Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3547/17.6T8LLE-C.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: DECISÃO SURPRESA
EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O tribunal emite uma decisão-surpresa quando conhece oficiosamente de questões adjetivas ou substantivas, não suscitadas pelas partes, sem que as mesmas tenham tido a oportunidade de previamente exercer o princípio do contraditório, ou quando conhece de questões suscitadas pelas partes, mas fá-lo de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adotando uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter à sua apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide.
II. A exequibilidade da prestação cuja realização coativa é pedida em sede executiva, depende de dois requisitos: a) o dever de prestar deve constar de um título – o título executivo (artigos 10.º e 703.º do CPC) –, o que corresponde a um requisito específico de ordem formal e que condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva; b) a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (cfr. artigo 713.º do CPC), o que corresponde a pressupostos específicos de caráter material, que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da prestação.
III. O artigo 54.º, n.º 1, do CPC estabelece um desvio à regra do artigo 53.º, n.º 1, do CPC, conferindo legitimidade para ser demandado como executado, o adquirente que, por compra e venda, sucedeu na obrigação da pessoa que figura no título executivo como devedor, devendo o exequente no próprio requerimento executivo deduzir os factos constitutivos da sucessão.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
BB, em 02-11-2017, intentou execução para prestação de facto contra Radical Red Holdings LLC, CC, AA e DD, apresentando como título executivo o Acórdão desta Relação de 30-11-2016, transitado em julgado em 20-12-2016, proferido no procedimento cautelar de ratificação de embargo de obra nova, que correu termos sob o n.º 789/16.5T8FAR na Secção Cível da Instância Local de Faro, e que decretou a providência requerida[1] e, nessa medida, ratificou o embargo de obra nova efetuado em 21-03-2016, condenando os ora Executados Radical Red Holdings LLC e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição, decretando, ainda, a inversão do contencioso.
A Exequente também alegou que os Executados Radical Red Holdings LLC e CC intentaram ação de processo comum, que corre termos sob o n.º 374/17.4T8FAR – Juiz 3, no Juízo Central Cível de Faro, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, destinada a impugnar a existência do direito acautelado à ora Exequente pela providência cautelar.
Os Executados AA e DD, por Apenso à referida ação declarativa comum n.º 374/17.4T8FAR – Juiz 3, do Juízo Central Cível de Faro, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foram declarados habilitados como adquirentes do direito de propriedade pertencente à Executada Radical Red Holdings LLC, uma vez que celebraram com esta contratos de compra e venda dos prédios urbanos descritos na C.R.P. de Faro sob os n.ºs ...93 e ...94, da freguesia do Montenegro, e que correspondem às moradias geminadas edificadas no imóvel da Exequente.
Mais alegou que os Executados não cumpriram o Acórdão desta Relação de 30-11-2016, supra referido, pelo que formulou os seguintes pedidos:
«(…) a exequente pretende mandar fazer, sob a sua orientação e vigilância, as obras e trabalhos necessários ao cumprimento da douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora.
Os executados devem ser solidariamente condenados a pagar à exequente uma indemnização pelo dano sofrido por esta com o incumprimento da decisão do Tribunal da Relação de Évora e que se computa na quantia mensal de €300,00, valor pelo qual o imóvel da exequente foi arrendado entre agosto de 2012 e julho de 2015, conforme contrato de arrendamento que se junta sob a designação de Doc. 3 e se dá por integralmente reproduzido. Tal quantia mensal é devida desde o embargo extrajudicial efetuado pela exequente (21/03/2016) e até à data em que seja terminada a reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição. Assim, na presente data, tal valor ascende a €6.300,00 (seis mil e trezentos euros) = € 300,00 x 21 meses (março de 2016 a novembro de 2017).
Mais se requer que os executados sejam solidariamente condenados a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia diária de €100,00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora. Tal quantia é devida desde o embargo extrajudicial efetuado pela exequente (21/03/2016) e até à data em que se termine a reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição. Assim, na presente data, tal valor ascende a €59.200,00 (cinquenta e nove mil e duzentos euros) = € 100,00 x 592 dias.»

O Executado AA veio deduzir embargos de executado, pedindo que, pela procedência dos mesmos, seja absolvido do pedido formulado pela Exequente, e, no entretanto, requereu a imediata suspensão da execução, nos termos do artigo 733.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Alegou, em suma, a falta e a inexequibilidade do título executivo e a sua ilegitimidade, porquanto, o Acórdão apresentado como título executivo não contém qualquer obrigação do Embargante para com a Embargada, nem a condenação do mesmo a pagar-lhe qualquer quantia.
Mais alegou que adquiriu por escritura pública datada de 24-04-2017, à sociedade Radical Holdings LLC, o prédio urbano correspondente ao lote de terreno destinado a construção urbana, sito em Montenegro, Faro, denominado Lote 4, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respetiva matriz sob o n.º ...18, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...94, da freguesia de Faro, inserido no Alvará de Loteamento nº ...00, de 30-08-2017, e respetivo aditamento de 23-07-2021.
Mais defendeu que tendo adquirido o imóvel de boa-fé, na qualidade de terceiro, encontra-se a sua posição jurídica salvaguardada pelo disposto nos artigos 291.º e 874.º do Código Civil.

A Embargada contestou os embargos concluindo pela sua improcedência.
Por despacho proferido no decurso da audiência prévia realizada em 04-06-2019, o Tribunal recorrido declarou a suspensão da instância dos embargos e da execução até que fosse proferida sentença transitada em julgado no processo n.º 374/17.4T8FAR.
A suspensão da instância foi levantada quando foi junto aos autos a sentença proferida naqueles autos, transitada em julgado em 02-05-2022, que julgou a ação improcedente.

Foi proferido saneador-sentença em sede de audiência prévia realizada em 24-11-2022, constado da sua parte dispositiva o seguinte:
«a) Julgar os embargos de executado totalmente improcedentes por não provados, prosseguindo a execução os seus trâmites normais, o que se determina;
b) Condenar o Embargante/executado AA no pagamento das custas e demais encargos com o processo.»

