Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3903/16.7T9FAR.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
CASO JULGADO
BURLA AGRAVADA
PROVAS
RECURSO
REGISTO CRIMINAL
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Um despacho de arquivamento do Ministério Público em inquérito não forma caso julgado, pela razão simples de não ser uma decisão jurisdicional e não transitar em julgado.
Deduzida a acusação depois de recolhidos novos elementos de prova de quem é o seu autor, isso não constitui violação do ne bis in idem.

2 - Os tipos penais de burla contidos no artigo 218º do Código Penal são tipos penais autónomos e qualificados relativamente ao tipo base previsto no artigo 217º, pelo que a sua natureza é a de um crime público.

3 - Se o recorrente não suscitou ao tribunal recorrido qualquer questão probatória a inserir na previsão do artigo 340º do C.P.P., não justificando as necessidades invocadas no recurso, não poderia o tribunal recorrido adivinhar que o recorrente entendia estar a ocorrer uma violação do artigo 340º do C.P.P..
Entendendo o recorrente que existia uma violação às regras de produção probatória ou falta de elementos probatórios, incumbia-lhe requerer em conformidade. Indeferida a pretensão, incumbia-lhe a interposição de recurso interlocutório por violação das regras de produção probatória.

O que não podia o arguido fazer era, sem colocar o problema, reservar-se para o recurso da decisão final para vir invocar a violação das regras de produção de prova (mesmo que lhes chame nulidades, o que obviamente não são) sem que o tribunal recorrido tenha sido confrontado com a questão e a tenha decidido.

4 - O registo criminal constitui um meio de prova e o seu cancelamento uma «verdadeira proibição de prova». Mas tal só constitui nulidade probatória se, em concreto, a decisão o utiliza para agravar a posição do arguido.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial de Faro - Juízo Central Criminal de Faro, J 5 - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual foi acusado,

(…)

sendo-lhe imputada a prática dos factos descritos na acusação (para a qual remete integralmente o despacho de pronúncia de folhas 333 e seguintes) que constitui folhas 176 e seguintes, os quais eram suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º, n.º 1, e 218º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Código Penal.


*

(…), ambos com os demais sinais identificadores constantes dos autos, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 63 714,00, acrescida de juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano, se vencerem desde a notificação do pedido de indemnização civil ao arguido até integral pagamento.

O montante líquido do pedido corresponde ao dobro do valor entregue pelos demandantes ao demandado a título de sinal e aos juros de mora vencidos.


ª

O arguido requereu em 09-09-2019 a abertura da instrução com os seguintes fundamentos, em súmula:

a) A exceção do caso julgado, argumentando que o ora arguido já foi ilibado no processo 570/11.8TALLE, tendo o inquérito sido arquivado, sem que tivesse sido requerida a abertura da instrução, pelo que há violação do “ne bis in idem”;
b) A extinção do direito de queixa, alegando que o direito de queixa exercido nos presentes autos ocorreu cerca de três anos depois do arquivamento do inquérito supra referido;
c) A insuficiência da acusação onde o arguido invoca que da acusação não constam todos os factos necessários à verificação do dolo, o que a torna nula ao abrigo do preceituado no artigo 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal.

Sobre este requerimento de abertura da instrução de 14-11-2019 e sobre as questões da “excepção do caso julgado”,extinção do direito de queixa” e “nulidade do inquérito” recaiu um despacho prévio à declaração de abertura de instrução onde o Mmº Juiz decidiu:

No seu requerimento de abertura de instrução, veio o arguido invocar, entre o mais, a violação do princípio do caso julgado, bem como a extemporaneidade do direito de queixa.
Notificado do Digno Magistrado do Ministério Público para se pronunciar, veio o mesmo referir que o crime imputado ao arguido é crime público, não dependendo de queixa, e que não se verifica a excepção de caso julgado, já que o arquivamento relativamente ao aqui arguido foi realizado no âmbito do art. 277.°, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não fazendo caso julgado.
Cumpre apreciar.

*
No que concerne à extemporaneidade do direito de queixa, assiste razão ao Ministério Público.
De facto, em sede de acusação mostra-se imputada ao arguido a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.°, n.º 1 e 218.°, ns 1 e 2, alínea a), ambos do Cód. Penal.
Ora, embora o crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.° do Cód. Penal, dependa de queixa (vd. art. 217.°, n. 3), o mesmo não sucede quanto ao crime de burla qualificada.
Assim, não dependendo o procedimento criminal de queixa, não se verifica a existência de qualquer prazo de caducidade. Deste modo, a queixa apresentada - que equivale, para todos os efeitos legais, a uma denúncia - é tempestiva, pelo que se indefere a arguida excepção.
Notifique.
*
Relativamente à verificação da excepção do caso julgado, refere o arguido que os factos constantes do despacho de acusação foram já objecto de despacho de arquivamento, no proc. n. 570/II.8TALLE, do DIAP de Loulé.
No âmbito de tal processo (cuja certidão se mostra apensa aos presentes autos), é possível verificar que, efectivamente, se investigaram exactamente os mesmos factos que se mostram descritos na acusação destes autos, tendo contudo a sua autoria sido imputada a (…) (filho do aqui arguido (...)).
Assim, a fls. 521 a 522 de tal certidão consta a respectiva acusação contra (...).
Por seu turno, o processo havia sido arquivado relativamente ao aqui arguido (...), por insuficiência de indícios, nos termos do art. 277.°, n. 2, do Cód. Proc. Penal, conforme se verifica do teor de fls. 517 e 518 da certidão junta.
O arguido (...) veio a ser julgado no âmbito do proc. n." 570/11.8TALLE, tendo sido absolvido da prática dos factos, conforme melhor se verifica do teor de fls. 738 a 764 da respectiva certidão.
Ora, na respectiva decisão sobre a motivação de facto consta o seguinte: "Ou seja, o que se provou nesta fase processual são efectivamente todos os factos relevantes e já constantes da acusação pública, para a qual remeteu o despacho de pronúncia mas com distinta autoria, ou seja, daquele contra que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito, o pai do arguido, sendo que, a prova, quer directa que por presunção probatória não permitem considerar como provados os factos atinentes à actuação do arguido, sendo de realçar que, pese embora, dos depoimentos prestados pelos demandantes resulte que, desde o ano de 2010 - portanto em momento muito posterior ao da celebração do contrato - o arguido tenha assumido um papel mais pro-activo nas negociações visando a celebração do contrato-prometido, tal não seria suficiente para que se valorasse esse comportamento como indicando que todo o actuar pretérito fosse de acordo com um plano e desígnio por si elaborado. "
Do exposto resulta que foi apenas em consequência da produção da prova em julgamento - nomeadamente das declarações de (…) e de (...) que se chegou à conclusão que o autor dos factos era, na realidade, o aqui arguido.
Embora o arguido refira que, com o despacho de arquivamento no proc. n. 570/11.8TALLE, houve lugar à cristalização da sua situação jurídico-penal, tal afirmação não corresponde inteiramente à realidade.
Na verdade, conforme se refere no Venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Novembro de 2016, proc. n. 52/15.9 PEEVRE1, disponível in \vww.dgsi.pt, "apenas nos casos de arquivamento do inquérito abrangidos pelo n. 1 do artigo 277. ° do CP Penal é que há consolidação do decidido, não podendo ser reaberto o inquérito. Não se trata propriamente de "caso julgado" pois este respeita apenas a decisões de natureza jurisdicional, mas de um caminho paralelo. Tendo entendido o Ministério Público arquivar porque não se verificou um crime, ou porque o arguido não é o autor do crime ou porque é inadmissível o procedimento, não pode vir mais tarde, em nome da segurança e da certeza jurídicas, afirmar o contrário".
Na situação em análise, conforme acima se aludiu, o arquivamento dos autos no proc. n. 570/11.8TALLE relativamente ao arguido deu-se nos termos do art. 277.°, n. 2, do Cód. Proc. Penal.
Ora, a lei prevê, nos termos do art. 279.°, do Cód. Proc. Penal, que o inquérito possa vir a ser reaberto, desde que surjam "novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento".
Assim, da leitura do normativo em causa desde logo se retira que o despacho de arquivamento por ausência de indícios não forma caso julgado, podendo haver lugar a nova análise caso haja elementos de prova posteriores que invalidem os fundamentos de tal arquivamento.
No caso do proc. n. 570/11.8TALLE, tais novos elementos de prova corresponderam às declarações de (...) e de (...) que, conjugadas com os meios de prova existentes, permitiram àquele Tribunal firmar a convicção que havia sido o aqui arguido quem praticou os factos em apreço.
Por conseguinte, seria sempre admissível a abertura do inquérito nos termos do art. 279.°, n. 1, do Cód. Proc. Penal.
Sucede, todavia, que o proc. n. 570/l1.8TALLE prosseguiu para julgamento, em virtude de ter sido acusado (e pronunciado) um terceiro pela prática dos factos relativamente aos quais (...) foi objecto de despacho de arquivamento.
Por conseguinte, o aludido processo deixou de se encontrar na fase de inquérito, sendo, por conseguinte, impossível proceder à sua reabertura nos termos do art. 279.° do Cód. Proc. Penal.
Não obstante, poderia o Digno Magistrado do Ministério Público ter requerido a extracção de certidão do processado para instauração de novo inquérito contra o aqui arguido (em lugar da reabertura, que já não se mostrava possível), o que não fez. Ao invés, vieram os denunciantes apresentar nova queixa/denúncia, pelos mesmos factos, quanto ao arguido (...), substituindo-se assim a competência que incumbia ao Ministério Público.
Poder-se-ia questionar a existência de eventual vício procedimental, no âmbito da legalidade processual, como fez o Venerando Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão de 11/03/2008, proc. n. 2846/07-1, disponível in www.dgsi.pt.
Sucede, todavia, que por despacho de fls. 76, datado de 19/06/2017, a Magistrada do Ministério Público titular do inquérito ordenou a reabertura dos autos, nos termos do art. 279.°, n. 1, do Cód. Proc. Penal.
Embora neste processo não pudesse, em rigor, haver lugar à reabertura de inquérito - já que o mesmo nunca foi encerrado - retira-se ainda assim do despacho em causa que o Ministério Público pretendeu reanalisar a investigação criminal quanto ao arguido (...).
Assim, a questão do vício procedimental ficou sanada, já que a entidade competente para determinar a abertura de nova investigação quanto ao arguido (...) declarou expressamente pretender fazê-lo.
Por todo o exposto, entende este Tribunal não se verificar a excepção de caso julgado, pelo que vai a mesma indeferida.
Notifique.
*
Requerimento de abertura de Instrução de fls. 216 a 224: Em virtude de ter sido oportunamente requerida pelo arguido, mostrar-se legalmente admissível e não ser devido, no caso, o pagamento de qualquer taxa de justiça (art. 287.°, n. 3, do Cód. Proc. Penal e art. 8.° do Regulamento das Custas Processuais), declara-se aberta a fase de instrução - cfr. art. 286.° do Cód. Proc. Penal).
Registe e autue em conformidade. (…)
*

Recurso interlocutório

Na sequência deste despacho o arguido apresentou as seguintes conclusões em recurso interlocutório interposto em 03-01-2020:

A).-l.- O critério legal, vamos encontrar no artigo 217. n. 3 do C. Penal, que. – “O procedimento criminal depende de queixa. “;
1.1.- Daí que tenhamos que concluir que nos encontramos perante um crime semi-público;
1.2.- O artigo 218. do C. Penal, que vem consagrar as circunstâncias agravantes do tipo legal de crime de burla e respectiva moldura penal em abstracto;
1.3.- O n. 1 do artigo 218. do C. Penal, que aqui se dá por reproduzido, faz clara e objectiva referência ao artigo 217. que define o tipo legal de crime de burla;
1.4.- O crime de burla qualificada constante do artigo 218. do C. Penal, não constitui tipo legal de crime autónomo;
1.4.1.- Não indica os elementos que constituem o crime de burla, limitando-se a fazer referência ao vocábulo burla e definindo quais as circunstâncias agravantes e estabelecendo uma nova moldura penal, para o efeito;
1.5.- Pelo que, termos que concluir, sem qualquer reserva interpretativa é no artigo 217. do C. Penal que se encontram definidas o tipo legal de crime de burla e a sua característica processual penal de crime semi-público.
1.5.1- Não é a agravante constante do n. 2. al. a) do artigo 218. do C. Penal, que modifica o crime de burla qualificada de semi-público, para público;
1.6.- Por outro lado, se pergunta, qual é o fundamento e o critério legal, para que o crime de burla qualificada, seja um crime público e não semi-público?
1.7.- Salvo, melhor opinião, e ao contrário do que conclui o douta decisão que ora se recorre, o crime de burla qualificada é um crime de natureza semi-pública;
B).- 2.- O crime de Burla Agravada pelo, qual o arguido se encontra acusado, está sujeito aos prazos de prescrição do Direito de Queixa, constante do artigo do artigo 113.º, n.º1 do CPenal;
2.1.- O despacho de arquivamento do M.P. nos autos de Inquérito n. 570/11.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1ª Secção, que consta a fls. 282 a 289, cuja certidão se encontra junta aos autos para o qual se remete, cujo o teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2.2.- Os ofendidos foram notificados de tal despacho de arquivamento, como se poderá constatar a fls. 293 e 294 de tal inquério, para qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2.3.- Os ofendidos, após a notificação do despacho de arquivamento, em momento algum, posterior, dentro do prazo legal, vieram requerer Abertura de Instrução naquele inquérito n. 570/11.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1ª Secção;
2. 4.-Tendo-se, conformado, com arquivamento do procedimento criminal, e em especial à pessoa do ora arguido nos autos em epígrafe, Sr. (...);
2.55.- O presente procedimento criminal, que ora se requer abertura instrução, é do ano de 2016, e encontram-se, decorridos, sobre a data da notificação do despacho de arquivamento aos ofendidos, do referido inquérito, cerca de três anos;
2.6.- Pelo que o novo Direito de Queixa que os ofendidos exerceram nos presentes autos à muito que haviam extinguido, pelo decurso do seu prazo, ao abrigo do artigo 115.º n.º 1 do C Penal.
2.7.- Requerendo-se, em conformidade, que o respectivo procedimento criminal seja declarado extindo, para todos os efeitos legais.
C).- 3.- O despacho da ilustre Magistrada do Ministério, que nos termos e ao abrigo do artigo 279., n.º 1 do CP.Penal, reabre o inquérito, de fls.76, datado de 19/06/2017;
31.- Tinha que ser probalado, obrigatóriamente, no mesmo inquérito, no Proc. 70/11.8 TALLE e não nos autos em epígrafe, por novos factos, em obediência ao artigo 279. n. 1 do CP.Penal;
3.2.- É no fundo, o que resulta do n.º 15 do douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/03/2008, no Proc. N.º 2846/07-01, refereneciado no douto despacho recorrido, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
3.3.- Refere, expressamente, no seu ponto n.º15 do seu Sumário – “Participados factos que foram investigados no âmbito de um determinado processo de inquérito e que foi mandado arquivar, a investigação, perante o surgimento de novos elementos de prova só pode prosseguir a requerimento do queixoso nesse mesmo processo”;
"3.4.- E não, como defende o douto despacho recorrido, num novo processo autuado, com data posterior, o inquérito em epígrafe;
3.5.- Não é o facto dos denunciantes terem apresentado nova queixa/crime sobre os mesmos factos, que já, anteriormente, tinham apresentado, no proc. n.º 570/11.8TALLE;
3.6.- E havia sido arquivado relativamente ao ora arguido;
3.7.- Que vem justificar e fundamentar, processualmente, a existência de um novo processo-crime, a dos autos em epígrafe;
3.8.- E tal nova queixa apresentada, teve que, necessariamente, apresentar factos novos: E QUAIS SÃO?
3.9.- Para que pudessem justificar a reabertura do inquérito, naquele processo e não neste;
3.10.- Mas os mesmos não constam da acusação;
3.11.- Aceitar a tese do douto despacho recorrido, era abrir a porta, para que existissem, multiplicação de inquéritos sobre os mesmos factos, com os mesmos denunciantes e arguidos;
3.12.- Pondo em causa, a regra do processo penal do «ne bis in idem» ou «non bis in lidem» - "ninguém pode ser perseguido ou punido penalmente pelos mesmos factos duas vezes" a própria exigência da equidade e da segurançca jurídica, do Direito Penal, Processo Penal e respectivo Estado de Direito;
3.13.- Bem como a violação, clara e frontal do n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa;
3.14.- Verificando-se, desta forma uma nulidade insanável de manifesta falta do inquérito, constante do artigo 119.º al. d) do C.P.Penal;
3.15.- Pelo que o presente inquérito, padece de vício processual, que importa a sua própria nulidade e a extinção do presente procedimento criminal;
C). Devendo, para o efeito, o despacho recorrido ser substituído, por outro que venha declarar a extinção do presente procedimento criminal.

