Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO CASO JULGADO BURLA AGRAVADA PROVAS RECURSO REGISTO CRIMINAL MEIOS DE PROVA | ||
Data do Acordão: | 09/08/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - Um despacho de arquivamento do Ministério Público em inquérito não forma caso julgado, pela razão simples de não ser uma decisão jurisdicional e não transitar em julgado. Deduzida a acusação depois de recolhidos novos elementos de prova de quem é o seu autor, isso não constitui violação do ne bis in idem. 2 - Os tipos penais de burla contidos no artigo 218º do Código Penal são tipos penais autónomos e qualificados relativamente ao tipo base previsto no artigo 217º, pelo que a sua natureza é a de um crime público. 3 - Se o recorrente não suscitou ao tribunal recorrido qualquer questão probatória a inserir na previsão do artigo 340º do C.P.P., não justificando as necessidades invocadas no recurso, não poderia o tribunal recorrido adivinhar que o recorrente entendia estar a ocorrer uma violação do artigo 340º do C.P.P.. Entendendo o recorrente que existia uma violação às regras de produção probatória ou falta de elementos probatórios, incumbia-lhe requerer em conformidade. Indeferida a pretensão, incumbia-lhe a interposição de recurso interlocutório por violação das regras de produção probatória. O que não podia o arguido fazer era, sem colocar o problema, reservar-se para o recurso da decisão final para vir invocar a violação das regras de produção de prova (mesmo que lhes chame nulidades, o que obviamente não são) sem que o tribunal recorrido tenha sido confrontado com a questão e a tenha decidido. 4 - O registo criminal constitui um meio de prova e o seu cancelamento uma «verdadeira proibição de prova». Mas tal só constitui nulidade probatória se, em concreto, a decisão o utiliza para agravar a posição do arguido. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: No Tribunal Judicial de Faro - Juízo Central Criminal de Faro, J 5 - correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual foi acusado, (…) sendo-lhe imputada a prática dos factos descritos na acusação (para a qual remete integralmente o despacho de pronúncia de folhas 333 e seguintes) que constitui folhas 176 e seguintes, os quais eram suscetíveis de integrar a prática pelo arguido, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º, n.º 1, e 218º, n.ºs 1 e 2, alínea a), ambos do Código Penal. * (…), ambos com os demais sinais identificadores constantes dos autos, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 63 714,00, acrescida de juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano, se vencerem desde a notificação do pedido de indemnização civil ao arguido até integral pagamento. O montante líquido do pedido corresponde ao dobro do valor entregue pelos demandantes ao demandado a título de sinal e aos juros de mora vencidos. ª O arguido requereu em 09-09-2019 a abertura da instrução com os seguintes fundamentos, em súmula: a) A exceção do caso julgado, argumentando que o ora arguido já foi ilibado no processo 570/11.8TALLE, tendo o inquérito sido arquivado, sem que tivesse sido requerida a abertura da instrução, pelo que há violação do “ne bis in idem”; Sobre este requerimento de abertura da instrução de 14-11-2019 e sobre as questões da “excepção do caso julgado”, “extinção do direito de queixa” e “nulidade do inquérito” recaiu um despacho prévio à declaração de abertura de instrução onde o Mmº Juiz decidiu: No seu requerimento de abertura de instrução, veio o arguido invocar, entre o mais, a violação do princípio do caso julgado, bem como a extemporaneidade do direito de queixa. * No que concerne à extemporaneidade do direito de queixa, assiste razão ao Ministério Público. De facto, em sede de acusação mostra-se imputada ao arguido a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.°, n.º 1 e 218.°, ns 1 e 2, alínea a), ambos do Cód. Penal. Ora, embora o crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.° do Cód. Penal, dependa de queixa (vd. art. 217.°, n. 3), o mesmo não sucede quanto ao crime de burla qualificada. Assim, não dependendo o procedimento criminal de queixa, não se verifica a existência de qualquer prazo de caducidade. Deste modo, a queixa apresentada - que equivale, para todos os efeitos legais, a uma denúncia - é tempestiva, pelo que se indefere a arguida excepção. Notifique. * Relativamente à verificação da excepção do caso julgado, refere o arguido que os factos constantes do despacho de acusação foram já objecto de despacho de arquivamento, no proc. n. 570/II.8TALLE, do DIAP de Loulé. No âmbito de tal processo (cuja certidão se mostra apensa aos presentes autos), é possível verificar que, efectivamente, se investigaram exactamente os mesmos factos que se mostram descritos na acusação destes autos, tendo contudo a sua autoria sido imputada a (…) (filho do aqui arguido (...)). Assim, a fls. 521 a 522 de tal certidão consta a respectiva acusação contra (...). Por seu turno, o processo havia sido arquivado relativamente ao aqui arguido (...), por insuficiência de indícios, nos termos do art. 277.°, n. 2, do Cód. Proc. Penal, conforme se verifica do teor de fls. 517 e 518 da certidão junta. O arguido (...) veio a ser julgado no âmbito do proc. n." 570/11.8TALLE, tendo sido absolvido da prática dos factos, conforme melhor se verifica do teor de fls. 738 a 764 da respectiva certidão. Ora, na respectiva decisão sobre a motivação de facto consta o seguinte: "Ou seja, o que se provou nesta fase processual são efectivamente todos os factos relevantes e já constantes da acusação pública, para a qual remeteu o despacho de pronúncia mas com distinta autoria, ou seja, daquele contra que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito, o pai do arguido, sendo que, a prova, quer directa que por presunção probatória não permitem considerar como provados os factos atinentes à actuação do arguido, sendo de realçar que, pese embora, dos depoimentos prestados pelos demandantes resulte que, desde o ano de 2010 - portanto em momento muito posterior ao da celebração do contrato - o arguido tenha assumido um papel mais pro-activo nas negociações visando a celebração do contrato-prometido, tal não seria suficiente para que se valorasse esse comportamento como indicando que todo o actuar pretérito fosse de acordo com um plano e desígnio por si elaborado. " Do exposto resulta que foi apenas em consequência da produção da prova em julgamento - nomeadamente das declarações de (…) e de (...) que se chegou à conclusão que o autor dos factos era, na realidade, o aqui arguido. Embora o arguido refira que, com o despacho de arquivamento no proc. n. 570/11.8TALLE, houve lugar à cristalização da sua situação jurídico-penal, tal afirmação não corresponde inteiramente à realidade. Na verdade, conforme se refere no Venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Novembro de 2016, proc. n. 52/15.9 PEEVRE1, disponível in \vww.dgsi.pt, "apenas nos casos de arquivamento do inquérito abrangidos pelo n. 1 do artigo 277. ° do CP Penal é que há consolidação do decidido, não podendo ser reaberto o inquérito. Não se trata propriamente de "caso julgado" pois este respeita apenas a decisões de natureza jurisdicional, mas de um caminho paralelo. Tendo entendido o Ministério Público arquivar porque não se verificou um crime, ou porque o arguido não é o autor do crime ou porque é inadmissível o procedimento, não pode vir mais tarde, em nome da segurança e da certeza jurídicas, afirmar o contrário". Na situação em análise, conforme acima se aludiu, o arquivamento dos autos no proc. n. 570/11.8TALLE relativamente ao arguido deu-se nos termos do art. 277.