Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
199/14.9TBACN-A.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: PLANO DE REVITALIZAÇÃO
CRÉDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O Plano de revitalização não pode afastar normas imperativas de natureza fiscal;
2 - Se o fizer, o Plano é ineficaz em relação a tais créditos.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 199/14.9TBACN-A.E1 (2ª secção cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


(…) – Comércio e Indústria de Peles, Lda., instaurou processo especial com vista à sua revitalização, ao abrigo do disposto nos artº 17º-A e segs. do CIRE.
Tramitados os autos, veio a ser proferida decisão homologatória do plano de recuperação na sua integralidade.
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Inconformado com esta decisão, veio o credor Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Santarém, interpor recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1º O Meritíssimo Juiz julgou válido o Plano de Recuperação e homologou-o por sentença.
2º De acordo com artigo 2150 do CIRE, "O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável ( ... ) das normas aplicáveis ao seu conteúdo ( ... )"
3º O artigo 1250 da referida Lei n.º 55 –A/2010, veio estipular que o disposto no n.º 3 do artigo 30º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos.
4° Ora, este regime jurídico é aplicável ao caso sub judicie, considerando a natureza tributária dos créditos da Segurança Social.
5° É considerada como indício da inviabilidade económica do contribuinte o incumprimento do pagamento das contribuições mensais desde a data da entrada do requerimento.
6° Assim, a sentença sub judice devia ter sido proferida no sentido da recusa oficiosa da homologação do Plano de Insolvência em conformidade com o citado artigo 215° do CIRE.
7º Acresce que o Meritíssimo Juiz mesmo que não recusasse a homologação do acordo, devia ter considerado o Plano ineficaz em relação à Segurança Social, de forma a não se verificar violação de lei.
8° A douta decisão violou, além do mais, o disposto nos artigos 195°, 207°, 214º e 215º do CIRE, os artigos 3º e 30º da LGT, o artigo 125º da Lei n.º 55 - A/2010, de 31/12, os artigos 1° e 2° Decreto-Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro, os artigos 190º e 203º Código Contributivo.
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Não foram apresentadas contra alegações.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.
Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa apreciar consiste em saber se a homologação do plano de revitalização ocorreu com preterição de normas de natureza imperativa relativamente ao crédito da Segurança Social.
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Da análise dos autos consideramos, com interesse para apreciação da questão, o seguinte factualismo:
- O Plano de recuperação teve um quórum deliberativo de 66,87% e recolheu votos favoráveis de 75,35% dos credores votantes, sendo que mais de 50% dos credores que votaram favoravelmente tem créditos não subordinados.
- O ISS não exerceu o direito de voto.
- O Crédito reclamado pelo ISS, no Plano de Pagamentos consta, nomeadamente que deve ser pago em 100 prestações mensais e sucessivas com início de pagamento 30 dias após o trânsito em julgado da sem tença de homologação do Plano de revitalização, com juros à taxa legal.
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Conhecendo da questão
A questão acima enunciada, assenta na circunstância de ter sido aprovado um plano de recuperação que, relativamente ao crédito da Segurança Social, no montante de € 62.280,22 (sessenta e dois mil, duzentos e oitenta euros e vinte e dois cêntimos), prevê, designadamente: Pagamento da divida reclamada e reconhecida (capital e juros de mora) em 100 prestações mensais e sucessivas, com juros vencidos à taxa legal, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte ao trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação.
O recorrente entende que a homologação do plano de revitalização em apreço nos autos por parte do Mº juiz “a quo”, considerando-o aplicável aos seus créditos, é violador de vários princípios de direito, bem como de várias normas jurídicas atinentes à questão, nomeadamente, o disposto nos artºs 195º, 207º, 214º e 215º, do CIRE, artºs 3º e 30º da LGT, artº 125º, da Lei nº 55-A/2010, artºs190 e 203 do Código Contributivo.