*

Respondeu o Digno magistrado do Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso.

*

Entretanto o arguido, em sede de audiência de julgamento, contestou a 04-09-2020 vindo a arguir novamente as nulidades e excepções já anteriormente decididas e objecto de recurso interlocutório, nos seguintes termos, para além de contestar a matéria crime e cível:

I.- POR EXCEÇÃO:
A. EXCEÇÃO do Caso Julgado:
1.- Os factos pelos quais o ora arguido vem acusado já foram objecto de despacho de arquivamento pelo Ministério Público, no inquérito N.º 570/11.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1.º Secção, como se poderá verificar a fols.282 a 292 dos auto em epígrafe, a 05/07/2013, cuja certidão se encontra junto aos autos em epígrafe, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
1.1.- Tendo os ofendidos sido notificados do despacho de arquivamento da respectiva participação, como se poderá constatar fols.293 e 294 dos autos em epígrafe;
1.2.- Facto é que os ora ofendidos, apôs a notificação do respectivo despacho de arquivamento, em momento algum vieram requerer abertura de instrução, naquele inquérito.
1.3.- Tendo-se conformado com o arquivamento do procedimento criminal;
2.- Por despacho de fols.298 a 301 dos autos de Inquérito N.º 570/11.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1.º Secção, de 19/07/2013, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos e ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1 do C.P.Penal, foi reaberta o inquérito;
2.1.- Mas só contra o arguido (...), que veio a ser julgado em Tribunal Colectivo de Faro, e foi absolvido por sentença transitada em julgado, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
3.- Assim é manifesto, que a presente acusação vem imputar os mesmos factos ao arguido, pelos quais o mesmo já havia sido ilibado por despacho de fols.298 a 301 dos autos de Inquérito N.º 570/11.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1.º Secção, de 19/07/2013;
3.1.- Clara violação do principio basilar do nosso Direito Processual Penal - “Non bis in idem” – e do disposto no artigo 29.º, n.º5 CRP.;
3.2.- Não esquecendo, que os factos são os mesmos, bem como o tipo legal de crime pelo qual vem agora arguido acusado e os ofendidos, igualmente;
3.3.- Verificando-se, assim, na situação em apreço, perante um caso julgado material, que obsta a que o arguido, possa ser acusado e submetido a julgamento – “ Ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do mesmo crime”-;
4.- Devendo para efeito ser o arguido de imediato absolvido e extinto o respectivo procedimento criminal, com todos os seus efeitos legais.
B. A EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA:
5.- Como prevê no artigo 217.º, n.º 3 do C. Penal, crime de burla depende de queixa;
5.1.- O artigo 113.º, n.º 1 do C. Penal, refere: quando o respectivo procedimento depende de queixa, quem tem legitimidade para a presenta a respectiva queixa é o ofendido;
5.2.- Por outro lado o artigo 115.º, n.º1 do C. Penal, expressa que o direito de queixa se extingue no prazo de seis meses a contar da data que o ofendido teve conhecimento dos factos;
6.- De acordo com despacho de arquivamento do M.P. nos autos de Inquérito N.º570/1.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1.ª Secção, que consta a fols. 282 a 289, cuja certidão se encontra junta aos autos para o qual se remete, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, os ofendidos foram notificados de tal despacho de arquivamento, como se poderá constatar a fols. 293 e 294 de tal inquérito, para qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6.1.- Os ofendidos nos presentes autos e nos anteriores após a notificação do despacho de arquivamento, em momento algum, posterior, e dentro prazo legal, não vieram requerer Abertura de Instrução, naquele inquérito N.º570/1.8TALLE do D.I.A.P de Loulé 1.ª Secção;
6.2.- Tendo-se, conformado, com o arquivamento do procedimento criminal, e em especial à pessoa do ora arguido nos autos em epígrafe, Sr. (...);
7.- O presente procedimento criminal, de que ora se apresenta a Contestação, é do ano de 2016;
7.1.- Encontram-se, decorridos, sobre a data da notificação do despacho de arquivamento aos ofendidos, do referido inquérito, cerca de três anos;
7.2.- Pelo que o novo Direito de Queixa que os ofendidos exerceram nos presentes autos à muito que se havia extinguido, pelo decurso do seu prazo, ao abrigo do artigo 115.º n.º 1 do C. Penal.
8.- Requerendo-se, em conformidade, que o respectivo procedimento criminal seja declarado extinto, para todos os efeitos legais.
C. NULIDADE DO INQUÉRITO:
9.- Esgotado o prazo do artigo 278.º do C.P.Penal, já que os ofendidos, em sede inquérito N.º 570/1.8TALLE do D.A.I.P de Loulé 1.ª Secção, não requereram a intervenção hierárquica, quando foram notificados do despacho de arquivamento do processo inquérito, fols.293 e 294, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
10.- Ao abrigo artigo 279.º do C.P.Penal – “(…) o inquérito só pode ser reaberto, se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.”;
10.1.- Sendo que a reabertura do inquérito, tem que ser reaberto no mesmo processo de inquérito;
11.- Ora constatamos, na situação em apreço, que não foram invocados, quaisquer novos factos, para fundamentar a reabertura;
11.1.- Autuou-se um novo inquérito, o dos autos em epígrafe, à revelia de qualquer fundamento legal, para o efeito, em sede de processo penal;
11.2.- Sendo certo que a natureza dos novos factos ou seja dos novos elementos de prova é a mesma que é caracterizada na al.d) do artigo 449.º do C.P.Penal;
11.2.- O que não se verifica na situação em apreço;
11.3.- Verificando-se, deste modo, a nulidade constante do artigo 120.º, n.º 2, al.a) do C.P. Penal;
D.- INSUFICIÊNCIA DE INQUÉRITO:
12.- A acusação, obrigatoriamente, tem que enunciar todos os factos relativos às circunstâncias de tempo, lugar, intervenientes, acção e as consequências da acção, os factos que se entenderam pertinentes à concretização dos elementos do tipo de ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.ºs 1 e 2, al.a) do Código Penal.
12.1.- Acusação na sua parte final diz o seguinte:
12.1.2.- “O arguido fez crer, de forma errónea, aos ofendidos que possuía uma casa com terreno e piscina para vender em Almancil e que se lhe entregassem a quantia de €.30.000 (trinta mil euros) a título de sinal, asseguraria a sua venda, conseguindo, assim que lhe fosse entregue tal valor monetário, e que de outro modo não conseguia obter.”;
12.1.3.- “Com tais condutas, o arguido visou apropriar-se da quantia que lhe foi entregue a título de sinal, tendo conhecimento que a moradia em apreço jamais seria susceptível de vir a ser licenciada, obtendo para si uma vantagem patrimonial que não lhe era devida e integrou no seu património, bem sabendo que, desta forma, causava prejuízo aos ofendidos e agia contra a sua vontade.”;
12.1.4. – “O arguido agiu sempre de uma forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.”;
13.- Do texto da acusação, na sua narração, nada mais se consigna, relativamente à enunciação factual do plano subjectivo da actuação do suposto arguido;
13.1.- Muito embora, os factos da acusação, tivessem sido enquadrados juridicamente, por referencia às normas conjugadas dos artigos 14.º n.º 1 e 217.º, n.º 1 e 218, n.ºs 1 e 2 todos do C. Penal.
14.- Deste modo, verifica-se que na enunciação dos factos relativos ao “ modo de actuação” do arguido, à imputação subjectiva, no que diz respeito à satisfação do tipo de ilícito subjectivo, que a acusação se revela, manifestamente, insuficiente;
14.1.- Ou seja acusa-se o arguido pela prática de um crime Burla Qualificada, que é um crime doloso;
14.2.- Mas não se descrevem todos os factos necessários a verificação do dolo;
15.- Nesta conformidade, acusação em causa é nula nos termos e ao abrigo do artigo 283.º, n.º 3 al. b) do C.P. Penal.
15.1.- Nulidade que desde já se requer com todas as suas legais consequências.

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Na sequência, no introito do acórdão lavrado a 04-12-2020, o tribunal recorrido veio a decidir sobre a matéria das excepções:

«O arguido, contestando nos termos que se extraem de folhas 354 e seguintes, pugna pela sua absolvição (quer da pronúncia quer do pedido de indemnização civil), suscitando, muito em resumo e para o que aqui interessa considerar, as seguintes questões:
a) A exceção do caso julgado, argumentando que o ora arguido já o foi no processo 570/11.8TALLE, tendo o inquérito sido arquivado, sem que tivesse sido requerida a abertura da instrução;
b) A extinção do direito de queixa, alegando que o direito de queixa exercido nos presentes autos ocorreu cerca de três anos depois do arquivamento do inquérito suprarreferido;
c) Nulidade do inquérito: neste particular, o (...) começa por arguir que o inquérito registado com o n.º 570/11.8TALLE não foi reaberto, nem foram invocados novos factos para fundamentar a reabertura. Conclui que se verifica a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal;
d) Insuficiência de inquérito: por fim, o arguido invoca também a insuficiência de inquérito por considerar que da acusação não constam todos os factos necessários à verificação do dolo, o que a trona nula ao abrigo do preceituado no artigo 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
No mais, o arguido dá a sua própria versão dos factos.
No tocante ao pedido de indemnização civil, o arguido conclui que é parte ilegítima.