°, n. 2, do Cód. Proc. Penal. Ora, a lei prevê, nos termos do art. 279.°, do Cód. Proc. Penal, que o inquérito possa vir a ser reaberto, desde que surjam "novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento". Assim, da leitura do normativo em causa desde logo se retira que o despacho de arquivamento por ausência de indícios não forma caso julgado, podendo haver lugar a nova análise caso haja elementos de prova posteriores que invalidem os fundamentos de tal arquivamento. No caso do proc. n. 570/11.8TALLE, tais novos elementos de prova corresponderam às declarações de (...) e de (...) que, conjugadas com os meios de prova existentes, permitiram àquele Tribunal firmar a convicção que havia sido o aqui arguido quem praticou os factos em apreço. Por conseguinte, seria sempre admissível a abertura do inquérito nos termos do art. 279.°, n. 1, do Cód. Proc. Penal. Sucede, todavia, que o proc. n. 570/l1.8TALLE prosseguiu para julgamento, em virtude de ter sido acusado (e pronunciado) um terceiro pela prática dos factos relativamente aos quais (...) foi objecto de despacho de arquivamento. Por conseguinte, o aludido processo deixou de se encontrar na fase de inquérito, sendo, por conseguinte, impossível proceder à sua reabertura nos termos do art. 279.° do Cód. Proc. Penal. Não obstante, poderia o Digno Magistrado do Ministério Público ter requerido a extracção de certidão do processado para instauração de novo inquérito contra o aqui arguido (em lugar da reabertura, que já não se mostrava possível), o que não fez. Ao invés, vieram os denunciantes apresentar nova queixa/denúncia, pelos mesmos factos, quanto ao arguido (...), substituindo-se assim a competência que incumbia ao Ministério Público. Poder-se-ia questionar a existência de eventual vício procedimental, no âmbito da legalidade processual, como fez o Venerando Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão de 11/03/2008, proc. n. 2846/07-1, disponível in www.dgsi.pt. Sucede, todavia, que por despacho de fls. 76, datado de 19/06/2017, a Magistrada do Ministério Público titular do inquérito ordenou a reabertura dos autos, nos termos do art. 279.°, n. 1, do Cód. Proc. Penal. Embora neste processo não pudesse, em rigor, haver lugar à reabertura de inquérito - já que o mesmo nunca foi encerrado - retira-se ainda assim do despacho em causa que o Ministério Público pretendeu reanalisar a investigação criminal quanto ao arguido (...). Assim, a questão do vício procedimental ficou sanada, já que a entidade competente para determinar a abertura de nova investigação quanto ao arguido (...) declarou expressamente pretender fazê-lo. Por todo o exposto, entende este Tribunal não se verificar a excepção de caso julgado, pelo que vai a mesma indeferida. Notifique. * Requerimento de abertura de Instrução de fls. 216 a 224: Em virtude de ter sido oportunamente requerida pelo arguido, mostrar-se legalmente admissível e não ser devido, no caso, o pagamento de qualquer taxa de justiça (art. 287.°, n. 3, do Cód. Proc. Penal e art. 8.° do Regulamento das Custas Processuais), declara-se aberta a fase de instrução - cfr. art. 286.° do Cód. Proc. Penal). Registe e autue em conformidade. (…) * Recurso interlocutório Na sequência deste despacho o arguido apresentou as seguintes conclusões em recurso interlocutório interposto em 03-01-2020: A).-l.- O critério legal, vamos encontrar no artigo 217. n. 3 do C. Penal, que. – “O procedimento criminal depende de queixa. “; * Respondeu o Digno magistrado do Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso. * Entretanto o arguido, em sede de audiência de julgamento, contestou a 04-09-2020 vindo a arguir novamente as nulidades e excepções já anteriormente decididas e objecto de recurso interlocutório, nos seguintes termos, para além de contestar a matéria crime e cível: I.- POR EXCEÇÃO: * Na sequência, no introito do acórdão lavrado a 04-12-2020, o tribunal recorrido veio a decidir sobre a matéria das excepções: «O arguido, contestando nos termos que se extraem de folhas 354 e seguintes, pugna pela sua absolvição (quer da pronúncia quer do pedido de indemnização civil), suscitando, muito em resumo e para o que aqui interessa considerar, as seguintes questões: * As questões suscitadas pelo arguido e enunciadas supra sob as alíneas a) a d) constituem questões prévias sobre as quais cumpre tomar posição desde já.Verifica-se que a maior parte das questões suscitadas pelo arguido na contestação foram por ele suscitadas no requerimento de abertura de instrução que constitui folhas 216 e seguintes, concretamente, a questão da exceção do caso julgado, a extinção do direito de queixa e aquilo a que o arguido, na contestação, chama de “insuficiência de inquérito” e que, no requerimento de abertura da instrução, apelidou de “nulidade da acusação”. As duas primeiras questões foram apreciadas no despacho que constitui folhas 245 e seguintes. A questão apelidada na contestação como “nulidade do inquérito” (e que, no requerimento de abertura da instrução, identificou como “nulidade acusação”) foi apreciada no despacho de pronúncia que constitui folhas 324 e seguintes. Nos dois despachos, foram as referidas questões julgadas improcedentes. No final – tal como se deixou enunciado supra -, o arguido foi pronunciado pelos mesmos factos e qualificação jurídica constantes da acusação. Dito de outro modo, das questões prévias suscitadas pelo arguido na contestação, apenas a (por ele) chamada “nulidade do inquérito” ainda não foi apreciada pelo Tribunal em nenhuma das fases do processo. Resulta do disposto no artigo 308º, n.º 3 do Código de Processo Penal que, até ao encerramento da instrução o juiz decide das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer. Por seu lado, o artigo 310º, n.º 1 do mesmo código preceitua que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (…) é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.” Esta regra sofre, contudo, uma (e apenas uma) restrição: o despacho de pronúncia não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas (n.º 2 do inciso legal citado). Em tudo o mais, o despacho de pronúncia, na parte em que conhece de exceções e questões prévias ou incidentais, transita em julgado e julga definitivamente as questões por ele julgadas (anote-se que o n.º 3 do artigo 310º citado não implica qualquer exceção ao princípio enunciado, apenas esclarece que o despacho que recair sobre a arguição de determinadas nulidades é recorrível). Neste sentido decidiu, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/06/2017 (publicado em www.dgsi.pt, processo 426/16.8PBCTB-A.C1, ao considerar que “tendo havido instrução, e sendo ali arguida a nulidade da acusação, que foi conhecida e indeferida, não pode ser arguida de novo tal nulidade para ser conhecida pelo juiz de julgamento”). E, contra, não se diga que este entendimento viola o direito de defesa plasmado no artigo 32º, n.º 5 do Constituição da República Portuguesa. Com efeito e tal como se decidiu no assento 6/2000, de 19/01/2020 (publicado no DR. I série A, n.º 56, de 07/03/2020), “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais.” Só no caso de o sujeito processual afetado pela decisão não recorrer da mesma é que se considera que a decisão transitou em julgado. Salienta-se que as questões suscitadas se prendem, todas elas, com vicissitudes do inquérito. Fora das situações especificamente previstas na lei, seria inconcebível que o arguido suscitasse uma determinada questão no inquérito, a voltasse a suscitar na instrução e, não obstante a questão ter sido apreciada e decidida em tais fases preliminares do processo penal, a mesma pudesse ainda ser suscitada na fase de julgamento. Pelo exposto, devem todas as referidas questões serem julgadas improcedentes, o que, adiante, se decidirá. Não deixa de se referir que a invocada extinção do direito de queixa não tem qualquer cabimento posto que o crime de que o arguido se encontra acusado (por referência ao disposto no artigo 218º, n.