Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
| Descritores: | DIVISÃO DE COISA COMUM COMPROPRIEDADE COMUNHÃO CONJUGAL FAMÍLIA USUCAPIÃO | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | i. a compropriedade não se confunde com a comunhão, em que o direito dos contitulares não incide diretamente sobre cada um dos bens ou direitos que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário; ii. a compropriedade pressupõe um título de aquisição em favor do comproprietário, de entre aqueles que são elencados no artigo 1316.º do Código Civil; iii. a declaração do Réu, nas escrituras públicas de compra e venda, de que estava casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos ou comunhão geral de bens, quando, na verdade, o regime vigente era o da separação de bens, não é apta a tornar a Autora comproprietária dos bens por ele adquiridos, nem a converter estes em património comum do casal; iv. a ocupação e uso de prédios num contexto familiar, sem que o utilizador se arrogue da qualidade de contitular do direito de propriedade dos bens (caso em que se verificaria a inversão do título da posse) configuram atos compatíveis com os poderes decorrentes da estrutura familiar, exercidos de forma consentânea e consentida no âmbito da relação familiar; v. entre os cônjuges, a usucapião não começa nem corre. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Autora: (…) Recorridos / Réus: (…) e (…), habilitados no lugar de (…), falecido em 02/12/2021 e (…) e (…), credores com garantia real Trata-se de uma ação de divisão de coisa comum no âmbito da qual a Autora peticionou que se declare ser comproprietária, juntamente com (…) e pela quota de 50%, dos bens móveis e prédios que compõem a Unidade Agrícola, declarando-se a indivisibilidade da mesma, ordenando-se a realização de conferência de interessados tendo em vista a adjudicação dos bens e prédios, ou a venda pelo valor que resultar da avaliação dos bens. Para tanto, invocou que, não obstante o casamento ter sido celebrado no regime imperativo da separação de bens, todas as escrituras de compra e venda fazem menção ao regime da comunhão de adquiridos, pois nenhum dos cônjuges sabia que era esse o regime de bens. Sustenta que, entre 1979 e 2017, viveram em comum, exploraram em conjunto a atividade de exploração agrícola e pecuária que proporcionava ao casal os rendimentos necessários à sua subsistência e que lhes permitia obter lucros que investiram na reconstrução integral da casa do casal e na aquisição de equipamentos agrícolas, embora recorrendo ainda a financiamento bancário e a apoio financeiro junto de familiares. Pelo que os prédios adquiridos na constância do matrimónio foram-no na convicção de que integravam o património comum, sendo o casal que, ao longo dos anos, os possuiu, enquanto integrantes da exploração agrícola a que ambos se dedicaram, à vista de toda a gente, sem oposição de quem, quer que seja, neles trabalhando, colhendo frutos, convencidos de serem ambos comproprietários, na proporção de 50%. Alega, ainda, que os prédios constituem uma unidade de exploração agrícola de sequeiro e de pecuária, pelo que são indivisíveis. Ao que se opôs, em sede de contestação, (…), sustentando que bem sabe a Autora que não existem bens em compropriedade, tal como declarado em sede de processo de divórcio. II – O Objeto do Recurso Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, contemplando o seguinte segmento decisório: «a) declarar verificado que os (i) dois tratores da marca CACE; (ii) uma enfardadeira; (iii) uma gadanheira; (iv) uma grade; (vii) um quadriciclo marca Honda matrícula (…); (viii) um veículo ligeiro misto de mercadorias marca Mahindra, matrícula (…), pertencem em comum e na proporção de ½ para a Autora (…) e ½ para o Réu (…), este último substituído processualmente pelos Habilitados (…) e (…); b) declarar a indivisibilidade dos bens identificados na alínea anterior; c) não declarar verificado o direito da Autora a pedir a divisão dos prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9), 11), 13), 15) e 18) dos factos provados; d) não declarar verificado o direito da Autora a pedir a divisão dos bens móveis melhor identificados sob a alínea h) dos factos não provados;» Inconformada, a Autora apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que a declare, na proporção de 50%, comproprietária dos prédios rústicos identificados nos autos e, bem assim, a respetiva indivisibilidade, enquanto Unidade Agrícola e Pecuária. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes: «1 – Resulta dos autos, concretamente dos itens dados como provados, dos documentos juntos e do dispositivo da sentença, que a Recorrente e seu marido ignoravam estar casados no regime da separação de bens. 2 – É o que resulta das escrituras de aquisição dos prédios rústicos, sete das quais outorgadas pelo falecido (...) onde consta expressamente que as outorgava no estado de casado com a recorrente no regime da comunhão de adquiridos e uma outorgada pela recorrente onde também se declara casada no regime da comunhão de adquiridos. 