Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
40041/22.5YIPRT.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: PERSI
COMUNICAÇÃO
RESIDÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando provado que as comunicações em causa foram enviadas para a morada indicada pelo réu (aquela que consta do contrato de mútuo) e não tendo o réu invocado qualquer circunstância que o tivesse impedido de receber naquela morada as referidas comunicações e assim tomar conhecimento do conteúdo das missivas, as comunicações produziram os efeitos a que se destinavam.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 40041/22.5YIPRT.E1
(2.ª Secção)

Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntos: Rui Machado e Moura
Francisco Matos

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Banco (…), SA, autor na ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias que moveu contra (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Setúbal, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que julgou procedente a exceção dilatória inominada de incumprimento do PERSI e, em consequência, absolveu o réu da instância.
Na ação, que começou como procedimento de injunção e foi posteriormente e em consequência da apresentação de oposição distribuída como ação declarativa com processo comum, a autora peticionou a condenação do réu a pagar-lhe o montante de € 9.326,82, sendo € 8.708,61 a título de capital, € 465,21 a título de juros de mora, contados desde 03-04-2022 até à data, calculados à taxa de 7,50%, e € 153,00 a título de taxa de justiça paga.
Para fundamentar a sua pretensão a autora alegou, em síntese, o seguinte: por contrato celebrado em 27-09-2019, o Banco mutuou ao requerido a quantia de € 10960,80; o empréstimo deveria ser amortizado em 80 prestações mensais e sucessivas correspondentes a capital e juros, nos termos constantes do contrato; o requerido não efetuou o pagamento da prestação que se venceu em 05-08-2021, o que provocou o vencimento total da dívida; à data do incumprimento o capital em dívida ascendia € 8.608,77.
Na oposição o requerido invocou a exceção de falta de condição objetiva de procedibilidade, a ineptidão do requerimento de injunção, requerendo, a final, a sua absolvição da instância.
O autor apresentou resposta às exceções invocadas.
O tribunal de primeira instância convidou o autor a proceder à junção aos autos de documentos comprovativos da comunicação ao réu da sua integração no PERSI e do encerramento do mesmo.
Procedeu-se à realização da audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. A douta sentença recorrida não deve manter-se pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub iudice das normas e princípios jurídicos competentes.
II - Tendo-se verificado o incumprimento relativamente ao pagamento das obrigações assumidas, o recorrente diligenciou junto do Réu pela cobrança extrajudicial da dívida e, em cumprimento com o estipulado no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, integrou o Réu no regime do PERSI.
III – No âmbito da integração do Réu no regime do PERSI, as comunicações foram feitas mediante o envio de cartas para a morada do Réu.
IV - Ao abrigo do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, o Banco Recorrente apenas está obrigado a remeter as interpelações no âmbito do referido procedimento em “suporte duradouro”, o que fez, para a morada indicada pelo Recorrido aquando da celebração do contrato de crédito pessoal subjacente à livrança dada à execução.
V – Uma vez que o Réu ignorou todas as interpelações no sentido da regularização da dívida,
o Banco Recorrente deu cumprimento ao disposto no artigo 17.º, n.º 2, alínea d), do regime do PERSI.
VI - Determina o artigo 3.º, h), do Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro que se entende ser de “«Suporte duradouro» qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas”.
VII - O Recorrente preencheu o requisito de “suporte duradouro” uma vez que procedeu ao envio de cartas a comunicar ao Réu a intenção de proceder à sua integração no regime de PERSI.
VIII – Nos termos do disposto no Aviso do Banco de Portugal n.º 17/2012, no mesmo sentido que o Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, não há qualquer exigência legal de que as comunicações referentes ao PERSI (seja a integração, seja a extinção) devam ser remetidas por correio registado e/ou aviso de receção.
IX – “A integração no PERSI e a sua extinção devem ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro” (cfr. artigos 3.º, alínea h), 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do DL 227/2012, de 25.10), o que inclui, designadamente, o papel (uma carta remetida pelo correio) ou um e-mail.”
