Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
25/22.5PTSTB.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A permanência na habitação com VE não se reduz a um mero meio de cumprimento da pena de prisão, antes se assume como uma verdadeira pena autónoma, com natureza de pena de substituição, pese embora formalmente se tivesse intencionalmente conferido tal «rotulagem» de meio de cumprimento
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 25/22.5PTSTB, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …l – Juiz …, em Processo Especial Abreviado, foi o arguido AA condenado, por sentença de 23/06/2022, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, em conjugação com o artigo 121º, nºs 1 e 4, do Código da Estrada, na pena de 7 meses de prisão.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

I - O Recorrente não pode conformar-se com a extrema dureza da pena de prisão que lhe foi aplicada.

II- A sentença de que ora se recorre, e salvo o devido respeito, não fez a mais correta aplicação das circunstâncias que deverão ser atendidas na determinação da medida concreta da pena e, nessa medida, não fez a aplicação mais adequada do artigo 71.º do Código Penal.

III - A sentença recorrida baseou a aplicação de uma pena de prisão efetiva de sete meses de prisão, na ponderação dos seguintes fatores: atuação a título de dolo direto, a ilicitude, que se refere mediana, a inserção social e económica (nada de negativo se tendo apurado a este respeito) e a conduta anterior aos factos (plasmadas nas condenações anteriores pelo mesmo tipo de crime, considerando o juiz a quo que o comportamento delitivo assumido pelo arguido denota uma banalização e relativização quanto à prática do crime em causa).

IV - Relativamente à determinação da medida da pena, do seu “quantum”, não foram, salvo o devido respeito, bem ponderadas as necessidades de prevenção especial e geral e a culpa do agente, tendo sido aplicada uma pena manifestamente excessiva ao crime de condução ilegal, depois de consideradas as circunstâncias do caso em concreto.

V- Pois em momento algum, após análise dessas mesmas circunstâncias, se vislumbra um motivo em concreto para a fixação de sete meses de prisão, e não uma medida de pena inferior ou a adoção de medida não privativa da liberdade.

VI - Em lado algum é provado ou sequer referido que o arguido conduziu com perigo para si ou para terceiros ou que foi interveniente em qualquer acidente de viação de qualquer gravidade humana ou material.

VII - Pesou efetivamente, na aplicação da medida da pena de prisão, o registo criminal do arguido onde constava, além do mais, outro crime da mesma espécie num muito curto espaço de tempo.

VIII - E o facto de o arguido não ter comparecido para se pronunciar perante a DGRSP pela aplicação/aceitação de uma medida de execução da pena em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, levou o tribunal a concluir pelo seu desvalor e desconsideração em relação às sanções penais aplicadas e a aplicar.

IX - Não poderia estar mais errado. E esclarece-se devidamente este ponto: o arguido AA tem algumas limitações cognitivas, motivo pelo qual na escola que frequentou foi sempre um aluno sinalizado e com currículo e instrumentos de avaliação adaptados.

X - Vem de uma família disfuncional, tendo sido criado alternadamente pela avó materna e em instituições de acolhimento de menores, o que o levou a confiar em pessoas de má índole que o conduziram a esta situação.

XI - Isto porque, o AA conheceu uma pessoa em quem passou a confiar, que lhe pedia que fizesse o transporte de veículos de uma oficina de mecânica para uma empresa, dizendo sempre que se porventura fosse “apanhado a conduzir sem carta” que pagaria a multa…

XII - E foi ao serviço deste suposto amigo que ele transportou sempre os veículos, pelos quais agora responde em tribunal por condução sem habilitação legal.

XIII - Para tentar liquidar as multas a que foi condenado, no início do mês de abril o arguido começou a trabalhar com uns conhecidos seus a fazer festividades, explorando um entretenimento estilo salta montes denominado …, a troco de comida, cama e dez euros por dia.

XIV- No entanto, o acordado não foi cumprido e o arguido viveu em condições desumanas, dormindo com melgas e bichos que o marcaram/picaram em toda a zona dos pés, até ficarem em ferida, comia comida estragada e bebia sumos azedados.

XV - Durante o período em que se encontrava a trabalhar nestas festividades, soube por telefone que teria que comparecer no Tribunal, mas o seu patrão não o ajudou e não lhe deu sequer dinheiro para o autocarro para conseguir comparecer.