O processo especial de revitalização (P.E.R.), introduzido no nosso ordenamento jurídico a partir da Lei 16/2012 de 20/04, destina-se a permitir ao devedor em situação económica difícil ou em iminente insolvência, mas ainda suscetível de recuperação, o estabelecimento de negociações com os respetivos credores de modo a obter acordo conducente à sua revitalização.
Tendo sido, como sucedeu no caso dos autos, aprovado em assembleia de credores, o plano de revitalização da devedora, este não será homologado pelo tribunal nos casos previstos nos artºs 215º e 216º do CIRE, isto è:
“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”- artº 215º, do CIRE.
Vejamos então se no plano em apreço se verifica a violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo qualquer que seja a sua natureza.
A questão não é nova vindo sendo abordada nos nossos tribunais tendo sido emitida jurisprudência a propósito, pelo que iremos seguir de perto, embora com as necessárias adaptações ao caso concreto, a fundamentação constante no Ac. do TRP 11/09/2012[1] que entendemos ser precisa e clarividente.
“A LGT considera relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas e integra na administração tributária, para além das entidades especificadas, as entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos. Tributos que podem ser fiscais e parafiscais, estaduais, regionais e locais e que compreendem os impostos, incluindo os aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas, sendo que o regime geral destas taxas e contribuições consta de lei especial.[2]
Os tributos parafiscais comparticipam de todas as características dos impostos – unilateralidade, coatividade, ausência de qualquer objetivo punitivo – e participam no preenchimento de objetivos públicos, mas de afetação financeira especial, ou seja, as receitas encontram-se consignadas a entidades específicas, o que lhes dá a natureza de contribuições especiais. Aqui se enquadram as receitas da segurança social que, em comum com os impostos, têm uma natureza obrigatória e uma correspetividade difusa, porque o direito constitucional à segurança social deveria ser independente das contribuições.[3] Aproximam-se das taxas face ao princípio do benefício, mas estão determinadas por um misto de equivalência e de solidariedade social. Nesta contenda, mesmo para quem defenda que as contribuições para a segurança social são meras quotizações sociais e não são impostos ou taxas mas imposições parafiscais, elas não deixam de constituir um tributo que incide sobre o facto tributário de carácter instantâneo consubstanciado no pagamento dos prémios de desempenho, sendo este o facto gerador desse tributo. Independentemente da sequência periódica em que se integre, essa periodicidade não releva para efeito da definição da natureza dessa contribuição (taxa social única),[4] uma vez que esta continua a incidir sobre cada um dos pagamentos dos prémios de desempenho, isoladamente considerados. Essa contribuição não se reporta a um dado período de tempo, mas a cada um dos factos tributários de natureza instantânea, não duradoura, que a desencadeia.[5] Do ponto de vista da titularidade ativa dos impostos é um imposto não estadual, parafiscal, qualificado como imposto de obrigação única, qualificação que assenta no tipo de relação jurídica fonte de obrigação de imposto: se, se trata duma relação desencadeada por um facto ou ato isolado ou por factos ou atos sem continuidade entre si, ou seja, duma relação de carácter instantâneo, que dá origem a uma obrigação de imposto isolada (ainda que o seu pagamento possa ser realizado em prestações), o imposto que sobre ela recai é um imposto de obrigação única.[6]