XI – A verdade é que lei não obriga a que as comunicações realizadas no âmbito do PERSI sejam feitas pela via postal registada e com aviso de receção, pelo que a decisão proferida carece de suporte legal.
XIII - Consequentemente, a douta decisão recorrida, ao absolver o Réu da Instância, pelo alegado incumprimento do PERSI, violou o disposto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, a contrario sensu, 578.º e 590.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil, pelo que deve a mesma ser revogada.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida e, consequentemente, ser proferida decisão que condene o Réu (…) no pagamento da quantia de € 9.173,82, acrescido dos juros vincendos, à taxa peticionada, até efetivo e integral pagamento, seguindo-se os ulteriores termos até final, com todas as consequências legais».
I.3.
O recorrido apresentou resposta às alegações de recurso que culminam com as seguintes conclusões:
«1. Inconformado com a douta sentença proferida que absolveu o Réu da instância, veio o Autor ora Recorrente dela interpor recurso.
2. O Tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória inominada de incumprimento do PERSI, que constitui condição objetiva de procedibilidade para instauração de ação contra o ora Réu,
3. O que fez em face da ausência de prova, cujo ónus competia ao Autor, quanto ao cumprimento das formalidades legalmente impostas no âmbito do PERSI.
4. O A. reconheceu, nas suas aliás doutas alegações de recurso, que «as cartas de integração e de extinção no PERSI são enviadas sem qualquer comprovativo de envio».
5. Se é certo que a lei não obriga a que as comunicações realizadas no âmbito do PERSI sejam efetuadas pela via postal registada e com aviso de receção,
6. A verdade é que ónus de provar o envio e a receção de tais missivas cabia ao Autor,
7. Que não logrou provar que as cartas de integração e extinção do PERSI chegaram ao conhecimento do seu destinatário, o ora Recorrido,
8. Tratando-se de declarações recetícias cuja eficácia depende da efetiva chegada ao conhecimento do seu destinatário (artigo 224.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil).
9. Sendo reconduzível à noção de documento constante do artigo 362.º do Código Civil, a respetiva demonstração não poderia ser feita com recurso à prova testemunhal (artigo 364.º do Código Civil).
10. Ainda que assim não fosse, nenhuma das testemunhas arroladas pelo Autor ora Recorrente ouvidas em julgamento relatou, confirmou ou infirmou o que quer que fosse a propósito do eventual envio das missivas em questão.
11. Por seu turno, o Réu ora Recorrido declarou em audiência de julgamento nunca ter recebido qualquer uma das cartas – de integração e de extinção do PERSI – que o Autor alegou ter enviado.
12. Não tendo o Autor Recorrente provado documentalmente o envio das missivas de integração e extinção do PERSI, a respetiva receção pelo seu destinatário, ora Recorrido, ou produzido prova testemunhal que pudesse corroborar o alegado envio das cartas, e na medida em que o ónus probatório competia ao Recorrente, bem andou o Tribunal a quo ao julgar que «não resultou demonstrado que o Réu recebeu as missivas para integração no PERSI e sua extinção».
13. E na ausência de tal prova, só poderia ter o Tribunal a quo concluído que o A. não cumpriu as obrigações que sobre ele impendiam decorrentes do regime jurídico do PERSI, nomeadamente quanto à obrigatória integração neste procedimento do devedor mutuário.
14. A douta sentença proferida que absolveu o Réu da instância por verificação da inexigibilidade do crédito em face da procedência da exceção dilatória inominada de incumprimento do PERSI, o que constituiria condição objetiva de procedibilidade para instauração da ação, mostra-se corretíssima, dado que o Recorrente não provou que observou as formalidades legalmente previstas.
15. Não se trata, portanto, de uma incorreta decisão judicial dado que a lei não exige o envio
das cartas em correio registado, como alega o Recorrente.
16. Trata-se outrossim da ausência de prova, cujo ónus competia ao Recorrente, no que se
refere ao cumprimento das formalidades legais impostas pelo regime legal do PERSI.