XVI- No seguimento desta situação, numa das festividades em que se encontrava a trabalhar, começou a ser alimentado por uma senhora que vendia farturas e que lhe dava o que sobrava, pois, foi percebendo que o arguido passava fome.

XVII - E, quando essa festividade estava prestes a terminar, implorou à senhora que o alimentava, de nome BB, e a quem carinhosamente apelida de tia, que o levasse com para ela para longe daquele patrão que o maltratava.

XVIII - A BB vendo a situação e as condições em que o arguido se encontrava e com pena do mesmo assim o fez, e trouxe-o com ela para sua casa, no concelho de …, ….

XIX - Atente-se que, desde que o arguido está com esta família que o acolheu como se de um filho se tratasse, come bem, tem uma cama para dormir e tem tentado resolver os problemas que criou com a justiça.

XX - Foi precisamente na morada desta família que o acolheu que o arguido pode prestar novo TIR, e é com esta família que está a tentar recuperar a sua vida e ter projetos, sendo o primeiro a sua inscrição numa escola de condução para finalmente poder estar habilitado a conduzir.

XXI– Já se encontra a laborar numa carpintaria, onde é assíduo e esforçado, trabalhando com regularidade horas extraordinárias.

XXII - Atendendo a estes factos novos, a esta nova vida que o arguido está a criar junto desta família que o acolheu, a pena de prisão vem fazer mais mal que bem, e não terá qualquer efeito dissuasor.

XXIII- Entregar este jovem ao sistema prisional não o vai ajudar nem, certamente, reintegrar.

XXIV - Ir cumprir a pena de prisão para o sistema prisional só o irá arrastar de novo para a vida da qual tentou fugir e que acabou por conseguir com a ajuda desta sua nova família.

XXV - Nestas circunstâncias a aplicação de medida de prisão domiciliária, também seria de ponderar atenta a nova realidade do Arguido.

XXVI- E que só antes não compareceu para se pronunciar sobre tal pena substitutiva porque, como se disse, não tinha condições económicas para se poder deslocar aos locais para os quais estava convocado.

XXVII - A prevenção geral como critério da graduação da pena torna injusta a própria pena na medida em que desloca a consideração do indivíduo singular para a generalidade e considera primeiro o aspeto de utilidade que da sua punição pode derivar para a segunda (…). O indivíduo singular acaba por ser sacrificado a fim de que, através do seu sacrifício a generalidade dos indivíduos aprenda a ter horror à perpetração daquele determinado crime”, como diz Américo Marcelino, Juiz Desembargador, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Livraria Petrony, 1998, pág. 494.

XXVIII - A prevenção geral exige normalmente penas efetivas de prisão elevadas, se houver negligência grosseira, culpa temerária ou esquecimento de deveres, e que o arguido fosse considerado um condutor habitualmente imprudente, o que não é o caso.

XXIX - A sinistralidade estradal é uma chaga das sociedades modernas, mas a solução não poderá passar por uma decisão final que vê no arguido o bode expiatório dessa sinistralidade.

XXX - Por outro lado, e sendo certo que o arguido tem como antecedentes criminais a condenação pela prática de crimes de condução sem habilitação legal,

XXXI - Certo é que o arguido se encontra deveras arrependido pelo sucedido e demonstrou esse mesmo arrependimento, com a participação ativa na prestação de novo TIR e com o novo rumo que tem tentado dar à sua vida.

XXXII - Nos termos do disposto no artigo 70.º do Código Penal, o Juiz tem de dar preferência à pena não privativa de liberdade, em detrimento da pena de prisão, sempre que aquela realizar de uma forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

XXXIII E o Meritíssimo Juiz a quo, ao escolher a pena de prisão, incorreu num exagero ao aplicar uma pena de prisão de sete meses, por ter dado mais importância às finalidades de prevenção, que só tornam a pena injusta.

XXXIV - Note-se que a prisão efetiva poderá produzir efeitos viciosos, de dimensões imprevisíveis e, tendo em conta a idade do arguido, deveria ter sido equacionada uma medida de pena inferior ou a opção pelas medidas substitutivas da pena de prisão.