3 – Do Assento de Casamento lavrado pelo Consulado Geral de Durban, unicamente resulta uma nota de rodapé de advertência das consequências da celebração do casamento sem processo de publicações, não constando como se impunha, face à ausência do processo prévio de publicações que ali tinha de decorrer, que o regime de casamento era o regime imperativo da separação de bens por falta do processo de publicações. 4 – Os Registos Centrais ao receberem o Assento de Casamento lavrado pela repartição Consular, ao verificarem que do mesmo não constava a menção expressa que o casamento foi precedido do processo de publicações, estavam obrigados a logo inserir no Assento a menção obrigatória do regime imperativa da separação de bens, tendo-o aceite conforme lhe foi enviado, só procedendo á sua retificação em 2020, a pedido do falecido (…) em processo próprio, não sendo exigível à recorrente e seu falecido marido que soubessem que o regime de bens aplicável ao seu casamento era o da separação de bens, pelo que se impõe dar com o provado o facto F) dos factos não provados. 5 – Resulta também dos itens dados como provados nº 28 e 29, que “foi a chamada (…) e o sue falecido marido que adiantaram a quantia de € 900.000$00, para a aquisição da propriedade identificada sob o ponto 7)”, “Quantia nunca foi restituída a (…) e o seu falecido marido (...)”, prédio esse adquirido pelo falecido marido da recorrente (…) pela escritura pública junta com a inicial sob a designação de doc. n.º 2, em que aquele declara ser casado no regime da comunhão de adquiridos, não tendo qualquer importância para a aquisição da propriedade o preço ter sido pago com recurso a dinheiro emprestado. 6- Os prédios rústicos identificados nos itens 9), 11), 13), 15), 17) e 18) foram adquiridos, com o fundo de maneio que resultou das linhas de crédito sucessivamente concedidas pelo Crédito Agrícola de (…), como resulta com especial clareza do dispositivo inserto no terceiro paragrafo de fls. 1 e fls. 18 e 19 da sentença, que a recorrente em conjunto com seu falecido marido (…) oneram por hipoteca ao Crédito Agrícola de (…), como mais tarde à chamada (…) e seu defunto marido, quando da celebração da escritura de mútuo e hipoteca junta aos autos sob a designação de doc. 15. 7- A sentença ora posta em crise, ignorou olimpicamente a alegação pela recorrente da aquisição por usucapião dos prédios rústicos em mérito nos autos, alegação que enformou nos itens 11º, 17º e 18º da inicial e que resulta dos factos dados como provados dos pontos 25), 26), 31) e 41), aquisição originária alicerçada na posse de boa-fé pela recorrente em conjunto com seu falecido marido dos prédios até 2015, data que terminou a vida comum do casal, ou seja, posse de boa fé exercida por mais de 15, 20 anos sem oposição de quem quer que seja, onde se inclui a chamada, colhendo os seus frutos, cultivando-os, utilizando-os no pastoreio, tendo-os inclusivamente onerado com sucessivas hipotecas à Caixa de Crédito Agrícola de (…), como com a hipoteca constituída em favor da chamada e seu falecido marido, em clara violação das regras expressas relativas á formula de aquisição originária da propriedade – usucapião – vertidas nos artigos 1297.º e seguintes do Código Civil, conforme o peticionado pela recorrente na alínea a) do pedido formulado que impõe que o Acórdão a proferir venha a reconhecer, bem como os pedidos formulados nas alíneas b) e c) do pedido formulado na inicial, declarando a recorrente comproprietária dos prédios rústicos em mérito nos autos, a sua indivisibilidade enquanto Unidade Agrícola e Pecuária que a sentença ora posta em crise reconhece existir no facto provado n.º 26, fixando-se o quinhão da recorrente e dos habilitados em 50%.» Os Recorridos (…) e (…) apresentaram contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, por acertada. Cumpre conhecer das seguintes questões: i) da nulidade da sentença; ii) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; iii) da aquisição, pela Recorrente, do direito de compropriedade sobre os prédios rústicos. III – Fundamentos A – Os factos provados em 1ª instância 1) Em 15.12.1979, Autora e Réu contraíram entre si casamento católico na República da África do Sul, sem convenção antenupcial, constando do assento de casamento lavrado no Consulado de Portugal em Durban, República da África do Sul as seguintes menções especiais: “Casamento celebrado sem (k) convenção antenupcial ao qual corresponde na República da África do Sul o regime supletivo de Comunhão Geral de Bens”. 