Inconformado, o Embargante interpôs recurso de apelação apresentando a seguinte síntese no final das suas CONCLUSÕES[2]:
«Nestes termos e nos mais de Direito, deverá conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por outra em que se julgue a matéria de facto e de direito, nos termos supra expostos, devendo a oposição ser julgada procedente por provada e, consequentemente, absolver-se o executado/embargante AA do pedido e causa de pedir formulado pela recorrida BB, de prestação de facto com base em título executivo, decisão judicial condenatória Processo 789/16.5T8FAR, correu termos no Juízo Local Cível, Juiz 1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro, e, por:
a) Modificada a decisão de facto impugnada, relativamente aos factos provados 2., 3., 4., 5., 6., 7., 8., 12. da douta sentença, do Tribunal “a quo”, para não provados, bem como toda Motivação da decisão da matéria de facto e Enquadramento de Direito, que o Tribunal “a quo” faz e fundamenta a sua decisão com factos Processo 374/17.4T8FAR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro – Juiz 3, por violação dos artigos 628.º CPC, artigo 589.º do CPC, 152.º ,n.º 2, 364.º, n.º1 do CPC, terá o douto Tribunal de considerar o ora recorrente AA PARTE ILEGÍTIMA DA ACÇÃO.
b) A ilegitimidade do ora recorrente AA, julgando procedente constitui exceção dilatória prevista no art.º 577.º e) do CPC, tendo a referida exceção como consequência a absolvição da instância nos termos dos art.ºs 278.º n.º 1 d) e 279.º do CPC.
c) Concluir que, o título executivo é o proferido no Venerando Acórdão da Relação, Processo 789/16.5T8FAR.E1, delimitando o objecto da acção aos factos dados como provados os pontos 17., 18., 20., 21., 22., 23., 24., 25., 26., 27., 28., 29. E à sua limitação quanto ao prédio da ora recorrida, ao levantamento topográfico, que refere que: “RECORRIDA BB como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em Montenegro (próximo da Rua ...) freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...67 (anteriormente inscrito sob o artigo ...11, da antiga freguesia de S. Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o no ...22, com a área total de 517m2, correspondendo a 126,10m2 de área coberta e 390,90m2 de área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho e logradouro, confrontando do norte com lote 4, do sul com lotes 1 e 2, do nascente com EE e do poente com rua, estando os respectivos limites assinalados a amarelo no levantamento topográfico junto a fls. 36 dos autos
d) Conhecer, oficiosamente, normas imperativas do ordenamento do território e do direito do urbanismo, que se assumem como de ordem e interesse públicos, dos Loteamentos Públicos;
e) Julgue nula a douta sentença, ora recorrida, pela contradição insanável entre os factos dados como provados e o enquadramento jurídico, por violação do n.º3, do art. 3.º, do CPC), há uma nulidade da sentença por falta de fundamentação, alíneas b e c), do n.º1, do art. 615.º, do CPC):
a. Os factos dados como provados não habilitam o executado, que à data do trânsito em julgado, a decisão condenatória, que formou caso julgado, no Processo 789/16, não era proprietário, nem faz parte do título executivo.
b. Não há, no título executivo qualquer menção em que condene o ora recorrente AA a demolir a sua moradia – Lote 4 - Alvará de Utilização n.º ...19, processo n.º 07/20..., emitido a AA, que aprova a autorização da utilização do prédio sito na Rua ... (anterior Lote4), da freguesia de Montenegro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro, sob o n.º ...94 e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...18, emitida no dia 22/04/2019, pelo que,
c. Ficaram feridos os seus direitos, nomeadamente quanto a na sua oposição não ter requerido que a demolição representava um prejuízo consideravelmente superior ao sofrido pela exequente, ora recorrida BB, nos termos da 2ª, do n.º 2 do artigo 729.º CPC.»

Não foi apresentada resposta ao recurso.
O recurso foi admitido por despacho proferido em 14-03-2023, como apelação, com efeito suspensivo, a subir imediatamente e nos próprios autos.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 617.º, n.º 1, do CPC, considerando a instância recorrida que a decisão não padecia das arguidas nulidades.
Foram colhidos os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões a decidir no recurso, sucessivamente, são as seguintes:
- Nulidade da sentença,
- Violação do princípio do contraditório;
- Impugnação da decisão de facto;
- Apreciação do mérito da sentença.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
FACTOS PROVADOS
«1. A exequente BB intentou em 02/11/2017 a execução para prestação de facto contra os executados «Radical Red Holdings LLC», CC, AA e DD, apresentando como título executivo o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, datado de 30 de Novembro de 2016, em cujo segmento decisório consta “Decisão. Destarte, concede-se provimento ao recurso, decretando-se a providencia requerida por BB, com ratificação do embargo de obra nova por esta efectuada em 21.03.2016 e condenação dos Requeridos Radical Red Holdings LLC e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição. Mais se condenam os mesmos Requeridos a reconhecê-la como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em Montenegro próximo da Rua ..., freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...67 (anteriormente inscrito sob o artigo ...11 da antiga freguesia de S. Pedro e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...22, com a área total de 517 m2-correspondendo a 126.10 m2 de área coberta e 390,90 m2 de área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, e logradouro, confrontando do norte com lote 4 do sul com lotes 1 e 2, do nascente com EE e do poente com rua, estando os respectivos limites assinalados a amarelo no levantamento topográfico junto a fls. 36 dos autos. Mais se decreta a inversão do contencioso”;

2. A “Radical Red Holdings LLC” e CC intentaram contra BB, acção declarativa, a qual foi distribuída no Juízo Central Cível de Faro-juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o nº 374/17.4T8FAR, pedindo “-seja declarada a caducidade da providência decretada na providência cautelar e, consequentemente, a não proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição; -o não reconhecimento da ré como dona e legitima proprietária do prédio urbano sito em Montenegro, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, composto por casas de morada de um pavimento com três divisões assolhadas, cozinha e casa de banho, com a área total de 517 m2, correspondendo a 126 m2 à área coberta e 390,90 m2 à área descoberta, confrontando do Norte com lote 4, do sul com lotes 1 e 2, Nascente com EE e do Poente com rua, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...67 (anteriormente inscrito sob o artigo ...11, da freguesia de S. Pedro, concelho de Faro), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...22, adquirido por usucapião, no que se refere à configuração e limites; - se reconheça que a autora “Radical Red Holdings LLC” é dona e única proprietária e possuidora, com exclusão de outrem dos bens imóveis adquiridos nos termos do disposto no artº 874º e seguintes do Código Civil: - Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em Montenegro, Faro, denominado lote três, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...17, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...93, da freguesia de Faro, Alvará de Loteamento de 30 de Agosto de 2000; - Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em Montenegro, Faro denominado lote quatro, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...18, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...94, da freguesia de Faro, Alvará de Loteamento de 30 de Agosto de 2000, e que – a ré BB seja condenada a abster-se de praticar quaisquer actos contra as propriedades da autora “Radical Red Holdings LLC” supra descritas, com as devidas consequências legais”;

3. Na acção declarativa nº 374/17.4T8FAR foi proferida decisão, datada de 01/11/2017, em cujo segmento decisório consta “IV-Decisão. Pelo exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais, julgo a acção intentada por Radical Holdings, LLc e CC contra BB improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a ré dos pedidos…”;

4. Por apenso à acção declarativa nº 374/17.4T8FAR (Apenso A), AA e DD requereram a sua habilitação como adquirentes do direito de propriedade dos autores relativo aos prédios urbanos descritos na C.R.P. de Faro sob os nºs ...93 e ...94, pretensão que viram deferida por decisão datada de 26/10/2017, em cujo segmento decisório consta, além do mais, “IV-Assim sendo, atenta a prova documental junta aos autos e o legalmente disposto no artº 356º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, julgo procedente por provada a pretensão dos requerentes e, em consequência, declaro-os habilitados como adquirentes do direito de propriedade pertencente à autora Radical Red Holdings LLC…”;

5. Inconformados com a decisão proferida na acção declarativa nº 374/17.4T8FAR, referida em 3), delas interpuseram recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Évora os autores “Radical Red Holdings LLC” e CC, que em 29/04/2021 proferiu douto acórdão onde, além do mais consta “4-Dispositivo. Pelo exposto, acordam as Juízas da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e manter a sentença recorrida…”;

6. Inconformados com a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, referida em 5), dela interpuseram recurso para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça os autores/recorrentes “Radical Holdings LLC” e CC, e em 14/10/2021 o Colendo Supremo Tribunal de Justiça proferiu douto acórdão em cujo segmento decisório consta “III-Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em: a) Julgar improcedente a invocada exceção de incompetência dos Tribunais portugueses, confirmando-se, nesta parte, o acórdão recorrido; b) Anular o acórdão recorrido na parte em que não conheceu da
impugnação da decisão de facto sobre deduzida pela ré apelante e pelo autor apelante; b) Consequentemente, ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que tome conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos recorrentes, bem como, se for o caso, do subsequente alcance em sede da solução de direito…”;

