Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22/23.3T8VVC.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PEDIDO CÍVEL
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não sendo a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa o meio próprio para reclamar o pagamento de uma indemnização (porquanto essa pretensão tem de ser suscitada e apreciada no âmbito da competente ação declarativa de condenação), e na impossibilidade de aproveitamento dos atos processuais praticados, ocorre nulidade processual, insuprível, de “erro na forma de processo”.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de (…..), no âmbito do Processo: 22/23.3T8VVC foi, em 12 de maio de 2023, proferida a seguinte decisão:

“Mantenha o registo e autuação como recurso de contra-ordenação.

O Tribunal é o competente.

(…..) veio, ao abrigo do disposto no artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, apresentar impugnação judicial da medida cautelar de apreensão de carne fresca determinada pela AUTORIDADE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E ECONÓMICA (doravante “ASAE”).

Propugnando pela desnecessidade, desproporcionalidade e ilegalidade da apreensão e posterior ordem de destruição da carne fresca de sua propriedade, reclama o pagamento de uma indemnização pelo prejuízo sofrido, que computa no montante de € 4.923,09, correspondente ao valor comercial daquele produto.

Notificada para se pronunciar quanto à eventual ocorrência da excepção de erro na forma de processo, a Recorrente ofereceu resposta, sustentando que deduziu impugnação judicial com o objectivo de suscitar a invalidade e ilegalidade da apreensão e consequente destruição da carne, constituindo mero objecto mediato a questão da indemnização reclamada, pelo que entende não se verificar aquele vício processual.

Aberta vista ao Ministério Público, este pronunciou-se no sentido de ser declarada a excepção dilatória insuprível de erro na forma do processo.

Cumpre apreciar e decidir.

Como ponto de partida da análise a levar a cabo quanto à questão prévia suscitada – e sem prejuízo dos esclarecimentos posteriormente prestados a 02-03-2023 – importa atender ao teor da impugnação judicial da medida cautelar em apreço.

Nas conclusões daquela peça processual, fez a Recorrente constar que:

“1 - Na sequência de uma acção de fiscalização realizada no dia 12 de Abril de 2022, pelas 07:47H, na EN 255, Km7, Bencantel, foi detectado que a Recorrente expedia came fresca através da transportadora (…..) e por sua esta não realizou o controlo metrológico do instrumento de medição de temperatura na caixa de carga frigorifica do veículo de matrícula 02-27-XQ.

2 - Nessa sequência a carne transportada foi apreendida e posteriormente destruída.

3 - Não tendo existido qualquer fundamento legal para a apreensão da came transportada e muito menos para a ordem de destruição da mesma, como adiante se demonstra.

4 - Esta matéria é regulada pelo Regulamento CE nº 37/2005 e pela Portaria 1129/2009, que determinam o controlo metrológico dos equipamentos de medição de temperaturas nos meios de transporte e nas instalações de depósito e armazenagem de alimentos ultracongelados destinados a alimentação humana.

5 - No caso em concreto o produto era destinado a alimentação humana, mas encontrava-se apenas refrigerado e não ultracongelado, situação confirmada pelo esclarecimento técnico emitido pela DGAV ao confirmar apenas a obrigatoriedade de registadores de temperaturas em instalações e viaturas de alimentos ultracongelados destinados a alimentação humana.

6 - Não existindo nenhuma regra que imponha o registo de temperatura dos equipamentos que transportam carne refrigerada e consequentemente, imponha obrigação do transportador proceder ao controlo metrológico do equipamento de refrigeração da viatura que procede ao transporte de carne refrigerada.

7 - Mais, do próprio auto, resulta que as leituras do termógrafo revelam que a temperatura do transporte da carne foi constante ao longo do transporte ao rondar os 2°C (valor confirmado pela própria medição realizada pela ASAE através de equipamento calibrado).