2) Neste assento constam ainda as seguintes observações: “(…) NOTA – A transcrição do casamento católico celebrado no estrangeiro entre nubentes portugueses ou entre português e estrangeiro só pode ter por base o duplicado ou a certidão do assento eclesiástico (…)”. 3) E, ainda, sob o n.º 2: “A transcrição do casamento católico ou civil celebrado no estrangeiro entre portugueses, ou entre português e estrangeiro, está subordinada à prévia organização do processo de publicações previsto nos artigos 166.º e seguintes do Código do Registo Civil. A não observância desta disposição determina a aplicação do regime imperativo de separação de bens, nos termos do artigo 1720.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil”. 4) Em 24.08.1983, o casamento foi registado por transcrição no Consulado de Portugal em Durban, mas não foi precedido do processo preliminar de publicações perante autoridade portuguesa. 5) No ano de 1985, Autora e Réu regressaram a Portugal, onde fixaram primeiramente residência no (…). 6) Subsequentemente, mudaram-se para a região do Alentejo, passando a habitar o Monte do (…), em (…). 7) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 04.08.1986, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 900.000$00 a (…), que declarou comprar, o prédio denominado “Courela do (…)”, situado em (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…). 8) Este prédio encontra-se inscrito pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 9) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 25.11.1986, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 700.000$00 a (…), que declarou comprar o prédio rústico com o nome (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º … (informatizado sob o n.º …) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), da mesma freguesia e concelho. 10) Este prédio encontra-se inscrito pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 11) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 18.01.1988, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 1.000.000$00 a (…), que declarou comprar o prédio rústico com o nome (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º … (informatizado sob o n.º …) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), da mesma freguesia e concelho. 12) Este prédio encontra-se inscrito pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 13) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 11.12.1989, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 75.000$00 a (…), que declarou comprar o prédio rústico com o nome de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), da mesma freguesia e concelho. 14) Este prédio encontra-se inscrito pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 15) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 07.09.1990, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 400.000$00 a (…), que declarou comprar o prédio rústico com o nome de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º … (informatizado sob o n.º …) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), da mesma freguesia e concelho. 16) Este prédio encontra-se inscrito pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 17) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 09.06.1997, no Cartório Notarial de (…), (…) declarou vender pelo preço de 350.000$00 a (…), que declarou comprar, o prédio rústico com o nome (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), da mesma freguesia e concelho. 18) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 20.05.1999, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 2.000.000$00 a (…), que declarou comprar: a) o prédio rústico denominado (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob os artigos (…), da Secção (…), (…), da Secção (…) e (…), da Secção (…); b) o prédio urbano sito na (…), descrito na Conservatória do registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na matriz predial sob o artigo (…). 19) Estes prédios encontram-se inscritos pela Ap. (…), de (…), a favor do Réu, casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos. 20) Foi registada uma penhora na descrição predial com o n.º (…), através da Ap. (…), datada de (…), para pagamento da quantia exequenda de € 8.653,84, a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, sendo sujeito passivo o Réu. 21) Por escritura pública denominada de “Compra e Venda”, outorgada em 19.09.2001, no Cartório Notarial de (…), (…) e (…) declararam vender pelo preço de 120.000$00 a (…), que declarou comprar: a) o prédio rústico denominado (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz predial sob os artigo (…), da Secção (…); b) o prédio rústico denominado (…), descrito na Conservatória do registo Predial de (…) com o n.