7. Baixados os autos nº 374/17.4T8FAR ao Venerando Tribunal da Relação de Évora, em 25/11/2021 foi proferido douto acórdão, no qual, além do mais, consta “4-Dispositivo. Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e manter a sentença recorrida…”;

8. O douto acórdão referido em 7) transitou em julgado em 02/05/2022;

9. A 21 de Março de 2016 a obra encontrava-se na fase de demolição do imóvel da exequente;

10. Pese embora o embargo verbal, ratificado pelo douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, os executados “Radical Holdings LLC” e CC continuaram a obra, que nesta data se encontra concluída. A obra realizada concretizou-se na edificação de duas moradias geminadas no imóvel da exequente;

11. A Câmara Municipal de Faro, remeteu à Embargada/exequente a missiva cuja cópia faz fls. destes autos, onde além do mais, consta “…Assunto: Pedido de informação urgente no âmbito do loteamento com o Alvará nº ...00. Com referência ao assunto em epígrafe e em resposta ao solicitado através do V. requerimento registado sob o nº ...25 de 23/03/2016, complementado pela junção de elementos concretizada sob o registo nº ...28, de 08/04/2016, somo a transmitir a V. Exa o seguinte: Conforme entendimento generalizado da doutrina e jurisprudência nacionais, não compete às autarquias, em princípio, lidar com questões de natureza privatística, como sejam a titularidade do direito de propriedade ou quaisquer outros direitos reais ou obrigacionais de que o requerente ou terceiro possa ser titular, para emitir a licença que lhe é requerida, sob pena de usurpação de poderes, já que a resolução de litígios jurídicos privados cabe aos tribunais comuns e não à Administração. Daí se dizer que a licença é atribuída salvo o direito de propriedade e sem prejuízo do direito de terceiro (…) Ora, não tendo havido, à data do ato de licenciamento, elementos que levassem a suspeitar que o requerente não era titular do direito que invocava-como, aliás, presentemente não podemos afirmar categoricamente que a operação de loteamento titulada por Alvará abrange o prédio propriedade da ora exponente- o procedimento culminou numa deliberação que se encontra titulada pelo Alvará nº ...00, emitido em .../.../... a .../.../.... Sendo que, como se referiu supra, qualquer litígio que surja a este propósito não deve ser resolvido pela Administração, sob pena de usurpação de poderes, mas sim pelos tribunais. Por fim, de modo a responder ao requerido pela Senhora BB, a coberto de requerimento registado sob o nº ...25, de 23 de março de 2016, somos a informar que de acordo com informação emitida em 9 de maio de 2016, pela Divisão de Gestão Urbanística, do Departamento de Infraestruturas e Urbanismo desta edilidade, após apreciação do Processo de Obras nº ...9 que culminou com a concessão da licença emitida pelo Alvará de Loteamento nº ...00, constata-se que o artigo matricial ...67, antigo 5911 da freguesia de Montenegro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...71 da extinta freguesia de São Pedro, indicado pela exponente, não se encontra em nenhum documento do citado processo administrativo. É quanto nos é possível informar (…) Vereadora do Urbanismo e Mobilidade (…) FF”;

12. Até à presente data os executados “Radical Holdings LLC” e CC não cumpriram o determinado no douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora;

13. Foi celebrado acordo reduzido a escrito, o qual faz fls. dos autos de execução, no essencial com o seguinte teor “Contrato de Arrendamento Por Período Limitado. Entre: Primeira Outorgante: BB, viúva (…) como primeira outorgante e senhoria. Segundo Outorgante: GG (…) A primeira e o segundo outorgante celebram um contrato de arrendamento para habitação por um período limitado, de 3 anos conforme as seguintes cláusulas: 1º A primeira outorgante é dona e legitima possuidora do prédio urbano sito em Montenegro, na rua ... freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...67, composto por sala/cozinha, dois quartos e casa de banho (…) 2º O prazo de duração do arrendamento é de três anos, com inicio em 01/08/2012 e termo em 31/07/2015, o qual será automaticamente renovado por períodos de um ano se não for denunciado por qualquer das partes antes da renovação dentro do prazo legalmente estabelecido. 3º a) A renda mensal é de 300,00 euros (trezentos), durante o primeiro ano do contrato e será pago directamente à senhoria até ao dia 8 do mês a que respeitar b) Nos anos seguintes, a renda, será a que resultar da aplicação do coeficiente de actualização estipulado por portaria do Ministério das Finanças. 4º O destino do arrendado é exclusivamente o da habitação, não lhe podendo ser dado outro fim ou uso sob pena de resolução contratual (…) Leram as partes deste contrato e por corresponder à real expressão das suas vontades, vão assinar: Faro, 27 de Julho de 2012 (…)”;

14. Foi celebrado acordo reduzido a escrito, o qual faz fls. destes autos, no essencial com o seguinte teor “Compra e Venda. No dia vinte e quatro de Abril do ano dois mil e dezassete, nesta cidade de Olhão e Cartório Notarial (…) perante mim, Lic. HH, respectivo notário, compareceram como outorgantes: Primeiro: II, solteiro, maior (…) outorgando na qualidade de procurador da sociedade “Radical Red Holdings LLC” (…) no uso dos poderes contidos na procuração de que arquivo pública-forma. Segundo. AA, solteiro, maior (…) Pelo primeiro outorgante, na qualidade em que outorga, foi dito: - Que pela presente escritura e pelo preço de quarenta e cinco mil euros, que confessa já ter recebido para a sua representada, vende ao segundo outorgante, o prédio urbano, composto de lote de terreno para construção urbana, freguesia de Montenegro, concelho de Faro, designado por “lote quatro” descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o número .../dois mil onze vinte e oito (São Pedro), e ali registada a aquisição a favor da sua representada pela apresentação dois mil novecentos e vinte e sete, de seis de Fevereiro de dois mil e quinze, e a autorização do seu loteamento pela apresentação dezassete, de vinte e oito de Novembro de dois mil (alvará de trinta de Agosto de dois mil), inscrito na matriz sob o artigo ...18, com o valor patrimonial tributável de 30.060,00 euros. Pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita a presente venda nos termos exarados (…) Assim o disseram e outorgaram (…) Foi esta escritura lida aos intervenientes e aos mesmos explicado o seu conteúdo (…) O Notário (…).»

FACTOS NÃO PROVADOS
«Inexistem quaisquer factos não provados, porquanto provaram-se todos os factos alegados pelas partes e com interesse para a decisão da causa.
Quanto aos mais alegado pelas partes, trata-se de factos sem relevância para a decisão ou de matéria conclusiva e/ou de direito.»