º 2, alínea a) do Código Penal) tem natureza pública, questão que é pacífica em toda a doutrina e jurisprudência, não merecendo qualquer outro desenvolvimento. Também a chamada “exceção do caso julgado” não merece provimento. Com efeito e tal como se refere no douto despacho de folhas 245 e seguintes (que se seguirá de perto), no âmbito do processo 570/11.8TALLE foram investigados exatamente os mesmos factos que se mostram descritos na acusação destes autos, tendo contudo a sua autoria sido imputada a (...), filho do aqui arguido (...) (cf. folhas 11 e seguintes e 49 e seguintes), de passo que o processo foi arquivado relativamente ao aqui arguido (...), por insuficiência de indícios, nos termos do art.º 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. (...) veio a ser julgado no âmbito do referido processo 570/11.8TALLE, tendo sido absolvido. No acórdão proferido em tal processo consta, para além do mais que aqui não interessa considerar, que “o que se provou nesta fase processual são efetivamente todos os factos relevantes e já constantes da acusação pública, para a qual remeteu o despacho de pronúncia mas com distinta autoria, ou seja, daquele contra que foi proferido despacho de arquivamento do inquérito, o pai do arguido, sendo que, a prova, quer direta que por presunção probatória não permitem considerar como provados os factos atinentes à atuação do arguido, sendo de realçar que, pese embora, dos depoimentos prestados pelos demandantes resulte que, desde o ano de 2010 – portanto em momento muito posterior ao da celebração do contrato – o arguido tenha assumido um papel mais proactivo nas negociações visando a celebração do contrato-prometido, tal não seria suficiente para que se valorasse esse comportamento como indicando que todo o atuar pretérito fosse de acordo com um plano e desígnio por si elaborado.” Do exposto resulta que foi apenas em consequência da produção da prova em julgamento – nomeadamente das declarações de (...) e de (...) que se chegou à conclusão que o autor dos factos era, na realidade, o aqui arguido. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15/11/2016 (publicado em www.dgsi.pt, processo 52/15.9PEEVRE1) “apenas nos casos de arquivamento do inquérito abrangidos pelo nº1 do artigo 277.º do Código de Processo Penal é que há consolidação do decidido, não podendo ser reaberto o inquérito. Não se trata propriamente de “caso julgado” pois este respeita apenas a decisões de natureza jurisdicional, mas de um caminho paralelo. Tendo entendido o Ministério Público arquivar porque não se verificou um crime, ou porque o arguido não é o autor do crime ou porque é inadmissível o procedimento, não pode vir mais tarde, em nome da segurança e da certeza jurídicas, afirmar o contrário”. No caso presente, o arquivamento do inquérito 570/11.8TALLE relativamente ao ora arguido teve por fundamento o preceituado no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Ora, nos termos do art.º 279.º do Código de Processo Penal, o inquérito pode ser reaberto, desde que surjam “novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”. Daqui resulta evidente que o despacho de arquivamento por ausência de indícios não forma caso julgado, podendo haver lugar a nova análise caso haja elementos de prova posteriores que invalidem os fundamentos de tal arquivamento. No caso presente, o inquérito não poderia ser reaberto, posto que o processo prosseguiu os seus termos (tendo percorrido as fases de instrução e julgamento). Tal explica e, mais do que isso, justifica que o Ministério Público não tenha reaberto o inquérito, mas tenha prosseguido com um novo inquérito tendo em conta os novos meios de prova de que veio a tomar conhecimento. O que se vem dizendo implica também, aliás, a improcedência da questão enunciada supra sob a alínea c) (a que o arguido, na contestação, chamou de “nulidade do inquérito”). Os novos factos resultam dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento do processo 570/11.8TALLE, de onde resulta que o autor dos factos que constavam da acusação foi o arguido e não o seu filho (ali arguido submetido a julgamento). Também a invocada “insuficiência de inquérito” não procede (o que, de resto, já foi apreciado na decisão instrutória), porquanto da acusação constam todos os factos que relevam dos elementos subjetivos do crime imputado ao arguido: o conhecimento, a vontade e o especial intuito de obtenção de enriquecimento ilegítimo. Em conformidade com todo o exposto, julgam-se improcedentes todas as questões prévias suscitadas na contestação.» * A final - por acórdão lavrado a 04-12-2020 - veio a decidir o Tribunal recorrido: 1. Condenar o arguido (...) como autor material de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; * Inconformado, o arguido interpôs recurso da decisão final com uma questão prévia e as seguintes conclusões: Questão Previa: * Respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, o Digno magistrado do Ministério Público, concluindo: 1 – Por Acórdão de 04/12/2020, proferido a fls. 444 a 474 dos autos à margem supra referenciados, foi decidido pelo Tribunal Coletivo condenar o arguido (...), pela prática de um crime de burla qualificada (p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2 al. a) do Código Penal), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo. * O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. O arguido (...), recorre do Acórdão que o condenou, como autor material de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2 al. a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo. * A extinção do procedimento criminal Como o Ministério Público esclarece na sua resposta a objecção levantada pelo arguido não faz qualquer sentido. Ainda que se conceda que o inquérito n.º 570/11.8TALLE, entretanto arquivado quanto ao arguido (...) não pudesse ser reaberto, a situação que nos ocupa tem natureza totalmente diferente. O inquérito 570/11.8TALLE prosseguiu seus termos, deu lugar à abertura de uma instrução e os factos nele contidos foram submetidos a julgamento. Só em julgamento e em face da prova produzida, apurados factos novos, é que veio a ser instaurado este processo. Não chegou a haver propriamente uma reabertura de inquérito, nos termos do artº 279º nº 1 do CPP, pela simples razão de que o inquérito nunca foi… reaberto. E nem se diga que esta posição viola o princípio do caso julgado, ou situação paralela conceptualmente imputável às decisões do Ministério Público. O caso julgado é um instituto inerente ao exercício do poder judicial e não do Ministério Público. E, embora o entendimento de que uma decisão de arquivamento proferida nos termos do disposto no artº 277º nº 1 do CPP impede a reabertura do inquérito contra a mesma pessoa e sobre os mesmos factos, tal entendimento só é admissível por força de norma legal expressa, a norma do artº 279º nº 1. Todavia não existe norma que impeça ou condicione a abertura de novo inquérito desde que surjam novos factos que invalidem a decisão anteriormente tomada. A razão de ser desta solução tem a ver com a natureza da intervenção do Ministério Público e da dinâmica do processo de investigação, que é totalmente distinta da intervenção do poder judicial. O Juiz tem perante si, para decidir, um acervo fáctico bem definido, que só