nº 67/2003, de 8/4) e a Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/97, de 31/7), na medida em qua a A. assumiu, na compra do produto vendido pela R., a qualidade de “consumidor”, através da intervenção de uma amiga que adquiriu em seu benefício o produto, a ser enquadrada na figura do mandato sem representação (prevista no artº 1180º ss. do C.Civil), pelo que deve entender-se que o contrato de compra e venda do produto se celebrou entre A. e R.; de acordo com esses regimes, e em geral, o vendedor, haja ou não culpa sua, responde pela desconformidade do bem que entregue ao comprador e o consumidor tem direito a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos; perante a factualidade provada (em particular a prova da queda de cabelo na sequência da aplicação do produto em causa), pode afirmar-se que o produto vendido pela R. à A. não tinha a qualidade e o desempenho habituais em bens daquele tipo e que o consumidor podia razoavelmente esperar, pelo que se preencheu o requisito-índice previsto no artº 2, nº 2, al. d), do Decreto-Lei nº 67/2003 e que faz presumir, sem que a R. o tenha ilidido, a desconformidade do bem com o contrato e o defeito do produto; igualmente se pode afirmar a existência de danos e do nexo de causalidade entre o defeito e os danos; a R. não ilidiu a sua presunção de culpa, prevista no quadro da responsabilidade contratual, conforme decorre do artº 799º do C.Civil; não se demonstrou a necessidade ou viabilidade de tratamento para reposição do estado normal do cabelo, pelo que não procede o pedido de indemnização por danos patrimoniais; contudo, resultaram provados factos que traduzem danos estético e de afirmação pessoal, bem como dores e sofrimento psicológico, em grau relevante, pelo que se pode afirmar a ocorrência de danos não patrimoniais, que, dada a importância do cabelo, sobretudo nas mulheres (pelo seu significado para a auto-estima, a imagem e até a sexualidade), se entendeu fixar, segundo critérios de equidade, em 10.000,00 €; também não se provaram factos que permitam dizer que a conduta da A. concorreu para a produção ou para o agravamento dos danos, não sendo caso de aplicação do artº 570º do C.Civil.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a R., formulando as seguintes conclusões:

«1. Ocorreu incorrecto julgamento dos concretos pontos d), e), n), o), s) e ag) de facto considerados provados na douta sentença, bem como os concretos pontos 2.14, 2.18, 2.19, 2.20, 2.21, 2.23, 2.25, 2.26 e 2.27 dos factos alegados pela Ré, e que não foram considerados provados, foram, igualmente, incorretamente julgados.

2. Com efeito deve o Tribunal ad quem considerar apenas provados, a propósito daqueles concretos pontos de facto, apenas que:

d) No dia 05/03/2013, a A., com a ajuda de uma amiga, fez a aplicação do dito produto no seu cabelo;

e) A A. sentiu comichão na cabeça, que se estendeu ao pescoço;

o) A A. sente desgosto pela deterioração da sua imagem, fruto da queda de cabelo e angústia (art. 15 e 25 da p.i.);

2.14- A (…) tem um laboratório de pesquisa cosmética, com controlo de qualidade, que garante todas as condições de qualidade dos produtos em causa;

2.18- É do conhecimento generalizado dos utilizadores de tintas para o cabelo o descrito em y) (art.º 33.º da contestação);

2.19- A alergia pode ser desenvolvida em qualquer altura da vida, mesmo se, até um determinado momento, não tinha havido anteriormente reacção alguma (art.º 37º da contestação);

2.20- Quaisquer produtos de higiene, alimentícios e outros, e até agentes como a poluição, sejam susceptíveis de, a qualquer momento, criar um episódio alérgico (art.º 38º da contestação);

2.21- Uma determinada pessoa possa criar uma reacção alérgica a um produto que a generalidade das outras pessoas não tem (art.º 40.º da contestação);

2.23- Ao não fazer o referido teste, em completo desprezo das advertências e condições de utilização do produto, a A. se tenha conformado com as possíveis consequências de tal omissão, bem sabendo que se fizesse uma reacção alérgica ao produto, esta seria sentida em toda a zona da cabeça onde a tinta é aplicada (art.º 55.º da contestação);

2.25- Nos casos de episódios alérgicos, após remoção do agente alergénico (no caso, retirar o produto do cabelo – o que se presume foi feito de imediato com a lavagem do cabelo após aplicação da tinta) e aplicação da medicação (cortisona e posteriormente cetirizina), as lesões provocadas (in casu manchas vermelhas) regridam (art.º 60.º da contestação);

2.26- Se a A. tivesse efectuado aquele "teste do toque", nenhuma lesão teria seguramenteí"^ sofrido, a não ser numa pequena parte do corpo (antebraço ou atrás da orelha), onde aquele deve ser previamente efectuado (art.º 76.º da contestação);

2.27- Se a A. tivesse ocorrido de imediato a um médico, provavelmente não teria sofrido lesões tão extensas e graves como as que invoca e atribui ao produto em questão (art.º77.º da contestação).