8 - Chegados aqui, resulta não apenas que o transportador não cometeu qualquer infracção, pois não se encontrava obrigado a proceder ao controlo metrológico da caixa frigorifica da viatura de matrícula (.....), porquanto a mesma estava a efectuar o transporte de alimentos refrigerados destinados alimentação humana;

9 - Mas também que os alimentos transportados, não apresentavam qualquer sinal duvidoso quanto às condições de maturação, frescura e conservação do qual pudesse colocar em risco a sua aptidão para consumo ou utilização, conforme auto de exame pericial realizado pela Médica Veterinária Municipal de Vila Viçosa, Dra. (…..).

10 - Desta factualidade resulta que independentemente de ter sido cometida alguma infracção pelo transportador, certo é que a carne transportada manteve as condições necessárias de maturação, frescura e conservação, tendo mantido a sua aptidão para consumo ou utilização, tanto assim é que a própria veterinária municipal, sugere o consumo dessa mesma carne, tudo de acordo com o conteúdo do Auto de exame pericial.

11 - Razão pela qual a decisão de destruição emitida pela ASAE, surge com desnecessária, desproporcional e ilegal, por falta de fundamento legal para o efeito, aliás, neste aspecto, cumpre clarificar que a aqui Recorrente nunca foi ouvida, na qualidade de operador económico, não lhe tendo sido dada a possibilidade de indicarem médico veterinário para conjuntamente com o Médio veterinário municipal, avaliar e decidir o melhor destino da carga em questão.

12 - No caso concreto, não resulta qualquer elemento ou fundamento que justifique a ordem de destruição da carne, pois a carne nunca representou um risco para a saúde de consumidor, aliás atente-se na sugestão de doação da carne a uma instituição de solidariedade social/religiosa!!!

13 - Chegados aqui, não podemos deixar de concluir pela ilegalidade da ordem de destruição da carne, pelo que nestes termos e com esse fundamento deve a Recorrente ser indemnizada pelo produto destruído na sequência da ordem emitida pela ASAE.

14 - No momento da inspecção a viatura apenas transportava 1.560Kg de produtos alimentares e não os 3.000Kg referidos, conforme resulta claro, da mera análise do auto de destruição, sendo certo que o produto ordenado destruir pela ASAE, de forma ilegal, desnecessária e desproporcional tinha o valor comercial de € 4.923,09 (quatro mil novecentos e vinte três euros e nove cêntimos), conforme facturas que se anexam.

15 - Ou seja, o valor indicado, corresponde ao montante que a Recorrente deixou de receber dos seus clientes, como consequência da apreensão e destruição, ilegal, ordenada pela ASAE.

16 - Desta forma, tem a Recorrente o direito de ser reembolsada do valor pela qual ficou privada pela actuação e decisão da ASAE, reitera-se ilegal, desnecessária e desproporcional.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. Doutamente suprirá, deve a presente impugnação ser recebida e julgada procedente”.

Ora, considerando os argumentos esgrimidos no excerto ora transcrito, e atendendo, em particular, às pretensões vertidas pela Recorrente nos pontos 13 a 16 daquelas conclusões, verifica-se que, muito embora coloque em causa a legalidade da apreensão e posterior ordem de destruição da carne em apreço, tal alegação serve uma função meramente instrumental, dirigida à fundamentação do pedido efectivamente formulado, a saber, o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

Tal conclusão resulta reforçada da leitura global daquela peça processual, da qual se retira que em momento algum é peticionada, pela Recorrente, a declaração da ilegalidade da medida cautelar de apreensão sub judice.

Ao invés, e como bem o denotam os pontos 13 a 16 das conclusões – e que constituem reflexo do que se encontra invocado nos artigos 19.º a 25.º das alegações – a única pretensão efectiva e expressamente formulada pela Recorrente pretende-se com o arbitramento da quantia de € 4.923,09, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos com a destruição ilegal da carne.