XXXV - O que significa que não fez o Meritíssimo Juiz a quo a mais correta apreciação das circunstâncias que deverão ser atendidas na determinação da medida da pena e, nessa medida, não fez a aplicação mais adequada do artigo 71.º do Código Penal.

XXXVI - A medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa e há que ter em conta as exigências de prevenção geral e especial (artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal).

XXXVII - É a culpa concreta do arguido que determina a moldura da punição, dentro da qual se atenderá as exigências dos fins de prevenção.

XXXVIII - A delimitação daquela moldura, ou seja, a produção concreta da pena em função da culpa, far-se-á tendo em atenção todas as circunstâncias que, não Fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele (artigo 71.º, n.º 2do Código Penal).

XXXIX - Mesmo tendo em conta as circunstâncias tidas em conta pelo Meritíssimo Juiz a quo, entendemos que sopesado todas essas, a pena de sete meses de prisão é manifestamente exagerada, tendo em conta o já supra exposto.

XL - Bastaria a aplicação de uma pena de prisão substancialmente inferior à efetivamente aplicada ou prisão domiciliária que sempre se aceita.

XLI- É um período muito longo, para um jovem, atualmente com 24 anos de idade e que se encontra a organizar, finalmente, a sua vida, o que poderá comprometer gravemente o seu processo de ressocialização.

XLII - Aliás, o espaço prisional é apontado como estigmatizante e gerador de mais criminalidade.

XLIII- O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2008 refere que “… o espaço prisional mais do que reabilitativo é também estigmatizante, e por consequência geradora de mais criminalidade”.

XLIV- Uma vez que agora o arguido se encontra familiarmente integrado, acreditamos que é hora de experimentar uma reação penal diversa e o mesmo não deixaria de aproveitar a oportunidade que decorre da aplicação deste tipo de pena.

XLV - Assim, deverão V. Ex.ªs permitir o cumprimento igualmente de uma pena privativa de liberdade, mas que a mesma possa ser cumprida na residência da família que o acolheu, uma vez que tal forma de cumprimento da pena de prisão satisfará de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e ao mesmo tempo possibilitará ao arguido a necessidade de interiorização de que só é permitido conduzir a quem se encontra habilitado legalmente para tal.

XLVI- Considerando o acima exposto, embora reconhecendo que as necessidades de prevenção geral e especial são grandes, sendo a pena aplicada inferior a um ano, em nosso entender, deverá o arguido beneficiar de uma última oportunidade, também em virtude das mudanças positivas que ocorreram recentemente na sua vida,

XLVII - E, assim, deverão V. Ex.ªs permitir o cumprimento dessa pena de prisão, nos termos do artigo 43.º do CP, em regime de permanência na habitação, sujeito a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

XLVIII – Desta forma, reduzindo o quantum da pena de prisão, devem V. Ex.ªs permitir a execução da mesma em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, ao abrigo do disposto no artigo 43.º do Código Penal.

XLIX– É de elementar justiça que V. Ex.ªs deem uma nova oportunidade ao arguido, para que este se possa reintegrar na sociedade.

TERMOS EM QUE,

A - Deve conceder-se integral provimento ao recurso, modificando-se a decisão do tribunal a quo, optando-se pela aplicação, in casu, de uma pena de prisão inferior e menos gravosa do que aquela que foi aplicada na sentença ora recorrida e, em consequência

B - Permitir a execução da mesma em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, ao abrigo do disposto no artigo 43.º do Código Penal.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Dosimetria da pena aplicada.

Verificação dos pressupostos de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

Da acusação em especial

1. No dia 25 de Março de 2022, pelas 17h10, o arguido conduziu um veículo automóvel ligeiro de mercadorias, da marca «…», com a matrícula …, na Avenida …, ….

2. O que fez sem ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento que legalmente lhe permitisse conduzir o mesmo na via pública.

3. O arguido sabia que a condução daquele veículo está reservada aos titulares de habilitação legal e, não obstante saber não estar habilitado para tal, decidiu conduzir o dito veículo na via pública, conhecedor das características do mesmo e do local onde conduzia, o que quis e fez.

4. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.

Das condições económico-sociais do arguido e seus antecedentes criminais em especial

5. Resulta das bases de dados disponibilizadas pela Segurança Social que o arguido fez o último desconto, por reporte ao mês de Agosto de 2018, com base numa remuneração de € 454,36.