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As questões suscitadas pelo arguido e enunciadas supra sob as alíneas a) a d) constituem questões prévias sobre as quais cumpre tomar posição desde já.
Verifica-se que a maior parte das questões suscitadas pelo arguido na contestação foram por ele suscitadas no requerimento de abertura de instrução que constitui folhas 216 e seguintes, concretamente, a questão da exceção do caso julgado, a extinção do direito de queixa e aquilo a que o arguido, na contestação, chama de “insuficiência de inquérito” e que, no requerimento de abertura da instrução, apelidou de “nulidade da acusação”.
As duas primeiras questões foram apreciadas no despacho que constitui folhas 245 e seguintes. A questão apelidada na contestação como “nulidade do inquérito” (e que, no requerimento de abertura da instrução, identificou como “nulidade acusação”) foi apreciada no despacho de pronúncia que constitui folhas 324 e seguintes.
Nos dois despachos, foram as referidas questões julgadas improcedentes.
No final – tal como se deixou enunciado supra -, o arguido foi pronunciado pelos mesmos factos e qualificação jurídica constantes da acusação.
Dito de outro modo, das questões prévias suscitadas pelo arguido na contestação, apenas a (por ele) chamada “nulidade do inquérito” ainda não foi apreciada pelo Tribunal em nenhuma das fases do processo.
Resulta do disposto no artigo 308º, n.º 3 do Código de Processo Penal que, até ao encerramento da instrução o juiz decide das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer. Por seu lado, o artigo 310º, n.º 1 do mesmo código preceitua que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (…) é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.” Esta regra sofre, contudo, uma (e apenas uma) restrição: o despacho de pronúncia não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas (n.º 2 do inciso legal citado). Em tudo o mais, o despacho de pronúncia, na parte em que conhece de exceções e questões prévias ou incidentais, transita em julgado e julga definitivamente as questões por ele julgadas (anote-se que o n.º 3 do artigo 310º citado não implica qualquer exceção ao princípio enunciado, apenas esclarece que o despacho que recair sobre a arguição de determinadas nulidades é recorrível). Neste sentido decidiu, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/06/2017 (publicado em www.dgsi.pt, processo 426/16.8PBCTB-A.C1, ao considerar que “tendo havido instrução, e sendo ali arguida a nulidade da acusação, que foi conhecida e indeferida, não pode ser arguida de novo tal nulidade para ser conhecida pelo juiz de julgamento”). E, contra, não se diga que este entendimento viola o direito de defesa plasmado no artigo 32º, n.º 5 do Constituição da República Portuguesa. Com efeito e tal como se decidiu no assento 6/2000, de 19/01/2020 (publicado no DR. I série A, n.º 56, de 07/03/2020), “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais.” Só no caso de o sujeito processual afetado pela decisão não recorrer da mesma é que se considera que a decisão transitou em julgado.
Salienta-se que as questões suscitadas se prendem, todas elas, com vicissitudes do inquérito. Fora das situações especificamente previstas na lei, seria inconcebível que o arguido suscitasse uma determinada questão no inquérito, a voltasse a suscitar na instrução e, não obstante a questão ter sido apreciada e decidida em tais fases preliminares do processo penal, a mesma pudesse ainda ser suscitada na fase de julgamento.
Pelo exposto, devem todas as referidas questões serem julgadas improcedentes, o que, adiante, se decidirá.
Não deixa de se referir que a invocada extinção do direito de queixa não tem qualquer cabimento posto que o crime de que o arguido se encontra acusado (por referência ao disposto no artigo 218º, n.º 2, alínea a) do Código Penal) tem natureza pública, questão que é pacífica em toda a doutrina e jurisprudência, não merecendo qualquer outro desenvolvimento.
Também a chamada “exceção do caso julgado” não merece provimento. Com efeito e tal como se refere no douto despacho de folhas 245 e seguintes (que se seguirá de perto), no âmbito do processo 570/11.8TALLE foram investigados exatamente os mesmos factos que se mostram descritos na acusação destes autos, tendo contudo a sua autoria sido imputada a (...), filho do aqui arguido (...) (cf. folhas 11 e seguintes e 49 e seguintes), de passo que o processo foi arquivado relativamente ao aqui arguido (...), por insuficiência de indícios, nos termos do art.º 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. (...) veio a ser julgado no âmbito do referido processo 570/11.8TALLE, tendo sido absolvido. No acórdão proferido em tal processo consta, para além do mais que aqui não interessa considerar, que “o que se provou nesta fase processual são efetivamente todos os factos relevantes e já constantes da acusação pública, para a qual remeteu o despacho de pronúncia mas com distinta autoria, ou seja, daquele contra que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito, o pai do arguido, sendo que, a prova, quer direta que por presunção probatória não permitem considerar como provados os factos atinentes à atuação do arguido, sendo de realçar que, pese embora, dos depoimentos prestados pelos demandantes resulte que, desde o ano de 2010 – portanto em momento muito posterior ao da celebração do contrato – o arguido tenha assumido um papel mais proactivo nas negociações visando a celebração do contrato-prometido, tal não seria suficiente para que se valorasse esse comportamento como indicando que todo o atuar pretérito fosse de acordo com um plano e desígnio por si elaborado.”
Do exposto resulta que foi apenas em consequência da produção da prova em julgamento – nomeadamente das declarações de (...) e de (...) que se chegou à conclusão que o autor dos factos era, na realidade, o aqui arguido.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15/11/2016 (publicado em www.dgsi.pt, processo 52/15.9PEEVRE1) “apenas nos casos de arquivamento do inquérito abrangidos pelo nº1 do artigo 277.º do Código de Processo Penal é que há consolidação do decidido, não podendo ser reaberto o inquérito. Não se trata propriamente de “caso julgado” pois este respeita apenas a decisões de natureza jurisdicional, mas de um caminho paralelo. Tendo entendido o Ministério Público arquivar porque não se verificou um crime, ou porque o arguido não é o autor do crime ou porque é inadmissível o procedimento, não pode vir mais tarde, em nome da segurança e da certeza jurídicas, afirmar o contrário”.
No caso presente, o arquivamento do inquérito 570/11.8TALLE relativamente ao ora arguido teve por fundamento o preceituado no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Ora, nos termos do art.º 279.º do Código de Processo Penal, o inquérito pode ser reaberto, desde que surjam “novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”. Daqui resulta evidente que o despacho de arquivamento por ausência de indícios não forma caso julgado, podendo haver lugar a nova análise caso haja elementos de prova posteriores que invalidem os fundamentos de tal arquivamento. No caso presente, o inquérito não poderia ser reaberto, posto que o processo prosseguiu os seus termos (tendo percorrido as fases de instrução e julgamento). Tal explica e, mais do que isso, justifica que o Ministério Público não tenha reaberto o inquérito, mas tenha prosseguido com um novo inquérito tendo em conta os novos meios de prova de que veio a tomar conhecimento.
O que se vem dizendo implica também, aliás, a improcedência da questão enunciada supra sob a alínea c) (a que o arguido, na contestação, chamou de “nulidade do inquérito”). Os novos factos resultam dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento do processo 570/11.8TALLE, de onde resulta que o autor dos factos que constavam da acusação foi o arguido e não o seu filho (ali arguido submetido a julgamento).
Também a invocada “insuficiência de inquérito” não procede (o que, de resto, já foi apreciado na decisão instrutória), porquanto da acusação constam todos os factos que relevam dos elementos subjetivos do crime imputado ao arguido: o conhecimento, a vontade e o especial intuito de obtenção de enriquecimento ilegítimo.
Em conformidade com todo o exposto, julgam-se improcedentes todas as questões prévias suscitadas na contestação.»
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A final - por acórdão lavrado a 04-12-2020 - veio a decidir o Tribunal recorrido:

1. Condenar o arguido (...) como autor material de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
2. Suspender na sua execução (por aplicação do regime penal em vigor na data da prática dos factos) a referida pena de prisão pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses mediante as seguintes condições:
2.1. O arguido se sujeitar a regime de prova, mediante um plano de reinserção social a delinear pela Direção-Geral de Reinserção Social e dos Serviços Prisionais;
2.2. O arguido depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros), devendo depositar até ao final de cada ano (a contar da data do trânsito em julgado do presente acórdão) a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros), valores que o Tribunal entregará às vítimas;
3. Condenar o demandado (...) a pagar aos demandantes (...) e (...) a quantia de € 32 000,00 (trinta e dois mil euros) acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal sobre a quantia de € 30 000,00 desde o dia 7 de julho de 2009 e sobre a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros) desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado até integral pagamento;
4. Condenar o arguido (...) a pagar as custas relativas ao processo criminal, fixando-se a taxa de justiça em 3 unidades de conta;
5. Condenar os demandantes e o demandado nas custas atinentes ao pedido de indemnização civil na proporção do respetivo decaimento;
6. Determinar que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência, o qual se extinguirá com a extinção da pena;
Após o trânsito em julgado deste acórdão:
7. Remeta-se boletim ao registo criminal;
8. Remeta-se cópia do acórdão à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (para conhecimento e bem assim para os efeitos do disposto no artigo 494º, nº 3 do Código de Processo Penal);

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Inconformado, o arguido interpôs recurso da decisão final com uma questão prévia e as seguintes conclusões:

Questão Previa:
1.- Com o presente recurso deverá subir o recurso interposto pelo arguido, do despacho que recaiu sobre o requerimento de abertura de Instrução, que se encontra nos autos;
2.- E de acordo com o respectivo despacho do M.ª Juiz de Instrução, que, assim, determinou;
Conclusões:
A).- Ao contrario do que a sentença refere, em relação ao Proc. N.º 570/11.8TALLE, - fols.4 da sentença, último paragrafo e fols.5, por despacho da Sr.ª Procuradora titular do então inquérito, em 30.12.2014, cuja cópia se junta como doc.n.º 1, cujo o teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
1.- A fls.4 de tal despacho, cujo o teor aqui se dá aqui por reproduzido, determinou o arquivamento do inquérito, relativamente, ao aqui arguido, nos termos e ao abrigo do artigo 277.º n.º 1 do Código de Processo Penal;
2.- Tendo tal despacho sido notificado aos ofendidos, nos termos, e ao abrigo do artigo 277.º, n.º 3, como consta do próprio despacho junto;
3.- Do qual se conformaram e, nem sequer, requereram Abertura de Instrução, situação que estava processualmente, ao seu alcance e nada fizeram.
4.- Não operando, desta forma, o regime constante do artigo 279.º do C.P.Penal;
5.-Muito menos, a justificação processual para que o M.P. viesse, posteriormente reabrir novo inquérito;
6.- A situação em apreço, importa, a verificação de um nulidade da sentença, nos termos e ao abrigo do artigo 379.º, n.º 1 al. c) do C.P.Penal, que importa a extinção do procedimento criminal contra o arguido;
B).- O acórdão refere que : - “Os novos factos resultam da prova produzido na audiência de julgamento do processo 570/11.8TALL de onde resulta que o autor dos factos que constavam da acusação foi o arguido e não o seu filho (ali arguido submetido a julgamento).”
1.- A acusação não indica, quais são esses factos novos, em que termos, em que data, que declarações produzidas, em audiência e em que sessão de julgamento?
2.- De acordo com artigo 283.º, n.º 3, al. f) do C.P.Penal a acusação deve conter sob pena de nulidade – “ A indicação de outras provas, a produzir e requerer;” -;
3.- Analisando, a acusação constantes dos autos, verificamos que a mesma é “ipsis verbis” igual aquela, que foi deduzida contra o filho do arguido, no processo 570/11.8TALL, com os mesmos elementos probatórios;
4.- Os novos factos ou os novos meios de prova tem que ser efectuados e aquilatados, à luz dos artigos 171.º,172.º e 173.º do C.P.Penal;
5.- Facto inquestionável, que tanto em sede do inquérito, como do processo, não existe qualquer exame prévio às declarações do ora arguido e do seu filho, em sede do presente, que possam levar à conclusão da existência de factos incriminadores do ora arguido;
6.- Em sede da audiência de julgamento, não foram produzidas as declarações, que levam a imputar ao arguido, em audiência de julgamento, em obediência ao artigo 340.º, n.º1 do C.P.Penal;
7.- Os novos factos ou novos meios de prova tem que ser avaliados à luz da al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.Penal, vide para tanto Acórdão do STJ processo n.º 487/08.3SFLSB-A.S1, de 19/06/2013 publicado em www.dgsi.pt, ;
8.- Tais omissões referenciadas, levam, necessariamente, a verificação de uma nulidade insanável constante do artigo 120.º, n.º 1 al. d) do C.P.Penal, pela manifesta falta de inquérito, por um lado;
8.1.- Por outro, violação constante do artigo 340.º, n.º 1 e n.º 2 do C.P.Penal, já que em audiência de julgamento, não foram produzidas as declarações do arguido e do seu filho, no processo n.º 570/11.8TALL, nem o arguido, confrontado com as mesmas;
8.2.- Nem tão pouco, em sede de audiência de julgamento, o M.º Juiz “A Quo” se manifestou pela necessidade ou não da audição de tais declarações do ora arguido e do seu filho , nos termos e ao abrigo do artigo 340.º,n.º 2 do C.P.Penal;
8.3.- A omissão de tais procedimentos, ora referidos, constitui uma nulidade da sentença, constante do artigo do artigo 379.º,n.º 1 al. c) do C.P.Penal.
C).- Atento ao que ficou aprovado em sede de fundamentação:
1.- Que Não houve qualquer apropriação por parte do arguido de qualquer quantia monetária título de sinal, ou seja da quantia de € 30.000,00;
2.- Na medida que, não foi este, que, recebeu o valor do sinal, ou tenha depositado numa conta sua;
3.- Não foi o actual arguido que celebrou e assinou o contrato de promessa de compra e venda;
4.- Não ficou provado que o arguido tenha gasto em proveito próprio a quantia €.30.000,00;
5.- No que se refere carta do BPI, para além do facto da mesma não tenha sido feita prova, em sede de audiência de julgamento, em obediência ao artigo 340.º, n.º 1 do C.P.Penal, para que a mesma pudesse ter sido considerado meio probatório legal e assim, objecto de ponderação probatória, para efeitos de sentença;
6.- Deste modo, é patente, uma clara contradição, entre a fundamentação e a decisão que levaram a condenação do arguido;
6.1.- Que nos termos e ao abrigo do artigo 410.º, n.º 2 al. b) do C.P.Penal, constitui uma evidente contradição insanável, entre a fundamentação e a decisão;
6.2.- Constituindo assim uma nulidade da sentença!
C.1.).-As anteriores condenações do arguido não podiam ser valoradas, um vez que já se encontravam extintas há mais de cinco anos, pelo respectivo cumprimento;
1.- Não devendo por isso constarem do registo criminal;
2.- A Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio, que veio estabelecer os princípios gerais que regem a organização e o funcionamento do registo criminal, é clara ao determinar o cancelamento e que o registo de condenação deixa de poder ser considerado contra o arguido.
3.- Atento ao que consagra o artigo 11.º da referida Lei, confrontação do que se encontra inscrito no certificado de registo criminal do arguido recorrente;
4.- Assim, as penas anteriores de condenação, não podiam ser valoradas pelo Tribunal “A Quo” para aplicação da pena ao arguido;
5.- Constituindo, uma clara violação ao artigo 11.º da referida Lei 37/2015 de 5 de Maio;
6.- Bem como, assim, violação do principio constitucional de igualdade constante no artigo 13.º do C.R.P., na medida, em que permite, distinguir o arguido de um outro, cujo certificado do registo criminal, nas mesmas condições se encontre devidamente limpo;
7.- Deste modo, a consideração e valoração de tais antecedentes criminais, do arguido na sentença, constitui um erro notório na apreciação da prova;
7.1.- Na medida que, se vê desrespeitado, de uma forma notória, as regras e o valor da prova vinculada;
7.2.- Deste modo, tal erro, como os restantes constantes do artigo 410.º,n.º 2 do C.P.Penal, são do conhecimento oficioso;
7.3.- Em especial o ora apontado resulta do próprio texto da decisão, objecto do presente recurso;
7.3.1.- Verificando-se, deste modo, a nulidade da sentença, constante do artigo 379.º, n.º1 al.c) do C.P.Penal
D).- O acórdão, na sua parte final, condena o arguido a:
1. - “Depositar à ordem dos presentes autos a quantia de €.30.000,00 (trinta mil euros), devendo depositar até ao final de cada ano (a contar da data do trânsito julgado do presente acórdão) a quantia de €.10.000,00 (dez mil euros) valores que o Tribunal entregará às vítimas;”
2.- E ainda, em sede cível, o demandado arguido foi condenado a pagar os demandantes: - “ a quantia de €.32.000.00 (trinta dois mil escudos), acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal sobre a quantia de €.30.000,00 desde de 7 de julho 2009 e sobre a quantia de €.2.000,00 (dois mil euros) desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado até integral pagamento;” –
3.- O que no fundo representa um condenação ao arguido do pagamento de €.62.000,00 ( sessenta dois mil euros);
4.- A presente condenação cível do arguido, representa o dobro do valor de sinal, que os ofendidos demandados pagaram ao filho do arguido;
5.- Para além de contrariar, o que o acórdão da sentença, fundamenta, na sua análise sobre o pedido cível a fls.30 da sentença, cujo o teor que aqui se dá aqui reproduzido;
5.1.- Aonde se realça: - “ (…) Trata-se contudo, de uma consequências jus-civis do incumprimento culposo do contrato. Todavia, como, se viu, no processo-crime, a indemnizar a fixar prende-se apenas com reparação dos danos causados ao lesado e que são emergentes do crime e não outros. Como tal, nesta parte, deverá improceder o pedido de indemnização civil.”;
6.- O acórdão, na fundamentação, entende que, não há direito ao dobro do sinal, na medida em que, os danos causados são emergentes do crime;
7.- Contrariando a sua fundamentação, pelos mesmos factos vem condenar o arguido no pagamento no dobro do sinal;
8.- Com agravante: de ter dado como provado que não foi o arguido que recebeu o sinal do preço no valor de € 30.000.00 (n.º 6 os factos provados);
8.1.- E que se não provou, fls.12 do acórdão:
8.1.2.- “ III. Os cheques referidos em 6 dos factos provados foram depositados pelo arguido em conta por si titulada;” –
8.1.3.- “ IV. O arguido gastou em proveito próprio a quantia de €.30.000,00, que recebeu do demandantes;” –
9.- Assim é evidente, que a condenação, representa na sua essência, em sede processo penal, um total contradição entre os fundamentos e a condenação;
9.1.- Constituindo, nos termos e ao abrigo do artigo 410.º, n.º 2 al. b) do C.P.Penal, uma contradição insanável da fundamentação com a respectiva decisão;
9.2.- Importando, assim, a nulidade da sentença nos termos do artigo 379.º do C.P.Penal.
E).- Nesta conformidade o acórdão da sentença violou as normas dos artigos 171.º, 172.º e 173.º, 271.º n.º 1, 283.º, n.º 3 al. f), 340.º, n.º 1 e 2 e 449.º todos do C.P.Penal e ainda o artigo 11.º da Lei 37/2015 de 5 de Março e o artigo 13.º da CRP.
Nestes termos e nos demais de Direito deve o presente recurso ser considerado procedente e provado e a decisão objecto do presente recurso, substituida por outra que venha a absolver o arguido com todas as legais consequências.