º (…) e inscrito na matriz predial sob o artigo (…), da Secção (…). 22) Nas escrituras identificadas sob os pontos 7), 9), 11), 13), 15) e 18) o Réu é identificado como sendo casado com (…), sob o regime de comunhão de adquiridos. 23) Na escritura identificada sob o ponto 17), a Autora é identificada como sendo casada com (…) sob o regime de comunhão de adquiridos. 24) Na escritura identificada sob o ponto 21), o Réu é identificado como sendo casado com (…), sob o regime de comunhão geral. 25) Autora e Réu viveram em comunhão de leito, mesa e habitação até 2015. 26) Autora e Réu exerceram em comum a atividade de exploração agrícola e pecuária, ordenhando, pastoreando e apanhando ovelhas, tratando e apanhando os borregos, apanhando azeitona. 27) Era com os rendimentos da atividade de exploração agrícola e pecuária que faziam face à sua subsistência. 28) Foi a Chamada (…) e o seu falecido marido que adiantaram a quantia de 900.000$00, para a aquisição da propriedade identificada sob o ponto 7). 29) Quantia nunca foi restituída a (…) e o seu falecido marido (…). 30) No primeiro ano, a exploração não registou lucros. 31) Desde agosto de 1986 até maio de 1999, Autora e Réu viveram num anexo existente no prédio identificado em 7). 32) Por escritura pública denominada “Abertura de Crédito”, outorgada em 28.07.1988, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, declarou conceder à Autora e ao Réu “um crédito até à quantia de um milhão de escudos, para solicitação dos capitais de que necessitem com exclusiva aplicação aos fins previstos na lei vigente sobre crédito agrícola mútuo”. 33) Para garantia do crédito concedido e respetivas obrigações acessórias, foi constituída hipoteca sobre os prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9) e 11). 34) Por escritura pública denominada “Ampliação de Crédito”, outorgada em 12.01.1989, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, declarou, de comum acordo com Autora e Réu, ampliarem o limite de 1.000.000$00 para os 2.000.000$00. 35) Para garantia do crédito concedido e respetivas obrigações acessórias, foi constituída hipoteca sobre os prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9) e 11). 36) Por escritura pública denominada “Abertura de Crédito”, outorgada em 21.02.1990, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, declarou conceder à Autora e ao Réu “um crédito até à quantia de três milhões de escudos, para solicitação dos capitais de que necessitem com exclusiva aplicação aos fins previstos na lei vigente sobre crédito agrícola mútuo”. 37) Para garantia do crédito concedido e respetivas obrigações acessórias, foi constituída hipoteca sobre os prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9) e 11). 38) Por escritura pública denominada “Abertura de Crédito”, outorgada em 05.12.1996, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL, declarou conceder à Autora e ao Réu “um crédito até à quantia de sete milhões de escudos (i.e. € 34.915,85), para solicitação dos capitais de que necessitem com exclusiva aplicação aos fins previstos na lei vigente sobre crédito agrícola mútuo, sendo considerados nestes limites todos os empréstimos até hoje concedidos e utilizados sob qualquer das formas vigentes, e desde que o montante atrás referido esteja contido nos limites estabelecidos para a concentração de crédito por associado e suportado pelas disponibilidades de liquidez da Caixa para esse efeito”. 39) Para garantia do crédito concedido e respetivas obrigações acessórias, foi constituída hipoteca sobre os prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9), 11), 13) e 15). 40) Por escritura pública denominada “Mútuo com Hipoteca”, outorgada em 20.11.2002, Autora e Ré confessaram-se devedores da quantia de € 35.000,00 que (…) e marido (…) lhes emprestaram, mais declarando que “este empréstimo se destina ao pagamento da dívida à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL” e obrigando-se ao pagamento deste empréstimo no prazo de 20 anos, a contar da mesma data, o qual não vencerá juros. 41) Para garantia deste crédito foi constituída hipoteca sobre os prédios melhor identificados sob os pontos 7), 9), 11), 13) e 15), registada a favor de (…) e (…) pela Ap. (…), de (…), para garantia do capital de € 35.000,00. 42) A quantia identificada em 40) foi utilizada na liquidação do crédito melhor identificado sob o ponto 38). 43) (…) e o seu falecido marido (…) entregaram quantia não concretamente apurada para a reconstrução da casa do casal existente no prédio identificado sob o ponto 18). 44) Após o decesso do pai do Réu, foi a Interveniente (…) quem emprestou ao Réu a quantia de € 50.000,00 para a construção de um pavilhão para acolhimento e proteção das ovelhas e crias e quem suportou o pagamento a quantia de € 8.653,84 por conta da dívida do Réu ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. 