Note-se que, após concluir pela ilegalidade da ordem de destruição do aludido produto alimentar, aquela afirma claramente que é nesses termos e com esse fundamento que deve (…) a Recorrente ser indemnizada pelo produto destruído na sequência da ordem emitida pela ASAE”, entendendo ter “o direito de ser reembolsada do valor que ficou privada pela actuação e decisão da ASAE”, “montante que desde já se peticiona”.

Assim, e ao contrário do que pretende fazer crer com os esclarecimentos prestados a 02-03-2023, o objecto imediato da impugnação judicial ora apresentada não se prende com a apreciação da (in)validade da apreensão da carne fresca determinada pela ASAE, mas antes com o pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos com a posterior destruição – pretensamente ilegal – desse produto.

Não sendo a impugnação judicial o meio próprio para reclamar o pagamento de uma indemnização – carecendo tal pretensão de ser suscitada e apreciada no âmbito da competente acção declarativa de condenação – e na impossibilidade de aproveitamento dos actos praticados, ocorre inequivocamente nulidade processual insuprível de erro na forma de processo, cf. artigos 193.º, n.º 1 e 196.º do CPC, aplicáveis por força do disposto artigo 4.º do CPP, para o qual remete o artigo 41.º do RGCO ex vi artigo 79.º do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro.

De resto sempre se diga que, a ser de conhecer, em sentido próprio, da impugnação judicial apresentada – aquilatando da (i)legalidade da medida cautelar em causa – e não sendo possível arbitrar, por esta via processual, o pagamento de qualquer quantia indemnizatória, a sua eventual procedência não teria qualquer efeito útil para a Recorrente.

Com efeito, a carne apreendida foi destruída no próprio dia da apreensão, conforme pacificamente reconhecido nos autos, inexistindo, assim, qualquer objecto susceptível de restituição, em caso de levantamento da medida cautelar de apreensão de que ora se cuida.

Aliás, os condicionalismos supra descritos sempre conduziriam a uma outra questão processual, a saber, a da impossibilidade da lide, por inexistência do objecto relativamente ao qual a Recorrente pretenderia uma tomada de posição por parte Tribunal, cuja desconsideração culminaria na prolação de uma decisão inútil e, por esse motivo, inadmissível.

Em face do exposto, rejeita-se liminarmente a impugnação judicial apresentada pela Recorrente.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, nos termos dos artigos 8.º n.º 7, do Regulamento de Custas Processuais e 92.º, n.ºs 1 e 3, 93.º, n.ºs 3 e 4, e 94.º, n.º 3 do RGCO.

Notifique.

Cumpra-se o disposto no artigo 70.º, n.º 4 do RGCO.

Deposite.”

*

Inconformada com a decisão, (….) interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A Recorrente foi notificada pela entidade administrativa para, no âmbito do exercício do contraditório, se pronunciar sobre a apreensão e destruição dos bens apreendidos, tendo nessa sequência, deduzido impugnação judicial, no sentido de suscitar a invalidade e ilegalidade da apreensão e consequente destruição, tal como decorre do teor da impugnação judicial, especificamente do artigo 19º das alegações e artigo 13º das conclusões.

Contudo, a douta sentença recorrida veio a rejeitar liminarmente a impugnação judicial, essencialmente com dois argumentos:

O primeiro relacionado com o alegado facto que a Recorrente apenas de forma mediata requer o reconhecimento da ilegalidade da apreensão e destruição da carne determinada pela ASAE, aparecendo como objecto imediato, da impugnação judicial, o pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos, pela Recorrente com a destruição do produto.

O segundo argumento para a rejeição liminar resulta de ser aceite e inexistir qualquer objecto susceptível de restituição, em caso de levantamento da medida cautelar de apreensão de que ora se cuida.

Salvo o devido respeito a referida argumentação e respectiva fundamentação não procedem, se não vejamos:

Desde logo e como referido anteriormente, a Recorrente na impugnação judicial, requereu como objecto imediato o reconhecimento da ilegalidade da ordem de apreensão e destruição de carne no âmbito dos presentes autos e, apenas como forma mediata e consequente que fosse reconhecido o direito da Recorrente a ser indemnizada;

Antes de mais, por uma questão lógica, ou seja, a Recorrente apenas pode requerer o pagamento de uma qualquer indemnização, após o reconhecimento do facto ilícito, neste caso a ordem ilegal de apreensão e destruição de produto.