A doutrina propugna a tese de que as contribuições para a segurança social não têm a natureza de um imposto, mas de uma contribuição parafiscal, o que flexibiliza, do ponto de vista formal, as exigências do princípio da legalidade fiscal. Sob o ponto de vista substancial, têm sido consideradas tributos com a natureza de contribuição especial, especialidade que provém do seu particular modo de distribuição dos encargos tributários, conformada com o princípio da proporcionalidade, particularidades que, ainda assim, não impedem a sua plena sujeição ao princípio da legalidade.[7] Nesta linha de orientação, a jurisprudência atribui-lhes uma natureza tributária e a aplicação das regras fiscais, com a convocação da natureza indisponível do crédito tributário, cuja redução ou extinção tem de respeitar os princípios de igualdade e legalidade tributárias (artigo 30º, 2, LGT).[8] Com efeito, sendo a segurança social um direito de todos os cidadãos, enquadrando mesmo os que para ela não podem contribuir, tal como consagrado constitucionalmente (artigo 63º), concebida como um “bem público por imposição constitucional”, então as contribuições para a segurança social têm a natureza de impostos ou, pelo menos, a eles são equiparadas.[9] Apesar desse unanimismo, o fiscalista José Casalta Nabais defende que é inaplicável às contribuições para a segurança social a LGT, porque esta estabelece que o regime geral de taxas e demais contribuições financeiras favor de entidades públicas constará de lei especial (artigo 3º, 3).[10] Salvaguardando o mérito e respeito desta posição, cremos que a própria LGT, embora remetendo para especial regulamentação, enquadra, como predissemos, as contribuições para a segurança social nas relações jurídico-tributárias, que integram tanto os tributos fiscais como os parafiscais, incluindo espécies tributárias criadas por lei, designadamente as taxas e demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas. A amplitude da relação jurídico-tributária, na falta de diversa regulamentação da matéria, não pode deixar de sujeitar a taxa social única aos princípios tributários definidos para a relação jurídico-tributária.
Colocar estas contribuições fora da matéria fiscal violaria o princípio constitucional da legalidade fiscal (artigo 103º) que, para além do deferimento da reserva de competência legislativa à Assembleia da República, entronca na conformação e definição material dos princípios que enformam o sistema fiscal. Essa opção levaria a que as contribuições para a segurança social escapassem aos princípios jurídico-constitucionais estruturantes da tributação, como o da legalidade, o da segurança jurídica e o da igualdade. Embora os conexos direitos dos contribuintes não constituam direitos fundamentais dos cidadãos, o direito fiscal não está imune ao regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, designadamente à “ideia de intangibilidade da dignidade da pessoa humana, que dá sentido ao conjunto dos direitos fundamentais e consubstancia o conteúdo ou núcleo essencial de cada um deles, além de constituir um eficaz obstáculo às capitações, sempre constitui uma barreira inferior aos impostos, a exigir que estes não ponham em causa que a cada um seja assegurado um mínimo de meios ou recursos materiais indispensáveis a essa mesma dignidade”.[11]
Nesta linha de orientação, o Decreto-Lei 411/1991, de 17 de Outubro, que instituiu o regime jurídico de regularização das dívidas à segurança social, surge enformado pelo princípio da indisponibilidade dos impostos, ínsito à LGT, ao estatuir que não é permitido autorizar ou acordar extrajudicialmente o pagamento prestacional de contribuições em dívida à segurança social, nem isentar ou reduzir, extrajudicialmente, os respetivos juros vencidos ou a vencer, salvo as situações excecionais para a regularização da dívida, que conferem a possibilidade de ser autorizado o pagamento em prestações das contribuições em atraso e admitida a inexigibilidade dos juros de mora para com as empresas que recuperem a sua dívida em curto prazo (artigos 1º e 2º). Não estamos perante uma dessas situações de exceção e, por isso, a moratória conferida pelo plano de insolvência aprovado quanto ao crédito da segurança social não se coaduna com o regime geral de regularização de dívidas à segurança social, violando também as normas imperativas estabelecidas pelo predito Decreto-Lei.” Não se tendo o ISS, I.P. manifestado na assembleia de credores favoravelmente à homologação do plano, atenta a natureza indisponível dos créditos em causa, não estavam reunidas condições para a homologação do plano, impondo-se ao juiz a recusa oficiosa de homologação, uma vez que a mesma importa a infração de normas legais imperativas representativa de violação não negligenciável das regras aplicáveis ao seu conteúdo (artigo 215º, 1, do CIRE).