45) Em 06.06.2018, foi emitida certidão pelos serviços da Segurança Social a atestar a regularização da situação contributiva do Réu. 46) O empréstimo identificado sob o ponto 40) deveu-se ao facto de Autora e Réu terem utilizado o dinheiro dos créditos concedidos pela CCAM de (…) e por não lhes ser concedida nova abertura de crédito por parte da mesma instituição. 47) Durante os anos de vivência em comum, foram adquiridos os seguintes equipamentos: (i) dois tratores da marca CACE; (ii) uma enfardadeira; (iii) uma gadanheira; (iv) uma grade; (vii) um quadriciclo marca Honda matrícula (…); (viii) um veículo ligeiro misto de mercadorias marca Mahindra, matrícula (…). 48) Após o decesso do pai do Réu, foi a Interveniente (…) que suportou quantia não concretamente apurada, por conta de uma dívida contraída junto do então denominado “(…) Banco” para aquisição de um trator agrícola e que o Réu incumpriu. 49) Após o decesso do pai do Réu, foi a Interveniente (…) que suportou quantia não concretamente apurada por conta de dívida contraída junto do então denominado Banco para aquisição de um trator agrícola com pá carregadora frontal e que o Réu incumpriu. 50) Em 07.02.2017, foi proferida sentença pelo Juízo de Família e Menores de Viana do Castelo – Juiz 2, sob o n.º 4246/16.1T8VCT, transitada em julgado, que homologou os acordos a que as partes chegaram e decretou o divórcio por mútuo consentimento dos cônjuges. 51) De entre os necessários acordos para ocorrer a conversão do divórcio em mútuo consentimento, as partes declararam: “3. Não há casa de morada de família” e “4. Não há bens comuns do casal”. 52) Em 22.02.2021, foi averbada ao assento de transcrição do casamento a retificação “no sentido de que o casamento encontra-se sujeito ao regime imperativo de separação de bens. Despacho arquivado no processo de retificação nº (…), da Conservatória dos Registos Centrais.” B – As Questões do Recurso i) Da nulidade da sentença A Recorrente sustenta que a sentença enferma de nulidade porquanto não apreciou o direito invocado com fundamento na usucapião. Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. É que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras» – artigo 608.º, n.º 2, do CPC. No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo demandado. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções. Ora, da sentença recorrida alcança-se que o direito de que se arroga a Recorrente sobre cada um dos imóveis não foi apreciado à luz do instituto da usucapião. Da petição inicial retira-se que a Autora não fez menção expressa a tal instituto, nem aos dispositivos legais que o conformam. No entanto, alegou factos que se reconduzem à afirmação da usucapião, tal como vem configurada no artigo 1287.º do CC. A saber: a aquisição dos prédios na convicção de que integrariam o património comum do casal, a posse, possuindo-os ao longo dos anos como fazendo parte da unidade de exploração agrícola e de pecuária, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, neles trabalhando, colhendo frutos, onerando-os, convencidos de serem ambos seus legítimos comproprietários, na proporção de 50% para cada um. Como decorre do regime inserto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Portanto, desde que constem do processo os factos relevantes em face de determinada figura jurídica, por terem sido alegados no exercício do princípio do dispositivo, cumpre apreciá-los à luz das regras de direito pertinentes, regras que por eles sejam chamadas à colação. Termos em que se considera merecer acolhimento a pretensão da Recorrente, estando em falta a apreciação do pedido da Autora no âmbito do instituto da usucapião. Nulidade que implicará se conheça da questão na presente apelação, nos termos do disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, sendo certo que Recorrente e Recorrido se pronunciarem já sobre a matéria em causa (cfr. n.º 3 da mencionada disposição legal). ii) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto O regime atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto consta enunciado no artigo 640.º do CPC. O seu acionamento despoleta a reapreciação do julgamento realizado em 1ª instância com vista a apurar se os factos concretos submetidos à instrução, factos esses objeto de decisão que se mostra impugnada em sede de recurso, foram incorretamente julgados, impondo-se decisão diversa da recorrida. A Relação deve alterar a decisão se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da recorrida – cfr. artigos 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 662.º, n.º 1, do CPC. Como é sabido, a jurisprudência que vem sendo consolidada pelo STJ no que respeita ao sentido e alcance do regime inserto no artigo 640.