pode ser alterado nos precisos termos e com as limitações decorrentes da Lei. A fixação do thema decidendum e consequente thema probandum mais que uma comodidade, é uma garantia para todos os intervenientes processuais. E o resultado desta intervenção, traduzida na sentença que fixa definitivamente o direito daquele caso, constitui outra garantia adicional de que o poder judicial se pronunciou definitivamente – repete-se, com as excepções previstas na Lei – sobre aquela controvérsia. Todavia, não é essa a dimensão da intervenção do Ministério Público no processo penal. A investigação criminal é um processo dinâmico, sempre em evolução e não tem propriamente um thema decidendum previamente fixado. A base investigatória pode ser alargada, restringida, alterada, enfim sujeita aos condicionalismos da investigação. Surgindo factos novos, a que o Ministério Público possa ter acedido por intervenção de terceiros, por hipótese, seria inconcebível que deixasse de os investigar só por que em momento anterior se entendeu de maneira diferente. Se o cidadão tem o direito de ver o seu caso definitivamente encerrado no momento em que o Tribunal profere a decisão final, já tal entendimento não se justifica quando o Ministério Público exerce as suas competências investigatórias em fase de inquérito. Excepto nas situações onde a lei prevê expressamente de forma diferente, como é o caso do artº 279º nº 1 do CPP. Mas este não é o caso. Daí que se nos afigure que o arguido não tem razão. * Impugnação da matéria de facto.Sobre a impugnação da matéria de facto a que o arguido tenta proceder uma coisa deve ser dita desde já. Pretender impugnar factos dados como provados, nomeadamente os acordos celebrados e por quem, o recebimento dos cheques e por quem e a identidade do autor do locupletamento, sem cumprir as obrigações decorrentes do disposto no artº 412º nº 3 do CPP, é tarefa votada ao fracasso. Em rigor, não se chega a compreender muito bem qual a fundamentação legal deste segmento do recurso, já que o arguido tão depressa se reporta aos meios concretos de prova, como faz referência aos vícios do artº 410º nº 2, misturando as duas situações sem distinguir os seus planos de argumentação. De todo o modo, não só não foram indicados de forma precisa quais os pontos da matéria de facto que se reputam mal julgados, como não foram indicados os meios de prova que impunham decisão diversa. Nesta parte, carece também o recurso de total fundamento. * Erro notório decorrente do conhecimento do CRC do arguido que deveria estar cancelado, o que também implica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP.O arguido alega também que o Tribunal não poderia ter feito uso dos elementos constantes do seu CRC, “uma vez que já se encontravam (as penas) extintas há mais de 5 anos, pelo respetivo cumprimento. Não devendo por isso constarem sequer do registo criminal”. De facto o artº 11º nº 1 a) da Lei nº 37/15 de 5 de Maio dispõe que as decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal em vários casos, onde se inclui a situação em que o arguido se encontra – vd. alínea a) -. Por outro lado, o artº 10º nº 3 do referido diploma legal refere que os CRC,s requisitados pelas entidades referidas (magistrados designadamente) contém a transcrição integral do registo criminal vigente. Acontece que, apesar destas referências já não deverem estar inscritas, a verdade é que… estavam! A questão que se coloca é a seguinte: poderia legitimamente o Tribunal delas fazer uso na sentença? Em nossa opinião sim. O facto de um determinado procedimento administrativo não ter sido observado, dando “de barato” que não o foi, não significa que a realidade que lhe subjaz – e que o CRC apenas certifica durante um determinado lapso de tempo – nunca tenha existido e não deva ser tida em consideração. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Para além disso, repare-se no seguinte: imaginemos que o Tribunal recebia um CRC do arguido limpo e imaculado. Mas sabia por hipótese, por ter acesso aos processos em causa, de todas as condenações anteriores transitadas em julgado. Poderia fazer uso desse conhecimento? Claro que sim desde que fizesse constar esses elementos dos autos e sobre eles fosse exercido o contraditório. Ora não será absurdo considerar essa prova proibida só por que um determinado procedimento administrativo impõe certa prática e ela não foi observada? Prática essa que nada tem a ver com o exercício da função jurisdicional? Não há, portanto, qualquer erro notório nem se verifica a nulidade prevista no artº 379º nº 1 c) do CPP. O Tribunal não só não errou, como conheceu de questões que podia e devia conhecer. Também aqui falecem as razões do arguido. * Insuficiência da matéria de facto dada como provada. É mais uma daquelas afirmações completamente destituídas de sentido. Basta ler os pontos 1 a 13 da matéria de facto dada como provada e a fundamentação em que se baseia para se concluir que este vício não ocorre. Para que existisse e como já por várias vezes dissemos em situações idênticas: “O erro notório, a contradição insanável e a insuficiência para a decisão da matéria de fato provada a que alude o artº 410º do CPP nº 2 nada têm a ver com uma errada ou deficiente avaliação da prova. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Tais vícios podem fundar-se numa apreciação errada da prova, é verdade. Mas são ostensivos, resultam do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Para os percepcionar não é preciso perscrutar os elementos de prova em concreto produzidos. Basta a avaliação atenta de qualquer pessoa dotada de uma razoabilidade comum. Contudo, do acervo fáctico vertido na sentença recorrida, não se consegue vislumbrar onde a defesa conseguiu descobrir um erro notório de avaliação, ou mesmo uma qualquer insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão de condenar o arguido. De facto e socorrendo-nos uma vez mais da exposição feita pelo Ministério Público, desse texto não é possível retirar um erro crasso de apreciação de prova algo que, flagrantemente, constitua uma impossibilidade, uma incoerência gritante, quer na sua relação com outros factos dados como provadas, quer no cotejo com as regras de experiência comum sob as quais qualquer cidadão se rege. Da mesma forma a matéria considerada provada é manifestamente suficiente para a decisão de condenar o arguido pelo crime em que foi condenado. Coisa bem diferente – e isto já foi dito tantas vezes – é saber se o tribunal, na formação da sua convicção, fez a melhor avaliação dos meios de prova de que se serviu para chegar às conclusões a que chegou. Aqui, todavia, já estamos no domínio da revisão da matéria de facto, cujo recurso obedece a critérios legais específicos e bem determinados, mormente às exigências vertidas no artº 412º nº 3 do CPP. O arguido contesta no fundo a convicção do tribunal na avaliação concreta dos meios de prova, não contesta a racionalidade intrínseca do texto decisório. A sentença não padece claramente de qualquer dos vícios referidos no artº 410º nº 2 do CPP.” * Existência de uma dupla condenação decorrente do cumprimento da condição e do pagamento da indemnização e contradição insanável na fundamentação.Defende finalmente o arguido a existência de uma contradição insanável na fundamentação do Acórdão, mormente entre a fixação da condição de suspensão da pena – proceder ao depósito da quantia de € 30000 nos termos aí previstos - e a condenação em indemnização aos ofendidos/demandantes civis de quantia praticamente idêntica, o que equivaleria a uma dupla condenação. Todavia também aqui a contradição é aparente como o demonstrou o Ministério Público na sua resposta. A quantia que o arguido deverá depositar periodicamente no cumprimento da condição reverterá para os demandantes que, desta forma, verão ressarcido o prejuízo que lhes foi causado e, concomitantemente, desonerará o arguido do pagamento da indemnização na exacta medida daquilo que os ofendidos/demandantes já tiverem recebido. Não há dupla condenação e não há, portanto, qualquer contradição na fundamentação.» Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal. * B - Fundamentação: B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: Da pronúncia Outros factos resultantes da discussão: 20. O arguido é divorciado;21. Vive com a namorada (cujo relacionamento se iniciou há cerca de 4 meses), que é dentista; 22. Tem 4 filhos (de 12, 19, 31 e 35 anos, sendo que os dois últimos se autonomizaram dos respetivos agregados familiares e os demais vivem com as respetivas mães) fruto de relacionamentos com quatro mulheres; 23. O filho (...) vive, desde 2017, na República da Guiné, onde trabalha; 24. Os demais filhos, por vezes, vão passar fins-de-semana a casa do arguido; 25. O arguido tem o 9º ano de escolaridade; 26. O arguido aufere os rendimentos provenientes da sociedade (...), Construções, Ld.ª, sociedade de construção civil. Tais rendimentos variam entre € 800,00 e 900,00 por mês (sendo que, antes da pandemia causada pela doença Covid-19, os rendimentos poderiam ascender a € 1 000,00 mensais); 27. Por sentença24/04/1997, proferida no processo 117/96 do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Albufeira, foi o arguido condenado pela prática, em 30/08/1995, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses; a Esta pena está extinta pelo cumprimento; 28. Por sentença de 08/04/1998, proferida no processo 80/98.7GTABF, foi o arguido condenado pela prática, no mesmo dia, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa e na pena acessória de 3 meses de proibição de conduzir veículos motorizados; a Estas penas estão extintas pelo cumprimento; 29. Por sentença de 22/02/2000, proferida no processo 1588/97.7PAFAR, foi o arguido condenado pela prática, em 04/12/1997, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses; 30. Por sentença transitada em julgado no dia 26/05/2008, proferida no processo 576/06.9GTABF, foi o arguido condenado pela prática, em 02/06/2006, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 meses; a Estas penas estão extintas pelo cumprimento; 31. Por sentença transitada em julgado no dia 12/01/2011, proferida no processo 345/08.1TALLE, foi o arguido condenado pela prática, em 07/04/2008, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 190 dias de multa; a Esta pena está extinta por prescrição; 32. Por sentença transitada em julgado no dia 08/10/2012, proferida no processo 2/12.4GCFAR, foi o arguido condenado pela prática, em 01/01/2012, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 4 meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 14 meses; a Estas penas estão extintas pelo cumprimento; 33. Por sentença transitada em julgado no dia 11/09/2017, proferida no processo 328/14.2IDFAR, foi o arguido condenado pela prática, em outubro de 2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa; a Esta pena está extinta pelo cumprimento. * B.1.2 – Factos dados como não provados: Não se provaram os demais factos constantes da acusação, do pedido de indemnização civil e da contestação, sendo certo que aqui não interessa considerar as alegações de direito, conclusivas, probatórias, meramente argumentativas ou absolutamente irrelevantes parta a decisão. * B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos: «O decidido em matéria de facto funda-se em todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, nos documentos, relatórios periciais e autos que constam do processo, valorados (cada um de per si e no confronto com os demais meios de prova) de forma crítica e de acordo com as regras da experiência comum. *** B.2 - Cumpre conhecer. O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 (in D.R., I-A de 28/12/95). Os recorrentes levantam no recurso da decisão final as seguintes questões: - em A) o despacho de arquivamento que não poderia renascer noutro processo; O que, no essencial corresponde à sistematização proposta pelo Exmº P.G.A.: 1- Extinção do procedimento criminal por existência de decisão prévia de arquivamento em outro inquérito instaurado contra o arguido sobre os mesmos factos – nulidade do Acórdão – artº 379º nº 1 c) do CPP. * * B.2.1 – Do recurso interlocutório Antes do mais, no entanto, haverá que esclarecer a matéria referente ao recurso interlocutório interposto pelo recorrente e que tinha, impõe-se rememorar, as seguintes questões excepcionais ou processuais: a) A exceção do caso julgado, argumentando que o ora arguido já foi ilibado no processo 570/11.8TALLE, tendo o inquérito sido arquivado, sem que tivesse sido requerida a abertura da instrução, pelo que há violação do “ne bis in idem”; Se as duas primeiras questões se inserem claramente na noção de “questões prévias ou incidentais”, já a última diz respeito aos factos e sua falta. As duas primeiras foram resolvidas no dito despacho prévio à pronúncia, sendo a última apenas conhecida no despacho de pronúncia. Como é evidente todas estas questões deveriam – seria uma metodologia muito mais adequada, pois que é isso o pretendido pelo legislador penal – ter sido todas conhecidas no despacho de pronúncia/não pronúncia e não num despacho prévio à admissão do requerimento de abertura da instrução. Em bom rigor o Sr. Juiz de instrução criminal só estaria em condições para conhecer da totalidade das questões – mesmo as prévias e incidentais - depois de aberta a instrução e praticados todos os actos probatórios que se impusessem. Mas todas elas brigam com a substância criminal da pretensão de sujeição a julgamento. Todas determinam a pronúncia ou não pronúncia do arguido. E todas, estão a coberto da previsão do artigo 310.º, nº 1 do C.P.P. que determina que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento”. Mas é claro que todas deveriam ter sido decididas a final no mesmo despacho, não só porque processualmente mais adequado, mas também porque o despacho de admissão/rejeição da instrução não é um “despacho saneador” em processo civil onde se devam conhecer das nulidades, excepções dilatórias ou peremptórias, à moda do processo civil. Isto arrasta por consequência uma outra muito mais relevante noção: as três questões não podem ter diverso tratamento em sede de aceitabilidade de recurso. E desde logo porque as duas questões “prévias ou incidentais” poderiam/deveriam ter sido conhecidas pelo despacho de pronúncia/não pronúncia, mesmo que “conhecidas” anteriormente. Quer uma quer outra decisão – sobre o “caso julgado” e sobre a “extinção do direito de queixa” - não formaram caso julgado formal e, se constatado em acto probatório de instrução posterior facto que demonstrasse a sua existência, deveriam ter sido objecto de conhecimento integral, incorporando-se no despacho de pronúncia/não pronúncia. Isto porque quer a existência de factos, quer a inexistência de caso julgado, quer por fim a não extinção do direito de queixa, formam a razão de ser global do despacho de pronúncia. Assim como a inexistência de factos, a extinção do direito de queixa ou a existência de caso julgado, formariam a integral substância de um possível despacho de não pronúncia. Porque só assim se evitaria o desconchavo processual que é a existência de um despacho de pronúncia que considerou existentes factos criminosos - e, necessariamente, inexistência de caso julgado e de extinção da queixa - não passível