Atendendo ao supra exposto, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pelo Recorrente, mantendo-se na íntegra a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, fazendo-se assim a habitual JUSTIÇA!»
I.4.
O recurso interposto pelo autor foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
No caso a questão que importa decidir é a de saber se se verifica, ou não, condição de procedibilidade da ação, a saber, a comunicação ao réu da sua integração no PERSI e da subsequente extinção daquele procedimento e, na afirmativa, se o tribunal de segunda instância deve conhecer do pedido.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
Factos provados
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
«1. Pelo acordo n.º (…), celebrado em 2019/09/27, o Autor emprestou ao Réu a quantia de 10.960,80 euros.
2. O valor referido em 1 deveria ser amortizado em 80 prestações mensais e sucessivas correspondentes a capital e juros, nos termos constantes do acordo.

3. A taxa de juro aplicável é de 7.5%.

4. O Réu não efetuou o pagamento da prestação que se venceu em 2021/08/05.

5. O não pagamento da prestação na data estipulada provocou o vencimento total da dívida e termo do acordo.

6. Perante o incumprimento do Réu, o mesmo foi incluído no procedimento extrajudicial de regularização de situações incumprimento (PERSI), tendo enviado carta para a morada constante do acordo.

7. O procedimento foi extinto, tendo sido comunicado por carta enviada para a morada constante do acordo.

8. Até à data não entregou o Réu o valor devido de € 9.173,82».

II.3.2.
Factos não provados
O tribunal de primeira instância julgou que não se provou que as missivas para integração do Réu no PERSI e sua extinção foram recebidas pelo Réu.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Na sentença sob recurso o julgador a quo absolveu o réu da instância por ter considerado que se verifica uma «inexigibilidade» do crédito por falta de demonstração da observância pela autora das formalidades legais previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, concretamente por não estar demonstrado que o réu recebeu as missivas para a (sua) integração no PERSI, bem como a relativa à extinção daquele procedimento.
Insurge-se a recorrente contra tal decisão, defendendo que a mesma deve ser revogada e proferida uma outra que condene o réu/apelado no pagamento da quantia de € 9.173,82, acrescida de juros vincendos, à taxa peticionada, até efetivo e integral pagamento, na medida em que nos termos do D/L n.º 227/2012, de 25-10 o Banco apenas estava obrigado a remeter as interpelações em causa em “suporte duradouro”, o que ele fez, e que enviou para a morada indicada pelo recorrido aquando da celebração do contrato.
Apreciando.
O procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (doravante designado por PERSI) foi criado pelo D/L n.º 227/2012, de 25-10[1], diploma legal que veio consagrar um conjunto de medidas destinadas a promover quer a prevenção do incumprimento por parte dos consumidores das responsabilidades por eles assumidas em contratos de crédito quer a regularização das situações de incumprimento dos contratos de crédito por eles celebrados.
Através da implementação de medidas extrajudiciais – de que são exemplo o PERSI e PARI (Plano de Ação para o Risco de Incumprimento, também ele instituído pelo diploma referido) visa-se promover uma atuação responsável por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários bem como a redução dos níveis de endividamento das famílias, numa época de degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e de aumento do incumprimento dos contratos de crédito. Como se sintetiza no acórdão do STJ de 09.02.2017[2], o legislador do diploma acima referido pretendeu «obviar a que as instituições de crédito, confrontadas com situações de incumprimento desses contratos, possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos relativamente a devedores enquadráveis no conceito legal de “consumidor”, na aceção que lhe é dada pela Lei do Consumidor (Lei n.º 34/96, de 31.07, alterada pelo D/L n.º 67/2003, de 08.04), salvaguardando através dos mecanismos nele criados aposição dos contraentes mais fracos e menos protegidos, particularmente numa época de acentuada crise económica e financeira».