3. Os documentos juntos aos autos e o depoimento das testemunhas (…) e (…), ambas funcionárias da Ré, (…) e (…), médico que acompanhou a A., impunham decisão em conformidade com o supra referido, por um lado, e,

4. por outro, o depoimento das testemunhas (…), (…) e (…), todas amigas da A. (e esta última desde que a A. nasceu), não foi isento, não devendo ser-lhes dada especial relevância, quer por afirmarem factos de forma totalmente gratuita sem que a referida matéria lhes tenha sido perguntada, quer por não terem qualquer conhecimento directo sobre os factos ou mesmo por estes estarem em contradição com a restante prova produzida, quer ainda por, nas situações indicadas, não ter sido produzida qualquer prova que fundamentasse parte da matéria considerada provada pelo Tribunal a quo.

5. O produto vendido pela Ré não é defeituoso e está em conformidade, tem as qualidades e desempenho habituais em produtos do mesmo tipo e fim a que se destinam, pelo que deve considerar-se que inexiste qualquer direito de indemnização da A., sendo a Ré absolvida.

6. Mesmo que assim não fosse, a A. tinha conhecimento dessa falta de conformidade (entenda-se, susceptibilidade de causar alergias) ou não podia razoavelmente ignorá-la.

7. Está apenas provado que ocorreu reação alérgica e não que a queda do cabelo tenha resultado da aplicação do produto, mas antes que esta aplicação tenha provocado a referida reacção alérgica que pode, por sua vez e de acordo com a versão da A., ter ocasionado as lesões invocadas por esta, pelo que inexiste falta de conformidade do bem vendido pela Ré.

Sem prescindir,

8. O regime do DL 67/2003 não é aplicável aos autos, pois o adquirente do bem é entidade profissional.

9. E porque não é aplicável a presunção decorrente do artigo 2º do referido Decreto-Lei e a A. não logrou provar qualquer defeito do produto adquirido, deve a Ré, também por isso, ser absolvida do pedido.

Mesmo que assim não se entenda,

10. Da conjugação dos factos provados resulta a verificação do consentimento da A. sobre as eventuais consequências da aplicação do produto, uma vez que os danos reclamados resultam de reacção alérgica e a A. tinha conhecimento da susceptibilidade dessa reacção, tendo também sido informada pelo texto que consta da embalagem do produto que “OS CORANTES CAPILARES PODEM PROVOCAR REACÇÕES ALÉRGICAS GRAVES”.

11. As consequências verificadas na A. não resultaram de qualquer atuação voluntária da Ré.

12. Dispõe o artigo 340º do Código Civil que o acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão – o que ocorreu por parte da A., devendo, também por isso, a Ré/recorrente ser absolvida.

Ainda sem prescindir, o que por mero dever de patrocínio se concede,

13. Conforme resulta dos factos provados, a A., decorrido algum tempo sobre a aplicação do produto, iniciou episódio de reacção alérgica e no dia seguinte foi trabalhar com sofrimento, porque a cabeça ficou repleta de pequenas feridas (ponto f), apesar das advertências que constam da embalagem de que deveria imediatamente contatar médico, o que foi totalmente ignorado pela A..

14. Ocorreu facto voluntário e culposo da A. que concorreu para a produção das lesões, pelo que, a admitir-se responsabilidade da recorrente, o que não se concede, sempre a indemnização deverá ser excluída.

Por útimo, sempre sem prescindir,

15. O valor da indemnização fixada (€ 10 000,00) vai muito além dos padrões da normalidade e razoabilidade por que se devem pautar as decisões judiciais.

16. De acordo com juízos de equidade, devem considerar-se as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, pelo que os 10.000€ fixados são manifestamente exagerados e são fixados ao arrepio da jurisprudência dominante.