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Respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, o Digno magistrado do Ministério Público, concluindo:

1 – Por Acórdão de 04/12/2020, proferido a fls. 444 a 474 dos autos à margem supra referenciados, foi decidido pelo Tribunal Coletivo condenar o arguido (...), pela prática de um crime de burla qualificada (p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2 al. a) do Código Penal), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.
2 – Não se verifica in casu qualquer a “nulidade” do Acórdão invocado pelo arguido ora recorrente, uma vez que no caso presente, o Ministério Público, tendo em conta os novos elementos de prova, abriu um novo inquérito (que deu origem aos presentes autos), sendo que esses novos elementos de prova são os que foram produzidos na audiência de julgamento do processo n.º 570/11.8 TALLE.
3 – Pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 279º do C.P.P. tinha o Ministério Público inteira legitimidade para instaurar o presente procedimento criminal contra o arguido, o qual não se encontra assim extinto.
4 – O Tribunal Coletivo valorou corretamente o teor do certificado do registo criminal do arguido constante dos autos, sendo que nada existe, em termos de normativos legais vigentes, que condicione ou que limite a apreciação do teor dos certificados do registo criminal requisitados pelos tribunais com jurisdição em matéria penal.
5 – E, de tal elemento de prova – o CRC junto ao processado – resulta absolutamente segura a fixação da matéria de facto que foi realizada nos pontos n.ºs 27 a 33.
6 – Motivo pelo qual o douto Acórdão objeto do presente recurso não merece qualquer censura na apreciação que fez do supramencionado elemento de prova, tendo o Tribunal apreciado a prova segundo a sua livre convicção, sem extravasar os limites consagrados no artigo 127º do C.P.P.
7 – Não se verificando, pois, qualquer erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo.
8 – Além disso, é manifesto que o Tribunal Coletivo respeitou a exigência legal contida no artigo 355º, n.º 1 do Código de Processo Penal, não tendo consultado, analisado ou ponderado em autos ou documentos cujo acesso lhe estivesse legalmente vedado.
9 – E, perante a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal a quo – designadamente a constante dos pontos 1 a 13 – não podia deixar de se considerar que o arguido ora recorrente cometeu factos que são diretamente subsumíveis ao tipo legal de crime de burla.
10 – Pelo que o douto Acórdão objeto do presente recurso também não merece qualquer censura quando considerou que a conduta do arguido ora recorrente preenchia os elementos típicos do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º, n.º 2 al. a) do Código Penal.
11 – Por outro lado, a decisão de subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento por parte do arguido da quantia de € 30 000 a depositar à ordem dos autos, em três prestações anuais de € 10 000, mostra-se absolutamente razoável e adequada.
12 – O mesmo sucedendo quanto à condenação do arguido, enquanto demandado, a pagar aos demandantes (...) e (...), a quantia de € 32 000, acrescida de juros moratórios.
13 – Sendo manifesto que o arguido, ao depositar nos autos aquela quantia de € 30 000 – que reverterá a final a favor dos demandantes – ficará automaticamente desobrigado de efetuar o correspondente pagamento desse montante da indemnização de € 32 000 que foi fixada aos demandantes.
14 – Não havendo assim uma cumulação da mesma obrigação com o dever de indemnizar constante da decisão sobre o pedido cível deduzido nos autos.
Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido (...), confirmando-se o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos.

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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

O arguido (...), recorre do Acórdão que o condenou, como autor material de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2 al. a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo.
A impugnação desta decisão decorre dos seguintes vícios que o arguido lhe aponta:
1- Extinção do procedimento criminal por existência de decisão prévia de arquivamento em outro inquérito instaurado contra o arguido sobre os mesmos factos – nulidade do Acórdão – artº 379º nº 1 c) do CPP.
2 – Impugnação da matéria de facto.
3 – Erro notório decorrente do conhecimento do CRC do arguido que deveria estar cancelado, o que também implica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP
4 – Existência de uma dupla condenação decorrente do cumprimento da condição e do pagamento da indemnização.
5 – Existência de contradição insanável na fundamentação.
Apesar da falta de rigor na sistematização da fundamentação, supomos que conseguimos elencar todos os supostos vícios que o arguido entende afectarem da decisão.

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A extinção do procedimento criminal
Como o Ministério Público esclarece na sua resposta a objecção levantada pelo arguido não faz qualquer sentido. Ainda que se conceda que o inquérito n.º 570/11.8TALLE, entretanto arquivado quanto ao arguido (...) não pudesse ser reaberto, a situação que nos ocupa tem natureza totalmente diferente. O inquérito 570/11.8TALLE prosseguiu seus termos, deu lugar à abertura de uma instrução e os factos nele contidos foram submetidos a julgamento. Só em julgamento e em face da prova produzida, apurados factos novos, é que veio a ser instaurado este processo.
Não chegou a haver propriamente uma reabertura de inquérito, nos termos do artº 279º nº 1 do CPP, pela simples razão de que o inquérito nunca foi… reaberto. E nem se diga que esta posição viola o princípio do caso julgado, ou situação paralela conceptualmente imputável às decisões do Ministério Público. O caso julgado é um instituto inerente ao exercício do poder judicial e não do Ministério Público. E, embora o entendimento de que uma decisão de arquivamento proferida nos termos do disposto no artº 277º nº 1 do CPP impede a reabertura do inquérito contra a mesma pessoa e sobre os mesmos factos, tal entendimento só é admissível por força de norma legal expressa, a norma do artº 279º nº 1.
Todavia não existe norma que impeça ou condicione a abertura de novo inquérito desde que surjam novos factos que invalidem a decisão anteriormente tomada. A razão de ser desta solução tem a ver com a natureza da intervenção do Ministério Público e da dinâmica do processo de investigação, que é totalmente distinta da intervenção do poder judicial. O Juiz tem perante si, para decidir, um acervo fáctico bem definido, que só pode ser alterado nos precisos termos e com as limitações decorrentes da Lei. A fixação do thema decidendum e consequente thema probandum mais que uma comodidade, é uma garantia para todos os intervenientes processuais. E o resultado desta intervenção, traduzida na sentença que fixa definitivamente o direito daquele caso, constitui outra garantia adicional de que o poder judicial se pronunciou definitivamente – repete-se, com as excepções previstas na Lei – sobre aquela controvérsia.
Todavia, não é essa a dimensão da intervenção do Ministério Público no processo penal.
A investigação criminal é um processo dinâmico, sempre em evolução e não tem propriamente um thema decidendum previamente fixado. A base investigatória pode ser alargada, restringida, alterada, enfim sujeita aos condicionalismos da investigação. Surgindo factos novos, a que o Ministério Público possa ter acedido por intervenção de terceiros, por hipótese, seria inconcebível que deixasse de os investigar só por que em momento anterior se entendeu de maneira diferente.
Se o cidadão tem o direito de ver o seu caso definitivamente encerrado no momento em que o Tribunal profere a decisão final, já tal entendimento não se justifica quando o Ministério Público exerce as suas competências investigatórias em fase de inquérito.
Excepto nas situações onde a lei prevê expressamente de forma diferente, como é o caso do artº 279º nº 1 do CPP.
Mas este não é o caso.
Daí que se nos afigure que o arguido não tem razão.
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Impugnação da matéria de facto.
Sobre a impugnação da matéria de facto a que o arguido tenta proceder uma coisa deve ser dita desde já. Pretender impugnar factos dados como provados, nomeadamente os acordos celebrados e por quem, o recebimento dos cheques e por quem e a identidade do autor do locupletamento, sem cumprir as obrigações decorrentes do disposto no artº 412º nº 3 do CPP, é tarefa votada ao fracasso.
Em rigor, não se chega a compreender muito bem qual a fundamentação legal deste segmento do recurso, já que o arguido tão depressa se reporta aos meios concretos de prova, como faz referência aos vícios do artº 410º nº 2, misturando as duas situações sem distinguir os seus planos de argumentação.
De todo o modo, não só não foram indicados de forma precisa quais os pontos da matéria de facto que se reputam mal julgados, como não foram indicados os meios de prova que impunham decisão diversa.
Nesta parte, carece também o recurso de total fundamento.
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Erro notório decorrente do conhecimento do CRC do arguido que deveria estar cancelado, o que também implica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP.
O arguido alega também que o Tribunal não poderia ter feito uso dos elementos constantes do seu CRC, “uma vez que já se encontravam (as penas) extintas há mais de 5 anos, pelo respetivo cumprimento. Não devendo por isso constarem sequer do registo criminal”.
De facto o artº 11º nº 1 a) da Lei nº 37/15 de 5 de Maio dispõe que as decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal em vários casos, onde se inclui a situação em que o arguido se encontra – vd. alínea a) -.
Por outro lado, o artº 10º nº 3 do referido diploma legal refere que os CRC,s requisitados pelas entidades referidas (magistrados designadamente) contém a transcrição integral do registo criminal vigente.
Acontece que, apesar destas referências já não deverem estar inscritas, a verdade é que… estavam!
A questão que se coloca é a seguinte: poderia legitimamente o Tribunal delas fazer uso na sentença?
Em nossa opinião sim. O facto de um determinado procedimento administrativo não ter sido observado, dando “de barato” que não o foi, não significa que a realidade que lhe subjaz – e que o CRC apenas certifica durante um determinado lapso de tempo – nunca tenha existido e não deva ser tida em consideração. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Para além disso, repare-se no seguinte: imaginemos que o Tribunal recebia um CRC do arguido limpo e imaculado. Mas sabia por hipótese, por ter acesso aos processos em causa, de todas as condenações anteriores transitadas em julgado. Poderia fazer uso desse conhecimento? Claro que sim desde que fizesse constar esses elementos dos autos e sobre eles fosse exercido o contraditório.
Ora não será absurdo considerar essa prova proibida só por que um determinado procedimento administrativo impõe certa prática e ela não foi observada? Prática essa que nada tem a ver com o exercício da função jurisdicional?
Não há, portanto, qualquer erro notório nem se verifica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP.
O Tribunal não só não errou, como conheceu de questões que podia e devia conhecer.
Também aqui falecem as razões do arguido.
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Insuficiência da matéria de facto dada como provada.
É mais uma daquelas afirmações completamente destituídas de sentido. Basta ler os pontos 1 a 13 da matéria de facto dada como provada e a fundamentação em que se baseia para se concluir que este vício não ocorre.
Para que existisse e como já por várias vezes dissemos em situações idênticas:
“O erro notório, a contradição insanável e a insuficiência para a decisão da matéria de fato provada a que alude o artº 410º do CPP nº 2 nada têm a ver com uma errada ou deficiente avaliação da prova.
Uma coisa nada tem a ver com a outra. Tais vícios podem fundar-se numa apreciação errada da prova, é verdade. Mas são ostensivos, resultam do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Para os percepcionar não é preciso perscrutar os elementos de prova em concreto produzidos. Basta a avaliação atenta de qualquer pessoa dotada de uma razoabilidade comum.
Contudo, do acervo fáctico vertido na sentença recorrida, não se consegue vislumbrar onde a defesa conseguiu descobrir um erro notório de avaliação, ou mesmo uma qualquer insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão de condenar o arguido.
De facto e socorrendo-nos uma vez mais da exposição feita pelo Ministério Público, desse texto não é possível retirar um erro crasso de apreciação de prova algo que, flagrantemente, constitua uma impossibilidade, uma incoerência gritante, quer na sua relação com outros factos dados como provadas, quer no cotejo com as regras de experiência comum sob as quais qualquer cidadão se rege.
Da mesma forma a matéria considerada provada é manifestamente suficiente para a decisão de condenar o arguido pelo crime em que foi condenado.
Coisa bem diferente – e isto já foi dito tantas vezes – é saber se o tribunal, na formação da sua convicção, fez a melhor avaliação dos meios de prova de que se serviu para chegar às conclusões a que chegou. Aqui, todavia, já estamos no domínio da revisão da matéria de facto, cujo recurso obedece a critérios legais específicos e bem determinados, mormente às exigências vertidas no artº 412º nº 3 do CPP.
O arguido contesta no fundo a convicção do tribunal na avaliação concreta dos meios de prova, não contesta a racionalidade intrínseca do texto decisório.
A sentença não padece claramente de qualquer dos vícios referidos no artº 410º nº 2 do CPP.”
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Existência de uma dupla condenação decorrente do cumprimento da condição e do pagamento da indemnização e contradição insanável na fundamentação.
Defende finalmente o arguido a existência de uma contradição insanável na fundamentação do Acórdão, mormente entre a fixação da condição de suspensão da pena – proceder ao depósito da quantia de € 30000 nos termos aí previstos - e a condenação em indemnização aos ofendidos/demandantes civis de quantia praticamente idêntica, o que equivaleria a uma dupla condenação.
Todavia também aqui a contradição é aparente como o demonstrou o Ministério Público na sua resposta.
A quantia que o arguido deverá depositar periodicamente no cumprimento da condição reverterá para os demandantes que, desta forma, verão ressarcido o prejuízo que lhes foi causado e, concomitantemente, desonerará o arguido do pagamento da indemnização na exacta medida daquilo que os ofendidos/demandantes já tiverem recebido.
Não há dupla condenação e não há, portanto, qualquer contradição na fundamentação.»
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.