Sendo exactamente, esse o objectivo que a Recorrente pretende obter com a impugnação judicial e que o doutro tribunal se encontra a vedar.

Independentemente, dos objectos apreendidos terem sido destruídos, a recorrente tem o direito, no âmbito do presente processo, a ver ser reconhecida a legalidade ou ilegalidade da apreensão e destruição da carne.

10º

Esclarecida a questão prévia, do objecto mediato ou imediato do reconhecimento da (i)legalidade da apreensão e destruição da carne, cumpre agora clarificar a questão da indemnização;

11º

Tal como mencionado anteriormente, a questão da indemnização é suscitada nos presentes autos, como decorrente e consequente da declaração de ilegalidade da apreensão e destruição de carne, ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, mais que não seja pela similitude e proximidade entre o processo penal e o processo contra-ordenacional, será de aplicar o princípio da adesão, previsto no Código Processo Penal, artigo 71º, aplicável subsidiariamente ao processo de contra-ordenação por força do artigo 41º do RGCO.

12º

Situação a que não fica indiferente, a aplicabilidade dos princípios da economia processual e aproveitamento dos actos processuais.

13º

Chegados aqui e caso V. Exa. assim não entenda o que só por mera hipótese se concebe, sempre se dirá o seguinte:

14º

Ainda que o douto tribunal recorrido entendesse que o presente meio processual não seria o adequado para apreciar a questão da indemnização, ainda assim, podia e devia ter-se pronunciado sobre a ilegalidade da apreensão e destruição da carne, objecto do presente processo;

15º

Tanto mais que tal decisão será sempre pressuposto necessário e adequado para eventual indemnização compensação pelos danos sofridos pela Recorrente, com a ordem de apreensão e destruição da carne, aliás, como a própria decisão recorrida reconhece.

16º

Razão pela qual, sempre se dirá que o douto tribunal recorrido, estava obrigado a conhecer da legalidade ou ilegalidade da decisão de apreensão e destruição, tomada pela ASAE.

17º

Analisando agora o segundo argumento que conduziu à conclusão de rejeição liminar da impugnação judicial, ou seja, inexistir qualquer objecto susceptível de restituição, em caso de levantamento da medida cautelar de apreensão de que ora se cuida.

18º

Sendo uma verdade insofismável, o facto dos bens apreendidos terem sido destruídos por ordem da ASAE, não é menos verdade que tal facto não é impeditivo da Recorrente impugnar judicialmente tal decisão;

19º

Desde logo, porque a própria ASAE tendo conhecimento da destruição dos bens, ainda assim notifica a Recorrente para exercer o direito de impugnação e, acima de tudo, porque decorre do regime legal em vigor.

20º

Chegados, aqui somos a concluir que não existem fundamentos para a rejeição liminar da impugnação, pelo que, consequentemente deverá ser ordenada a revogação da decisão recorrida, devendo em consequência os presentes autos seguir os ulteriores termos legais.

21º

Pois só assim se fará a acostumada JUSTIÇA!

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pelo não provimento do mesmo e formulando as seguintes conclusões:

1. Nestes autos foi a sociedade (…..) objeto de medida de cautelar de apreensão de carne fresca determinada pela ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica no âmbito de processo de contraordenação.

2. Inconformada com a douta decisão judicial que rejeitou liminarmente a impugnação judicial, apresentada contra aquela medida cautelar, com base na nulidade processual insuprível de erro na forma de processo, veio a referida sociedade interpor o presente recurso.

3. Enquanto nulidade, o erro na forma de processo possui um regime próprio consagrado no artigo 193.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados.

4. No ordenamento jurídico processual português, o autor não tem liberdade para escolher a forma de processo que julgue melhor servir os seus interesses.