17. A admitir-se condenação, o que não se concede, mas por dever de patrocínio se admite, a fixação de 2.000€ corresponde a valor mais do que justo e de acordo com os referidos juízos de equidade para indemnizar os danos não patrimoniais sofridos pela A. e [de] que a Ré, diga-se mais uma vez, não pode ser responsabilizada.»


A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC). Saliente-se, ainda, que este Tribunal apenas está obrigado a resolver as questões que sejam submetidas à sua apreciação, e não a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações (e suas conclusões) de recurso, além de que não tem de se pronunciar sobre as questões cuja decisão fique prejudicada, tudo conforme resulta do disposto nos artos 608º, nº 2, e 663º, nº 2, do NCPC.

Do teor das alegações da apelante extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir:

1) modificabilidade da matéria de facto, no sentido de eliminar os pontos de facto constantes das alíneas n), s) e ag), restringir o teor dos pontos de facto constantes das alíneas d), e) e o), e aditar como provados os pontos de facto (extraídos da contestação da R.) que foram inscritos na sentença, como matéria «não provada», sob os nos 2.14, 2.18, 2.19, 2.20, 2.21, 2.23, 2.25, 2.26 e 2.27;

2) aferição das consequências, no plano jurídico, da eventual procedência dessa impugnação da matéria de facto – bem como do entendimento da R., contrário ao do tribunal a quo, de que não ocorreu falta de conformidade do produto (por ser sempre possível uma reacção alérgica a qualquer produto), de que não é aplicável o regime do Decreto-Lei nº 67/2003 (por o produto em causa ter sido adquirido por uma amiga da A. que tinha a qualidade de profissional, enquanto esteticista) e de que houve consentimento da lesada e culpa desta (por não ter realizado o “teste de toque” e ter retardado o tratamento médico) –, sendo que é pretensão da R. apelante obter a improcedência do pedido ou, a não ser assim entendido (e sem conceder), uma redução da indemnização ao montante de 2.000,00 €.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«a) A Ré é uma empresa que se dedica ao comércio de produtos cosméticos, de cabeleireiro e de estética, dispondo para esse fim de uma vasta rede de estabelecimentos distribuída por diversos pontos do país, um dos quais se situa no Centro Comercial (…), em (…) – (art.º 1.º da p.i.);

b) A A., que reside e trabalha em (…), pediu à sua amiga (…) para lhe comprar, no referido estabelecimento da R., naquela cidade de (…), um produto adequado para pintar o cabelo (art.º 2.º da p.i.);

c) A referida amiga acedeu ao pedido e, no dia 01/03/2013, comprou para a A., no referido estabelecimento, uma bisnaga de tinta para pintura de cabelo com o respectivo complemento, ambos da marca (…), como consta da factura n.º (…), junta a fls. 8, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido (art.º 3.º da p.i.);

d) No dia 05/03/2013, a A., com a ajuda de uma amiga, fez a aplicação do dito produto no seu cabelo, da mesma forma que já o havia feito em uma outra ocasião sem ter tido qualquer problema (art.º 4.º da p.i.);

e) Decorrido algum tempo, a A. começou a sentir calor na cabeça, comichão e ardor, com consequente inflamação do couro cabeludo, que se estendeu ao pescoço, provocando inchaço (art.º 5.º da p.i.);

f) A A. no dia seguinte foi trabalhar, embora com sofrimento porque a cabeça ficou repleta de pequenas feridas (art.º 6.º da p.i.);

g) Acabou por ser transportada ao hospital, onde deu entrada no dia 06/03/2013 (art.º 7.º da p.i.);

h) A A. ficou sujeita a medicação continuada e à cura do couro cabeludo com betadine, durante algum tempo (art.º 8.º da p.i.);

i) No seguimento do tratamento hospitalar, teve de prosseguir os tratamentos médicos no Centro de Saúde de (…), ficando incapacitada para o trabalho durante dois dias (art.º 9.º da p.i.);

j) A A. esteve sujeita a sofrimento causado pela descrita situação (art.º 10.º da p.i.);

k) A A. teve dores e sentiu incómodo em virtude das feridas e do tratamento (art.º 11.º da p.i.);

l) Entretanto, notou que o cabelo lhe começava a cair (art.º 12.º da p.i.);

m) As peladas foram surgindo (art.º 13.º da p.i.);

n) O cabelo deixou de crescer (art.º 14.º da p.i.);