º do CPC assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vetores: - no recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe;[1] - servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação;[2] quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso;[3] - a não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte.[4] No caso em apreço, analisadas as conclusões da alegação do recurso, cumpre apreciar se o facto versado na alínea f) dos factos não provados foi incorretamente julgado. Ora vejamos. Em 1ª instância, considerou-se não provado que a Autora e o Réu ignoravam que o seu casamento estava celebrado no regime imperativo da separação de bens – alínea f) dos factos não provados. A Recorrente alude ao que foi declarado nas várias escrituras notariais outorgadas, ao teor da transcrição do assento de casamento nos registos centrais e ao facto de as aquisições dos prédios terem sido viabilizadas com fundos obtidos pelas linhas de crédito concedidas pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de … (CCAM…) e pelo empréstimo concedido por (…) e marido. É certo que, nas escrituras de compra e venda outorgadas, quer o Réu, quer a Autora, foram dados como casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos, salvo numa delas, em que o Réu é considerado casado no regime da comunhão geral. O que implicou na inscrição de tal menção nos serviços do registo predial. É certo que nos contratos de financiamento celebrados Autora e Réu são identificados como casados um com o outro no regime da comunhão de adquiridos, dando em garantia os bens imóveis adquiridos pelo Réu. É ainda certo que apenas em 2021 foi averbado ao assento de transcrição do casamento a menção de que vigora o regime imperativo na separação de bens. Porém, tal como mencionado na sentença recorrida, no assento de casamento lavrado no Consulado de Portugal em Durban constava a menção de que o casamento foi celebrado sem convenção antenupcial e que o regime supletivo na África do Sul era o da comunhão geral de bens, bem como a nota de que a não observância da prévia organização do processo de publicações para transcrição do casamento determina a aplicação do regime imperativo da separação de bens. Acresce que está provado que (…), mãe do Réu, e marido adiantaram 900.000$00 para a aquisição do prédio descrito no n.º 7 dos factos provados, verba que nunca lhes foi paga; (…) e marido disponibilizaram à Autora e Réu a quantia de € 35.000,00 para pagamento da dívida à CCAM…; (…) disponibilizou ao Réu a quantia de € 50.000,00 para a construção de um pavilhão para acolhimento de ovelhas e crias, mais pagando ao IGFSS a dívida do Réu no montante de € 8.653,84. Por outro lado, não resulta dos factos provados que a aquisição dos prédios tenha sido concretizada com fundos angariados pela Autora ou conjuntamente com a Autora, tal como bem evidenciado na sentença recorrida, demonstrando que não resultou assente que a exploração agrícola tivesse gerado capital para o efeito, nem sequer para pagamento das responsabilidades assumidas junto das instituições bancárias. Antes resultaram de fundos disponibilizados pelos pais do Réu. Não obstante a menção apostas nas escrituras de compra e venda celebradas, no sentido de o regime de bens ser diverso do da separação de bens, certo é que, as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pela Autora, detalhadamente esmiuçadas e analisadas na sentença recorrida, o que aqui se acompanha, não permitem se tome como firme e seguro que era desconhecido o regime da separação de bens. Termos em que se conclui não ter a Recorrente evidenciado ter a 1ª instância incorrido em erro no julgamento da factualidade em causa, cuja motivação de facto, exarada de forma circunstanciada e detalhada, não resulta colocada em crise. iii) Da aquisição, pela Recorrente, do direito de compropriedade sobre os prédios rústicos A Autora, invocando ter estado convencida de que o regime de bens do seu casamento com o Réu era o da comunhão de adquiridos, pretende ser declarada comproprietária, na proporção de 50%, de cada um dois bens imóveis identificados nos autos. O regime de bens, no caso em apreço, é o da separação de bens, por força da lei – cfr. artigos 1720.º, n.º 1, alínea a) e 1735.º do Código Civil. Por via disso, cada um dos esposados conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros – cfr. artigo 1735.º CC. Inexistem bens comuns, património comum do casal, caraterizando-se por «uma efetiva autonomia dos patrimónios encabeçados pelos dois cônjuges quer no que respeita ao domínio, fruição e administração dos bens, quer no que concerne à sua alienação e oneração.»