5. O elemento da ação fundamental para determinar a forma do processo é o pedido. Como refere José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “a causa de pedir é irrelevante para os efeitos do artigo em anotação, para os quais apenas interessa considerar o pedido formulado (…)”.

6. Entendemos, salvo melhor opinião em contrário, que a pretensão da recorrente na impugnação apresentada, consubstanciada nos seus pedidos, é o da condenação no pagamento de uma determinada quantia pecuniária, a título de indemnização. Para o efeito, a recorrente alegou que a medida cautelar de apreensão das carnes foi ilegal, desproporcional e inadequada.

7. Com efeito, visando o autor o pagamento de uma quantia líquida, a título de ressarcimento do que entende constituir seus prejuízos, decorrentes da medida cautelar de apreensão decretada pela ASAE e consequente destruição da carne, deve instaurar a devida ação declarativa.

8. Ademais, também é do nosso entendimento que tal pretensão não acarreta qualquer efeito útil. Isso porque ainda que a impugnação judicial apresentada fosse conhecida e deferida, não há carnes para ser devolvidas (uma vez que já foram destruídas) e não há indemnização a ser concedida (uma vez que o meio próprio seria numa ação declarativa). Logo, salvo melhor opinião em contrário, o deferimento da impugnação judicial não traz qualquer efeito juridicamente útil.

9. Pelo exposto, a douta decisão recorrida não é merecedora de qualquer reparo, pelo que entendemos que deverá ser negado provimento ao presente recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

**

No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido do não provimento do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

*

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente traduz-se em saber se existem fundamentos para a rejeição liminar da impugnação com base na nulidade processual insuprível de erro na forma de processo.

*

Apreciando

O erro na forma de processo constitui uma nulidade sujeita ao regime especial do art. 193º, disposição a privilegiar a adaptação do processado à forma processual adequada, fazendo-se uso, se necessário, do dever de gestão processual (art. 6º) ou do princípio da adequação formal (art. 547º), mas sempre com respeito pelas garantias das partes, importando aquele erro somente que se não possa atender aos atos que não possam ser aproveitados, praticando-se os necessários a que, tanto quanto possível, o processo se aproxime da forma prevista na lei, sendo o limite a observar o das garantias da defesa, não se podendo aquele aproveitamento traduzir numa diminuição dessas garantias[1].

Trata-se de uma nulidade de conhecimento oficioso (art. 196º), que só pode ser arguida até à contestação ou nesta peça (art. 198º, nº1) a ser apreciada no despacho saneador (se não o tiver sido antes) ou até à sentença final, se não houver aquele despacho (art. 200º, nº2), impondo-se, contudo, ao juiz o dever de proceder à correção oficiosa do erro, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados, nos termos do nº3, do art. 193º, na inexistência de obstáculos que constituam limites naturais à convolação imposta por este preceito[2] e, existindo, o de anular todo o processo e absolver o Réu da instância (art.s 193º e al. b), do nº1, do art. 278º), configurando, neste caso, uma exceção dilatória.

Com efeito, o erro na forma de processo, que constitui uma nulidade processual (a importar a anulação dos atos que não possam ser aproveitados), só é configurável como exceção dilatória, conducente à absolvição da instância, quando nem a petição inicial se possa aproveitar e afere-se pela própria pretensão formulada e a existência do mesmo há de resultar do confronto da pretensão formulada com o meio utilizado, o não próprio/adequado a tal pretensão.

O critério para aferir da propriedade da forma de processo passa, pois, pela determinação do fim para o qual foi criada a forma de processo de que o Requerente lançou mão e pelo apurar da sua harmonia com o pedido formulado, no contexto da respetiva causa de pedir.

O objeto do processo deve ser considerado bilateralmente, nele participando o pedido e a causa de pedir, esta não só para delimitar a matéria de facto a considerar pelo juiz, mas também para possibilitar a correspondência da individualização do objeto do processo com a fundamentação do objeto da sentença.