C- Conhecimento das questões colocadas no Recurso
1. Nulidade da sentença
Alega o Apelante que a sentença é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC.
Alega para o efeito o vício de falta de fundamentação, bem como uma contradição insanável entre os factos dados como provados e o enquadramento jurídico levado a cabo na sentença.
Vejamos.
As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do no n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Assim, a sentença é nula quando:
«a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»

As nulidades da sentença correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
No caso em apreciação, a sentença proferida em sede de despacho saneador elencou os factos provados e não provados em resultado da posição das partes vertidas nos articulados e do teor dos documentos juntos, fundamentando a decisão em face dos factos admitidos por acordo e do valor probatório dos documentos juntos, e, de seguida, convocou o regime legal que julgou aplicável, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à valoração dos meios probatórios apreciados, o que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto (que o Apelante impugnou), ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos assentes, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Em suma, em face do modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão de facto e direito, e considerando a fundamentação da arguição da nulidade da sentença, não incorreu a mesma na nulidade prevista na alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
Quanto à nulidade prevista no mesmo preceito na sua alínea c), a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Já a segunda parte prescreve que a sentença é nula quando for ambígua ou obscura de tal modo que a torne ininteligível (segmento normativo que aqui não está em causa atenta a alegação do Apelante).
Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão.[3] Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (“error in judicando”), mas não nulidade da decisão.[4]
No caso em apreço, a alegação do Apelante não se enquadra na previsão normativa, pois o que invoca é que existe um erro de julgamento entre os factos provados e a decisão no que concerne aos limites do título executivo, porquanto do mesmo, no seu entender, não decorre qualquer obrigação contra si, uma vez que, à data do trânsito em julgado do Acórdão dado à execução proferido no processo n.º 789/16.5T8FAR (20-12-2016), não era proprietário do Lote 4 onde se encontra implementada a sua moradia, pois só o veio a adquirir em 24-04-2017.
Ora, o alegado erro de julgamento tem de ser apreciado em termos de sindicabilidade do mérito da sentença proferida nestes embargos, não consubstanciando o mesmo, a existir, qualquer nulidade da sentença proferida.
Nestes termos, também improcede a arguida nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.

2. Violação do princípio do contraditório
O Apelante vem alegar que se verifica violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, por ter sido emitida uma decisão-surpresa, sem ter sido ouvido, previamente à prolação da sentença recorrida no que diz respeito à condenação do recorrente a demolir a sua moradia geminada construída no referido Lote 4, onde reside com o seu agregado familiar, sem ordenar uma perícia com vista a determinar a exata localização do prédio da ora Recorrida.
Vejamos.
Estipula o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, que «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»
Sendo que a proibição da decisão-surpresa prende-se com o conhecimento de questões de direito adjetivo ou substantivo, não suscitadas pelas partes, mas que são de conhecimento oficioso, pois as suscitadas pelas partes devem ser objeto de apreciação, sob pena de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Admitindo-se, contudo, mesmo em relação a questões suscitadas pelas partes que possa haver uma decisão-surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado da factualidade provada e do pertinente enquadramento jurídico, adote uma solução jurídica que as partes não quiseram submeter a apreciação, apresentando-se o decidido como imprevisível em face dos contornos da lide.[5]
Na situação em apreciação, a execução foi instaurada com base num título executivo de natureza judicial tendo a Exequente alegado que «(…) pretende mandar fazer, sob a sua orientação e vigilância, as obras e trabalhos necessários ao cumprimento da douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Évora», sendo que as mesmas constam da parte dispositiva do dito Acórdão do seguinte modo: «(…) suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição».
O ora Apelante ao deduzir embargos de executado suscitou a questão da falta e inexequibilidade do título executivo alegando que a pretensão da Exequente/Embargada em relação ao Executado/Embargante não tem suporte no título executivo, bem como a questão da sua ilegitimidade para ser executado, precisamente pelas mesmas razões, alegando, ademais, que o seu imóvel construído no Lote 4 «não consta» da sentença exequenda e dela não resulta qualquer obrigação para o Embargante relacionada com aquele imóvel.
A sentença recorrida pronunciou-se sobre as questões supra referidas que enunciou expressamente como questões a resolver, decidindo a certo passo, em relação à alegada falta e inexequibilidade do título executivo:
«(…) a exequente dispõe de título executivo válido (acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação de Évora) e esse título executivo é perfeitamente exequível, bastando os executados procederem à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.»
E em relação à questão da ilegitimidade do Executado/Embargante, decidiu também em sentido positivo louvando-se no disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC, e no decidido, quer Acórdão proferido no procedimento cautelar, quer na decisão final proferida no processo que se seguiu interposto pelos Requeridos com vista à inversão do contencioso (que foi julgada totalmente improcedente), lendo-se na fundamentação na sentença recorrida, reportando-se ao Acórdão desta Relação proferido na providência cautelar de embargo de obra nova tramitado sob o n.º 789/16.5T8FAR.E1, o seguinte:
«(…) a autoridade do caso julgado, ou seja, do decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nomeadamente na parte de sujeição a que sejam reconstruídas as paredes e o telhado da edificação existente no prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição levados a cabo pela “Radical Red Holdings LLC” e CC, estendem-se aos actuais detentores das moradias geminadas edificadas no prédio da exequente, e daí a legitimidade desses detentores para a execução.»
Decorre, pois, do que vem sendo dito que, em face dos fundamentos da oposição apresentada pelo Embargante, conhecidos e decididos na sentença recorrida, que as obrigações emergentes do título executivo, seu alcance e âmbito, foram objeto de discussão e decisão, não se verificando, pois, a prolação de uma decisão-surpresa.
Sendo que não se descortina que houvesse outras questões a conhecer de modo oficioso. Sublinhando-se, ademais, que apesar do ora Apelante alegar que o título executivo não ordena a demolição da sua moradia e que nem sequer decidiu que a mesma se localiza no terreno da Apelada, rigorosamente tal não corresponde ao decidido.
O que se verifica é uma outra situação.
A moradia em causa foi construída no Lote 4, o qual se encontra integrado no terreno objeto do Loteamento ..., de 30-08-2017, que, por sua vez, abrangeu o imóvel da Apelada. Este facto resulta claramente do Acórdão apresentado como título executivo como decorre da conjugação dos factos dados ali como provados nos pontos 1) a 5), 12), 20), segundo parágrafo, 25) a 29) e respetiva fundamentação.
Pelo que desta factualidade há que retirar as devidas consequências.
Compreendendo-se, assim, que na sentença recorrida conste a seguinte passagem:
«(…) para executar o determinado pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora apresentado como título executivo (reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição), é necessário proceder à demolição da moradia adquirida pelo ora embargante AA, donde se conclui que apesar do mesma não constar no título executivo, não tendo sido condenado a fazer o que quer que seja, nomeadamente “a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição”, será afectado pela execução do determinado pelo Tribunal Superior (…)».
Concluindo mais à frente:
«(…) a construção das referidas moradias geminadas impede que a exequente utilize o seu prédio, é para reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição será necessário demolir as ditas moradias, o que necessariamente afectará os actuais detentores».
E, finalmente:
«(…) sendo certo que o mesmo não está obrigado a proceder à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, obrigação que recai apenas sobre os executados “Radical Red Holdings LLC” e CC e que se os mesmos não o fizerem será efectuado por outrem (cfr. artigo 870º, do Código de Processo Civil), mas o ora Embargante/executado já está obrigado a sujeitar-se a que a moradia da qual é detentor seja demolida para cumprimento do decidido pelo Tribunal Superior (…).» (sublinhados nossos).

Atendendo ao supra exposto, é de concluir que não se verifica a alegada violação do princípio do contraditório, nem tampouco a emissão de uma decisão-surpresa.