de recurso por lei expressa, ainda ter pendente um recurso interlocutório que tem como pressupostos, requisitos que pela negativa conduziram a uma pronúncia. Tudo porque se aceitou como certa a ideia de que um despacho formalmente prévio à pronúncia mas que nesta necessariamente se deveria integrar, pode ser objecto de recurso, contrariando lei expressa. Logo, em rigor, o recurso interlocutório deveria ter sido objecto de despacho liminar de rejeição. Mas, em bom rigor, o despacho recorrido deveria ter sido integrado no despacho de pronúncia. * B.2.2 – Não tendo sido, resta constatar duas realidades. A primeira, que aquilo que sobra desse recurso interlocutório é a invocação de “caso julgado” e de “extinção do direito de queixa”. Ambas as ideias são em termos de substância facilmente rebatíveis. O “caso julgado” é uma figura essencialmente jurisdicional e a vertente processual do ne bis in idem (O “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” do artigo 29º, nº 5 da CRP) é claramente não aplicável ao caso dos autos. De facto «O ne bis in idem processual – a proibição de sujeição a julgamento pelo ‘mesmo crime’ em processos sucessivos – encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito que não permite, mesmo com eventual sacrifício da justiça material, que o indivíduo, já condenado ou absolvido, possa viver permanentemente sob a espada de Dâmocles de uma nova perseguição penal e de uma eventual imposição de pena» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 303/2005. Ora, o arguido não foi nem absolvido nem condenado por decisão anterior. Ideia base: um despacho de arquivamento do Ministério Público em inquérito não forma caso julgado, pela razão simples de não ser uma decisão jurisdicional e não transitar em julgado. Deduzida a acusação depois de recolhidos novos elementos de prova de quem é o seu autor, isso não constitui violação do ne bis in idem. Quanto à extinção do direito de queixa é por demais evidente que a argumentação do recorrente assenta numa petitio principii, o de que a natureza semi-pública do crime de burla simples se estende a todos os tipos penais de burla. Está de há muito consagrado na doutrina e na jurisprudência que os tipos penais de burla contidos no artigo 218º do Código Penal são tipos penais autónomos e qualificados relativamente ao tipo base previsto no artigo 217º. Não se trata pois, de mera “agravação da pena” como afirma o recorrente - Vide, Almeida e Costa, in “comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. II, em anotação aos artigos 218 e 204º do Código Penal. Logo, a sua natureza é a de um crime público e o determinante é que assim o arguido veio acusado e assim foi condenado. E, portanto, sempre o recurso interlocutório seria improcedente. Mas a decisão sempre terá que ser outra! * B.2.3 – A segunda realidade prende-se com a circunstância de o recorrente ter provocado uma segunda decisão por parte do tribunal recorrido relativamente às mesmas matérias que já havia suscitado no requerimento de abertura de instrução (RAI). Agora em audiência de julgamento, designadamente em contestação. E isso tem um preço. Se relativamente às questões de fundo, essas são abrangidas pela decisão final de fundo e, portanto, devem ser objecto de recurso da decisão final, já as questões prévias e incidentais ressuscitadas pelo recorrente após a pronúncia e após o seu próprio recurso, voltaram a ser colocadas, agora ao tribunal de julgamento, uma diversa orgânica judicial, o colectivo que realizou o julgamento. A sequência temporal é clara. Ao JIC o recorrente requereu em RAI de 09-09-2019 a declaração de obstáculos à pronúncia, decididas em despacho de 14-11-2014 e recurso interlocutório a 03-01-2020. Em 04-09-2020 o arguido volta a suscitar a questão em contestação, que foi objecto de decisão a 14-12-2020 no acórdão final. Ou seja, há decisão posterior ao recurso que aborda as mesmas duas questões - caso julgado e extinção de direito de queixa – de que o arguido não recorreu em recurso da decisão final. Como é evidente essas duas questões – que sempre seriam improcedentes por inexistência – viram a referida decisão integrada no acórdão final a formar caso julgado formal sobre a sua declaração de inexistência por não terem sido objecto de recurso da decisão final. E, como tal, a impedir atribuir qualquer efeito útil ao recurso interlocutório por mero efeito de acto do arguido – a contestação a provocar nova pronúncia sobre os temas que tinham sido objecto de recurso – assim tornado inútil de forma superveniente. E, por essa razão é o dito recurso interlocutório de rejeitar. * B.3 – Do recurso da decisão final B.3.1 – Regressando ao recurso da decisão final e à delimitação do seu objecto deparamo-nos com uma indeterminação quanto a conceitos e matérias que se pretendem ver tratadas que se impõe esclarecer. Desde logo convém tornar claro que existe uma clara diferenciação entre os conceitos de “nulidade de sentença” e “vícios de facto” que o recurso parece aglutinar de forma sequencial, já que se repete o mesmo raciocínio em vários pontos das conclusões da seguinte forma: «tal erro, como os restantes constantes do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.Penal, são do conhecimento oficioso, verificando-se, deste modo, a nulidade da sentença, constante do artigo 379.º, n.º 1 al. c) do C.P.Penal.» Ora, é claro o artigo 379 al.ª a) do Código de Processo Penal ao determinar que é nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; Essas nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, ou – caso não as possa suprir - determinando a sua nulidade total ou parcial com regresso dos autos ao tribunal recorrido para que seja lavrada nova sentença expurgada da nulidade. E sem necessidade – em regra - de regresso dos autos à fase de audiência de julgamento e/ou de produção de prova. Certo também é que uma nulidade da sentença nunca gera – por si só e de forma automática – a extinção do procedimento criminal contra o arguido, como se afirma na conclusão A.6. Já os vícios de facto podem integrar-se em duas categorias processuais, os contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou os erros de julgamento que podem ser invocados via impugnação factual à luz do artigo 412º, ns. 3 e 4 do C.P.P.. Seja por uma via (vícios de conhecimento oficioso), seja pela outra (erros de julgamento), devem ser conhecidos ou pelo tribunal de recurso, se for possível conhecer do vício, ou por reenvio total ou parcial para o tribunal recorrido (artigo 426º, nº 1 do C.P.P., aplicável a ambas as hipóteses). Em breve, nem as nulidades de sentença geram ou tês origem em vícios de facto, nem os vícios de facto geram nulidade de sentença. Por outro lado convém esclarecer que uma coisa é o uso de prova proibida, outra radicalmente diversa é a aplicação de regras de produção probatória. O recorrente vem nas suas conclusões B.6 e C.5 invocar o disposto no artigo 340º do C.P.P. quer quanto a umas declarações do arguido, quer quanto a uma carta do BPI, esta nos seguintes termos: «5.- No que se refere carta do BPI, para além do facto da mesma não tenha sido feita prova, em sede de audiência de julgamento, em obediência ao artigo 340.º, n.