o) A A. sente desgosto pela deterioração da sua imagem, fruto da queda do cabelo e do seu não crescimento, e angústia (art.ºs 15.º e 25.º da p.i.);

p) Esta situação tem-na afectado psicologicamente, fá-la chorar frequentemente em frente das amigas e desmotiva-a do convívio social (art.º 16.º da p.i.);

q) A A. era uma pessoa alegre e divertida, saía e cultivava as relações sociais, mas hoje sente-se triste e deprimida, por desconhecer quando e se o cabelo lhe voltará a crescer (art.º 17.º da p.i.);

r) E continua sob cuidados médicos (art.º 18.º da p.i.);

s) Uma mulher de (…), que aplicou produto do mesmo género e da mesma marca, esteve no Centro de Saúde de (…) com lesões similares às da A. (art.os 20.º e 21.º da p.i.);

t) O produto em questão fazia parte de um lote de tintas do fornecedor (…), distribuídas em todo o território nacional (art.º 15.º da contestação);

u) A R. não recebeu, até esta data, qualquer reclamação relativamente aos produtos vendidos daquele ou outro lote (art.º 16.º da contestação);

v) O episódio descrito em e) deveu-se a uma reacção alérgica ao produto fornecido pela R. (art.º 25.º da contestação);

w) A indicada (…) é cliente da R. na qualidade de “cliente profissional”, sendo certo que a mesma é esteticista profissional (art.º 26.º da contestação);

x) Da embalagem do referido produto consta que o seu uso está “RESERVADO AOS PROFISSIONAIS” (art.º 27.º da contestação);

y) Encontra-se explicitamente descrito na embalagem da tinta em questão que “OS CORANTES CAPILARES PODEM PROVOCAR REACÇÕES ALÉRGICAS GRAVES” e que se, após sua utilização, ocorrer “irritação da pele ou do couro cabeludo, fogagem, inchaço dos olhos ou do rosto” deverá ser, imediatamente, contactado um médico (art.º 31.º da contestação);

z) Os profissionais de estética conhecem os riscos de reacções alérgicas à utilização de tinturas capilares descritos em y) (art.os 31.º, 33.º e 34.º da contestação);

aa) Este produto, ainda que com uma utilização adequada, devido aos seus componentes, é susceptível de causar reacções alérgicas (art.º 35.º da contestação);

ab) A alergia é uma reacção do sistema imunitário a um agente externo (art.º 37.º da contestação);

ac) Encontra-se expresso na embalagem do referido produto que deve ser feito um "teste preliminar de alergia" – vulgarmente conhecido por "teste do toque" –, aí se referindo que se deve “Proceder do seguinte modo: aplicação de uma pequena quantidade do produto no antebraço ou atrás de uma orelha, depois de ter lavado a zona com água e sabão” e “após 24 horas, a zona tratada deve ser lavada com água e sabão, caso não surja qualquer irritação, pode proceder-se à aplicação da tinta (art.os 49.º e 50.º da contestação);

ad) Procedimento que é do conhecimento da adquirente do produto e da A. (art.os 51.º e 52.º da contestação);

ae) Não foi realizado pela A. o teste da alergia/sensibilidade (art.º 53.º da contestação);

af) Este "teste do toque" destina-se a avaliar se o utilizador é alérgico a algum dos componentes do produto, sendo que qualquer irritação que se verifique no teste implica que a tinta não deve ser aplicada (art.º 54.º da contestação);

ag) O “teste do toque” não é infalível (art.º 54.º da contestação);

ah) A A. apresentava em 07/03/2013 “lesões eritematosas no couro cabeludo, acompanhadas de lesões de coceira, e face posterior do pescoço” (art.º 59.º da contestação).»


B) DE DIREITO:

1. Quanto à impugnação da matéria de facto, e se atentarmos nas conclusões das alegações de recurso da R. recorrente, podemos sintetizar deste modo a sua pretensão:

a) Devem dar-se como «não provados» os seguintes pontos de facto:
– O cabelo deixou de crescer (al. n) da factualidade provada);
– Uma mulher de (…), que aplicou produto do mesmo género e da mesma marca, esteve no Centro de Saúde de (…) com lesões similares às da A. (al. s) da factualidade provada);
– O “teste do toque” não é infalível (al. ag) da factualidade provada);