6. O arguido não regista em seu nome viaturas automóveis.

7. O arguido regista antecedentes criminais nos termos seguintes:

• Pela prática de factos que consubstanciam um (1) crime de condução sem habilitação legal, cometido em 10.03.2019, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 6,00, por sentença proferida em 12.10.2020 e transitada em julgado em 30.10.2020 (proc. n.º ..);

• Pela prática de factos que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, cometido em 28.11.2021, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00, por sentença proferida em 14.12.2021 e transitada em julgado em 26.01.2022 (proc. n.º …).

• Pela prática de factos que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, cometido em 02.02.2022, na pena de seis (6) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um (1) ano, subordinada à regra de conduta de o arguido se inscrever em escola de condução, frequentar as correspondentes aulas e submeter-se aos correspondentes exames teórico e prático, disso fazendo prova documental nos autos, sendo o cumprimento desta regra fiscalizada pelos serviços de reinserção social, por sentença proferida em 15.02.2022 e transitada em julgado em 17.03.2022 (proc. n.º …).

Quanto aos factos não provados, considerou inexistirem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Nos termos do disposto pelo art. 124.º do Cód. Proc. Penal constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.

O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente.».

(i) Da Indicação dos Meios de Prova

Os meios de prova utilizados por este Tribunal para formar a sua convicção (positiva ou negativa) dos factos, foram os seguintes:

A) – TESTEMUNHAL

• CC, agente da PSP, melhor id.º a fls…..

B) – DOCUMENTAL

• Auto de notícia de fls. 2 e 3;

• Informação extraída do I.M.T. de fls. 8, 13 e 14;

• O CRC do arguido junto aos autos.

(ii) Da Explanação Racional da Convicção do Julgador subjacente à sua Decisão de Facto, resultante da valoração e apreciação crítica efectuada aos meios de prova supra indicados

Vejamos então, em detalhe, como os diversos meios de prova produzidos, contribuíram para a formação [positiva e negativa] da convicção do Tribunal, relativamente aos factos relevantes para a boa decisão da causa.

É que a sentença, para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, há-de conter, também, «os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico, sobre provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido» - [Acórdão do STJ, de 13-02-92, CJ, tomo I, p. 36, e o acórdão do TC, de 02-12-98, D.R. na Série de 05-03-99]

Ou seja, para tal exercício, deverá o julgador socorrer-se da concatenação da prova testemunhal, documental e, quando exista, pericial juntas aos autos; sendo que na conjugação de todos estes elementos de prova, o julgador deverá encetar uma apreciação crítica de acordo com o critério ínsito no citado art. 127.º do Cód. Proc. Penal, segundo o qual, recordamos, a prova deverá ser apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade competente.

Quanto às regras da experiência comum, importa mais uma vez enfatizar que, se bem que elas constituam uma premissa genérica e abstracta que permita todas as conclusões, dever-se-á sublinhar que elas antes obrigam que se parta de factos conhecidos, objectivados em meios de prova controláveis e delimitados por regras da lógica cartesiana para se alcançarem essas conclusões.

Por sua vez, sobre a livre convicção do julgador ensinava Manuel Cavaleiro de FERREIRA, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 298, que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.». Destarte, deve dizer-se que a convicção do julgador assentou na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, bem como do teor dos documentos constantes dos autos, sobre os quais todas as dúvidas foram esclarecidas em audiência, tudo devidamente apreciado com base nas regras da experiência comum e da livre convicção do julgador – [art. 127.º do C.P.P.]

Explicação Prévia

Desde já se diga que o julgador dá aqui por adquiridos os teores dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, que se encontram gravados e acessíveis, sendo, pois, inútil estar-se nesta sede a fazer «súmulas exaustivas» - passe o paradoxo - dos mesmos.

O julgador irá sim infra explanar o seu raciocínio crítico sobre a credibilidade e relevância dos diversos meios de prova, tendo em vista legitimar, através de uma fundamentação racional e lógica (apelando às regras da experiência comum e da normalidade da vida – cf. art. 127.º do C.P.P.), a sua decisão sobre a matéria de facto; sendo aliás isso que o legislador reivindica do julgador.

Concretizando.

