Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3569/19.2YIPRT.E1
Relator: ANA MARGARIDA CARVALHO PINHEIRO LEITE
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
EMPREITADA
DONO DA OBRA
EMPREITEIRO
PREÇO
IMPOSTO
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – No âmbito do contrato de empreitada, apesar de o IVA recair sobre o dono da obra, como sujeito passivo final e contribuinte de facto, apresentando-se o empreiteiro como contribuinte de direito, obrigado à respetiva liquidação e entrega ao Fisco, podem os contraentes acordar no sentido de que o preço acordado englobe, ou não, tal imposto;
II - Se a solução que o recorrente defende para o litígio se baseia em factualidade que não se encontra provada, mostra-se prejudicada a apreciação da questão suscitada (sumário da relatora).
Decisão Texto Integral:
3569/19.2YIPRT.E1
Juízo Local Cível de Portimão
Tribunal Judicial da Comarca de Faro



Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

A… intentou procedimento de injunção contra E… pedindo a notificação deste no sentido de lhe ser paga a quantia de € 5840, acrescida de juros vencidos no montante de € 225,43 e vincendos até integral pagamento.
A fundamentar a pretensão, alega que celebrou com o requerido, a 01-02-2018, um contrato de fornecimento de bens ou serviços, com vista à colocação de calçada e de manilhas em moradia sita em Folga, Marmelete, o que executou, sem que tenha sido apresentada qualquer reclamação, não tendo o requerido procedido ao integral pagamento do montante acordado, não obstante interpelado para o efeito, permanecendo em dívida a quantia que peticiona.
Frustrada a diligência efetuada com vista à citação do requerido, foram os autos distribuídos como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Citado, o requerido apresentou oposição, na qual se defende por exceção – invocando o pagamento parcial e o não cumprimento do contrato – e por impugnação.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a acção improcedente e, em consequência decide-se:
a) Declarar improcedente a excepção peremptória de não cumprimento do contrato (art.º428º do C.C.);
b) Condenar o requerido no pagamento ao requerente da quantia de 1.333,00€, acrescida de juros comerciais calculados à taxa legal, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento;
c) Absolver o requerido do demais peticionado;
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Custas pelo decaimento, que se fixa em 79% para o requerente e 21% o requerido – art.º 527º nº2 do C.P.C.
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Inexistem indícios de má-fé das partes.
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Fixo à causa o valor de 6.417,43€ (seis mil quatrocentos e dezassete euros e quarenta e três cêntimos), nos termos do art.º297º nº1 e 306º nº2 do C.P.C.
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Registe e notifique.
Inconformado, o autor interpôs recurso desta decisão, pugnando pela revogação da parte em que se considerou que o valor indicado pelo recorrente já incluía o IVA, substituindo-se por decisão que condene o recorrido ao pagamento do montante correspondente ao IVA referente ao preço da empreitada, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A. Por contrato de empreitada, foi acordado entre o Recorrente e Recorrido a execução de uma obra que consistia na colocação de calçada e de manilhas numa moradia sita no sítio da Folga, em Marmelete, propriedade do Apelado e mulher.
B. No entanto, tal contrato não foi reduzido a escrito.
C. Nas negociações houve intervenção de uma intérprete, uma vez que o Recorrente não fala línguas estrangeiras.
D. O preço dos serviços foi dado em função dos metros fornecidos pela mulher do Recorrido, uma vez que o Recorrente não tinha ainda ido ao local.
E. Possibilitando assim ao Recorrente dar o preço da empreitada.
F. Considerando os 100 metros lineares vezes x 30€ ao metro (25€ para a calçada e 5€ para a preparação do terreno).
G. Quando os trabalhos se iniciaram é que o Recorrente foi confrontado com a alteração do tamanho do caminho, ou seja, com mais metros para além dos fornecidos pela mulher do Recorrido.