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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

Da pronúncia
1. Em meados de 2009, o arguido fez saber ao (...) e a (...) que possuía uma propriedade para vender com uma casa (moradia) e piscina, implantada num terreno com a área total de 4 498 m2 (prédio inscrito na matriz da freguesia de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…);
2. Perante o interesse demonstrado por aqueles na sua aquisição, o arguido formulou desde logo o propósito de se apropriar da quantia monetária que viesse a receber por conta do preço, incluindo o sinal, tendo, para tanto, e de acordo com o desígnio previamente firmado, comunicado que a dita construção se encontrava legalizada e que apenas estava em falta sua inscrição no registo predial, onde somente constava o prédio rústico e não a edificação;
3. O arguido, (...) e (...) negociaram as condições em que se efetuaria o contrato de compra e venda: o preço, o sinal e os prazos da outorga da escritura (tudo nos termos que constam do contrato-promessa referido infra), afirmando o primeiro que o contrato-promessa e a escritura de compra e venda seriam assinados pelo seu filho (...) por o prédio estar registado em seu nome;
4. No dia 7 de julho de 2009, foi outorgado o contrato-promessa pelo qual (...) (filho do arguido) e (...) e mulher, (...) prometiam vender e comprar, respetivamente, o prédio referido em 1 supra, pelo preço de € 250 000,00 que deveriam ser pagos do seguinte modo:
a. € 30 000,00 de sinal e princípio de pagamento, a pagar na data da assinatura do contrato-promessa através de dois cheques (ali identificados);
b. € 220 000,00 a pagar no dia da celebração da escritura;
5. Ficou ainda estabelecido no contrato-promessa que (...) compromete-se a tudo fazer para que se possa celebrar a escritura de compra e venda até ao dia 30/10/2009, nomeadamente, tudo o que esteja relacionado com a legalização do imóvel. Se eventualmente surgir algum atraso que não seja imputável ao promitente vendedor, poderá o referido prazo ser alargado por mais 60 dias.
6. Nessa mesma data, os demandantes entregaram ao arguido os cheques n.º 1578034323 e n.º 0678034324, nos montantes de € 23 000,00 e € 7 000,00, respetivamente, valores estes que respeitavam ao sinal. Tais cheques foram depositados em conta bancária titulada por seu filho (...) e por (...);
7. As edificações (casa e piscina) implantadas no prédio descrito em 1 foram efetuadas sem qualquer licença nem esta poderia ser obtida, sendo as mesmas insuscetíveis de legalização;
8. Após a celebração do contrato-promessa referido supra e antes de 3 de agosto de 2010, o arguido pediu aos demandantes para € 2 000,00 para pagar despesas relacionadas com as diligências que estava a levar a cabo para conseguir legalizar as construções edificadas no prédio identificado em 1 supra. Os demandantes recusaram-se a entregar tal valor ao arguido. Como o arguido insistiu com os demandantes, estes acabaram por lhe entregar mais € 2 000,00;
9. Não obstante de ter sido marcada a escritura pública para o dia 3 de agosto de 2010, a mesma não se chegou a realizar por (...) e (...) o terem recusado por as edificações continuarem por legalizar;
10. Apesar de instado a devolver o valor entregue como sinal, o arguido recusou-se a devolvê-lo aos demandantes, não o tendo feito até hoje;
11. O arguido fez crer a (...) e a (...) que possuía um prédio com uma casa e piscina para vender em Almancil e que se lhe estes lhe entregassem os valores referidos em 4 (e, posteriormente, em 8) lhes venderia tal propriedade, tendo, desse modo, conseguido que os demandantes lhe entregassem os referidos valores que, de outro modo, não conseguiria obter, apesar de saber que as edificações implantadas no referido prédio não estavam legalizadas nem eram suscetíveis de legalização;
12. Ao atuar como descrito, o arguido visou apropriar-se das quantias que lhe foram entregues pelo demandante, tendo conhecimento que a moradia e piscina jamais seriam suscetíveis de virem a ser licenciadas, bem sabendo que, desta forma, causava prejuízo a (...) e a (...) e agia contra a vontade destes;
13. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal;
14. Do pedido de indemnização civil
15. Os demandantes, tendo sido convencidos pelo arguido que a moradia posta à venda por este se encontrava devidamente legalizada, aceitaram comprá-la pelo preço de € 250.000,00;
16. Para o que recorreriam a um empréstimo bancário para aquisição de habitação própria.
17. Em 7 de julho de 2009, os demandantes, convencidos pelo arguido da possibilidade de venda do prédio onde estava edificada a moradia e piscina, entregaram-lhe a quantia total de € 30.000,00 a título de sinal;
18. O arguido sempre ocultou aos demandantes que a venda do prédio com as referidas edificações não seria possível;

Outros factos resultantes da discussão:
20. O arguido é divorciado;
21. Vive com a namorada (cujo relacionamento se iniciou há cerca de 4 meses), que é dentista;
22. Tem 4 filhos (de 12, 19, 31 e 35 anos, sendo que os dois últimos se autonomizaram dos respetivos agregados familiares e os demais vivem com as respetivas mães) fruto de relacionamentos com quatro mulheres;
23. O filho (...) vive, desde 2017, na República da Guiné, onde trabalha;
24. Os demais filhos, por vezes, vão passar fins-de-semana a casa do arguido;
25. O arguido tem o 9º ano de escolaridade;
26. O arguido aufere os rendimentos provenientes da sociedade (...), Construções, Ld.ª, sociedade de construção civil. Tais rendimentos variam entre € 800,00 e 900,00 por mês (sendo que, antes da pandemia causada pela doença Covid-19, os rendimentos poderiam ascender a € 1 000,00 mensais);
27. Por sentença24/04/1997, proferida no processo 117/96 do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, foi o arguido condenado pela prática, em 30/08/1995, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses;
a Esta pena está extinta pelo cumprimento;
28. Por sentença de 08/04/1998, proferida no processo 80/98.7GTABF, foi o arguido condenado pela prática, no mesmo dia, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa e na pena acessória de 3 meses de proibição de conduzir veículos motorizados;
a Estas penas estão extintas pelo cumprimento;
29. Por sentença de 22/02/2000, proferida no processo 1588/97.7PAFAR, foi o arguido condenado pela prática, em 04/12/1997, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses;
30. Por sentença transitada em julgado no dia 26/05/2008, proferida no processo 576/06.9GTABF, foi o arguido condenado pela prática, em 02/06/2006, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 meses;
a Estas penas estão extintas pelo cumprimento;
31. Por sentença transitada em julgado no dia 12/01/2011, proferida no processo 345/08.1TALLE, foi o arguido condenado pela prática, em 07/04/2008, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 190 dias de multa;
a Esta pena está extinta por prescrição;
32. Por sentença transitada em julgado no dia 08/10/2012, proferida no processo 2/12.4GCFAR, foi o arguido condenado pela prática, em 01/01/2012, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 4 meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 14 meses;
a Estas penas estão extintas pelo cumprimento;
33. Por sentença transitada em julgado no dia 11/09/2017, proferida no processo 328/14.2IDFAR, foi o arguido condenado pela prática, em outubro de 2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa;
a Esta pena está extinta pelo cumprimento.
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B.1.2 – Factos dados como não provados:

Não se provaram os demais factos constantes da acusação, do pedido de indemnização civil e da contestação, sendo certo que aqui não interessa considerar as alegações de direito, conclusivas, probatórias, meramente argumentativas ou absolutamente irrelevantes parta a decisão.
Neste caso estão, entre outras, as seguintes alegações constantes da acusação:
- A alegação de que o arguido, com a prática de determinado comportamento “fez sua na íntegra” determinada quantia ou “obteve para si uma vantagem patrimonial que não lhe era devida”;
- É de igual modo conclusiva a alegação de que o arguido fez crer “de forma errónea” outras pessoas em determinados factos.
Para além disso, são conclusivas e meramente argumentativas ou probatórias as demais alegações constantes do articulado em que foi deduzido o pedido de indemnização civil ou a contestação e que não foram considerados na discriminação dos factos julgados provados e não provados.
Concretamente, não se provaram os seguintes factos:
Da pronúncia
I. Na circunstância referida em 1 dos factos provados, o arguido fez saber aos demandantes que tinha uma residência para vender pelo preço de € 250 000,00, tendo-se apenas demonstrado o que está descrito em 1 dos factos provados;
II. O propósito formulado pelo arguido (a que se refere o nº 2 dos factos provados) foi o de o arguido se apropriar da quantia monetária a ser entregue a título de sinal;
III. Os cheques referidos em 6 dos factos provados foram depositados pelo arguido em conta por si titulada;
IV. O arguido gastou em proveito próprio a quantia de € 30 000,00 que recebeu dos demandantes;
Da contestação
V. Os factos constantes da acusação, tiveram lugar, entre maio e julho 2009, mas sim na janela temporal que decorre dos factos provados;
VI. O prédio identificado em 1 dos factos provados estava, desde 30 de dezembro de 2009, inscrito nas Finanças e registado na Conservatória do Registo Predial de (…) como prédio misto;
VII. O arguido informou os demandantes, desde o início, que a casa não necessitava de qualquer licença de habitabilidade ou licença de construção, uma vez que, se tratava de uma reconstrução de uma casa antiga, sendo, tão só, necessário, uma certidão camarária a comprovar que a casa reconstruída era anterior a 1951.

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B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