Assim, quanto aos factos dados como provados vertidos nos pontos 1) e 2), foram determinantes as declarações prestadas, de forma isenta, séria e objectiva, pela testemunha CC [agente da PSP, que tomou conta da ocorrência], o qual, demonstrando um conhecimento directo e pessoal, confirmou os factos nos termos supra descritos, designadamente declarou, sem hesitações e de modo seguro, ter previamente visto previamente o arguido a conduzir o veículo automóvel nos termos supra indicados; bem como confirmou que depois o fiscalizou, tendo apurado que o mesmo não era titular de licença de condução, por na altura o arguido, enquanto não assumia tal qualidade, logo lhe ter confidenciado tal facto. Por fim, explicou que identificou o arguido com base no seu cartão de cidadão que exibiu na altura e cuja cópia fez constar dos autos (cf. fls. 9).

Ora, quanto a este último segmento do depoimento desta testemunha, deve dizer-se que a mesma esclareceu que, aquando da abordagem e enquanto o arguido ainda não estava investida em tal qualidade, este lhe disse logo que ele não era titular de licença de condução, sendo que, de acordo com a mais recente jurisprudência das nossas instâncias superiores, conquanto ao que se crê ainda minoritária, as conversas mantidas entre o «arguido» e os agentes policiais no momento da fiscalização e quando o cidadão que presta declarações ainda não foi (nem devia ter sido) constituído arguido, podem ser valoradas, tese que depois de melhor analisada temos vindo a sufragar, pese embora com redobradas cautelas, designadamente, em nossa óptica, apenas as temos valorado quando tais declarações podem ser conjugadas com outros elementos probatórios objectivos que as corroboram, desprezando-as quando são o único meio de prova – [cf., neste sentido, conquanto em termos mais amplos do que defendemos, veja- se o acórdão da Relação de Évora, datado de 07-04-2015, relatado por Clemente LIMA, disponível em www.dgsi.pt, mormente quando preconiza que: «A conversa mantida entre o arguido e os agentes policiais no momento da fiscalização, não está abrangida pela proibição contida no artigo 356.º, n.º7 do C.P. Penal, como não está sob a compressão dos limites ínsitos no artigo 129.º do mesmo diploma legal, pois que se trata de interlocução espontânea, voluntária e consciente, por parte do arguido (fonte identificada), que os agentes se limitaram a ouvir no momento e a reproduzir, adrede, em audiência, (...).»] Outrossim neste sentido, pode ler-se o acórdão da Relação do Porto, datado de 17-06-2015, relatado por Artur OLIVEIRA, disponível em www.dgsi.pt: «Não é proibida a valoração do depoimento prestado pelos órgãos de polícia criminal no que se refere a declarações que colheram de um cidadão que ainda não é arguido (nem suspeito) e o vem a ser depois dessas declarações, através das quais obtiveram notícia da sua participação na prática de um crime. A lei ao proibir a inquirição dos órgãos de polícia criminal sobre o conteúdo de declarações que tiveram recebido e cuja leitura não for permitida, cinge-se às declarações prestadas no âmbito do processo ou que o deveriam ter sido («conversas informais»). Tal não ocorre se os agentes policiais, no âmbito de uma actividade de prevenção, se limitaram a recolher informação que lhes foi livremente prestada. A proibição que decorre do art. 356.º/7 C.P.P., pressupõe a existência de um inquérito a decorrer.» (1) (2)

Em apreciação crítica deste depoimento, deve efectivamente dizer-se que o mesmo, na óptica deste tribunal à luz da sua livre convicção permitida nos termos do citado art. 127.º do Cód. Proc. Penal, se revelou sério, preciso, objectivo e, destarte, credível, razão pela qual contribuiu para a formação da convicção positiva do tribunal quanto a esta factualidade nos termos supra indicados, sendo que estando tal depoimento devidamente registado pelo sistema de gravação sonoro, se dispensa, por isso, outras considerações a respeito (3)

Em conjugação com esta prova testemunhal, o tribunal atendeu ao teor da documentação junta aos autos, mormente a constituída pelo auto de notícia de fls. 2 e 3 (para se comprovar as concretas circunstâncias de tempo e lugar dos factos), e pelo print do I.M.T. junto aos autos a fls. 8, 13 e 14, que atesta que o arguido, à data, não era, de facto, titular de licença de condução.