Através do PERSI as instituições bancárias, no cumprimento dos deveres de diligência e lealdade que sobre elas impendem (artigo 4.º, n.º 1, do D/L n.º 227/2012) e num quadro de adequada tutela dos interesses dos consumidores em situação de incumprimento, deverão aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor (artigos 1.º, n.º 1, alínea b), 5.º, n.º 2, 12.º a 21.º).
Sinteticamente dir-se-á que de acordo com regime previsto no D/L n.º 227/2012, de 25-10 o cliente bancário em situação de mora de obrigações decorrentes de contratos de crédito será incluído num PERSI (artigos 4.º, 5.º, n.º 2, 12.º e 14.º do D/L n.º 227/2012), podendo a regularização da situação de incumprimento passar por várias fases que vão desde uma fase inicial, à fase da avaliação dos motivos da mora e da apresentação de propostas de renegociação das condições do contrato ou de consolidação com outros contratos de crédito; seguidamente, passa-se à fase da negociação entre o cliente bancário e o Banco com vista à obtenção de um acordo de regularização da situação de incumprimento (artigos 14.º a 16.º); caso o PERSI não termine com um acordo das partes, o cliente bancário pode solicitar a intervenção do Mediador do Crédito e manter, em determinadas circunstâncias, as garantias de que beneficiou durante o PERSI (artigo 22.º).
Uma das garantias de que o cliente bancário/consumidor beneficia durante o período compreendido entre a data da sua integração no PERSI e a extinção deste procedimento (cujas causas estão previstas no artigo 17.º) é, justamente, o facto de o Banco credor estar impedido de intentar ações judiciais para obter a satisfação do seu crédito [artigo 18.º. n.º 1, al. b)]; com efeito, da conjugação do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), com o disposto no artigo 14.º, n.º 1 – que prescreve a obrigatoriedade de integração do cliente bancário no PERSI quando verificados os pressupostos para tal efeito – resulta que o cumprimento da obrigação de integração do cliente bancário no PERSI (obrigação que pressupõe, naturalmente, a reunião dos pressupostos para tal desiderato) constitui uma condição de ação, isto é, uma condição de que depende o conhecimento do mérito da causa ou da resolução da causa.
A lei processual refere-se às “condições de ação” sob a forma negativa, sob a designação de exceções dilatórias, as quais obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (artigo 576.º, n.º 2, do CPC).
Em face do disposto no artigo 578.º do CPC o tribunal deve conhecer oficiosamente das exceções dilatórias, salvo da incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou da preterição de tribunal arbitral voluntário e da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 104.º. Ou seja, o conhecimento oficioso das exceções dilatórias, nominadas ou inominadas, só tem as exceções indicadas naquele preceito legal. Destarte, a falta de cumprimento da obrigação de integração do devedor mutuário no PERSI, quando essa integração deva ocorrer, constitui uma exceção dilatória (inominada) de conhecimento oficioso.
Em resumo, a não comunicação aos consumidores clientes bancários da sua integração no PERSI impede a instituição de crédito de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito, ocorrendo uma falta de condição de ação, logo, uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso. E é uma exceção insanável na medida em que a sua falta não pode ser suprida na pendência da ação[3] pois constitui uma condição de admissibilidade da ação, seja ela declarativa ou executiva. E, tendo o devedor sido integrado no PERSI, também o credor não pode intentar ações judiciais com vista à satisfação do seu crédito sem que esteja declarada a extinção daquele Plano.
O conhecimento de exceção dilatória, seja a título oficioso seja mediante a alegação da parte a quem ela aproveita, tem por objeto a apreciação de facto e de direito. Os factos relevantes para aferir da exceção terão de ser alegados pelas partes, salvo se tratar de factos que não carecem de alegação ou de prova[4]. Como referem Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[5], «independentemente da distinção, no plano do direito, entre a exceção de conhecimento oficioso e aquela que só é invocável pelas partes, os factos em que uma e outra se baseiam estão sujeitos à alegação das partes, explícita ou apenas implícita (a apresentação de um documento, por exemplo). Excecionados estão os factos notórios e aqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções (…)».