«O decidido em matéria de facto funda-se em todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, nos documentos, relatórios periciais e autos que constam do processo, valorados (cada um de per si e no confronto com os demais meios de prova) de forma crítica e de acordo com as regras da experiência comum.
As declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas só foram positivamente valorados na medida em que as declarações e depoimentos se revelaram claros, precisos, isentos de contradições e concordantes com outros meios de prova.
Todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos e exames periciais de que o Tribunal se serviu para fundar a sua convicção foram.
O recurso aos autos constantes do processo respeitou as exigências legais, não tendo o Tribunal consultado, analisado ou ponderado em autos cujo acesso, em julgamento, lhe está vedado.
O arguido confirmou o teor do contrato-promessa que constitui folhas 63 e seguintes esclarecendo que o mesmo foi assinado pelos demandantes e pelo filho do arguido ((...)) na data que dele consta ou no dia seguinte. O arguido relatou que no prédio a que o contrato-promessa se refere havia uma ruína. No local onde estava tal ruína construiu uma moradia com piscina e colocou o prédio à venda, tendo, posteriormente, sido contactado pelos demandantes.
Ainda segundo o arguido, o prédio foi por ele próprio adquirido. Porém, foi registado em nome do seu referido filho (...), razão pela qual foi o mesmo a assinar o contrato-promessa e não o próprio arguido.
O arguido confirmou ainda que, aquando da assinatura do contrato-promessa os demandantes pagaram € 30 000,00 (que, segundo o arguido, foram pagos ao seu referido filho). Este acompanhou todas as negociações referentes à venda do prédio.
(...) decidiu pôr o prédio à venda uma vez que a empresa pertencente ao filho e à mãe deste tinha dívidas (ao Fisco e à Segurança Social, entre outras), pretendendo o arguido usar o preço para saldar tais dívidas.
Esclareceu que as construções edificadas no prédio foram legalizadas com base na ruína que existia no prédio.
A venda só não se concretizou por os demandantes não terem dinheiro para pagar a parte remanescente do preço e não terem conseguido financiamento, facto que foi por eles comunicado ao arguido, tendo, inclusivamente, os demandantes pedido ao arguido a devolução dos € 30 000,00. O arguido aceitou devolver tal montante se conseguisse vender o prédio pelo mesmo preço prometido vender aos demandantes. Caso vendesse por um preço mais baixo, só devolveria parte ou mesmo nenhum valor. O arguido conseguiu vender o prédio a outras pessoas, mas apenas pelo preço de € 200 000,00. Por tal motivo, não devolveu nenhum dinheiro aos demandantes.
O arguido referiu que apresentou aos demandantes o documento que constitui folhas 226, documento que igualmente apresentou ao notário para instruir a escritura de compra e venda. De tal documento (cuja emissão foi requerida após a celebração do contrato-promessa) resulta que a obra edificada no prédio não carecia de licença de habitabilidade, estando a mesma legalizada.
A versão dos factos apresentada pelo arguido foi, ao menos na parte mais relevante, confirmada pelo depoimento de seu filho (...). Este também referiu que acompanhou todas as negociações para a venda do prédio aos demandantes. Todavia, especificou que apenas viu os demandantes pela primeira vez no dia da assinatura do contrato-promessa. Na altura em que este foi assinado, o prédio estava registado como prédio rústico. Carecia a construção nele levada a cabo de ser legalizada. Embora (...) não tenha acompanhado as diligências encetadas para legalizar a obra, sabe que assinou todos os documentos que lhe deram para assinar tendo em vista tal desiderato. Após a legalização das construções, deu disso conhecimento aos demandantes, tendo estes referido que iriam procurar financiamento para o pagamento do resto do preço.
Marcada a data para a realização da escritura de compra e venda, no cartório compareceram (...) e os demandantes (entre outras pessoas). Todavia, estes não quiseram celebrar a escritura por não terem conseguido o financiamento para pagamento do remanescente do preço (facto do qual já tinham dado conhecimento a (...), pelo telefone, em data anterior).
(...) confirmou ter recebido dos demandantes, na data da celebração do contrato-promessa, € 30 000,00 através de dois cheques que depositou numa conta de depósito bancário titulada pelo (...) e por sua mãe.
Depois de os demandantes terem recusado celebrar o contrato de compra e venda do prédio, negociou com eles a possibilidade de lhes vir a devolver os € 30 000,00, o que só ocorreria se vendesse o prédio pelo mesmo preço a outras pessoas.
O prédio acabou por ser vendido a outras pessoas, tendo, para tanto, sido usados os mesmos documentos que teriam sido utilizados para vender aos demandantes.
Versão bem diferente foi apresentada pelos demandantes.
Assim, (…) referiu que foi informado por um conhecido de que a casa identificada nos factos provados estava à venda. Foi ao local, onde falou com o arguido e viu a casa. Por ter ficado interessado em comprá-la, voltou lá mais tarde com a esposa. Discutiu e acordou com o arguido o preço do prédio e o valor do sinal, tendo acordado os demais termos que constam do contrato-promessa. Na altura em que este foi assinado as edificações existentes no prédio (designadamente, a casa e a piscina) não estavam legalizadas (inexistindo licença de habitabilidade). Por tal motivo e por exigência de (...), ao contrato foram anexadas as plantas da casa (que são as que constam de folhas 391 e seguintes). Na data da assinatura do contrato-promessa pagaram € 30 000,00 de sinal (pela emissão e entrega de dois cheques de € 23 000,00 e € 7 000,00), tendo o arguido assumido o compromisso de diligenciar pela legalização das edificações existentes no prédio.
Após a celebração do contrato-promessa, (...) e esposa foram procurar financiamento para poderem pagar a restante parte do preço. O banco BPI aceitou emprestar o dinheiro de que necessitavam, só não o tendo feito por, no respetivo processo de crédito, faltar a licença de utilização, sendo certo que o banco considerou que a certidão que o arguido facultou aos demandantes (que é o documento que constitui folhas 226) não era suficiente. Antes de o arguido lhe ter apresentado o documento de folhas 226, o arguido pediu aos demandantes € 2 000,00 para ele poder suportar as despesas com a legalização das obras. Inicialmente, os demandantes recusaram satisfazer tal pedido. Mas, depois de muita insistência do arguido, acabaram por lhe entregar tal montante.
(...) declarou ter ficado muito surpreendido quando recebeu uma carta com a marcação da escritura sem que lhe tivesse sido remetida a licença de utilização das construções edificadas no prédio. De resto, já em data anterior, (...) tinha dito ao arguido (...) que apenas faria a escritura depois de ter sido emitida a licença de habitabilidade da casa e que, caso tal licença não fosse emitida, queria os € 30 000,00 de volta. Assim, apesar de ter comparecido no cartório notarial no dia e hora designados para a realização da escritura, recusou outorgar na mesma em virtude de não haver comprovação de que a casa tinha licença de habitabilidade e também por não dispor de dinheiro para pagar o remanescente do preço (já que tal dinheiro apenas lhe seria disponibilizado pelo banco após comprovação de que as edificações levadas a cabo no prédio estavam legalizadas).
Até ao dia designado para a realização da escritura, todos os contactos relacionados com a compra e venda do prédio identificado nos factos provados foram estabelecidos por (...) com o arguido. Após aquela data, o arguido disse ao demandante que, daquele dia em diante, deveria tratar de tudo com (...). Ainda assim, o arguido disse a (...) que não lhe iria devolver o dinheiro recebido (€ € 30 000,00 + € 2 000,00) por já o ter gasto. Porém, se vendesse o prédio a outras pessoas pelo mesmo preço, devolveria o valor do sinal na íntegra. Caso vendesse por valor inferior, o próprio demandante teria que ter alguma perda. O demandante recusou tal proposta.
Até hoje, não recebeu do arguido qualquer valor.
(…), demandante e esposa de (...), prestou depoimento essencialmente coincidente com o do marido. Esclareceu que os primeiros contactos com o arguido (...) ocorreram em junho de 2009. A negociação com vista à compra do prédio onde estava edificada a casa foi feita com o arguido, sendo certo que, a primeira vez que viu (...) foi no dia da assinatura do contrato-promessa, dia que é o que consta de tal. De resto, no dia da assinatura do contrato-promessa, o próprio (...) referiu que apenas ali estava para assinar o contrato em causa e que todas as demais questões seriam tratadas com o seu pai (o ora arguido). Só após a data designada para a realização da escritura é que o próprio (...) referiu à demandante que, dali em diante, os assuntos relacionados com a compra e venda do prédio seriam tratados com ele. Na altura, os promitentes-compradores emitiram e entregaram ao arguido dois cheques (que são os que estão copiados a folhas 527 e 428), os quais foram pagos. Após, ficaram a aguardar que o arguido lhes enviasse a documentação que ele próprio afirmou estar em falta.
Entretanto, os demandantes contactaram o BPI no sentido de obterem financiamento para o pagamento da restante parte do preço. Tal banco aceitou emprestar o dinheiro de que necessitavam. De resto, colaboradores da instituição bancária chegaram a fazer a avaliação do prédio. O dinheiro só não foi emprestado por faltar no processo bancário de concessão de crédito a necessária licença de habitabilidade. De resto, (...) entregou no BPI um documento (que lhe foi entregue pelo arguido) de onde resultava que a casa não carecia de licença de habitabilidade por ser prédio anterior a 1949. Porém, no BPI não aceitaram tal documento já que colaboradores seus tinham ido fazer a avaliação do prédio (considerando também a casa nele edificada) e verificaram que a casa não era anterior a 1949. Posteriormente, o arguido pediu aos demandantes que adiantassem mais dinheiro (€ 2 000,00) para fazer face às despesas de legalização das construções levadas a cabo no prédio, acabando os demandantes por lhe entregar tal montante.
A dada altura, o arguido informou que não iria ser emitida a licença de habitabilidade, pois, para tanto, era necessário elaborar um projeto e submetê-lo à Câmara Municipal de Loulé, o que ele próprio não iria fazer.
O arguido (...) chegou a dizer que devolveria o dinheiro que tinha recebido dos demandantes no caso de conseguir vender o prédio a outras pessoas pelo mesmo preço acordado com estes. Porém, apesar de ter vendido o prédio a outras pessoas (facto de que não informou os demandantes, que apenas dele tomaram conhecimento pela consulta do registo predial), não lhes devolveu qualquer valor.
Perante o que fica dito, é evidente que as versões dos factos apresentadas pelo arguido e seu filho, de um lado e as apresentadas pelos demandantes, por outro, não são compatíveis.
Antes de analisar a credibilidade que merecem as declarações referidas, importa ainda ter presentes outros meios de prova que estão juntos aos autos, começando por analisar o contrato-promessa.
Este consta de folhas 62 e seguintes e de folhas 387 e seguintes (contendo este as plantas anexas). O contrato, que tem, no essencial (isto é, no que aqui interessa considerar) o teor resumido constante dos factos provados, está datado de 7 de julho de 2009.
Verifica-se ainda que os cheques emitidos e entregues para pagamento do sinal [tal como previsto no contrato-promessa que, de resto, identifica tais cheques (havendo apenas um pequeno lapso na identificação do número de um deles)] estão datados também de 7 de julho de 2009 (cf. folhas 427 e seguintes). Deve, pois – não obstante a declaração dúbia do arguido no que tange à data em que o contrato foi assinado – considerar-se que o mesmo foi assinado na data que dele consta (como de resto foi perentoriamente afirmado pelos demandantes).
Resulta do teor do contrato-promessa que o prédio a vender era um prédio rústico (cf. cláusula primeira do contrato). Do mesmo texto se extrai que o promitente-vendedor sabia que tinha que “licenciar” (ou, para utilizar a linguagem usada na cláusula quarta do contrato-promessa, “legalizar”) as construções existentes no prédio. De resto, o prazo para a celebração do contrato prometido estava dependente de tal “legalização”. Impõe-se, pois, concluir que todas as partes envolvidas no contrato tinham noção de que o prédio só poderia ser vendido com as construções nele edificadas após ter sido obtido o competente licenciamento administrativo (camarário), sendo claramente inverosímil qualquer declaração de que os promitentes-compradores sabiam que as construções estavam legalizadas ou não era legalizáveis.
Resulta claro das declarações dos demandantes (máxime, do demandante) e do arguido e do próprio teor do contrato-promessa, que, na data em que este foi concluído (assinado) a habitação existente no prédio prometido vender já estava edificada. Por tal motivo, não poderia a entidade administrativa certificar que, no local, havia uma edificação construída em data anterior a 1949. Essa certificação, como é evidente, tinha que existir ou ter sido pedida antes de a edificação antiga ter sido substituída por uma outra de construção recente.
Ainda assim, o arguido conseguiu obter da Câmara Municipal de Loulé, a certidão com o teor de folhas 226, segundo a qual, em 1949 não era exigida licença de habitabilidade. Tal certidão foi emitida em 16 de dezembro de 2009 (vários meses após a assinatura do contrato-promessa), por referência à “matriz predial urbana sob o n.º 13069”. Foi com base em tal matriz (constante de folhas 415) que o prédio identificado nos factos provados passou de prédio rústico para prédio misto (cf. certidão da descrição e de todas as inscrições constante de folhas 418 e seguintes (em especial, folhas 419 e 421). Por seu turno, a matriz predial urbana (que serviu de título para a alteração da natureza do prédio de rústico para misto) foi gerada na sequência do requerimento de folhas 436 e seguinte. Sucede que, em tal requerimento (apresentada no serviço de finanças de Loulé no dia 12 de agosto de 2009) se refere expressamente que a construção a considerar tem 5 anos (cf. folhas 437). Ou seja, o título que deu origem à inscrição da matriz predial urbana refere-se a uma construção recente. Mas a certidão de folhas 226 refere-se a uma construção anterior a 1949.
Não é, pois, de estranhar, de um lado, que o BPI não tenha concluído o processo de financiamento da aquisição do prédio por parte dos demandantes por considerar que as obras existentes no prédio não estavam licenciadas (cf. folhas 399) e, de outro lado, que a própria Câmara Municipal de Loulé tenha proferido despacho a determinar a demolição da obra (cf. folhas 124 e seguintes do anexo a estes autos) por a mesma ser insuscetível de licenciamento.
É evidente que o arguido não podia deixar de ter conhecimento de todos estes factos. Ainda assim, negociou com os demandantes a venda do prédio, o preço, o sinal e a data da realização da escritura pública de compra e venda, nunca lhes tendo referido que o prédio se localizava num espaço agrícola de uso predominantemente agrícola. Para além disso, o arguido não poderia deixar de saber que no prédio não existia qualquer ruína (o que é claramente atestado pelos ortofotomapas juntos ao mesmo anexo (v.g. folhas 104 e, com maior detalhe, folhas 78 e seguintes do citado anexo).
É, pois, inevitável concluir que o que o arguido pretendia era vender a propriedade aos demandantes, levando-os a pagarem o preço apesar de o arguido saber que as edificações existentes no prédio eram ilegais e tinham que ser demolidas.
Tendo em conta todos os meios de prova que se vêm analisando, é igualmente evidente que as declarações dos demandantes merecem inteira credibilidade. De um lado, revelaram-se claras, precisas, completas e isentas de contradições. De outro lado, as declarações em causa são concordantes com os meios de prova documentais analisados. Por tais motivos, o Tribunal acolheu a versão que os demandantes trouxeram a juízo.
Já as declarações do arguido e de seu filho (...) não merecem credibilidade. Estes apenas revelaram factos verdadeiros na parte em que inevitavelmente tinham que os reconhecer: que foi feito o contrato promessa (está provado documentalmente, estando as assinaturas reconhecidas, tal como se extrai de folhas 395 e 396); que foram pagos € 30 000,00 (está igualmente demonstrado documentalmente com certidão dos cheques, do seu depósito e da identificação dos titulares da conta em causa (folhas 426 a 428 e 429 e seguintes); que entregaram aos demandantes (e ao notário) a certidão que constitui folhas 226 e que foi marcado o local, dia e hora para a realização da escritura, a qual não se chegou a realizar (factos também estes demonstrados documentalmente – folhas 237). Em tudo o mais, as declarações do arguido e o depoimento de (...) são falsos por serem contraditórios em si mesmos e ainda por serem incompatíveis com a demais prova documental. No que a este particular se refere, já se deixou analisada a prova documental e o que dela se pode (e deve extrair).
As declarações do arguido denunciam a sua falta de credibilidade.
Desde logo, o arguido assumiu que foi ele próprio quem adquiriu o prédio identificado no processo aos anteriores proprietários. Todavia, “registou o prédio em nome do filho por conveniência sua”. Não explicou tal conveniência. De qualquer modo, fica a nota de que o arguido é que adquiriu o prédio. De outro lado e tal como foi afirmado pelo arguido, foi este quem decidiu vender o prédio. O filho limitou-se a concordar… De outro lado, o arguido afirmou que no prédio havia uma edificação antiga (com muros de cerca de meio metro de altura). Tal edificação, a existir, tinha que ser visível nos ortofotomapas. Todavia e como se pode ver da sua consulta, no local não havia qualquer edificação. Ainda que assim não fosse, sendo o arguido um industrial da construção civil, não podia o mesmo deixar de saber que, antes de reconstruir ou construir no local onde havia a edificação antiga, deveria diligenciar pelo registo de tal construção e certificar a sua existência, antes de a demolir e construir uma nova obra no seu local.
O depoimento de (...) é igualmente inverosímil na parte não referida supra. Com efeito, começou por referir que acompanhou todas as negociações tendentes à venda do prédio aos demandantes. Mas reconheceu que a primeira vez que os viu foi no dia da assinatura do contrato-promessa. Isso significa (apenas pode significar) que a testemunha não assistiu a qualquer negociação. Apenas surgiu em todo este processo para – tal como referiu (…) – assinar o contrato-promessa.
Por tudo quanto se vem expondo, impõe-se ao Tribunal julgar provados os factos que, como tal deixou descritos.
Não se olvida que o arguido e seu filho afirmaram que o prédio acabou por ser vendido a outras pessoas com recurso aos mesmos documentos, designadamente a já várias vezes referida certidão de folhas 226.
Tal facto é verdadeiro e comprova-se pelo teor do documento que constitui folhas 227 e seguintes. Verifica-se, pois, que o prédio foi vendido sem que tenha sido apresentada qualquer licença de utilização, tendo antes sido apresentada a falada certidão de folhas 226. Ou seja, a venda é nula e o despacho da Câmara Municipal de Loulé que determina a demolição da obra mantém-se eficaz independentemente da alienação do prédio.
Importa, por fim, fundamentar a decisão de facto no que concerne à autoria dos factos. É certo que o prédio em causa nos autos foi registado em nome de (...) filho do arguido [cumprindo também salientar que o registo de tal aquisição apenas foi feito por apresentação do dia 17 de agosto de 2009 (folhas 422, apresentação 3290), sendo certo que a alteração do prédio de rústico para urbano apenas ocorreu na sequência da apresentação de 28 de outubro de 2010 (folhas 421, apresentação3104), data em que foi vendido a (…) e esposa, (…) (folhas 422, apresentação 3104)]. Todavia, cumpre ter presente que o arguido afirmou que foi ele próprio que adquiriu tal prédio, apesar de o ter feito “por conveniência” em nome do filho. De outro lado e como já referido, foi o arguido que – tal como ele próprio o afirmou – decidiu vender o prédio.
Por outro lado, foi com o arguido que os demandantes negociaram a compra da casa (com ele definiram o preço e os demais elementos essenciais do negócio). Depois da assinatura do contrato-promessa e até à data da realização da escritura pública, era com o arguido que os demandantes falavam, foi o arguido que lhes pediu mais dinheiro (€ 2 000,00) para fazer face a despesas relacionadas com a “legalização” das edificações implantadas no prédio, foi com ele que os demandantes tentaram renegociar o contrato, dando-o sem efeito contra a devolução, por parte do arguido, do dinheiro que deles tinha recebido.
Diversamente, (...) teve o primeiro contacto com os demandantes no dia da assinatura do contrato-promessa e logo ali afirmou – tal como referido por (...) – que só ali estava para assinar o contrato e tudo o resto deveria ser tratado com o seu pai. Depois de tal episódio, (...) apenas surge no dia marcado para a realização da escritura. Depois de tal data, o arguido referiu aos demandantes que deveria tratar de todos os assuntos com (...). Mesmo nos procedimentos tendentes a tentar legalizar as construções, (...) afirmou que se limitava a assinar tudo o que lhe davam para assinar… nada mais.
Em conclusão: o arguido, que sabia da insusceptibilidade de legalização das edificações, é que tinha o domínio do prédio prometido vender; tomou a decisão de vender; definiu os termos do negócio. Tendo definido – em conjunto com os demandantes – o valor do sinal e tendo-os convencido a entregarem-lhe, além dos € 30 000,00, mais € 2 000,00, é evidente que o arguido é que foi o agente dos factos referidos na factualidade apurada (sem prejuízo da pontual e necessária intervenção do seu filho). Note-se que (...), na data dos factos, tinha 24 anos e era estudante de engenharia.
No que tange aos factos não provados, o decidido funda-se nos meios de prova atrás analisados, de onde decorre que os mesmos não ocorreram, ou da circunstância de o Tribunal ter julgado provados factos incompatíveis com os que o Tribunal julgou provados ou ainda na circunstância de nenhum meio de prova se ter produzido sobre os mesmos (como é o caso do facto descrito em IV).
Relativamente aos factos da vida pessoal, familiar e económica do arguido, o decidido funda-se essencialmente nas suas próprias declarações.
No que tange aos antecedentes criminais do arguido, foi decisiva a análise do seu certificado do registo criminal.»