H. Facto que deu conta ao Recorrido, tendo o mesmo aceite a alteração, reconhecendo esse facto.
I. O Recorrente emitiu uma factura à qual acresceu o IVA, factura que foi paga pelo Recorrido na sua totalidade.
J. Não se percebe assim como pôde o Tribunal “a quo” ter acompanhado o entendimento do Recorrido quando este refere que o preço dado já incluía o IVA.
K. Quando a Srª interprete referiu ter acompanhado as negociações e ter traduzido que o preço era acrescido do IVA.
L. Facto confirmado por esta testemunha que referiu aos minutos [00:05:05] O Sr.º A… passado uns 2 dias ligou-me, depois de eu ter informado sobre a extensão, e ele disse-me assim “dá 7300€”. Eu depois liguei para a Dª J… e disse, “olha os 100 metros conforme falamos com as duas faixas são 7300€ mais IVA” e ela disse “Ok” já não me lembro se ela disse que ia falar com o marido ou se disse logo que sim, mas pronto ou concordou nessa altura ou concordou no dia seguinte, e eles começaram a fazer o trabalho que ficou combinado fazer.
M. E depois ainda quando questionada pela mandatária do Apelante - [00:05:37] E a Sr.ª tem a certeza que disse os 7300€ mais IVA? [00:05:38] Tenho, tenho. Por telefone e falei com a D.ª J….
N. Não havendo prova documental, havia de ter sido dado como provado que ao preço dado acrescia o IVA, com base nas declarações da Srª interprete.
O. Incorrendo assim um erro na apreciação da prova produzida.
P. Andou mal ainda o Tribunal “a quo” também na aplicação do direito.
Q. Tratando-se o IVA de um imposto sobre o consumo que onera, na sua estrutura finalística, o consumidor final – no contrato de empreitada recai sobre o dono da obra –, está ele, salvo convenção em contrário, obrigado, enquanto sujeito passivo e contribuinte de facto, a entregar ao empreiteiro a importância correspondente ao IVA devido, (Cf. Ac. STJ de 4.06.2013, Proc. nº 137/09.0TBPNH.C1.S1, Relator: Mário Mendes)..
R. Dispondo o artigo 36º nº 1 do CIVA (a importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da factura ou documento equivalente para efeitos da sua exigência ao adquirente dos bens ou serviços),
S. Sendo entendimento da maioria da jurisprudência que “se deve entender que caso se não demonstre que foi estipulada por vontade das partes a modalidade IVA incluído (o ónus da prova recai sobre o adquirente) se deve concluir que a modalidade aplicável é a de IVA a acrescer.
T. Foram assim violadas as disposições dos artigos 7º e 36º do CIVA e os artigos 1207º e 1211º do C.C., que implica a modificabilidade da decisão de facto pelo que vem argumentado.»
O réu apresentou contra-alegações, nas quais invoca o incumprimento pelo apelante dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, pronunciando-se no sentido da rejeição da reapreciação da decisão de facto e da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) da obrigação de pagamento do IVA.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. O Requerente é empresário em nome individual e dedica-se à actividade de construção civil.
2. O Requerido por sua vez, contratou os serviços do Requerente para que este efectuasse uma obra na moradia sita no sítio da Folga, em Marmelete.
3. Os trabalhos consistiam na colocação de calçada e colocação de manilhas.
4. O Requerente emitiu facturas no valor total de Euros 13.530,00 (treze mil quinhentos e trinta euros), que o Requerido não quis pagar a totalidade dos valores.
5. Apesar de várias vezes interpelado, o Requerido até à data, não efectuou o pagamento do referido supra.
6. A requerente emitiu as seguintes facturas, num total de 6.417,43 (seis mil quatrocentos e dezassete euros e quarenta e três cêntimos), quando acrescidas de juros de mora vencidos:
a) Factura FC A2018/5 no valor de 2 460,00 € datada de 02/05/2018;
b) Factura FC A2018/9 no valor de 4.920,00€ datada de 08/08/2018, da qual declara não estar pago o valor de 920,00€;
c) Factura FC A2018/10 no valor de 2 460,00 € datada de 08/08/2018;
Da oposição
7. Para o escoamento de água ficou acordado que seriam colocadas 3 manilhas.
8. Os trabalhos foram iniciados em Fevereiro de 2018, com prazo para a execução e conclusão dos trabalhos de 1 semana, estipulado por mútuo acordo.