3. Impugnação da decisão de facto
O Apelante pretende que seja alterada a decisão de facto em relação aos pontos 2., 3., 4., 5., 6., 7., 8. e 12. dos factos provados para que sejam dados como não provados.
Pede ainda que seja modificada toda a «Motivação da decisão de facto».
Também alega que deve ser modificada a decisão de direito por ter sido fundamentada e enquadrada na decisão proferida no processo n.º 374/17.4T8FAR, com violação dos artigos 628.º, 589.º, 152.º, n.º 2, e 364.º do CPC.
Começa-se por se dizer o que nos parece ser evidente em face do disposto nos artigos 607.º, n.º 4, 640.º e 662.º do CPC.
A impugnação da decisão de facto prevista no artigo 640.º do CPC, conjugado com o artigo 662.º do mesmo diploma legal, preenchidos que estejam os respetivos requisitos, visa a efetivação do duplo grau de jurisdição ao nível da decisão de facto, permitindo, desse modo, ao Tribunal da Relação sindicar se ocorreu erro de julgamento na apreciação da provas, quando determinados factos foram dados como provados quando não o foram, e vice-versa.
A motivação ou fundamentação da decisão de facto, que tem de constar da sentença por força do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC e como decorrência da consagração do direito das partes a um processo equitativo (cfr. artigo 154.º do CPC, artigo 20.º, n.º 4, da CRP e artigo 6.º da CEDH, 14.º do PIDCP e 10.º da DUDH), tem uma função interna (autocontrolo por parte de quem emite a decisão) e externa (possibilidade dos destinatários da decisão poderem compreender e sindicar as razões, raciocínios e argumentos subjacentes à valoração dos meios de prova).
Essas funções são, assim, instrumentais em relação à decisão de facto, ainda que sejam essenciais no que concerne à sindicabilidade daquela decisão.
No caso, a impugnação da decisão de facto ancora-se na discordância em relação à fundamentação da decisão, o que não significa que seja essa a que vai ser modificada, mas sim a decisão de facto em si mesma, caso se verifique ter ocorrido erro de julgamento no apuramento dos factos provados e não provados.
Assim sendo, quando o Apelante pede a modificação da motivação da decisão de facto, a única interpretação possível dessa alegação, é que discorda daquela motivação e, consequentemente, dos factos provados, assim tidos com base nessa motivação, a qual espelha o modo como o julgador formou a sua convicção. É, pois, nesse sentido que se atenderá ao que vem alegado quanto a esta questão.
Também é de mencionar que o Apelante não conseguiu estabelecer na sua alegação uma nítida separação entre erro ao nível da decisão de facto e erro ao nível da decisão de direito, sendo, obviamente, erros de natureza diversa.
O primeiro, é sindicável quando se impugna a decisão de facto; o segundo, quando se impugna o mérito da decisão, ou seja, quando se direciona à aplicação do direito aos factos provados.
Por outro lado, o Apelante invoca preceitos que não se adequam ao alegado. Assim, invoca o artigo 628.º do CPC (noção de trânsito em julgado) para defender que as obrigações constantes do título executivo não o abrangem. Mas como veremos, esta questão em nada colide com a decisão de facto nos pontos impugnados pelo Apelante, sobretudo porque os referidos pontos se limitam a transcrever o que consta de articulados e decisões judiciais já transitadas em julgado.
Também menciona o artigo 589.º do CPC (apresentação de novo articulado depois da marcação da audiência final), mas, confessamos, que nem sequer se percebe o alcance de tal alegação. O mesmo se diga em relação à invocação do artigo 152.º, n.º 2, do CPC, que define o conceito «sentença».
Quanto à menção ao artigo 364.º, n.º 1, do CPC (dependência do processo cautelar em relação ao processo principal, exceto quando for decretada a inversão do contencioso) também se torna impercetível tal menção no contexto da impugnação da decisão de facto ou, mesmo, na do eventual erro de julgamento ao nível da decisão de direito.
Num esforço de interpretação do alegado pelo Apelante em relação à impugnação da decisão de facto, o que sobressaí é que o Apelante pretende com a mesma que se conclua que, tendo sido apresentado como título executivo o Acórdão proferido no procedimento cautelar tramitado sob o n.º 789/16.5T8FAR, a decisão das questões suscitadas nos presentes embargos não poderão basear-se nos elementos constantes do processo que correu termos n.º 374/17.4T8FAR no Juízo Central Cível de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, mas apenas no segmento decisório da decisão exequenda.
Porém, a questão suscitada reporta-se à determinação dos elementos a atender em sede da apreciação jurídica do pleito, não relevando em sede de impugnação da decisão de facto, nem impondo a exclusão da factualidade inserta nos factos impugnados pelo Apelante.
Dito isto, cabe ainda referir o seguinte:
Não estando em causa a apreciação de prova gravada, mas os meios probatórios constantes dos autos que, no caso, é apenas prova documental, a modificação da decisão de facto pode ocorrer se os factos tidos como assentes/provados por via daquela prova, impuserem uma decisão diversa (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e 662.º, n.º 1, do CPC).
Ora, verifica-se que o teor dos pontos 2., 3., 4., 5., 6., 7., e 8. dos factos provados corresponde tão só à descrição do pedido formulado no processo n.º 374/17.4T8FAR; ao teor da decisão proferida nesse processo; à existência de um apenso de habilitação de adquirente; aos recursos interpostos, sucessivamente, para a Relação de Évora e para o STJ; à prolação de novo Acórdão pela Relação de Évora; e, finalmente, ao trânsito em julgado do último acórdão.
Esta factualidade resulta do processado nos autos n.º 374/17.4T8FAR, não colocando o Apelante em causa a autenticidade, genuinidade e força probatória dos documentos de suporte (artigos 444.º a 446.º do CPC).
Consequentemente, os factos inseridos nestes pontos da decisão de facto não poderiam deixar de ser dados como provados.
Quanto ao ponto 12. dos factos provados, ali se encontra plasmada a factualidade alegada no requerimento executivo, onde consta que, até à data da instauração da execução, os executados Radical Holdings LLC e CC não tinham cumprido o determinado no Acórdão da Relação de Évora apresentado como título executivo.
Facto que o Apelante não impugna especificadamente na sua oposição por meio de embargos, nem tal resulta da defesa considerada no seu conjunto, donde a factualidade inserta no ponto 12. dos facos provados se encontra admitida por acordo (artigo 547.º, n.º 2, e 551.º do CPC).
Nestes termos, também improcede a impugnação em relação a este ponto da decisão de facto.