***

B.2 - Cumpre conhecer.

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 (in D.R., I-A de 28/12/95).

Os recorrentes levantam no recurso da decisão final as seguintes questões:

- em A) o despacho de arquivamento que não poderia renascer noutro processo;
- em B) os factos novos que a acusação não indica;
- em C) a afirmação de que não ficaram provados alguns dos factos dados como provados e o uso de prova não legal;
- em C1) que as anteriores condenações do arguido não podiam ser valoradas;
- em D) a dupla condenação e a contradição entre o fundamentado e o decidido quanto à parte cível.

O que, no essencial corresponde à sistematização proposta pelo Exmº P.G.A.:

1- Extinção do procedimento criminal por existência de decisão prévia de arquivamento em outro inquérito instaurado contra o arguido sobre os mesmos factos – nulidade do Acórdão – artº 379º nº 1 c) do CPP.
2 – Impugnação da matéria de facto.
3 – Erro notório decorrente do conhecimento do CRC do arguido que deveria estar cancelado, o que também implica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP
4 – Existência de uma dupla condenação decorrente do cumprimento da condição e do pagamento da indemnização.
5 – Existência de contradição insanável na fundamentação.


*

*


B.2.1 – Do recurso interlocutório

Antes do mais, no entanto, haverá que esclarecer a matéria referente ao recurso interlocutório interposto pelo recorrente e que tinha, impõe-se rememorar, as seguintes questões excepcionais ou processuais:

a) A exceção do caso julgado, argumentando que o ora arguido já foi ilibado no processo 570/11.8TALLE, tendo o inquérito sido arquivado, sem que tivesse sido requerida a abertura da instrução, pelo que há violação do “ne bis in idem”;
b) A extinção do direito de queixa, alegando que o direito de queixa exercido nos presentes autos ocorreu cerca de três anos depois do arquivamento do inquérito supra referido;
c) A insuficiência da acusação onde o arguido invoca que da acusação não constam todos os factos necessários à verificação do dolo, o que a torna nula ao abrigo do preceituado no artigo 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal.

Se as duas primeiras questões se inserem claramente na noção de “questões prévias ou incidentais”, já a última diz respeito aos factos e sua falta. As duas primeiras foram resolvidas no dito despacho prévio à pronúncia, sendo a última apenas conhecida no despacho de pronúncia.

Como é evidente todas estas questões deveriam – seria uma metodologia muito mais adequada, pois que é isso o pretendido pelo legislador penal – ter sido todas conhecidas no despacho de pronúncia/não pronúncia e não num despacho prévio à admissão do requerimento de abertura da instrução. Em bom rigor o Sr. Juiz de instrução criminal só estaria em condições para conhecer da totalidade das questões – mesmo as prévias e incidentais - depois de aberta a instrução e praticados todos os actos probatórios que se impusessem.

Mas todas elas brigam com a substância criminal da pretensão de sujeição a julgamento. Todas determinam a pronúncia ou não pronúncia do arguido. E todas, estão a coberto da previsão do artigo 310.º, nº 1 do C.P.P. que determina que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”.

Mas é claro que todas deveriam ter sido decididas a final no mesmo despacho, não só porque processualmente mais adequado, mas também porque o despacho de admissão/rejeição da instrução não é um “despacho saneador” em processo civil onde se devam conhecer das nulidades, excepções dilatórias ou peremptórias, à moda do processo civil.

Isto arrasta por consequência uma outra muito mais relevante noção: as três questões não podem ter diverso tratamento em sede de aceitabilidade de recurso.

E desde logo porque as duas questões “prévias ou incidentais” poderiam/deveriam ter sido conhecidas pelo despacho de pronúncia/não pronúncia, mesmo que “conhecidas” anteriormente. Quer uma quer outra decisão – sobre o “caso julgado” e sobre a “extinção do direito de queixa” - não formaram caso julgado formal e, se constatado em acto probatório de instrução posterior facto que demonstrasse a sua existência, deveriam ter sido objecto de conhecimento integral, incorporando-se no despacho de pronúncia/não pronúncia.

Isto porque quer a existência de factos, quer a inexistência de caso julgado, quer por fim a não extinção do direito de queixa, formam a razão de ser global do despacho de pronúncia. Assim como a inexistência de factos, a extinção do direito de queixa ou a existência de caso julgado, formariam a integral substância de um possível despacho de não pronúncia.

Porque só assim se evitaria o desconchavo processual que é a existência de um despacho de pronúncia que considerou existentes factos criminosos - e, necessariamente, inexistência de caso julgado e de extinção da queixa - não passível de recurso por lei expressa, ainda ter pendente um recurso interlocutório que tem como pressupostos, requisitos que pela negativa conduziram a uma pronúncia.

Tudo porque se aceitou como certa a ideia de que um despacho formalmente prévio à pronúncia mas que nesta necessariamente se deveria integrar, pode ser objecto de recurso, contrariando lei expressa.

Logo, em rigor, o recurso interlocutório deveria ter sido objecto de despacho liminar de rejeição. Mas, em bom rigor, o despacho recorrido deveria ter sido integrado no despacho de pronúncia.


*

B.2.2 – Não tendo sido, resta constatar duas realidades.

A primeira, que aquilo que sobra desse recurso interlocutório é a invocação de “caso julgado” e de “extinção do direito de queixa”. Ambas as ideias são em termos de substância facilmente rebatíveis.

O “caso julgado” é uma figura essencialmente jurisdicional e a vertente processual do ne bis in idem (O “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” do artigo 29º, nº 5 da CRP) é claramente não aplicável ao caso dos autos.

De facto «O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 303/2005.

Ora, o arguido não foi nem absolvido nem condenado por decisão anterior. Ideia base: um despacho de arquivamento do Ministério Público em inquérito não forma caso julgado, pela razão simples de não ser uma decisão jurisdicional e não transitar em julgado.

Deduzida a acusação depois de recolhidos novos elementos de prova de quem é o seu autor, isso não constitui violação do ne bis in idem.

Quanto à extinção do direito de queixa é por demais evidente que a argumentação do recorrente assenta numa petitio principii, o de que a natureza semi-pública do crime de burla simples se estende a todos os tipos penais de burla.

Está de há muito consagrado na doutrina e na jurisprudência que os tipos penais de burla contidos no artigo 218º do Código Penal são tipos penais autónomos e qualificados relativamente ao tipo base previsto no artigo 217º. Não se trata pois, de mera “agravação da pena” como afirma o recorrente - Vide, Almeida e Costa, in “comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. II, em anotação aos artigos 218 e 204º do Código Penal.

Logo, a sua natureza é a de um crime público e o determinante é que assim o arguido veio acusado e assim foi condenado. E, portanto, sempre o recurso interlocutório seria improcedente.

Mas a decisão sempre terá que ser outra!


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B.2.3 – A segunda realidade prende-se com a circunstância de o recorrente ter provocado uma segunda decisão por parte do tribunal recorrido relativamente às mesmas matérias que já havia suscitado no requerimento de abertura de instrução (RAI). Agora em audiência de julgamento, designadamente em contestação. E isso tem um preço.

Se relativamente às questões de fundo, essas são abrangidas pela decisão final de fundo e, portanto, devem ser objecto de recurso da decisão final, já as questões prévias e incidentais ressuscitadas pelo recorrente após a pronúncia e após o seu próprio recurso, voltaram a ser colocadas, agora ao tribunal de julgamento, uma diversa orgânica judicial, o colectivo que realizou o julgamento.

A sequência temporal é clara. Ao JIC o recorrente requereu em RAI de 09-09-2019 a declaração de obstáculos à pronúncia, decididas em despacho de 14-11-2014 e recurso interlocutório a 03-01-2020. Em 04-09-2020 o arguido volta a suscitar a questão em contestação, que foi objecto de decisão a 14-12-2020 no acórdão final.

Ou seja, há decisão posterior ao recurso que aborda as mesmas duas questões - caso julgado e extinção de direito de queixa – de que o arguido não recorreu em recurso da decisão final.

Como é evidente essas duas questões – que sempre seriam improcedentes por inexistência – viram a referida decisão integrada no acórdão final a formar caso julgado formal sobre a sua declaração de inexistência por não terem sido objecto de recurso da decisão final. E, como tal, a impedir atribuir qualquer efeito útil ao recurso interlocutório por mero efeito de acto do arguido – a contestação a provocar nova pronúncia sobre os temas que tinham sido objecto de recurso – assim tornado inútil de forma superveniente.

E, por essa razão é o dito recurso interlocutório de rejeitar.


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B.3 – Do recurso da decisão final

B.3.1 – Regressando ao recurso da decisão final e à delimitação do seu objecto deparamo-nos com uma indeterminação quanto a conceitos e matérias que se pretendem ver tratadas que se impõe esclarecer.

Desde logo convém tornar claro que existe uma clara diferenciação entre os conceitos de “nulidade de sentença” e “vícios de facto” que o recurso parece aglutinar de forma sequencial, já que se repete o mesmo raciocínio em vários pontos das conclusões da seguinte forma: «tal erro, como os restantes constantes do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.Penal, são do conhecimento oficioso, verificando-se, deste modo, a nulidade da sentença, constante do artigo 379.º, n.º 1 al. c) do C.P.Penal.»

Ora, é claro o artigo 379 al.ª a) do Código de Processo Penal ao determinar que é nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Essas nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, ou – caso não as possa suprir - determinando a sua nulidade total ou parcial com regresso dos autos ao tribunal recorrido para que seja lavrada nova sentença expurgada da nulidade. E sem necessidade – em regra - de regresso dos autos à fase de audiência de julgamento e/ou de produção de prova.

Certo também é que uma nulidade da sentença nunca gera – por si só e de forma automática – a extinção do procedimento criminal contra o arguido, como se afirma na conclusão A.6.

Já os vícios de facto podem integrar-se em duas categorias processuais, os contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou os erros de julgamento que podem ser invocados via impugnação factual à luz do artigo 412º, ns. 3 e 4 do C.P.P..

Seja por uma via (vícios de conhecimento oficioso), seja pela outra (erros de julgamento), devem ser conhecidos ou pelo tribunal de recurso, se for possível conhecer do vício, ou por reenvio total ou parcial para o tribunal recorrido (artigo 426º, nº 1 do C.P.P., aplicável a ambas as hipóteses).

Em breve, nem as nulidades de sentença geram ou tês origem em vícios de facto, nem os vícios de facto geram nulidade de sentença.

Por outro lado convém esclarecer que uma coisa é o uso de prova proibida, outra radicalmente diversa é a aplicação de regras de produção probatória.

O recorrente vem nas suas conclusões B.6 e C.5 invocar o disposto no artigo 340º do C.P.P. quer quanto a umas declarações do arguido, quer quanto a uma carta do BPI, esta nos seguintes termos: «5.- No que se refere carta do BPI, para além do facto da mesma não tenha sido feita prova, em sede de audiência de julgamento, em obediência ao artigo 340.º, n.º 1 do C.P.Penal, para que a mesma pudesse ter sido considerado meio probatório legal e assim, objecto de ponderação probatória, para efeitos de sentença;».

Como afirmámos no acórdão desta Relação de 24-05-2011, no processo nº 846/08.1TASTR.E1, de que fomos relatores, (1) “a obrigação (poder/dever) imposta ao tribunal pelo artigo 340º do Código de Processo Penal de conhecer das provas que conduzam à verdade material e, logo, à boa decisão da causa, está sujeita a um critério inultrapassável, o da necessidade da sua produção. (2.) Essa necessidade pode ser evidente ou aparente pela própria análise casuística das provas produzidas ou a produzir em função dos factos que se impõe apurar face à integração jurídica a efectuar, sempre balizada pelo objecto do processo. (3.) Se esse critério da necessidade não resultar evidente ou aparente por uma análise projectiva, cabe ao interessado na sua produção convencer o tribunal da sua existência”.

Ora, no caso o recorrente não suscitou ao tribunal recorrido qualquer questão probatória a inserir na previsão do artigo 340º do C.P.P., não justificou as necessidades agora invocadas, pelo que o tribunal recorrido não poderia adivinhar que o recorrente entendia estar a ocorrer uma violação do artigo 340º do C.P.P..