9. Em virtude da elevada precipitação e das dificuldades com o escoamento da água, os trabalhos foram por várias vezes interrompidos e reiniciados, tendo-se prolongado a sua execução por 6 semanas.
10. Perante o atraso da execução dos trabalhos e dificuldades da construção, o próprio requerido colaborou, fisicamente, com o requerente na construção das vias da calçada e colocação de manilhas, para ajudar a corrigir os problemas da obra e na tentativa de se concluírem os trabalhos o mais depressa possível.
11. Ao final de 6 semanas, o requerente terminou a sua participação na execução dos trabalhos.
12. Tanto o requerido como a esposa se têm, desde então, dedicado a melhorar o estado de todo o pavimento, a custo do próprio financiamento.
13. O requerido já por diversas vezes manifestou a sua insatisfação com a obra e interpelou o requerente para correcção da mesma, nunca o requerente tendo procedido a quaisquer diligências para tal.
14. O requerido denunciou diversas vezes os defeitos que entende existirem na obra quer verbalmente em reuniões ocorridas com o requerente, quer por escrito directamente e através de advogado.
15. Em 23-04-2018, em reunião com o requerente e, posteriormente por carta, o requerido propôs duas soluções alternativas para o fim da relação contratual: ou o requerente procedia à correcção dos defeitos de obra, mediante o pagamento do requerido no valor de 3.690,00€ ou, em alternativa, o requerido nada mais tinha a pagar ao requerente e iria contratar outra pessoa para finalizar a obra.
16. Aliás, no dia 24-03-2018 o requerente havia enviado ao requerido uma factura emitida nesse mesmo valor de 3.690,00€, valor que foi pago pelo requerido, mediante transferência bancária, tendo mais tarde o requerente emitido o devido recibo.
17. Após o pagamento da referida factura e no seguimento dos termos falados na reunião ficou o requerido convicto de que teria terminado a relação contratual com o requerente.
18. Antes das interpelações do requerente e do seu advogado e da emissão das facturas, já o requerido havia efectuado três pagamentos faseados ao requerente, entregues em dinheiro, de 2.000,00€ (dois mil euros) cada um e ainda um pagamento de 3.690,00€(três mil seiscentos euros e noventa cêntimos) efectuado por transferência bancária, num total de 9.690,00€(nove mil seiscentos e noventa euros).
19. Aquando da reunião para a contratação dos serviços do requerente, o requerido indicou uma estimativa de 100m de comprimento para o caminho da calçada.
20. Valor este que não foi objecto de confirmação ou medição por parte do requerente.
21. Ainda assim, o requerente apresentou ao requerido o preço para a execução da obra de 7.300,00€(sete mil e trezentos euros), o que foi aceite pelo requerido.
22. O requerente entendeu que o orçamento que lhe havia sido apresentado era em contrapartida da execução completa dos trabalhos e que o requerente teria verificado as medições do local, por forma a concluir um orçamento e preço assertivos sobre a obra em causa.
23. Ainda antes do início da execução dos trabalhos, o requerido pagou ao requerente a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros) entregue em dinheiro, não lhe tendo sido entregue pelo requerente qualquer factura ou recibo a esse respeito.
24. No decorrer das primeiras semanas de trabalhos, o requerente fez um novo reforço do pagamento do preço, novamente no valor de 2.000,00€ (dois mil euros) entregue em dinheiro, não lhe tendo sido entregue pelo requerente qualquer factura ou recibo por essa quantia.
25. Posteriormente, veio o requerente comunicar o aumento do preço 11.023,00(onze mil e vinte e três euros) justificando com base nas medições da área do caminho da calçada.