[5] Cada um dos patrimónios autónomos pode, todavia, contemplar direitos de compropriedade sobre bens que, nesse regime de compropriedade, sejam pertença exclusiva dos cônjuges. A Autora, que não adquiriu direitos sobre os bens por via dos títulos de aquisição nos quais interveio o Réu, então seu marido, arroga-se da qualidade de comproprietária sobre cada um deles, na proporção de 50%, quer porque estava convencida de que o regime vigente era o da comunhão de bens adquiridos quer com fundamento na usucapião. Caso tivesse a Autora logrado demonstrar estar em erro, de forma a que tudo se tenha passado como se do regime da comunhão de adquiridos se tratasse, então não se tratava de compropriedade, do direito a 50% sobre cada um dos imóveis, mas antes de comunhão no património que se considerava comum. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[6], a comunhão de mão comum ou propriedade coletiva reporta-se a “um património afetado a certo fim, que pode ser integrado por relações jurídicas de diversa natureza (…) e que pertence em contitularidade a dois ou mais indivíduos litigados por determinado vínculo (familiar, societário ou de outra ordem). A doutrina (…) costuma recorrer a este conceito para enquadrar o regime a que a lei subordina o património comum dos cônjuges, tal como o das sociedades não personalizadas e o da herança indivisa. O que caracteriza a comunhão de mão comum e a distingue da compropriedade é, além do mais, o facto de “o direito dos contitulares não incidir diretamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário”[7]. Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte, dispor desses bens ou onerá-los, no todo ou em parte (…), salvo quando possam fazê-lo, por força da lei ou de estipulação negocial, em veste de administradores. Quanto à sua participação no referido direito único sobre todo o património, ela subsiste enquanto estiverem abrangidos pelo vínculo que determinou a comunhão – vínculo esse que só pode cessar nos termos referidos na lei (…). Na partilha dos bens subsequente à dissolução da comunhão ou destinada a pôr-lhe fim, os contitulares (ou os respetivos herdeiros) têm, apenas direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar.” Seguindo de perto a jurisprudência deste Tribunal[8], levando em linha de conta o regime inserto no artigo 1316.º do CC, que estabelece os modos de aquisição do direito de propriedade, e a circunstância de o regime de bens do casamento ser o imperativo da separação de bens, afigura-se ser de alinhar os seguintes vetores: - a compropriedade, que não se confunde com a comunhão emergente de um regime matrimonial de bens, pressupõe um título de aquisição em que ambos os comproprietários intervenham; - só se tivesse intervindo como compradora nas escrituras de compra e venda é que se poderia afirmar ter a Autora adquirido em comum e partes iguais (como comproprietária) os respetivos bens imóveis; - não é de aceitar o entendimento de que a mera declaração do Réu, nas escrituras, de que estava casado com a Autora no regime de comunhão de adquiridos ou comunhão geral de bens seria bastante para tornar a Autora comproprietária dos bens, nem para converter estes em património comum do casal. Analisemos, então, a pretensão da Recorrente à luz do instituto da usucapião. Nos termos do disposto no artigo 1287.º do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião. Ora, posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251.º do CC. Como é sabido, a posse integra dois elementos: - o corpus (poderes de facto sobre a coisa, o elemento material); - o animus (intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados, o elemento psicológico). “Como decorre do disposto no artigo 1251.º do CC, haverá essa posse quando se atua por forma correspondente ao exercício desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa atuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se tratando-se de posse derivada, que se pode revelar por outras formas) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (artigo 1253.º, alínea a), do Código Civil) – animus da posse.”[9] É certo que, “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (…)” – artigo 1252.º, n.º 2, do CC. Donde, o exercício dos atos materiais sobre a coisa, em caso de dúvida, faz presumir a existência do animus. Tal presunção tem em vista ultrapassar a dificuldade de provar a posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente,[10] pois “ninguém pode adivinhar o ânimo com que se detém uma coisa, o qual se pode revelar pelos factos consequentes, visto tratar-se de um facto psicológico que se não pode conhecer a priori.”[11] Certo é também que não são considerados possuidores os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito.[12] O que se verifica designadamente, nos casos de posse em nome alheio, de prática de atos facultativos desencadeados por via da inércia do respetivo titular (o que nunca constitui um direito, pois desaparece no dia em que o proprietário quiser atuar pondo inviabilizando aquela prática).[13] Igualmente não são considerados possuidores aqueles que simplesmente se aproveitam da mera tolerância do titular do direito[14], praticam atos por via do consentimento, expresso ou tácito, deste[15], sem que exista a intenção de conceder qualquer direito ao agente, conservando-se a faculdade de, a todo o momento, pôr fim à atividade tolerada – como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[16], estão aqui em causa os atos que, no Código de 1867, eram definidos como «os atos praticados por um indivíduo que não é o titular da coisa ou do direito sobre que incidem, e que, em virtude de motivos de amizade, de parentesco ou de vizinhança, a lei supõe praticados com o consentimento daquele titular e não significam, portanto, a afirmação de um direito próprio.» Os atos de mera tolerância «São situações relativamente comuns na vida social, em que o titular facilita a outrem a prática de determinados atos que se traduzem no aproveitamento de utilidades contidas no seu direito (v. g., atravessar prédio alheio para encurtar distâncias, ocupações precárias de edifícios, sementeiras ou edificações autorizadas numa parcela do terreno vizinho) e que, por veicularem, em regra, um espírito desinteressado de colaboração, não podem ser penalizados com a aquisição da posse pelo exercente, mantendo-se no titular o direito de lhes pôr termo a todo o tempo.»[17] Nos casos em que, designadamente por via das relações familiares existentes, se verifica a ocupação e uso de prédios afetos às atividades exercidas nesse contexto familiar, tais atos, só por si, sem que a factualidade apurada revele que o utilizador se arrogou da qualidade de contitular do direito de propriedade dos bens (caso em que se verificaria a inversão do título da posse, conforme previsto no artigo 1265.º do CC, por atos de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía, desde que o detentor tornasse diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de atuar como titular do direito[18]), não traduzem uma situação de posse desses bens pertencentes apenas a um dos sujeitos que integram o agregado familiar. Configuram, antes, atos que são compatíveis com os poderes decorrentes da estrutura familiar, exercidos de forma consentânea e consentida no âmbito da relação familiar, que não são exercidos em oposição ao titular exclusivo dos bens e que, por isso, não implicam a alteração do estatuto jurídico dos bens.[19] No caso em apreço, os sujeitos em confronto eram cônjuges, casados entre si. Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 1292.º e 318.º, alínea a), do Código Civil, entre os cônjuges, a usucapião não começa nem corre. Por conseguinte, na pendência do casamento, não releva para efeitos de usucapião a fruição, pela Autora, dos prédios do Réu. Termos em que se conclui não merecer acolhimento a pretensão da Recorrente no sentido da aquisição de direitos de propriedade sobre os bens imóveis com fundamento na usucapião. Improcede, pois, o recurso. As custas recaem sobre a Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. Évora, 13 de novembro de 2025 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Vítor Sequinho dos Santos Mário João Canelas Brás __________________________________________________ [1] Ac. do STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes). [2] Ac. do STJ de 27/04/2023 (João Cura Mariano). [3] Ac. do STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes). [4] Ac. do STJ de 27/04/2023 (João Cura Mariano). [5] Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, 2.ª edição, pág. 447. [6] CC anotado, vol. III, 2.ª edição, págs. 347 e 348. [7] Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão. [8] Cfr. Ac. de 16/06/2010 (Mário Serrano). [9] Ac. do STJ de 25/10/2010 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza). [10] Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 8. [11] Visconde de Seabra, in José Dias Ferreira, in CC Portuguez Annotado, Vol. II, 1871, pág. 8, citado por Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Sobre a Distinção entre Posse e Detenção, pág. 110. [12] Cfr. artigo 1253.º, alínea a), do CC. [13] Cfr. Manuel Rodrigues, A Posse. [14] Cfr. artigo 1253.º, alínea b), do CC. [15] Henrique Mesquita, Lições de Direitos Reais, pág. 71, nota 1. [16] CC anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 10. [17] Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Sobre a Distinção entre Posse e Detenção, pág. 116. [18] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 30. [19] Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 10/12/2015 (Abrantes Geraldes). |