Quem invoca um direito tem de provar os respetivos factos constitutivos (e apenas eles) e provados aqueles incumbe à outra prova provar os factos impeditivos ou extintivos do direito que se lhe contraponham.
No caso em apreço não vem posto em causa que perante o incumprimento pelo réu / apelado do contrato de mútuo outorgado com a autora/apelante aquele foi incluído no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento e que, posteriormente, aquele procedimento foi extinto (factos provados n.ºs 6 e 7).
O tribunal a quo julgou que «não resultou demonstrado que o réu recebeu as missivas para a sua integração no PERSI e sua extinção» e daí julgou verificada a exceção de incumprimento do PERSI.
Contra isto, vem a apelante sustentar o seguinte:
(i) O apelante integrou o réu no regime do PERSI;
(ii) No âmbito da integração do réu no PERSI, as comunicações foram feitas mediante o envio de cartas para a morada do réu;
(iii) Ao abrigo do D/L n.º 227/2012, de 25 de outubro, o Banco apenas está obrigado a remeter as interpelações no âmbito do referido procedimento em “suporte duradouro”, o que fez e para a morada indicada pelo recorrido aquando da celebração do contrato de crédito;
(iv) O recorrente preencheu o requisito de “suporte duradouro” uma vez que procedeu ao envio de cartas a comunicar ao réu a intenção de proceder à sua integração no regime de Persi e a lei não obriga a que as comunicações sejam feitas pela via postal registado e com aviso de receção.
Que dizer?
Como se assinalou supra o D/L n.º 227/2012, de 25-10 define os factos geradores da obrigatoriedade, por parte da instituição bancária, de integração dos seus clientes que estão em situação de incumprimento de contratos de crédito que hajam outorgado com a primeira (artigo 14.º). O artigo 14.º, n.º 4, dispõe que a informação ao cliente bancário da sua integração no PERSI deve ser efetuada através desuporte duradouro” e o artigo 17.º, para além de enunciar as causas de extinção do PERSI, dispõe no seu n.º 3 que «a instituição de crédito informa o cliente bancário através de comunicação em suporte duradouro da extinção do PERSI, descrevendo o fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a manutenção deste procedimento»; por sua vez, o n.º 4 do mesmo artigo 17.º dispõe que «a extinção do PERSI só produz efeitos após a comunicação referida no número anterior, salvo quando o fundamento de extinção for o previsto na alínea b) do n.º 1» (ou seja, com a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento).
Por conseguinte, a lei exige uma determinada forma de levar ao conhecimento dos devedores que os mesmos foram integrados no PERSI e, também, que este foi declarado extinto: nos termos do citado diploma legal, aquelas comunicaçõesquer a da integração do devedor no PERSI quer a extinção deste procedimento devem ser feitas em “suporte duradouro”, isto é, através de «qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas» – artigo 3.º, alínea h), do citado D/L n.º 227/2012. Tal “suporte duradouro” pode ser o papel mas também pode ser um meio eletrónico, como um email ou um CD-ROM. E, assim sendo, as comunicações em causa podem ser feitas através de carta. E até através de carta simples porquanto o D/L n.º 227/2012 impõe apenas que a comunicação seja feita em “suporte duradouro”. Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-09-2021[6]: «As comunicações de integração e de extinção do PERSI têm de ser feitas num suporte duradouro (que inclui uma carta ou um e-mail), conforme ressalta da leitura dos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do DL 227/2012, de 25/10. Se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de receção, tê-la-ia consagrado expressamente. Não está assim obrigada a instituição bancária a utilizar correio registado com aviso de receção para cumprir a referida obrigação legal».
Estamos, sem dúvida, perante comunicações que, para produzirem os efeitos respetivos, têm de chegar ao poder ou ser conhecidas pelo(s) cliente(s) bancário(s) que estão em situação de incumprimento do(s) contrato(s) de crédito.