A causa de pedir consiste no facto jurídico concreto ou no complexo de factos jurídicos concretos, realmente ocorridos, participantes, portanto, da relação material controvertida invocada pelo autor na petição inicial, dos quais procede o efeito jurídico pretendido, a pretensão por si deduzida em juízo.

Logo, a relação de causa e efeito entre pedido processual e facto jurídico outra coisa não quer dizer que não seja que a causa petendi é a causa da procedência do pedido, ou seja, encontrando-se a configuração do pedido na exclusiva disponibilidade do autor, é imperativamente a partir deste que aquela causa tem de ser delineada” (Ac.9.10.2018 TRL)

É ao titular do direito violado que incumbe requerer do tribunal o meio de tutela jurisdicional adequado à reparação do direito violado ou ao afastamento da ameaça de violação do seu direito. A ação nunca poderá nascer da iniciativa do juiz, o que bem se compreende atendendo à posição de imparcialidade que deverá manter no processo e à justiça relativa que se procura obter no mesmo. Não existe, portanto, ação sem petição.

Ora, (…..) veio, ao abrigo do disposto no artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, apresentar impugnação judicial da medida cautelar de apreensão de carne fresca determinada pela AUTORIDADE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E ECONÓMICA.

Propugnando pela desnecessidade, desproporcionalidade e ilegalidade da apreensão e posterior ordem de destruição da carne fresca de sua propriedade, reclama o pagamento de uma indemnização pelo prejuízo sofrido, que computa no montante de € 4.923,09, correspondente ao valor comercial daquele produto.

E, atentando nas conclusões da impugnação judicial, como bem se refere na decisão recorrida” verifica-se que, muito embora coloque em causa a legalidade da apreensão e posterior ordem de destruição da carne em apreço, tal alegação serve uma função meramente instrumental, dirigida à fundamentação do pedido efectivamente formulado, a saber, o pagamento de uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

Tal conclusão resulta reforçada da leitura global daquela peça processual, da qual se retira que em momento algum é peticionada, pela Recorrente, a declaração da ilegalidade da medida cautelar de apreensão sub judice.

Ao invés, e como bem o denotam os pontos 13 a 16 das conclusões – e que constituem reflexo do que se encontra invocado nos artigos 19.º a 25.º das alegações – a única pretensão efectiva e expressamente formulada pela Recorrente pretende-se com o arbitramento da quantia de € 4.923,09, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos com a destruição ilegal da carne.

Note-se que, após concluir pela ilegalidade da ordem de destruição do aludido produto alimentar, aquela afirma claramente que é nesses termos e com esse fundamento que deve (…) a Recorrente ser indemnizada pelo produto destruído na sequência da ordem emitida pela ASAE”, entendendo ter “o direito de ser reembolsada do valor que ficou privada pela actuação e decisão da ASAE”, “montante que desde já se peticiona”.

Assim, e ao contrário do que pretende fazer crer com os esclarecimentos prestados a 02-03-2023, o objecto imediato da impugnação judicial ora apresentada não se prende com a apreciação da (in)validade da apreensão da carne fresca determinada pela ASAE, mas antes com o pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos com a posterior destruição – pretensamente ilegal – desse produto.

Não sendo a impugnação judicial o meio próprio para reclamar o pagamento de uma indemnização – carecendo tal pretensão de ser suscitada e apreciada no âmbito da competente acção declarativa de condenação – e na impossibilidade de aproveitamento dos actos praticados, ocorre inequivocamente nulidade processual insuprível de erro na forma de processo, cf. artigos 193.º, n.º 1 e 196.º do CPC, aplicáveis por força do disposto artigo 4.º do CPP, para o qual remete o artigo 41.º do RGCO ex vi artigo 79.º do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro.”

Termos em que, não merecendo reparo a decisão recorrida, improcede o recurso.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

- Condenar a recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 23 de janeiro de 2024

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares

Jorge Antunes