4. Apreciação do mérito da sentença
4.1. Falta e inexequibilidade do título executivo
O Apelante continua a defender no recurso, tal como já tinha alegado na oposição à execução, a falta e inexequibilidade do título executivo, porquanto do Acórdão desta Relação dado à execução não resulta que tenha sido condenado a pagar qualquer quantia, que tenha sido condenado na entrega de coisa certa ou na prestação de qualquer facto.
Vejamos, então.
A sentença recorrida concluiu que a Exequente dispõe de título executivo válido e exequível contra o Embargante, lendo-se na fundamentação do assim decidido:
«(…) a Exequente BB apresentou como título executivo o acórdão datado de 30 de Novembro de 2016, proferido no procedimento cautelar de embargo de obra nova com o nº 789/16.5T8FAR, em cujo segmento decisório consta
“Decisão. Destarte, concede-se provimento ao recurso, decretando-se a providencia requerida por BB, com ratificação do embargo de obra nova por esta efectuada em 21.03.2016 e condenação dos Requeridos Radical Red Holdings LLC e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição. Mais se condenam os mesmos Requeridos a reconhece-la como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em Montenegro próximo da Rua ..., freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...67 (anteriormente inscrito sob o artigo ...11 da antiga freguesia de S. Pedro e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o nº ...22, com a área total de 517 m2-correspondendo a 126.10 m2 de área coberta e 390,90 m2 de área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, e logradouro, confrontando do norte com lote 4 do sul com lotes 1 e 2, do nascente com EE e do poente com rua, estando os respectivos limites assinalados a amarelo no levantamento topográfico junto a fls. 36 dos autos. Mais se decreta a inversão do contencioso”,
pelo que inexistem quaisquer dúvidas de que estamos perante uma sentença condenatória, transitada em julgado, que, além do mais, condenou os então Requeridos, ora executados, “Radical Holdings LLC” e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.
Do exposto, resulta que a exequente dispõe de título executivo válido (acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação de Évora) e esse título executivo é perfeitamente exequível, bastando os executados procederem à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.
(…) baseando-se a execução para prestação de facto em sentença a oposição à execução apenas poderia ter algum dos fundamentos elencados nas diversas alíneas do artigo 729º, do Código de Processo Civil ou o fundamento previsto no nº 2, do artigo 868º, do Código de Processo Civil (cumprimento posterior da obrigação) e analisada a petição de embargos facilmente se conclui que o embargante/executado convoca o fundamento previsto na alínea a) do citado normativo legal (inexistência ou inexequibilidade do título), mas a nosso ver não lhe assiste qualquer razão, porquanto a exequente apresenta como título executivo o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora datado de 30/11/2016 que, além do mais, decretou a providência requerida por BB com ratificação do embargo de obra nova por esta efectuado em 21.03.216 e condenou os Requeridos, ora executados “Radical Red Holdings LLC” e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição, inexistindo quaisquer dúvidas que se trata de uma sentença condenatória nos termos propugnados na alínea a), do nº 1, do artigo 703º, do Código de Processo Civil, e para além dessa decisão ter transitado em julgado, na acção declarativa instaurada pela “Radicar Red Holdings LLC” e CC para impugnar a existência do direito acautelado a BB pela providencia cautelar onde foi proferido o acórdão apresentado como título executivo, que correu termos sob o nº 374/17.4T8FAR, já foi proferido acórdão datado de 25/11/2021, transitado em julgado em 02/05/2022, julgando improcedentes todos os pedidos formulados pela “Radical Red Holdings LLC” e CC, pelo que o acórdão proferido na providência cautelar é exequível, devendo a execução prosseguir os seus trâmites normais, e para cumprir o determinado, basta que os executados procedam à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição, sendo certo que os executados “Radical Red Holdings LLC” e CC não acataram o embargo de obra nova efectuado pela ora exequente e posteriormente ratificado pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora e procederam à demolição do prédio da exequente e edificaram sobre o mesmo duas moradias geminadas (…).»
A ação executiva, tal como preceitua o artigo 10.º, n.º 4, do CPC, é aquela em que «(…) o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida», prescrevendo o n.º 5 do mesmo preceito que «Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva».
Para que possa ter lugar a realização duma prestação devida (ou do seu equivalente), há assim que satisfazer dois tipos de condição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação:
a) o dever de prestar deve constar de um título – o título executivo (artigos 10.º e 703.º do CPC) –, o que corresponde a um requisito específico de ordem formal e que condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva;
b) a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (cfr. artigo 713.º do CPC), o que corresponde a pressupostos específicos de caráter material, que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da aprestação.
Verificando-se estes requisitos, o título executivo corresponde ao instrumento considerado condição necessária e suficiente da ação executiva.
É condição necessária, porque sem ele não pode praticar-se nenhum dos atos em que se desenvolve a ação executiva; e é condição suficiente, no sentido de que, na sua presença, seguir-se-á imediatamente a execução sem que se torne necessário efetuar qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.
O título já contém a declaração ou «acertamento» desse direito e, consequentemente, contém a definição dos elementos subjetivos e objetivos da relação jurídica que é objeto da ação executiva.[6]
Isto significa que é pelo conteúdo do título que se tem de determinar qual o objeto da execução e quem pode ser executado (artigos 10.º, n.º 5, e 53.º, n.º 1, do CPC).
Razão pela qual, a inexistência ou inexequibilidade do título é fundamento de oposição à execução (artigos 729.º, alínea a), 730.º e 731.º do CPC).
Os títulos executivos encontram-se elencados taxativamente nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 703.º, aí sendo enumerados os que podem servir de base à execução, deles constando, no que ora releva, a espécie prevista na alínea a) do preceito, ou seja, as sentenças condenatórias, transitadas em julgado (artigo 704.º, n.º1, do CPC).
Importa nesta fase da análise deixar claro que o título executivo dado à execução é a sentença proferida no Acórdão desta Relação proferido em 30-11-20016, transitado em julgado em 20-12-2016, proferido no procedimento cautelar que correu termos sob o n.º 789/16.5T8FAR, que decidiu o seguinte:
«(…) concede-se provimento ao recurso, decretando-se a providencia requerida por BB, com ratificação do embargo de obra nova por esta efectuada em 21.03.2016 e condenação dos Requeridos Radical Red Holdings LLC e CC a suspender de imediato a obra e a proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.
Mais se condenam os mesmos Requeridos a reconhecê-la como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em Montenegro (próximo da Rua ...), freguesia de Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...67 (anteriormente inscrito sob o artigo ...11, da antiga freguesia de S. Pedro) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...22, com a área total de 517 m2-correspondendo a 126.10 m2 de área coberta e 390,90 m2 de área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, e logradouro, confrontando do norte com lote 4, do sul com lotes 1 e 2, do nascente com EE e do poente com rua, estando os respectivos limites assinalados a amarelo no levantamento topográfico junto a fs. 36 dos autos.
Mais se decreta a inversão do contencioso.»