b) Devem ser restringidos, para uma redacção mais limitada, os seguintes pontos de facto:
– No dia 05/03/2013, a A., com a ajuda de uma amiga, fez a aplicação do dito produto no seu cabelo (proposta de nova al. d) da factualidade provada);
– A A. sentiu comichão na cabeça, que se estendeu ao pescoço (proposta de nova al. e) da factualidade provada);
– A A. sente desgosto pela deterioração da sua imagem, fruto da queda de cabelo e angústia (proposta de nova al. o) da factualidade provada);

c) Devem ainda dar-se como «provados», a extrair da contestação da R., os seguintes pontos de facto (inscritos na sentença, no âmbito da factualidade «não provada»):
– 2.14: A (…) tenha um laboratório de pesquisa cosmética, com controlo de qualidade, que garante todas as condições de qualidade dos produtos em causa (art.º 17.º da contestação);
– 2.18: Seja do conhecimento generalizado dos utilizadores de tintas para o cabelo o descrito em y) (art.º 33.º da contestação);
– 2.19: A alergia possa ser desenvolvida em qualquer altura da vida, mesmo se, até um determinado momento, não tinha havido anteriormente reacção alguma (art.º 37.º da contestação);
– 2.20: Quaisquer produtos de higiene, alimentícios e outros, e até agentes como a poluição, sejam susceptíveis de, a qualquer momento, criar um episódio alérgico (art.º 38.º da contestação);
– 2.21: Uma determinada pessoa possa criar uma reacção alérgica a um produto que a generalidade das outras pessoas não tem (art.º 40.º da contestação);
– 2.23: Ao não fazer o referido teste, em completo desprezo das advertências e condições de utilização do produto, a A. se tenha conformado com as possíveis consequências de tal omissão, bem sabendo que se fizesse uma reacção alérgica ao produto, esta seria sentida em toda a zona da cabeça onde a tinta é aplicada (art.º 55.º da contestação);
– 2.25: Nos casos de episódios alérgicos, após remoção do agente alergénico (no caso, retirar o produto do cabelo – o que se presume foi feito de imediato com a lavagem do cabelo após aplicação da tinta) e aplicação da medicação (cortisona e posteriormente cetirizina), as lesões provocadas (in casu manchas vermelhas) regridam (art.º 60.º da contestação);
– 2.26: Se a A. tivesse efectuado aquele "teste do toque", nenhuma lesão teria seguramente sofrido, a não ser, numa pequena parte do corpo (antebraço ou atrás da orelha) onde aquele deve ser previamente efectuado (art.º 76.º da contestação);
– 2.27: Se a A. tivesse ocorrido de imediato a um médico, provavelmente não teria sofrido lesões tão extensas e graves como as que invoca e atribui ao produto em questão (art.º 77.º da contestação).

Sustenta a R. que estas diferenças na factualidade a considerar provada, relativamente à que como tal declarou o tribunal a quo, se imporão por força de uma diferente valoração dos depoimentos das testemunhas (…), indicada pela A., e (…), (…) e (…), indicadas pela R., e ainda por uma desvalorização dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), indicadas pela A..

Na fundamentação da respectiva factualidade provada e não provada (a fls. 191-196 da sentença de fls. 182-212), explicitou a M.ma Juiz a quo, com algum pormenor, as razões da sua convicção quanto à mesma. Designadamente, e no que se refere aos pontos de facto sob impugnação, declarou-se o seguinte:

«(…)
Os factos insertos em d) foram confirmados pelas testemunhas (…), que aplicou o referido produto no cabelo da A., e (…), amiga da A., que se encontrava presente quando foi aplicado o referido. Ambas as testemunhas confirmaram que a A. já anteriormente havia aplicado o mesmo produto (uma vez) e que não teve qualquer problema.
Os factos insertos em e) resultaram do depoimento da testemunha (…), que se encontrava com a A. quando as descritas reacções se manifestaram e, por isso, confirmou a sua ocorrência. Confirmou ainda que a zona da cabeça da A. tinha o aspecto retratado nas fotografias de fls. 164-169 (que foram tiradas pela testemunha … num dos dias seguintes à aplicação da tinta). A prova dos mesmos factos resultou ainda das declarações médicas de fls. 13 e 129 e do relatório médico do Serviço de Urgência do Centro Hospitalar do (…) de fls. 138.
(…)
Os factos insertos nas als. l) a q) [i.e., inclui as impugnadas als. n) e o)] foram confirmados pelas testemunhas (…), (…), (…), (…), (…) e (…), que conviveram e convivem, com maior ou menor regularidade, com a A. e, por isso, deles se aperceberam.
O facto descrito em s) foi confirmado pela testemunha (…), que relatou que aplicou, em Março de (…), uma tinta para o cabelo da marca (…) que comprou no estabelecimento da R. de (…) e que depois disso ficou com o rosto inchado e com febre, pelo que consultou no Centro de Saúde de (…) o Dr. (…), que a medicou.
(…)
Os factos insertos nas alíneas aa), af) e ag) [i.e., inclui a impugnada al. ag)] foram confirmados pela testemunha (…), que é consultor técnico externo da R..
Aliás, é a própria R. na sua contestação (art.º 54.º) que confessa que o teste de toque não é infalível.
(…)
Os depoimentos das testemunhas identificadas foram, nas partes referidas, prestados de forma espontânea, escorreita, segura, lógica e sem contradições de relevo, pelo que o Tribunal os considerou credíveis e os valorou nos termos descritos.
Os factos não provados assim foram considerados por ausência de prova ou de prova credível ou ainda por terem sido infirmados pela prova produzida, conforme se passa a explicitar.
(…)
Os factos vertidos em 2.14, 2.16 e 2.18 [i.e., inclui os questionados pontos de facto sob os nos 2.14 e 2.18] não foram confirmados por qualquer das testemunhas ouvidas, não existindo nos autos quaisquer outros elementos probatórios que permitam concluir pela sua verificação.
Sobre os factos insertos em 2.15, 2.19 a 2.22, 2.24, 2.25 e 2.27 [i.e., inclui os questionados pontos de facto sob os nos 2.19 a 2.21, 2.25 e 2.27] foi ouvido (…), na qualidade de testemunha. Esta testemunha, embora exerça a profissão de médico, transmitiu ao Tribunal as suas convicções, adquiridas por via das suas habilitações académicas, profissionais e experiência na área da medicina, e não juízos científicos próprios de quem exerce a função de perito. Assim, porque não apresenta o rigor científico próprio de uma perícia, o depoimento desta testemunha não tem – nem poderia ter – o valor probatório de uma perícia.
De qualquer maneira, a testemunha referida não confirmou a exactidão dos factos insertos em 2.15, 2.19, 2.21, 2.24, 2.25 e 2.27, tendo infirmado os factos insertos em 2.20 e 2.22.
(…)
O facto inserto em 2.23 não foi confirmado por qualquer elemento de prova.
Por outro lado, considerando que a embalagem do referido produto não continha qualquer advertência de que a aplicação poderia provocar queda de cabelo, não é possível extrair a conclusão, através de presunções judiciais, de que a A., ao não seguir as condições de utilização acima apontadas, se tenha conformado com tal consequência.
O facto 2.26 não foi confirmado por qualquer uma das testemunhas inquiridas, mormente pela testemunha (…), que admitiu a falibilidade do teste de toque.
Além disso, como já se deixou dito, a própria R. na sua contestação (art.º 54.º) confessa que o teste de toque não é infalível.
(…)»

Ou seja, o tribunal recorrido indicou, extensamente, os motivos da sua convicção, identificando os elementos considerados relevantes, por referência a depoimentos (e também documentos, quanto ao ponto de facto sob a al. e)). E daí resulta uma perspectiva diferente da sustentada pela R., quanto ao sentido a dar aos elementos probatórios.

Uma vez que foram cumpridas as exigências do artigo 640º do NCPC (indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração), estão reunidas as condições formais para a reapreciação da matéria de facto.

É neste quadro processual que deve ser equacionada a pretensão da R. de reapreciação da prova gravada.

Antes de mais, importará então atender às condicionantes legais da impugnação da matéria de facto.

Desde logo, tenha-se presente o que se sublinhava no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento».

Daqui derivam dois pensamentos essenciais que devem parametrizar esta matéria da apreciação da impugnação da matéria de facto: por um lado, a noção de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova; por outro, a ideia de que o tribunal de 2ª instância não deve ir além de um juízo sobre a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, face aos elementos disponíveis nos autos.

Quanto ao primeiro aspecto, saliente-se o que já dizia o Ac. RE de 3/6/2004 (CJ, XXIX, t. III, p. 249): «(…) o sistema legal, tal como está consagrado, [mesmo] com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa». Têm-se aqui em mente aqueles «elementos intraduzíveis e subtis», como a «mímica e todo o aspecto exterior do depoente», de que falava LOPES CARDOSO (in BMJ, nº 80, pp. 220-221, citado por ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 4ª ed, Almedina, Coimbra, 2004, p. 247).