Chamemos agora à colação o artigo 224.º do Código Civil, o qual sob a epígrafe Eficácia da declaração negocial, estatui o seguinte:
«1 – A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada. 2 – É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida. 3 – A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz».
No n.º 1 do preceito legal acima transcrito estão previstos dois tipos de declaração: as recipiendas/recetícias e as não recipiendas/não recetícias. Interessa-nos agora as primeiras: estas tornam-se aptas a produzir os efeitos intencionados pelo declarante logo que são efetivamente conhecidas pelo destinatário (ou seja, logo que este toma conhecimento do respetivo conteúdo) ou quando chegam ao poder dos destinatários em condições de serem por eles conhecidas. Adotaram-se, assim, quanto às declarações recetícias, os critérios da receção e do conhecimento[7]. «Deste modo, se a declaração negocial for efetivamente conhecida, nada mais se torna necessário averiguar – impõe-se a teoria do conhecimento ou da perceção, aquela que, como regra, se afigura mais justa, dado ser a que melhor salvaguarda o destinatário de uma declaração: esta só produzirá efeitos quando a pessoa a quem vai endereçada acede ao respetivo conteúdo. Para a lei basta, no entanto, que a declaração chegue ao poder do destinatário em condições de ser por ele conhecida para se tornar eficaz, revelando-se indiferente que tome, ou não, conhecimento do respetivo conteúdo. Consagra-se, portanto, um desvio a favor da teoria da receção, que se mostra totalmente razoável: trata-se de considerar a declaração eficaz a partir do momento em que, segundo as regras da experiência comum e os usos do tráfego, fique apenas a depender de ato do destinatário entrar no seu conhecimento. (…) a declaração chega ao poder do destinatário quando atinge a sua esfera pessoal, ficando ao seu alcance, de modo a que, em condições normais e segundo as regras da experiência comum, o declaratário possa, por atos que dependam apenas dele próprio (e que se espera que pratique nessas circunstâncias) tomar conhecimento da vontade manifestada pelo declarante. Deve, pois, a receção fazer-se em termos tais que se possa contar com o conhecimento, que seja legítimo esperá-lo de acordo com aquilo que é normal acontecer e as condições efetivamente conhecidas pelo declarante»[8] (negritos nossos). Afirmam Antunes Varela/Pires de Lima, ob. cit., pág. 214, que neste caso o conhecimento presume-se juris et de jure.
Posto isto, e conjugando as normas do D/L n.º 227/2012, de 25-10 com as regras gerais relativas ao ónus de alegação e de prova, diremos que:
(i) Incumbe à instituição bancária (autora) o ónus de demonstrar, em relação a cada uma das comunicações em causa (integração do réu no PERSI e extinção deste procedimento) a comunicação em si mesma e que a mesma foi realizada «em suporte duradouro»;
(ii) Incumbe à instituição bancária o ónus de demonstrar a respetiva expedição (facto instrumental probatório[9]);
(iii) Recai sobre o cliente/bancário o ónus de impugnar o envio, a receção ou outra circunstância que obste ao conhecimento daquela informação;
(iv) Exercido o ónus de impugnação referido em (iii) recai sobre a instituição de crédito demonstrar, por qualquer meio, ter encetado diligências adequadas e bastantes a que a declaração chegasse ao poder do cliente bancário e o colocasse em condições de receber e de conhecer o respetivo conteúdo[10].
Revertendo agora ao caso concreto está provado que perante o incumprimento do réu, o mesmo foi incluído no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), inclusão comunicada ao réu através de carta enviada para a morada constante do contrato e, ainda, que aquele procedimento foi extinto, extinção que foi comunicada por carta enviada para a morada constante do contrato. Ambas as cartas foram, portanto, expedidas e enviadas para um local que tornava possível ao réu tomar conhecimento da sua existência e conteúdo (uma ausência temporária ou transitória da casa, por exemplo - circunstância que não foi sequer alegada pelo réu - é um risco do destinatário). Destarte, a autora logrou provar, como lhe competia, que ambas as cartas com as ditas comunicações foram expedidas e que foram enviadas para a morada do réu, que é aquela que consta do contrato de mútuo (note-se que até consta da fundamentação de facto da sentença recorrida que o réu «confirmou que a morada que consta das cartas para cumprimento de PERSI é a sua»).