º 1 do C.P.Penal, para que a mesma pudesse ter sido considerado meio probatório legal e assim, objecto de ponderação probatória, para efeitos de sentença;». Como afirmámos no acórdão desta Relação de 24-05-2011, no processo nº 846/08.1TASTR.E1, de que fomos relatores, (1) “a obrigação (poder/dever) imposta ao tribunal pelo artigo 340º do Código de Processo Penal de conhecer das provas que conduzam à verdade material e, logo, à boa decisão da causa, está sujeita a um critério inultrapassável, o da necessidade da sua produção. (2.) Essa necessidade pode ser evidente ou aparente pela própria análise casuística das provas produzidas ou a produzir em função dos factos que se impõe apurar face à integração jurídica a efectuar, sempre balizada pelo objecto do processo. (3.) Se esse critério da necessidade não resultar evidente ou aparente por uma análise projectiva, cabe ao interessado na sua produção convencer o tribunal da sua existência”. Ora, no caso o recorrente não suscitou ao tribunal recorrido qualquer questão probatória a inserir na previsão do artigo 340º do C.P.P., não justificou as necessidades agora invocadas, pelo que o tribunal recorrido não poderia adivinhar que o recorrente entendia estar a ocorrer uma violação do artigo 340º do C.P.P.. Entendendo o recorrente que existia uma violação às regras de produção probatória ou falta de elementos probatórios, incumbia-lhe requerer em conformidade. Indeferida a pretensão, incumbia-lhe a interposição de recurso interlocutório por violação das regras de produção probatória. O que não podia o arguido fazer era, sem colocar o problema, reservar-se para o recurso da decisão final para vir invocar a violação das regras de produção de prova (mesmo que lhes chame nulidades, o que obviamente não são) sem que o tribunal recorrido tenha sido confrontado com a questão e a tenha decidido. Desta forma as questões suscitadas pelo recorrente acabam por ser questões relativas à prova nas quais o recorrente pretende pôr em causa a apreciação probatória, mas sem sucesso por inexistir impugnação factual. * B.3.2 – Não só pelo exposto supra em B.2.3 mas também porquanto um inquérito não é algo que finde de forma definitiva quando da prolação de um despacho de arquivamento, a tese do recorrente de que o despacho de arquivamento da Srª Procuradora corresponde a um fim inexorável do procedimento não tem sustentáculo bastante. E para tanto basta atentar no artigo 279.º n. 1 do C.P.P. que claramente determina que o inquérito pode “ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”. E, neste ponto, não vemos razão alguma para distinguir os regimes contidos nos ns. 1 e 2 do artigo 277 do diploma. Se os “novos elementos de prova” invalidarem os fundamentos do arquivamento, o inquérito pode ser reaberto, seja qual for a causa do arquivamento. E foi o que ocorreu nos autos: novos elementos probatórios demonstraram que o inquérito deveria ser reaberto. Mas isso não implicava “reabrir o mesmo processo” no sentido literal, pois que a extracção de certidão de peças processuais e a sequente dedução de acusação são uma via possível para “reabertura do inquérito” em sentido substancial, para se obter a sujeição do arguido a julgamento. Logo, a pretensão de que o despacho da Srª Procuradora a arquivar o inquérito antes da recolha de novos elementos probatórios é algo de definitivo e irreversível é infundada e não se pode entender como definitivo o arquivamento do processo. Aliás, o próprio termo utilizado pelo recorrente é elucidativo da sua pretensão e, igualmente, da sua ausência de razão. Não por acaso o recorrente usa a expressão «o arguido foi “ilibado” pelo despacho da Srª Procuradora no processo nº 570/11.8TALLE», referindo-se a um despacho de arquivamento, obviamente reversível face a novos elementos probatórios e que nunca poderia corresponder a uma ilibação, uma absolvição. E isto responde à questão suscitada pelo recorrente no ponto A) supra referido. * B.3.3 – A resposta à questão igualmente colocada em B) aquilo a que o recorrente chama «os “novos factos” contra o arguido resultantes da audiência de julgamento no processo nº 570/11.8TALL» são um falso conceito, deslocado porquanto importados de um outro instituto e que aqui são esgrimidos de forma menos adequada. É sabido que, deduzida a acusação e a defesa, se fixa o objecto do processo, que não pode ser ultrapassado e que tem que ser esgotantemente conhecido. Mas isto supõe uma fixação dos factos através da acusação, factos esses que seguem depois um rígido regime de alterações possíveis. Ora, o recorrente está a importar esse conceito e essas regras para o inquérito, antes de ser deduzida acusação. Está a pretender antecipar o regime de não alteração dos factos após a dedução da acusação para um momento e numa fase processual anterior, onde não existe acusação. O que corresponde a pretender limitar o objecto do inquérito. Como é evidente a magia está na equiparação destes “novos elementos probatórios” que indiciam o crime praticado pelo arguido ao conceito de “factos novos” que não existem ainda, por ainda não ter sido deduzida acusação. Com o acrescento de tais “factos novos” serem enquadrados pelo recorrente num novel e original regime processual que obriga a que os “factos novos” que não existem e que são meros indícios suplementares de um outro processo, terem que ser descritos num processo diverso, independentemente – ao que parece – da acusação que aqui foi deduzida. Notável! Ou seja, baqueia a pretensão exposta no ponto B). Quanto à possível pretensão do recorrente na alteração dos factos provados resta afirmar que o recorrente não impugnou especificadamente os factos provados nem demonstrou a existência de qualquer vício de erro notório na apreciação da prova, pelo que resta passar ao ponto seguinte. * B.3.4 – Garante o recorrente no seu ponto C) que não ficaram provados factos que foram dados como provados e que houve uso de prova ilegal. Como se asseverou em 2.3.1 os vícios de facto podem integrar-se em duas categorias processuais, os contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou os erros de julgamento que podem ser invocados via impugnação factual à luz do artigo 412º, ns. 3 e 4 do C.P.P.. É imperativo que aclaremos para que serve um recurso penal em matéria de facto, já que essa é a pretensão do recorrente, sendo certo que apresentados como foram são mero sonho processual. Para tal desiderato três artigos do Código de Processo Penal são essenciais para esclarecer a matéria. O primeiro é o artigo 431.º sobre a “Modificabilidade da decisão recorrida” que afirma expressis verbis que: «sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: Não havendo lugar a renovação da prova e sendo o primeiro requisito [a al. a)] um óbvio pressuposto e necessidade, resta apreciar as duas hipóteses colocadas como essenciais: o disposto no artigo 410º e a impugnação a que se refere o artigo 412º, nº 3, ambos do C.P.P.. E note-se que o artigo é vinculativo no sentido de dever ser interpretado como dizendo “a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se ocorrer um dos casos previstos no artigo 410º ou se o recorrente impugnar nos termos previstos no artigo 412º, nsº 3 e 4 do diploma”. Ou seja, a invocação de “violação do princípio da livre apreciação da prova” serve de nada se não ocorrer uma das indicadas vias pois que essa invocação só serve para apelar a um princípio geral de apreciação probatória a inserir numa dessas duas vias. Isto é, contrariamente ao que já aconteceu noutros ramos da actividade humana, não há aqui uma “terceira via”. Concretizando, o recurso sobre matéria de facto apresenta duas formas de apelo, subdividindo-se pela invocação dos chamados “vícios da revista alargada” e que estão previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e que são: a) - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) – o erro notório na apreciação da prova. Para validamente invocar tais vícios o recorrente só tem que demonstrar a sua existência por simples referência ao texto da decisão recorrida, fazendo apelo à racionalidade e às regras de experiência