26. O requerido, embora com algum protesto, aceitou o novo preço acordado de 11.023,00€, voltando a efectuar um pagamento de 2.000,00€(dois mil euros) em dinheiro, pelo qual também não lhe foi entregue qualquer factura ou recibo a esse respeito.
27. Em abril de 2018, após a reunião para a tentativa de solução da situação contratual, o requerido pagou o valor de 3.690,00€ por conta da factura FC1208/4, que lhe foi enviada pelo requerente.
28. O que tudo somado perfaz a quantia de 9.690,00€. 29. A 02-05-2018 o requerente emitiu o recibo pelo pagamento feito pelo requerido por conta da factura FC2018/4 (em Abril de 2018) no valor de 3.690,00€.
30. No mesmo dia, 02-05-2018, o requerente emite uma nova factura FC A201/5, com a descrição “serviços prestados colocação de calçada sítio da folga Monchique”, no valor de 2.460,00€.
31. Posteriormente, em 08-08-2018, vem o requerente emitir a factura FC A2018/9, com a descrição “serviços prestados com material colocação de calçada sítio da folga Monchique”, no valor de 4.920,00€.
32. E, no mesmo dia, emite um recibo RC 2018/7, no valor de 4.000,00€, por conta da FCA2018/9.
33. Também datada de 08-08-2018 o requerente emite nova factura FC A2018/10, com a descrição “Serviços prestados com material colocação de calçada sítio da folga Monchique”, no valor de 2.460,00€.
34. Sobre os preços que foram apresentados pelo requerente, primeiramente de 7.300,00€ e posteriormente de 11.023,00€ foram sempre entendidos como preços finais, neles incluindo a mão-de-obra, os materiais e os devidos impostos legais, nomeadamente, o IVA.
Da resposta à excepção
35. O Réu contactou o Autor para fazer uma intervenção num caminho de acesso à casa deste, sugerindo que fosse feito em betão.
36. O Autor após ver o caminho, aconselhou que os trabalhos fossem feitos em calçada com a colocação de travessias com manilhas.
37. Ao telefone com a esposa do Réu, foi-lhe dito por esta que os trabalhos se cingiam a cerca de 100m, pelo que, o Autor deu o preço de 30,00€ por m2.
38. Os trabalhos iniciaram-se em Fevereiro de 2018 tendo-lhe sido pedida urgência na obra uma vez que os Réus se iriam ausentar para a Holanda.
39. Ao fim do 3º/4º dia de trabalhos, um funcionário do Autor telefonou-lhe dizendo que o material comprado não iria chegar, pois não eram 100m, mas sim 150m.
40. De imediato reportou o Autor esta situação à mulher do Réu que lhe disse para continuar com os trabalhos e alterar o orçamento em conformidade.
41. Devido à elevada precipitação, os trabalhos eram sempre interrompidos e os já feitos ficavam danificados levando a que o Autor os tivesse de reiniciar e que a obra se tivesse prolongado por mais tempo que o previsto inicialmente levando também a que o Autor tivesse de substituir alguns materiais.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
A. Os serviços foram efectuados pelo Requerente, sem que houvesse qualquer tipo de reclamação pelo Requerido até ao momento em que foram apresentadas as facturas para pagamento.
B. Na presente data, o Requerido apenas procedeu ao pagamento da Factura FC A2018/4 no valor de Euros 3.690,00 e a Factura FCA2018/9 no valor de Euros 4.920,00 encontra-se parcialmente paga, estando em divida o valor de Euros 920,00.
C. A execução dos trabalhos pelo requerente apresenta defeitos a vários níveis.
D. Os trabalhos contratados consistiam na colocação de duas vias de calçada com a dimensão de 1 metro cada uma e uma distância de 80cm entre ambas.
E. Que em 7, as manilhas teriam 30cm.
F. O requerente não cumpriu com os prazos acordados para a execução dos trabalhos.
G. Durante a execução dos trabalhos ocorreram diversas complicações a vários níveis nos trabalhos executados pelo requerente.