Sobre o segundo ponto, pronuncia-se assim o Ac. RC de de 3/10/2000 (CJ, XXV, t. IV, p. 27): «o tribunal da 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si». Trata-se aqui de «através das regras da ciência, da lógica e da experiência, (…) controlar a razoabilidade daquela convicção [do tribunal de 1ª instância] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado», conforme se expressa TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 348).

Diremos, pois, na linha de outros arestos desta Relação, que a constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto impõe que se tenha chegado à conclusão de que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, como decorrência de «um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas» (cfr., por todos, Ac. RE de 23/9/2004, Proc. 1027/04-2, in www.dgsi.pt).

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que as respostas sob impugnação foram fundamentadas com referência a depoimentos (e também em documentos de natureza clínica, quanto ao ponto de facto sob a al. e)) que mereceram juízos de credibilidade por parte do julgador, conforme se evidencia do teor da sentença de fls. 182-212 – nada havendo, perante os elementos disponíveis, que permita pôr em dúvida ter sido feita pela M.ma Juiz a quo uma adequada ponderação.

Acresce que, atentando no registo gravado dos depoimentos produzidos em audiência (em particular dos depoimentos invocados pela apelante) – e mesmo considerando-os na perspectiva da formação de uma nova convicção em 2ª instância –, também é de concluir que os mesmos não consentem a pretendida modificação dos factos, pois deles não se evidencia erro de julgamento, traduzido em desconformidade flagrante entre os elementos probatórios e a decisão.

Sublinhe-se, neste ponto, que, apesar do teor nominal das declarações especialmente invocadas pela apelante (as quais poderiam sugerir, fora do contexto – como as apresenta a R. –, uma factualidade de sentido diverso do que veio a ser consignado na decisão de facto), a verdade é que esses depoimentos, se colhidos na sua plenitude, são compatíveis com a percepção que deles fez o tribunal recorrido.

Em concreto, atente-se no seguinte:

– por um lado, os depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…) apontam, na sua literalidade, para a verificação dos pontos de facto que o tribunal considerou provados, sem que haja elementos bastantes para afirmar a ocorrência da possibilidade, insinuada pela R., de combinação de depoimentos favoráveis à posição da A.;
– por outro lado, não há qualquer impedimento de o tribunal a quo “interpretar” aquilo que capta, a partir da simplicidade da linguagem das testemunhas, por raciocínios de inferência, os quais, dentro dos limites da razoabilidade, permitem fundar juízos de facto que podem não coincidir integralmente com a literalidade das palavras usadas pelas testemunhas (como sucede, v.g., quanto ao teor do ponto de facto sob a al. n), relativo ao problema de crescimento do cabelo da A.);
– e, por isso, é incompreensível a pretensão de alterações de pormenor da matéria de facto, que são, aliás, totalmente inconsequentes para a apreciação da matéria de direito (como intenta a R. em relação a vários pontos de facto – v.g., quando, em relação ao ponto de facto sob a al. s), alega que a testemunha (…) nunca disse ter sido consultada no Centro de Saúde de (…), sendo apenas juridicamente relevante se foi ou não consultada, ou quando, em relação ao ponto de facto sob a al. e), admite que se prova apenas a “comichão”, mas não o “ardor” ou a “inflamação”, que, segundo a normalidade da vida, surgem habitualmente associadas a uma qualquer alergia);
– de igual modo não se entende a relevância jurídica da matéria de facto que se pretende seja extraída da contestação, sabendo-se que, atento o regime do ónus da prova (que, em regra, impõe ao autor duma acção a prova dos factos constitutivos do seu direito – artº 342º, nº 1, do C. Civil), se torna praticamente despicienda a prova de factos alegados na contestação, sem prejuízo das excepções resultantes desse regime ou da formulação de um pedido reconvencional, o que aqui não se verifica ocorrer;
– e é também inútil a discussão à volta do ponto de facto sob a al. ag), que se prende com a realização ou não pela A. de um “teste do toque”: para além de a própria R. ter afirmado, na contestação (artº 54º), o que foi dado como provado, e que agora não quer que seja dado como provado (como bem sublinhou a M.ma Juiz a quo), a verdade é que a credibilidade reconhecida (e bem reconhecida) às testemunhas (…) e (…) levou à prova de que houve uma aplicação anterior pela A. de idêntico produto, sem consequências danosas (como ficou registado no ponto de facto sob a al. d)), o que logicamente dispensaria a necessidade de realização de um tal “teste” por ocasião da segunda aplicação aqui em causa (nada podendo, pois, ser extraído juridicamente, dessa eventual não-realização, em termos de “consentimento do lesado” por parte da A. ou de culpa desta no resultado produzido).