Enfatiza-se este ponto, porquanto no requerimento executivo, na sentença recorrida e o próprio Apelante na oposição aos embargos e agora no recurso, chamam à colação, diversas vezes, a sentença proferida no processo comum n.º 374/17.4T8FAR, que correu termos no Juízo Central Cível de Faro, Tribunal Judicial da Comarca de Faro, bem como a sentença de habilitação do adquirente, ora Apelante, ali proferida no respetivo Apenso; porém, essas decisões não enformam ou constituem o título executivo.
Nem sequer está em causa um título executivo complexo, uma vez que a sentença proferida na referida ação comum é de improcedência.
As decisões proferidas nessa ação comum apenas servem para confirmar que o decidido no Acórdão exequendo proferido em sede de procedimento cautelar, não foi alterado por decisão posterior, seja quanto à ratificação do embargo extrajudicial de obra nova, seja quanto à condenação dos ali Requeridos a reconhecerem a ali Requerente (ora Apelada) como dona e legítima proprietária do imóvel a que se reporta o procedimento cautelar, ou ainda quanto à declaração de inversão do contencioso.
Por outro lado, a decisão de habilitação do ora Apelante proferida no Apenso dessa ação comum, na qualidade de adquirente do direito de propriedade sobre o Lote 4 referido no procedimento cautelar, apenas significa que a sentença proferida na ação comum constitui caso julgado em relação aos adquirentes habilitados (no caso que ora releva, o aqui Apelante), pois ao substituir na lide a transmitente (a Autora Radical Red Holdings LLC), passou a ser o verdadeiro Autor na ação (juntamente com a outra habilitada). Desse modo, a sentença proferida no processo principal, obriga-o porque é parte no processo; não é um terceiro.
Consequentemente, encontra-se obrigado a acatar a decisão (artigos 619.º a 621.º do CPC). Como a mesma foi julgada improcedente, dada a específica configuração daquela lide, significa que se encontra vinculado a reconhecer a condenação ocorrida no procedimento cautelar, bem como a verificação da inversão do contencioso.
Esclarecido este ponto e analisada a alegação do Apelante em relação à questão da falta e inexequibilidade do título executivo, o que está em causa é a verificação do aludido pressuposto de natureza formal, ou seja, se do título executivo decorre o dever de prestar, cujo cumprimento coercivo é peticionado pela Exequente. Sublinhando-se que a análise se centra, por ora, na questão do dever de prestar e não na legitimidade do sujeito passivo contra quem é invocado o dever de cumprir, questão que se situa ao nível da aferição de legitimidade do Executado e que infra melhor se apreciará.
Ora, é inquestionável que do título executivo resulta uma obrigação ou dever de prestar, atenta a parte dispositiva do Acórdão exequendo acima transcrita.
É certo que a Exequente, para além de requerer a prestação de facto através de outrem (prestação de facto fungível), ainda que sob a sua orientação e vigilância, também requereu a condenação dos Executados a pagarem, solidariamente, uma indemnização pelo dano sofrido com o incumprimento, bem como a sua condenação, nos mesmos termos, a pagarem determinada quantia a título de sanção pecuniária compulsória, pedidos que acrescem às obrigações emergentes do título executivo.
Porém, essa questão coloca em causa os limites do título executivo e a sua interligação com a execução para prestação de facto, questão que é diversa daquela que vem sendo analisada e que se refere à existência e exequibilidade do título exequendo.
Em síntese, tendo a Exequente apresentado como título executivo uma sentença condenatória transitada em julgado (artigo 703.º, n.º 1, alínea a), e 704.º, n.º 1, do CPC) donde consta o dever de prestar, mostrando-se a prestação certa, exigível e líquida, não ocorria motivo para a execução ser indeferida liminarmente (cfr. artigo 726.º, n.º 2, alínea a), do CPC), nem para ser julgada procedente a oposição com base na falta ou inexequibilidade do título.

4.2. Legitimidade do Executado/Embargante
O Apelante também vem suscitar no recurso, tal como tinha feito na oposição à execução, a sua ilegitimidade, alegando, em suma, que à data do trânsito em julgado do Acórdão dado à execução (20-12-2016) não era proprietário do Lote 4, tendo adquirido esse prédio por escritura pública celebrada em 24-04-2017.
Por outro lado, aduz que não figura no título executivo como devedor, não decorrendo para o mesmo qualquer obrigação, não estando, pois, coberto pelo caso julgado formado no procedimento cautelar.
Na sentença recorrida foi decidido que o Executado/Embargante era dotado de legitimidade passiva ad causam, lendo-se na mesma o seguinte:
«O Embargante/executado questionou a sua legitimidade, alegando que o prédio que adquiriu à executada “Radical Holdings LLC”, designado “lote quatro” não consta da decisão do Tribunal da Relação de Évora proferida no procedimento cautelar nº 789/16.5T8FAR e mais alegou que essa decisão não contém qualquer obrigação da sua parte para com a exequente.
Preceitua o nº 1, do artigo 53º, do Código de Processo Civil que “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”, dispondo o nº 1, do artigo 54º que “tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.
(…) sendo o Embargante/executado AA parte legitima na execução, porquanto a autoridade do caso julgado do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, apresentado como título executivo, nomeadamente na parte que determinou a reconstrução das paredes e do telhado da edificação existente no prédio da exequente, nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição, estende-se aos actuais detentores das moradias geminadas que foram edificadas no prédio da exequente após a demolição da edificação então existente no mesmo, por parte dos executados “Radical Red Holdings LLC” e CC e para reconstrução da edificação existente no prédio da exequente nos precisos termos em que se encontrava antes do início dos trabalhos de demolição, será necessário proceder, previamente, à demolição das moradias geminadas, nomeadamente da moradia da qual o ora embargante AA é o actual detentor e daí que o mesmo, apesar de não constar no acórdão apresentado como título executivo e de não ter sido condenado à prestação de qualquer facto, seja parte legitima na execução, porque a execução do determinado pelo Tribunal Superior necessariamente que a irá afectar, sendo certo que o mesmo não está obrigado a proceder à reconstrução das paredes e do telhado do prédio da exequente, obrigação que recai apenas sobre os executados “Radical Red Holdings LLC” e CC e que se os mesmos não o fizerem será efectuado por outrem (cfr. artigo 870º, do Código de Processo Civil), mas o ora Embargante/executado já está obrigado a sujeitar-se a que a moradia da qual é detentor seja demolida para cumprimento do decidido pelo Tribunal Superior (…).»

Na análise desta questão há que ponderar o disposto nos artigos 53.º, n.º 1, e 54.º, n.º 1, do CPC.
O artigo 53.º, n.º 1, do CPC estabelece a regra geral em matéria de legitimidade executiva, estabelecendo que é parte legítima aquele que constar do título como credor ou devedor, bastando, desse modo, atentar na literalidade do título e na posição que as partes ocupam na ação executiva para se aferir da sua legitimidade.
Já o artigo 54.º, n.º 1, do CPC estabelece um desvio a essa regra, ao estipular que, tenho havido sucessão no direito ou na obrigação, tem legitimidade para a execução os sucessores das pessoas que figuram no título como credor ou devedor da obrigação exequenda, devendo o exequente no requerimento executivo deduzir os factos constitutivos da sucessão.
O facto sucessório a que se reporta a lei tanto pode ocorrer inter vivos ou mortis causa, sendo que, no primeiro caso, o fenómeno sucessório pode resultar dos vários negócios que impliquem transmissão da posição jurídica do credor ou do devedor, sendo a compra e venda um desses negócios, desde que a transmissão do direito de propriedade seja válida e eficaz em face das regras de direito substantivo (artigo 874.º do Código Civil).
Por outro lado, como refere RUI PINTO, o fenómeno sucessório a que se reporta a lei há de ser posterior à formação do título executivo, mas anterior ao envio do requerimento executivo[7]. Nessa situação basta a invocação dos factos constitutivos da sucessão.
Caso o fenómeno sucessório se forme durante a pendência da execução, o exequente deve promover o incidente de habilitação, de herdeiro, se a causa for a morte do devedor (artigos 351.º e ss do CPC), ou de adquirente ou cessionário, se a causa for uma transmissão entre vivos (artigo 356.º do CPC).
No caso em apreciação, o título executivo formou-se aquando da prolação do Acórdão da Relação de Évora proferido em 30-11-2016, transitado em julgado em 20-12-2016, ou seja, antes da instauração da execução.
Já o fenómeno sucessório em causa consubstancia-se num contrato de compra e venda celebrado entre Executado, ora Apelante, e a anterior proprietária do Lote 4, a também Executada Radical Holdings LLC, celebrado em 24-04-2017, nada tendo sido alegado que faça questionar a validade e eficácia daquele negócio.
Donde, ao caso aplica-se o disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC, ou seja, o Executado AA, na qualidade de adquirente do referido Lote 4, tem legitimidade para ser executado enquanto adquirente do direito de propriedade sobre o mesmo.
Voltando a referir-se, em sintonia com o supra já referido, que em face do teor do Acórdão da Relação apresentado como título executivo, o Lote 4 e a moradia implantada no mesmo, ocupa parte do prédio registado a favor da Requerente do procedimento cautelar e Exequente na ação executiva.
Também se acrescentando que a figura do caso julgado não afasta a legitimidade do Executado AA para a execução, porquanto a legitimidade do executado adquirente do direito de propriedade sobre uma parcela de terreno (lote) que faz parte do prédio da Requerente do procedimento cautelar, não decorre da regra geral de legitimidade prevista no artigo 53.º, n.º 1, do CPC, pois aquele não teve intervenção no referido procedimento cautelar, mas sim do desvio àquela regra, por aplicação do citado artigo 54.º, n.º 1, do CPC.
Também não colhe na situação presente a aplicação do disposto no artigo 55.º do CPC, porque este preceito aplica-se quando, existindo uma sentença de condenação, a legitimidade passiva ocorre por extensão subjetiva da condenação do devedor a terceiro em relação à ação. O que sucede quando, na pendência da ação foi adquirida a coisa ou direito litigioso sem habilitação do adquirente naquela ação (artigo 263.º, n.º 3, do CPC), o que não se verificou na situação dos autos por a aquisição ter sido posterior ao trânsito em julgado do Acórdão dado à execução.
Acrescenta-se, ainda, reforçando o já acima referido, que na aferição da legitimidade passiva do Executado AA em nada interfere a sentença proferida na habilitação que correu por Apenso ao proc. n.º 374/17.4T8FAR, uma vez que não é a sentença proferida no processo principal dessa ação que se encontra em execução.
Reiterando-se, pois, que a legitimidade executiva do referido Executado lhe advém diretamente do disposto no artigo 54.º, n.º 1, do CPC.
Desse modo, bem andou a sentença recorrida quando julgou o ora Apelante parte legítima na execução, explicitando, em consequência, em que termos se encontra adstrito ao cumprimento da obrigação incumprida pelos Requeridos no procedimento cautelar.