Perante o exposto, estando provado que as comunicações em causa foram enviadas para a morada indicada pelo réu (aquela que consta do contrato de mútuo) e não tendo o réu invocado qualquer circunstância que o tivesse impedido de receber naquela morada as referidas comunicações e assim tomar conhecimento do conteúdo das missivas, as comunicações produziram os efeitos a que se destinavam. Consequentemente, não se verifica a exceção dilatória inominada com base na qual o julgador a quo absolveu o réu da instância, impondo-se a revogação da sentença naquele segmento.

*
É consabido que o recurso se destina, em primeiro lugar, à revogação do ato processual decisório e, acessoriamente, à renovação ou substituição desse ato processual.
Prescreve o artigo 665.º do CPC epigrafado Regra da Substituição ao tribunal recorrido, o seguinte:
«1. Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
2. Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
3. O relator, antes de ser proferida decisão, ouvirá cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias».
No que respeita à extensão da substituição do ato processual, o nosso regime processual consagrou o chamado recurso de reponderação: o recurso julga a decisão viciada nos limites do objeto respetivo e refaz a decisão, isto é, a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos; por conseguinte, o objeto do pedido recursório é na parte da revogação a própria decisão e na parte da substituição a matéria que foi objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo, não se admitindo novos factos, novos fundamentos de ação ou de defesa ou novas provas[11].
De acordo com o normativo legal acima transcrito o tribunal competente para a prolação da decisão substitutiva que é pedida no requerimento de interposição de recurso é o tribunal ad quem, o qual tem competência quer para revogar a decisão viciada quer para julgar o seu objeto[12] (veja-se o artigo 665.º do CPC para a apelação e o artigo 682.º/2, a contrario, para a Revista).
No caso concreto, revogada a decisão que absolveu o réu da instância, há que proferir decisão sobre o mérito da causa uma vez que o julgador de primeira instância já procedeu ao julgamento de facto, isto é, apreciou os meios de prova produzidos nos autos e procedeu à enunciação dos factos provados e dos factos não provados.
Dir-se-ia que, em face do disposto no artigo 665.º/2, do CPC, incumbiria ao tribunal de segunda instância proferir a decisão de mérito. Julgamos, porém, que assim não deve ser, senão vejamos.
O direito ao recurso é, no nosso direito processual, um direito de ação incidental que apenas pode ser exercido na instância da decisão viciada e o recorrente só pode impugnar a decisão que lhe for desfavorável (artigo 653.º/3, do CPC).
A decisão é a consequência lógica dos fundamentos nos quais o juiz discrimina os factos provados e indica, interpreta e aplica as normas jurídicas correspondentes.
A decisão recorrida – e ora revogada – é uma decisão de extinção da instância por motivos formais pois o tribunal de primeira instância julgou inverificada uma condição de procedibilidade da ação e, consequentemente, absolveu o réu da instância; o tribunal recorrido não conheceu, portanto, do mérito da ação, não se pronunciou sobre a existência, ou não, do direito acionado pelo autor/apelante. Na medida em que o julgador a quo não proferiu decisão de procedência ou improcedência do pedido, nenhuma das partes, por falta de interesse em agir, podia ter impugnado a decisão de facto relevante para a decisão de mérito do litígio tal como foi julgada pelo tribunal de primeira instância. Consequentemente, se porventura o tribunal de segunda instância conhecesse no presente recurso do mérito da ação, procedendo ao enquadramento jurídico dos factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância, estaria a vedar às partes o direito ao recurso em matéria de facto pois que o terceiro grau de recurso está reservado para as questões de direito.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2022[13] defendeu-se uma interpretação restritiva da norma prevista no artigo 665.º/1, do CPC, constando do respetivo sumário que «O dever de substituição previsto no artigo 665.º, n.º 1, visa, em primeira linha, conduzir a uma resolução célere do litígio, no pressuposto de que o tribunal da Relação disponha dos elementos necessários para tal. Todavia, a esse valor da celeridade há que contrapor o da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, afigurando-se que este valor é mais garantístico e proeminente para a realização de um processo equitativo, na vertente de um processo que permita, num prazo razoável, a descoberta da verdade material e a prolação de uma decisão ponderada» (negritos nossos).