Ou seja, e em síntese, não se dispõe de quaisquer elementos que contrariem a particular percepção do conjunto da prova produzida que foi colhida directamente pelo tribunal a quo e que permitam desvalorizar os depoimentos em que esse tribunal fundou a sua convicção – e que, no caso concreto, não consentiam juízos de facto diferentes quanto aos pontos de facto controvertidos.

Diremos, pois, que, do ponto de vista dos elementos testemunhais e documentais que sustentam a decisão de facto na parte impugnada, a mesma não pode ser alterada ao abrigo do artº 662º, nº 1, do NCPC, na medida em que os autos não fornecem elementos que imponham decisão diversa da proferida.

Sendo assim, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância.

2. Perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância, importa, pois, aferir do acerto da decisão recorrida quanto à matéria de direito.

Para essa aferição, há que partir da matéria de facto provada e supra descrita – e, perante aquela, forçoso é concluir dever ter-se por fundada a pretensão da A. nos termos em que a mesma foi decidida na sentença recorrida. Pode mesmo afirmar-se que se trata de “questão simples”, para os efeitos do disposto no artº 663º, nº 5, do NCPC, podendo bastar-se a decisão do recurso com uma fundamentação sumária do julgado, em conformidade com o citado normativo.

Com efeito, afigura-se correcto o percurso argumentativo, do ponto de vista jurídico, sustentado pelo tribunal recorrido. A intervenção da amiga da A. na aquisição do produto não afasta a conclusão de que o contrato de compra e venda do produto foi celebrado entre A. e R. (por via da figura do mandato sem representação, nos termos expostos na decisão recorrida); essa intervenção não foi feita na qualidade de profissional (como decorre da factualidade provada), pelo que é aplicável ao caso o regime da venda de bens de consumo, previsto no Decreto-Lei nº 67/2003, sendo a A. enquadrável no conceito de “consumidora” para os efeitos do diploma; da factualidade provada é possível deduzir que o produto em causa não revestiu as qualidades que o consumidor concreto podia razoavelmente esperar, para os efeitos da presunção de desconformidade prevista no artº 2º do diploma, com referência em particular ao índice previsto na al. d) do nº 2 do preceito (seja porque a A. já antes usara produto idêntico sem consequências danosas, seja porque não é normalmente expectável a produção de alergia, não obstante a possibilidade, seguramente remota ou residual, de tal suceder); não poderá deixar de ser apenas relevante para essas situações de probabilidade residual – e em que não parece incluir-se o presente caso, dada a utilização prévia de produto idêntico – a inserção na embalagem do produto de uma advertência de risco de alergia (e, mesmo assim, sem que se possa entender que tal advertência tenha um efeito de necessária exclusão da responsabilidade do vendedor); da factualidade provada decorre ainda, nos termos explicitados na sentença recorrida, a demonstração de danos e de nexo de causalidade, pelo que são manifestamente indemnizáveis os danos não patrimoniais sofridos pela A.; não ocorre qualquer responsabilidade concorrente da lesada, já que a realização do “teste de toque”, como já acima se afirmou, não era exigível à A. depois da utilização em momento anterior de idêntico produto e sem consequências danosas; a M.ma Juiz a quo captou, com especial sensibilidade, o sofrimento e angústia sofridos pela A., em consequência do facto danoso (conforme pontos de facto sob as als. e) a r)), pelo que, em função dessa factualidade, o valor de 10.000,00 €, fixado na sentença recorrida para os danos não patrimoniais da A., não se mostra exagerado, sendo razoavelmente equitativo.

Não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: não merece censura o juízo de procedência (parcial e nos termos em que o foi) da pretensão da A. formulado pelo tribunal a quo na decisão recorrida.

*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela R. apelante (artº 527º do NCPC).

Évora, 15 / Jan. / 2015

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes
Mário João Canelas Brás