“A indisponibilidade dos créditos tributários não pode ser afastada por vontade das partes ou de terceiros e é decorrência dos princípios constitucionais da legalidade e igualdade tributária (artigos 13º, 103º, 104º CRP). Daí que o diferimento do pagamento em prestações do crédito da segurança social, a concessão de moratória e a não alusão ao pagamento de juros, constitua uma violação não negligenciável daquelas normas na parte respeitante àquele crédito. Pelas razões expendidas, entendemos que a concessão de moratória estabelecida no plano de insolvência está coberta pelo princípio da indisponibilidade dos créditos tributários.
Do mesmo modo, os créditos da segurança social, mesmo os comuns, não deixam de estar sujeitos aos princípios da legalidade e da indisponibilidade, pelo que a afetação dos créditos da segurança social sem consentimento do seu titular viola ainda o artigo 192º, 2, do CIRE. Porque foi preterida a lei (artigo 215.º do CIRE), não podemos consentir na validade da homologação do plano de insolvência.”
Em suma, dir-se-á que “face ao que consta no artigo 125º da Lei n.º 55/2010, de 31/12 e independentemente de quaisquer interpretações das normas estabelecias nos nº 2 e 3 do artigo 30º da Lei Geral Tributária, parece não poder haver quaisquer dúvidas que o legislador só poderia querer dizer que os créditos tributários eram indisponíveis, mesmo em processos de insolvência”, não podendo resultar de qualquer disposição do CIRE que os créditos tributários eram disponíveis, estando impossibilitada por isso a homologação, atento o disposto no artº 215º n.º do CIRE, de um plano de pagamentos no qual estivesse incluído um perdão ou qualquer redução de um crédito tributário (assuma ele vertente fiscal ou parafiscal) sem a anuência do titular do crédito.[12]
Daí que, tendo sido aprovado o Plano de Recuperação da empresa (…) – Comércio e Indústria de Peles, Lda., sem que o Instituto da Segurança Social, I.P. o haja aprovado ou haja anuído quanto à modificação do pagamento do seu crédito, tal plano não lhe é oponível, pelo que a decisão que o homologou deverá manter-se, com ressalva que o plano de recuperação da referida empresa é ineficaz em relação ao credor Instituto da Segurança Social, I.P.
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DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social, I.P., e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, mantendo-se a homologação do Plano, com a ressalva que o mesmo é ineficaz relativamente ao crédito reclamado por tal Instituto, não produzindo aquele qualquer efeito quanto a este crédito.
Sem custas.
Évora, 28-05-2015
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes
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[1] - disponível in www.dgsi.pt, no processo 4697/10.5TBSTS-E.P1.
[2] - Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, 2ª ed., pág. 16.
[3] - Saldanha Sanches, ibidem, pág. 27
[4] - Designação introduzida pelo Decreto-Lei 140-D/1986, de 14 de Junho, que procedeu á integração das quotizações para o Fundo de Desemprego nas contribuições obrigatórias para a segurança social.
[5] - Acs. STA n.º 9/06, de 19-10-2006, e 0699/08, de 28-01-2009.
[6] - José Casalta Nabais, “Direito Fiscal”, 3ª ed., págs. 47, 50 e 58.
[7] - Saldanha Sanches, ibidem, págs. 28 a 30.
[8] - Ac. STJ de 10-05-2012, in www.dgsi.pt, no processo 368/10.0TBPVL-D.G1.S1
[9] - José Casalta Nabais, ibidem, págs. 638 e 639.
[10] - Obra citada, pág. 639, nota 192.
[11] - José Casalta Nabais, ibidem, pág. 161.
[12] - v. Ac. do STJ de 14/06/2012 in www.dgsi.pt no processo 506/10.3TBPNF-E.P1.S1; Ac. do TRC de 29/11/2011 in www.dgsxi.pt, no processo 588/08TBFND-D.C1.