H. Os problemas verificados consistiram essencialmente em dificuldades de escoamento da água (da chuva) que resultou na danificação dos trabalhos, de forma sucessiva e substancialmente grave.
I. A maioria dos problemas ocorridos durante a execução não foram corrigidos na sua raiz, pelo que, após o requerente ter abandonado a obra, ainda existem graves defeitos.
J. Os defeitos da obra prendem-se designadamente com:
a) A existência de deficiências no calcetamento e compactação da calçada, o que provoca que as pedras se levantem ou soltem do caminho;
b) Má colocação e estabilização das pedras da calçada;
c) Deficiências no sistema de escoamento da água;
d) Desnivelamento do terreno;
e) Deformações no pavimento;
f) Mau funcionamento das manilhas;
K. Foi deixada uma grande quantidade de terra e sujidade acumulada nos locais adjacentes à calçada que, associados ao mau funcionamento do sistema de escoamento de água e ao deslizamento de terra associado, danificam o caminho da calçada.
L. Sempre que chove ocorre uma grande deslocação de terra e sujidade existentes nas bermas do caminho da calçada, o que tem provocado prejuízos para o requerente e obrigado a sucessivas limpezas e correções no terreno.
M. Para que a calçada continue utilizável o requerido e a sua esposa viram-se forçados a proceder recorrentemente à remoção das terras acumuladas e limpeza do caminho da calçada e de toda a zona envolvente, a custos físicos e financeiros próprios.
N. Que em 15, o requerente respondeu, não negando a existência dos defeitos, mas exigindo o pagamento da totalidade do preço.
O. Tendo o requerente apresentado o seu NIB para transferência e não tendo manifestado o seu desacordo com os termos propostos.
P. Que em 21 foi pelo requerente referido qualquer montante de IVA.
Q. Que em 37 acrescia a preparação do terreno, trabalho de máquinas a 5,00€ por m22, acrescido do IVA à taxa legal.
R. A obra foi entregue sem que lhe tivessem sido reportados quaisquer defeitos, no entanto, o Autor sempre se disponibilizou para reparar caso os houvesse.
S. Todos os orçamentos que apresentou ao Réu foram sempre com menção de mais IVA.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, tecendo diversos considerandos sobre a prova produzida e concluindo que “não havendo prova documental, havia de ter sido dado como provado que ao preço dado acrescia o IVA, com base nas declarações da Sr.ª Intérprete”.
Nas contra-alegações apresentadas, o apelado invoca o incumprimento pelo apelante dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, pronunciando-se no sentido da rejeição da reapreciação da decisão de facto.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o artigo 640.º do Código de Processo Civil o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 165-166), com relevo para a questão suscitada, o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Analisando as conclusões das alegações de recurso apresentadas, verifica-se que o recorrente não especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, limitando-se a afirmar que deveria ter sido considerado provado que “ao preço dado acrescia o IVA”.
A indicação dos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, apesar de parcialmente abordada no corpo das alegações do recurso de apelação, não foi levada às respetivas conclusões, as quais delimitam o âmbito do objeto do recurso, conforme resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC.
Nas conclusões das alegações, o apelante limita-se a afirmar que deveria ter sido considerado provado que “ao preço dado acrescia o IVA”, não indicando qualquer facto provado ou não provado que entenda incorretamente julgado. Ora, não tendo sido concretamente impugnados quaisquer factos, tal afirmação não permite, por si só, fazer incidir a pretendida modificação da decisão de facto sobre qualquer concreto ponto de facto julgado provado ou não provado, mas unicamente ponderar o eventual aditamento de tal elemento à factualidade provada. No entanto, não tendo sido impugnado qualquer dos factos considerados assentes, tal aditamento originaria uma evidente contradição entre factos julgados provados.