4.3. Limites da obrigação exequenda
supra se transcreveu o pedido formulado na execução e a circunstância de serem formulados pedidos que correspondem a obrigações não inseridas na parte dispositiva do Acórdão exequendo.
Cabe, agora, aferir dos limites da ação executiva, atento o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do CPC.
De acordo com este preceito, o título estabelece os limites da ação executiva.
Desde logo, é de acordo com o objeto da pretensão que se determina o fim da execução, ou seja, a forma processual a seguir.
A Exequente intentou uma execução para prestação de facto (artigos 868.º a 877.º do CPC), pretensão que se adequa à natureza de execução específica da obrigação objeto da condenação no que concerne à condenação dos Requeridos no procedimento cautelar a «(…) proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontrava m antes do início dos trabalhos de demolição.»
Como já dito, para além de ter optado pela prestado de facto por outrem, aditou ainda outros pedidos, mais concretamente, um pedido de condenação solidária dos Executados pela dano sofrido com o incumprimento, que computou em determinada quantia mensal, desde a data do embargo extrajudicial (21-03-2016) até à data da prestação do facto, liquidando os valores vencidos, e ainda pediu a condenação solidária dos Executados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória que fixou em determinada quantia diária, devida nos mesmos parâmetros temporais, liquidando as quantias já vencidas.
Cumpre dizer sobre esta questão que tendo sido intentada uma ação executiva para prestação de facto fungível, de natureza positiva (obrigação de facere), a prestar por terceiro, os limites da obrigação exequenda continuam a ser os que decorrem do título executivo.
No caso, o título executivo não contempla tais obrigações. E nem sequer estabelece um prazo certo para o cumprimento da obrigação de facere (reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontrava m antes do início dos trabalhos de demolição), pelo que não cabe ao caso a aplicação imediata do disposto no artigo 868.º, n.º 1, do CPC, pois, quando foi instaurada a execução, ainda não tinha sido estabelecido prazo para os Executados cumprirem a referida obrigação. Não se podendo descurar que o recebimento da oposição tem os efeitos indicados no artigo 733.º, devidamente adaptado (artigo 868.º, n.º 3, do CPC), ou seja, suspende o prosseguimento da execução.
Em face do que vem sendo dito, é mister concluir que o título executivo não acomoda as pretensões formuladas no requerimento executivo nos termos e quando foram formuladas, para além daquela que foi objeto da condenação.
Nestes termos, atendendo a que o Acórdão exequendo não condenou nas referidas prestações de natureza pecuniária, cuja realização coativa foi pedida pela Exequente, o mesmo não constituiu título executivo bastante para fundamentar esse segmento do pedido executivo, o que determina a procedência, nessa parte, dos embargos e a correspondente extinção parcial da ação executiva, com a consequente revogação em conformidade da decisão recorrida.

Finalmente, há que referir que o Apelante argumenta em defesa da procedência dos embargos que adquiriu o Lote 4 de boa-fé, encontrando-se protegido pelo disposto no artigo 291.º do Código Civil; que devia a sentença ter conhecimento oficioso das normas imperativas do ordenamento do território e do direito do urbanismo, que se assumem como de ordem e interesse públicos, dos Loteamentos Públicos; que a oposição ao procedimento cautelar não foram acautelados os seus direitos por não ter sido alegado que a demolição representava um prejuízo consideravelmente superior ao sofrido pela exequente.
A invocação destas questões, não descurando a sua relevância jurídica em sede própria, extravasam os fundamentos taxativos passíveis de serem opostos à execução baseada em sentença (cfr. artigo 729.º do CPC), nem o Apelante invoca em que termos as mesmas se enquadram juridicamente no referido preceito.
Consequentemente, não podem ser conhecidas

Dado o parcial decaimento, as custas nas duas instâncias ficam a cargo do Apelante e da Apelada, na proporção do vencimento, que se fixam, respetivamente, em ¾ e ¼ (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Julgam a oposição à execução deduzida por AA parcialmente procedente, julgando extinta a execução na parte relativa à cobrança das quantias pecuniárias peticionadas no requerimento executivo, e em que o pedido excede o título executivo apresentado, ordenando o prosseguimento da execução na parte restante;
b) Revogam parcialmente a sentença recorrida em conformidade com o ora decidido, confirmando-a na parte restante;
c) Condenam as partes nas custas nos termos sobreditos.

Évora, 25-05-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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[1] A 1.ª instância tinha proferido sentença em 20-07-2016 (Ref.ª 102618656) que julgou improcedente o procedimento cautelar e indeferiu a ratificação judicial de embargo de obra nova Requerida por BB contra Radical Red Holdings LLC, CC e Famousdiscovery Unipessoal, Ld.ª, tendo esta última sido absolvida da instância por ser parte ilegítima (cfr. sentença junta com o requerimento executivo).
[2] O Apelante apresentou Conclusões extensas, complexas, prolixas e repetitivas, não correspondendo as mesmas ao que vem disposto no artigo 639.º do CPC. Todavia, no final das mesmas, apresentou um síntese das Conclusões, pelo que se entendeu, atendendo a razões de celeridade e de proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), que não seria caso para convidar o recorrente a aperfeiçoar as Conclusões, adotando-se, antes, o entendimento que as Conclusões na sua totalidade seriam atendidas na apreciação do objeto do recurso, ainda que apenas ficassem transcritas as que correspondem à dita síntese.
[3] Cfr. Ac. STJ, de 02/03/1999, proc. nº 709-1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. STJ, de 03/02/1999, proc. n.º 1216/98- 1.ª Secção, em www.dgsi.pt
[5] Neste sentido, entre outros, veja-se Ac. STJ de 13-07-2022, proc. n.º 14281/21.2T8LSB.P1-A.S1, em www.dgsi.pt
[6] LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 5.ª ed., reimp., pp. 20 e 35.
[7] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 189 (3.I.).