Pese embora aquela jurisprudência seja a propósito do artigo 665.º/1, do CPC, julgamos que a posição ali assumida é tão ou mais válida para as situações em que o tribunal de primeira instância, embora proceda ao julgamento da matéria de facto, não chega a «dar uma solução ao litígio», isto é, a conhecer do mérito da causa por razões formais. Nestes casos, não pode o tribunal de segunda instância substituir-se ao tribunal recorrido na prolação da decisão sobre a existência/inexistência do direito acionado pelo autor sob pena de se coartar o direito das partes ao recurso em matéria de facto.
Pelo exposto, a par da revogação da sentença que absolveu o réu da instância, impõe-se que se ordene ao tribunal de primeira instância que profira a decisão sobre o mérito da causa em conformidade com o julgamento de facto realizado.

Sumário: (…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida na parte em que julgou verificada a exceção dilatória inominada de incumprimento do PERSI e, em consequência, absolveu o réu da instância, devendo o tribunal recorrido proferir sentença que conheça do mérito da causa em conformidade com o julgamento de facto que realizou.
As custas na presente instância recursiva são da responsabilidade do recorrido – que apresentou resposta às alegações de recurso –, sendo que a este título apenas são devidas custas de parte porquanto encontram-se pagas as taxas de justiça devidas pelo impulso processual.
Notifique.
Registe.
DN.
Évora, 11 de janeiro de 2024
Cristina Dá Mesquita
Rui Machado e Moura
Francisco Matos



__________________________________________________
[1] Já alterado pelo D.L. n.º 70-B/2021, de 6 de agosto.
[2] Consultável em www.dgsi.pt
[3] No mesmo sentido, entre outros, Ac. STJ de 13.04.2021, processo n.º 1311/19.7T8ENT-B.E1,S1, Ac. RL de processo n.º 2282/15.4T8ALM-A.L1-6., relator Adeodato Brotas, Ac. RL de 13.10.2020, processo n.º 15367/17.3T8SNT-A.L1-7, relator Maria Conceição Saavedra, Ac. RG de 10.02.2002, processo n.º 5978/19.8T8VNF-A.G1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[4] Assim, Ac. RE de 12-01-2023, processo n.º 620/20.7T8ELV.E1 (relatora Isabel Peixoto Imaginário), consultável em www.dgsi.pt.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 15.
[6] Proc. n.º 173/21.9T8ENT-A.E1 (Relator Manuel Bargado), consultável em www.dgsi.pt.
[7] Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1987, pág. 214.
[8] Fernando Ferreira Pinto, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, págs. 505-506.
[9] Assim, Ac. RL de 21-11-2023, processo n.º 2457/22.0T8LRS-A.L1-7, consultável em www.dgsi.pt.
[10] Assim, Ac. RE de 12-01-2023, processo nº 620/20.7T8ELV.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, Volume I, 2020, AAFDL Editora, págs. 62-63 e O Recurso Civil. Uma Teoria Geral, 2018, Reimpressão, AAFDL Editora, pág. 256.
[12] Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, pág. 34: «À semelhança da generalidade dos ordenamentos jurídicos da União Europeia, o nosso sistema jurídico-processual assenta fundamentalmente num modelo de substituição. Mesmo o Supremo Tribunal de Justiça não se limita, em regra, a anular ou a revogar a decisão revogada (juízo rescindente), envolvendo-se ainda no objeto da causa».
[13] Processo n.º 2274/19.4T8LSB-A.L1-7, consultável em www.dgsi.pt.