Face ao facto constante do ponto 34 – com a redação seguinte: Sobre os preços que foram apresentados pelo requerente, primeiramente de 7.300,00€ e posteriormente de 11.023,00€ foram sempre entendidos como preços finais, neles incluindo a mão-de-obra, os materiais e os devidos impostos legais, nomeadamente, o IVA –, não impugnado pelo apelante, que o não coloca em causa nas conclusões das alegações, verifica-se que o eventual aditamento do facto “ao preço dado acrescia o IVA”, defendido pelo recorrente, originaria uma contradição entre dois factos provados, em virtude de passar a considerar-se simultaneamente assente que o IVA se encontrava e não encontrava incluído no preço acordado, o que se mostra inviável.
As questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretende ver reapreciadas. Não tendo o apelante incluído a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados nas conclusões das alegações, verifica-se que restringiu o objeto do recurso, não tendo a Relação de conhecer da questão da impugnação dos pontos de facto mencionados no corpo da alegação, dado não se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
Na jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de a falta de indicação, nas conclusões da alegação, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, importar o incumprimento do ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 05-01-2016, proferido na revista n.º 36/09.6TBLMG.C1.S1 - 6.ª Secção, de 21-01-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TCFUN.L1.S1 - 2.ª Secção, de 02-02-2016, proferido na revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, de 03-05-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TNLSB.L1.S1 - 6.ª Secção, de 31-05-2016, proferido na revista n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 - 1.ª Secção, de 02-06-2016, proferido na revista n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 05-08-2016, proferido na revista n.º 221/13.6TBPRD-A.P1.S1, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 1260/07,1TBLLE.E1.S1 - 1.ª Secção, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 462/13.6TBPTL.G1.S1 - 6.ª Secção, e de 02-03-2017, proferido na revista n.º 1574/11.6TBFLG.P1.S1 - 7.ª Secção, cujos sumários se encontram disponíveis para consulta em www.stj.pt.
Decorrendo do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º que o incumprimento pelo recorrente do indicado ónus – especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, encontra-se afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, não se verifica propriamente o incumprimento pelo apelante do indicado ónus, de indicação nas conclusões dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, dado que aí se encontra especificado que entende dever ser aditado um facto, com a redação: “ao preço dado acrescia o IVA”. O que está em causa é a manifesta improcedência da impugnação deduzida, considerando que o aditamento de tal facto à matéria assente, na falta de impugnação de qualquer outro facto anteriormente julgado provado, originaria uma evidente contradição entre esse facto e o facto constante do ponto 34, nos termos supra expostos.
Conclui-se, assim, que os factos tidos por assentes, não impugnados na apelação, impedem a procedência da impugnação deduzida, o que torna desnecessária a reapreciação dos meios de prova indicados pelo apelante, impondo a improcedência de tal impugnação.
Improcede, assim, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

2.2.2. Obrigação de pagamento do IVA
Está em causa, nos presentes autos, uma relação jurídica estabelecida entre as partes – que acordaram na execução pelo autor de trabalhos de colocação de calçada e de manilhas em determinada moradia, mediante o pagamento de um preço pelo réu –, qualificada na decisão recorrida como contrato de empreitada, o que não vem questionado no presente recurso, encontrando-se as partes de acordo a tal respeito.
Vem questionado na apelação o convencionado entre as partes quanto à retribuição devida ao empreiteiro autor.
Considerou a decisão recorrida que foi acordado entre as partes o pagamento pelo réu da quantia de € 11 023, no qual se incluía o montante correspondente ao IVA, conforme se extrai do excerto seguinte:
Analisada a matéria de facto, resulta que foi dada como provada a realização de uma obra – pontos 2, 3 e 7 - pela qual o requerente apresentou o valor final de 11.023,00€, aceite pelo requerido - pontos 25 e 26.
Igualmente foi dado como provado que foi pago pelo requerido o valor de 9.690,00€ - pontos 23, 24, 26, 27 e 28 - restando assim 1.333,00€ em dívida.