comum. Não necessita de apresentar prova. Aliás, se tiver que o fazer já não está a invocar este tipo de vício mas sim um vício de facto a exigir impugnação e, por isso, o cumprimento do regime do artigo 412º. Desta forma ao recorrente pede-se apenas a sua alegação, o mais concreta e precisa possível, mas mesmo que o não faça o tribunal pode suprir tal deficiência pois que estes vícios “notórios” são de conhecimento oficioso. E são-no porque são os vícios extremos de uma decisão judicial e, em absoluto, não são tolerados pela ordem jurídica. Se a sentença apresenta um destes três vícios tem que ser alterada. Coisa substancialmente diversa se passa com os vícios de facto que não sejam notórios, que se limitem a ser erros de apreciação probatória mas que não sejam patentes, óbvios, pela simples leitura da decisão. Implicam, para nos apercebermos deles, que seja apresentada (indicada em recurso) prova que os demonstre. Aqui já o recorrente tem que apontar de forma especificada e concreta erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Trata-se da previsão do artigo 412º do Código de Processo Penal. Aqui já ao recorrente se impõe o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, não lhe basta alegar que o vício existe, tem que o identificar muito clara e concretamente por referência ao facto concreto (provado ou não provado), tem que dizer qual a prova que demonstra a existência do erro e tem que – pela racionalidade – demonstrar que esse erro implica necessariamente que a prova tem que ser apreciada de forma diferente. Firmou-se doutrina e jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância deste ónus de impugnação especificada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 que veio consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anteriormente existente pela criação de uma alternativa quanto a um dos pressupostos de impugnação: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Podemos portanto concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais: - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal); Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto? Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto. E aqui o impõe significa “impõe” e não apenas “permite”, “possibilita” ou “consente”. A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico. Em concreto o recorrente não cumpre qualquer dos requisitos de impugnação à luz da previsão do artigo 412º do C.P.P.. Não indica os factos que se integram numa eventual impugnação, nem indica especificadamente prova que pretenda sustentar essa sua impugnação e não faz a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal) nem, alternativamente, identifica a transcrição das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados). De outra banda não demonstra a existência de vícios de facto a inserir na previsão do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.. As razões indicadas de C)1 a C)4 não têm a virtualidade de alterar o decidido pois que mesmo a atender a esses factos o crime de burla pode subsistir através do uso de terceira pessoa. A razão indicada em C)5 é a mera invocação de incumprimento de uma regra de produção probatória que o recorrente não suscitou em devida forma e tempo. Ambas, não têm a virtualidade de demonstrar uma errada apreciação probatória. Não há, pois, uma contradição entre a fundamentação e a decisão nem, muito menos, uma nulidade de sentença. * B.3.5 – Assevera o recorrente no ponto C1) que as anteriores condenações do arguido não podiam ser valoradas. O argumentário do recorrente assenta nos seguintes considerandos: Constituindo, uma clara violação ao artigo 11.º da referida Lei 37/2015 de 5 de Maio, a consideração e valoração de tais antecedentes criminais, do arguido na sentença, constitui um erro notório na apreciação da prova; Para além de ser evidente que não estamos perante um “erro notório na apreciação da prova” mas, quando muito, perante o uso de um elemento de prova ilícito, certo é que a sentença a esses antecedentes se refere pelo que se imporá determinar a sua natureza jurídica e o alcance concreto que lhe foi dado pela decisão, que é como quem diz, se o tribunal considerou tais antecedentes como elemento definidor da pena e seu regime em termos desfavoráveis. A informação constante do registo criminal só pode constitui um meio de prova e o seu cancelamento constitui uma «verdadeira proibição de prova» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 645/646). E assim sendo os registos cancelados não podem produzir efeitos nocivos para o arguido. Resta saber se tal ocorreu em concreto, isto é, se a decisão recorrida usou registos cancelados para determinar um mais gravoso regime penal ou processual para o arguido. Nem o recorrente apresenta o uso de registos cancelados nem demonstra um regime nocivo em concreto. Bem ao invés, aquilo que se mostra claramente espelhado no acórdão recorrido – para além de uma referência genérica às necessidades de prevenção especial que se mostra inócua a esse respeito – é que o tribunal recorrido afastou tais antecedentes como elemento nocivo na determinação da pena concreta aplicada. Note-se o seguinte trecho fundamentador: Sem prejuízo do que se deixou dito supra relativamente aos antecedentes criminais do arguido, importa reconhecer que o mesmo nunca foi condenado em pena de prisão nem pela prática de crimes de burla, sendo ainda certo que os crimes pelos quais foi condenado referem-se a factos cometidos há muitos anos. Não se demonstra, pois, uso indevido de inscrições no registo criminal. * B.3.6 – Atesta o recorrente no seu último ponto de inconformidade que: «D).- O acórdão, na sua parte final, condena o arguido a: Como é evidente trata-se de deficiente leitura da decisão recorrida pois que o acórdão é claro no ponto 3 da condenação (parte cível) do recorrente a pagar aos demandantes a quantia de € 32 000,00 (trinta e dois mil euros) acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal sobre a quantia de € 30 000,00 desde o dia 7 de julho de 2009 e sobre a quantia de € 2 000,00 (dois mil euros) desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao demandado até integral pagamento. O que consta do ponto 2 da condenação (parte crime) é, apenas, a imposição de condições resultantes do regime de suspensão da pena, como aliás ali expressamente se afirma [“Suspender na sua execução (por aplicação do regime penal em vigor na data da prática dos factos) a referida pena de prisão pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses mediante as seguintes condições”]. Desta forma o arguido está condenado a pagar a quantia de € 32 000,00 (trinta e dois mil euros) a que foi condenado na parte cível devendo, dessa quantia, como condição penal, «depositar à ordem dos presentes autos a quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros), devendo depositar até ao final de cada ano (a contar da data do trânsito em julgado) a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros), valores que o Tribunal entregará às vítimas.» Trata-se, apenas, de uma só condenação parcialmente sujeita a condições penais de cumprimento parcelar da referida condenação. Não existe, portanto, dupla condenação ou qualquer contradição insanável da fundamentação com a respectiva decisão. *** C - Dispositivo Assim, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em: - Rejeitar o recurso interlocutório; - Negar provimento ao recurso interposto da decisão final. Custas pelo arguido com 5 (cinco) UCs de taxa de justiça. (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado). Évora, 07 de Setembro de 2021 João Gomes de Sousa António Condesso |