Entendendo o recorrente que existia uma violação às regras de produção probatória ou falta de elementos probatórios, incumbia-lhe requerer em conformidade. Indeferida a pretensão, incumbia-lhe a interposição de recurso interlocutório por violação das regras de produção probatória.

O que não podia o arguido fazer era, sem colocar o problema, reservar-se para o recurso da decisão final para vir invocar a violação das regras de produção de prova (mesmo que lhes chame nulidades, o que obviamente não são) sem que o tribunal recorrido tenha sido confrontado com a questão e a tenha decidido.

Desta forma as questões suscitadas pelo recorrente acabam por ser questões relativas à prova nas quais o recorrente pretende pôr em causa a apreciação probatória, mas sem sucesso por inexistir impugnação factual.


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B.3.2 – Não só pelo exposto supra em B.2.3 mas também porquanto um inquérito não é algo que finde de forma definitiva quando da prolação de um despacho de arquivamento, a tese do recorrente de que o despacho de arquivamento da Srª Procuradora corresponde a um fim inexorável do procedimento não tem sustentáculo bastante.

E para tanto basta atentar no artigo 279.º n. 1 do C.P.P. que claramente determina que o inquérito pode “ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”.

E, neste ponto, não vemos razão alguma para distinguir os regimes contidos nos ns. 1 e 2 do artigo 277 do diploma. Se os “novos elementos de prova” invalidarem os fundamentos do arquivamento, o inquérito pode ser reaberto, seja qual for a causa do arquivamento.

E foi o que ocorreu nos autos: novos elementos probatórios demonstraram que o inquérito deveria ser reaberto. Mas isso não implicava “reabrir o mesmo processo” no sentido literal, pois que a extracção de certidão de peças processuais e a sequente dedução de acusação são uma via possível para “reabertura do inquérito” em sentido substancial, para se obter a sujeição do arguido a julgamento.

Logo, a pretensão de que o despacho da Srª Procuradora a arquivar o inquérito antes da recolha de novos elementos probatórios é algo de definitivo e irreversível é infundada e não se pode entender como definitivo o arquivamento do processo.

Aliás, o próprio termo utilizado pelo recorrente é elucidativo da sua pretensão e, igualmente, da sua ausência de razão. Não por acaso o recorrente usa a expressão «o arguido foi “ilibado” pelo despacho da Srª Procuradora no processo nº 570/11.8TALLE», referindo-se a um despacho de arquivamento, obviamente reversível face a novos elementos probatórios e que nunca poderia corresponder a uma ilibação, uma absolvição.

E isto responde à questão suscitada pelo recorrente no ponto A) supra referido.


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B.3.3 – A resposta à questão igualmente colocada em B) aquilo a que o recorrente chama «os “novos factos” contra o arguido resultantes da audiência de julgamento no processo nº 570/11.8TALL» são um falso conceito, deslocado porquanto importados de um outro instituto e que aqui são esgrimidos de forma menos adequada.

É sabido que, deduzida a acusação e a defesa, se fixa o objecto do processo, que não pode ser ultrapassado e que tem que ser esgotantemente conhecido. Mas isto supõe uma fixação dos factos através da acusação, factos esses que seguem depois um rígido regime de alterações possíveis.

Ora, o recorrente está a importar esse conceito e essas regras para o inquérito, antes de ser deduzida acusação. Está a pretender antecipar o regime de não alteração dos factos após a dedução da acusação para um momento e numa fase processual anterior, onde não existe acusação. O que corresponde a pretender limitar o objecto do inquérito.

Como é evidente a magia está na equiparação destes “novos elementos probatórios” que indiciam o crime praticado pelo arguido ao conceito de “factos novos” que não existem ainda, por ainda não ter sido deduzida acusação.

Com o acrescento de tais “factos novos” serem enquadrados pelo recorrente num novel e original regime processual que obriga a que os “factos novos” que não existem e que são meros indícios suplementares de um outro processo, terem que ser descritos num processo diverso, independentemente – ao que parece – da acusação que aqui foi deduzida. Notável!

Ou seja, baqueia a pretensão exposta no ponto B).

Quanto à possível pretensão do recorrente na alteração dos factos provados resta afirmar que o recorrente não impugnou especificadamente os factos provados nem demonstrou a existência de qualquer vício de erro notório na apreciação da prova, pelo que resta passar ao ponto seguinte.


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B.3.4 – Garante o recorrente no seu ponto C) que não ficaram provados factos que foram dados como provados e que houve uso de prova ilegal.

Como se asseverou em 2.3.1 os vícios de facto podem integrar-se em duas categorias processuais, os contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou os erros de julgamento que podem ser invocados via impugnação factual à luz do artigo 412º, ns. 3 e 4 do C.P.P..

É imperativo que aclaremos para que serve um recurso penal em matéria de facto, já que essa é a pretensão do recorrente, sendo certo que apresentados como foram são mero sonho processual. Para tal desiderato três artigos do Código de Processo Penal são essenciais para esclarecer a matéria.

O primeiro é o artigo 431.º sobre a “Modificabilidade da decisão recorrida” que afirma expressis verbis que:

«sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.»

Não havendo lugar a renovação da prova e sendo o primeiro requisito [a al. a)] um óbvio pressuposto e necessidade, resta apreciar as duas hipóteses colocadas como essenciais: o disposto no artigo 410º e a impugnação a que se refere o artigo 412º, nº 3, ambos do C.P.P..

E note-se que o artigo é vinculativo no sentido de dever ser interpretado como dizendo “a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se ocorrer um dos casos previstos no artigo 410º ou se o recorrente impugnar nos termos previstos no artigo 412º, nsº 3 e 4 do diploma”.

Ou seja, a invocação de “violação do princípio da livre apreciação da prova” serve de nada se não ocorrer uma das indicadas vias pois que essa invocação só serve para apelar a um princípio geral de apreciação probatória a inserir numa dessas duas vias. Isto é, contrariamente ao que já aconteceu noutros ramos da actividade humana, não há aqui uma “terceira via”.

Concretizando, o recurso sobre matéria de facto apresenta duas formas de apelo, subdividindo-se pela invocação dos chamados “vícios da revista alargada” e que estão previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e que são: a) - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) – o erro notório na apreciação da prova.

Para validamente invocar tais vícios o recorrente só tem que demonstrar a sua existência por simples referência ao texto da decisão recorrida, fazendo apelo à racionalidade e às regras de experiência comum. Não necessita de apresentar prova. Aliás, se tiver que o fazer já não está a invocar este tipo de vício mas sim um vício de facto a exigir impugnação e, por isso, o cumprimento do regime do artigo 412º.

Desta forma ao recorrente pede-se apenas a sua alegação, o mais concreta e precisa possível, mas mesmo que o não faça o tribunal pode suprir tal deficiência pois que estes vícios “notórios” são de conhecimento oficioso. E são-no porque são os vícios extremos de uma decisão judicial e, em absoluto, não são tolerados pela ordem jurídica. Se a sentença apresenta um destes três vícios tem que ser alterada.

Coisa substancialmente diversa se passa com os vícios de facto que não sejam notórios, que se limitem a ser erros de apreciação probatória mas que não sejam patentes, óbvios, pela simples leitura da decisão. Implicam, para nos apercebermos deles, que seja apresentada (indicada em recurso) prova que os demonstre. Aqui já o recorrente tem que apontar de forma especificada e concreta erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Trata-se da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Aqui já ao recorrente se impõe o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, não lhe basta alegar que o vício existe, tem que o identificar muito clara e concretamente por referência ao facto concreto (provado ou não provado), tem que dizer qual a prova que demonstra a existência do erro e tem que – pela racionalidade – demonstrar que esse erro implica necessariamente que a prova tem que ser apreciada de forma diferente.

Firmou-se doutrina e jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus de impugnação especificada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 que veio consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação:

«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Podemos portanto concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:

- A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
- A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
- Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
– Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E aqui o impõe significa “impõe” e não apenas “permite”, “possibilita” ou “consente”.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Em concreto o recorrente não cumpre qualquer dos requisitos de impugnação à luz da previsão do artigo 412º do C.P.P.. Não indica os factos que se integram numa eventual impugnação, nem indica especificadamente prova que pretenda sustentar essa sua impugnação e não faz a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal) nem, alternativamente, identifica a transcrição das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

De outra banda não demonstra a existência de vícios de facto a inserir na previsão do nº 2 do artigo 410º do C.P.P..

As razões indicadas de C)1 a C)4 não têm a virtualidade de alterar o decidido pois que mesmo a atender a esses factos o crime de burla pode subsistir através do uso de terceira pessoa. A razão indicada em C)5 é a mera invocação de incumprimento de uma regra de produção probatória que o recorrente não suscitou em devida forma e tempo. Ambas, não têm a virtualidade de demonstrar uma errada apreciação probatória.

Não há, pois, uma contradição entre a fundamentação e a decisão nem, muito menos, uma nulidade de sentença.


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B.3.5 – Assevera o recorrente no ponto C1) que as anteriores condenações do arguido não podiam ser valoradas. O argumentário do recorrente assenta nos seguintes considerandos:

Constituindo, uma clara violação ao artigo 11.º da referida Lei 37/2015 de 5 de Maio, a consideração e valoração de tais antecedentes criminais, do arguido na sentença, constitui um erro notório na apreciação da prova;
Deste modo, tal erro, como os restantes constantes do artigo 410.º,n.º 2 do C.P.Penal, são do conhecimento oficioso; (…)

Para além de ser evidente que não estamos perante um “erro notório na apreciação da prova” mas, quando muito, perante o uso de um elemento de prova ilícito, certo é que a sentença a esses antecedentes se refere pelo que se imporá determinar a sua natureza jurídica e o alcance concreto que lhe foi dado pela decisão, que é como quem diz, se o tribunal considerou tais antecedentes como elemento definidor da pena e seu regime em termos desfavoráveis.

A informação constante do registo criminal só pode constitui um meio de prova e o seu cancelamento constitui uma «verdadeira proibição de prova» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 645/646).

E assim sendo os registos cancelados não podem produzir efeitos nocivos para o arguido. Resta saber se tal ocorreu em concreto, isto é, se a decisão recorrida usou registos cancelados para determinar um mais gravoso regime penal ou processual para o arguido.

Nem o recorrente apresenta o uso de registos cancelados nem demonstra um regime nocivo em concreto.

Bem ao invés, aquilo que se mostra claramente espelhado no acórdão recorrido – para além de uma referência genérica às necessidades de prevenção especial que se mostra inócua a esse respeito – é que o tribunal recorrido afastou tais antecedentes como elemento nocivo na determinação da pena concreta aplicada. Note-se o seguinte trecho fundamentador:

Sem prejuízo do que se deixou dito supra relativamente aos antecedentes criminais do arguido, importa reconhecer que o mesmo nunca foi condenado em pena de prisão nem pela prática de crimes de burla, sendo ainda certo que os crimes pelos quais foi condenado referem-se a factos cometidos há muitos anos.
Ponderando todas estas circunstâncias, entende-se que é ainda possível fazer um prognóstico favorável no que à reintegração social do arguido diz respeito, sendo, pois, de acreditar a censura do facto e a ameaça da pena realizam os fins das penas.

Não se demonstra, pois, uso indevido de inscrições no registo criminal.


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B.3.6 – Atesta o recorrente no seu último ponto de inconformidade que:

«D).- O acórdão, na sua parte final, condena o arguido a:
1. - “Depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), devendo depositar até ao final de cada ano (a contar da data do trânsito julgado do presente acórdão) a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) valores que o Tribunal entregará às vítimas;”
2.- E ainda, em sede cível, o demandado arguido foi condenado a pagar os demandantes: - “a quantia de € 32.000.00 (trinta dois mil escudos), acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal sobre a quantia de € 30.000,00 desde de 7 de julho 2009 e sobre a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado até integral pagamento;”
3.- O que no fundo representa um condenação ao arguido do pagamento de €.62.000,00 ( sessenta dois mil euros);
4.- A presente condenação cível do arguido, representa o dobro do valor de sinal, que os ofendidos demandados pagaram ao filho do arguido;
5.- Para além de contrariar, o que o acórdão da sentença, fundamenta, na sua análise sobre o pedido cível a fls.30 da sentença, cujo o teor que aqui se dá aqui reproduzido;
5.1.- Aonde se realça: - “(…) Trata-se contudo, de uma consequências jus-civis do incumprimento culposo do contrato. Todavia, como, se viu, no processo-crime, a indemnizar a fixar prende-se apenas com reparação dos danos causados ao lesado e que são emergentes do crime e não outros. Como tal, nesta parte, deverá improceder o pedido de indemnização civil.” - ;
6.- O acórdão, na fundamentação, entende que, não há direito ao dobro do sinal, na medida em que, os danos causados são emergentes do crime;
7.- Contrariando a sua fundamentação, pelos mesmos factos vem condenar o arguido no pagamento no dobro do sinal;»

Como é evidente trata-se de deficiente leitura da decisão recorrida pois que o acórdão é claro no ponto 3 da condenação (parte cível) do recorrente a pagar aos demandantes a quantia de € 32 000,00 (trinta e dois mil euros) acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal sobre a quantia de € 30 000,00 desde o dia 7 de julho de 2009 e sobre a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros) desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado até integral pagamento.

O que consta do ponto 2 da condenação (parte crime) é, apenas, a imposição de condições resultantes do regime de suspensão da pena, como aliás ali expressamente se afirma [Suspender na sua execução (por aplicação do regime penal em vigor na data da prática dos factos) a referida pena de prisão pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses mediante as seguintes condições”].

Desta forma o arguido está condenado a pagar a quantia de € 32 000,00 (trinta e dois mil euros) a que foi condenado na parte cível devendo, dessa quantia, como condição penal, «depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros), devendo depositar até ao final de cada ano (a contar da data do trânsito em julgado) a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros), valores que o Tribunal entregará às vítimas

Trata-se, apenas, de uma só condenação parcialmente sujeita a condições penais de cumprimento parcelar da referida condenação. Não existe, portanto, dupla condenação ou qualquer contradição insanável da fundamentação com a respectiva decisão.


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C - Dispositivo

Assim, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:

- Rejeitar o recurso interlocutório;

- Negar provimento ao recurso interposto da decisão final.

Custas pelo arguido com 5 (cinco) UCs de taxa de justiça.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 07 de Setembro de 2021

João Gomes de Sousa

António Condesso