Igualmente foi dado como provado que o requerido entendeu tais valores como finais, isto é, incluindo o IVA ou pelo menos, que este não acresceria, não tendo o requerente pedido o IVA, informado o requerido que este acresceria a tal valor, nem dado a entender que o valor não o englobava, pelo que, o preço final acordado terá que ser entendido como final, isto é, incluindo o IVA, sendo que, entendimento distinto importaria, salvo melhor entendimento, um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (art.º334º do C.C.) dado que o requerente recebeu vários valores de adiantamento em numerário, dos quais não emitiu, até à data, a factura (isto é, sem IVA) e sem qualquer recibo, não tendo repercutido na nota final tais pagamentos. Sendo que o contrato foi todo verbal, sem documentação. Porém, posteriormente, aquando do desacordo das partes, o requerente emite as facturas – que o não podem ser sem IVA – exigindo assim uma quantia que o requerido não esperava ou que entendia já integrada no valor final. Termos em que, o ponto 34 terá que importar a conclusão, em nosso entender, que os valores em apreço são finais, sendo o ónus de prova em contrário era do requerente, que não logrou provar o mesmo.
Discordando deste entendimento, sustenta o apelante que o montante correspondente ao IVA não se encontrava incluído no preço acordado, antes acrescendo à quantia correspondente a tal preço, motivo pelo qual defende dever o réu ser condenado a pagar tal acréscimo.
Porém, esta solução que o recorrente defende para o litígio baseia-se em factualidade que não se encontra provada – a saber: que o montante correspondente ao IVA não se encontrasse incluído no preço acordado – e ignora o facto considerado assente sob o ponto 34, com a redação seguinte: Sobre os preços que foram apresentados pelo requerente, primeiramente de 7.300,00€ e posteriormente de 11.023,00€ foram sempre entendidos como preços finais, neles incluindo a mão-de-obra, os materiais e os devidos impostos legais, nomeadamente, o IVA.
Encontrando-se assente que o preço acordado entre as partes englobava já o montante correspondente ao IVA, mostra-se prejudicada a apreciação da questão suscitada pelo apelante, por baseada em factualidade não provada.
Embora o IVA recaia sobre o dono da obra, como sujeito passivo final e contribuinte de facto, apresentando-se o empreiteiro como contribuinte de direito, obrigado à respetiva liquidação e entrega ao Fisco, nada impede que os contraentes acordem, no âmbito do contrato de empreitada, no sentido de que o preço acordado englobe, ou não, o IVA (cf. artigos 2.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, al. b), 35.º, n.º 5, e 36.º do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado e artigos 219.º e 224.º do Código Civil). Este acordo das partes, no sentido de estabelecer, no contrato de empreitada, que o preço desta englobe, ou não, o IVA, mostra-se válido, dado que não contraria nenhuma norma de carácter imperativo relativa à forma, à perfeição ou ao objeto da declaração negocial[1].
Permitindo a matéria de facto considerada assente concluir que as partes acordaram no sentido da integração do IVA no preço fixado, não há que apreciar a supra enunciada questão suscitada na apelação, por baseada em factualidade não provada, nem a controvertida questão de aferir se, perante a omissão de qualquer estipulação relativa à integração do IVA no preço fixado, caberá ou não ao dono da obra entregar ao empreiteiro o montante correspondente ao IVA em acréscimo ao preço fixado, ambas se mostrando prejudicadas por baseadas em hipótese factual diversa da presente.
Nesta conformidade, considerando que a solução que o recorrente defende para o litígio assenta em factualidade não provada e que o mesmo não sustenta qualquer alteração da matéria de direito a apreciar com base na factualidade fixada pela 1.ª instância, cumpre julgar improcedente a apelação.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

*
Évora, 04-06-2020
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(relatora)
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
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[1] Neste sentido, cf. entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2011 (publicado em www.dgsi.pt), proferido na Revista n.º 127/06.5TBMDA.C1.S1 - 6.ª Secção.