Por outro lado, atentos o circunstancialismo e o modo de execução dos factos materiais pelo arguido nos termos supra apurados, deve dizer-se que resulta das regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido actuou com cognoscibilidade e intencionalidade (4) (5), quando quis e conseguiu conduzir o referido veículo automóvel nos termos supra apurados, bem sabendo não ser possuidor de título de condução válido que lhe permitisse tal actividade e, além disso, bem sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punível por lei, assim se dando especificamente como provados os factos vertidos nos pontos 3) e 4).

Nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderados segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, este tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos supra indicados. Ou seja, depois de produzidas todas as provas julgadas pertinentes, dever-se-á esclarecer (e enfatizar) que nenhuma dúvida razoável (i. e. «a doubt for which reasons can be given») se formou no espírito do julgador neste domínio, que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo (6)

Relativamente aos dados pessoais, familiares e profissionais do arguido vertidos nos pontos 5) e 6), o tribunal considerou as declarações prestadas pelo arguido em sede de TIR, bem como dos dados resultantes das bases disponibilizadas pela Segurança Social e pelo Registo de propriedade automóvel, cujos resultados das pesquisas efectuadas constam dos autos.

Por fim, relativamente aos antecedentes criminais do arguido consignados no ponto 7), teve-se em consideração o teor do seu C.R.C. junto aos autos.

Apreciemos.

O recurso versa sobre matéria de direito, não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e, posto que se não vislumbra qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, nem nulidade alguma de conhecimento oficioso, cumpre considerar, como se considera, definitivamente fixada a matéria de facto constante da sentença sob recurso.

E, tendo em atenção essa factualidade, correcto está também o enquadramento jurídico-penal efectuado pelo tribunal recorrido.

Dosimetria da pena aplicada

O crime de condução de veículo sem habilitação legal é, in casu, punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias – artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.

O recorrente não censura a opção do tribunal recorrido pela pena de prisão, mas questiona a sua medida concreta (sete meses), com fundamento em não ter exercido a condução com perigo para si ou para terceiros; não ter sido interveniente em acidente de viação; tem algumas limitações cognitivas; vem de uma família disfuncional; aprendeu a confiar em pessoas de má índole que o levaram a esta situação; reside com uma senhora que o acolheu no concelho de …, em …; encontra-se a trabalhar numa carpintaria; está inscrito em escola de condução; não tinha capacidade económica para se deslocar aos locais para onde estava convocado, para se pronunciar sobre a aceitação do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação; mostra-se arrependido.

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, nº 1, do Código Penal – não podendo ultrapassar a medida da culpa – nº 2.

Nos termos do artigo 71º, do mesmo Código, para a determinação da medida da pena tem de se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.

Ou, dito de outra forma, opera através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa - Claus Roxin, Derecho Penal-Parte Especial, I, Madrid, Civitas, 1997, pág. 86.

Da conjugação das duas mencionadas normas resulta que a pena concreta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.

Assim, daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.

Percorrendo a decisão recorrida, verifica-se que o tribunal de 1ª instância atendeu para a determinação da pena concreta (mondadas as referências legais e doutrinárias):

Milita contra arguido:

- O grau de ilicitude dos factos: que se afigura, apesar de tudo, de intensidade mediano, atendendo à forma como os factos resultaram apurados nos termos supra descritos.

- O grau de culpa do arguido: que se afigura outrossim de intensidade mediano, atendendo a que o arguido tinha liberdade para se conformar com a norma violada, demonstrando a sua conduta delitiva, ao invés, uma censurável atitude de violar tal norma, actuando de forma dolosa.

- As necessidades de prevenção especial: mostram-se elevadas, uma vez que o arguido já regista três (3) antecedentes criminais neste tipo de criminalidade rodoviária e, ademais, cometidos num curto espaço de tempo, revelador de uma intenção delitiva intensa e persistente, tendo, aliás, cometido o ilícito dos autos em pleno período de suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada no proc. n.º ….

A favor do arguido:

- As condições pessoais do arguido e a sua situação económica: que resultaram provadas e aqui se dão por reproduzidas.

Mais ponderou que as exigências de prevenção geral são prementes, dado o elevado número de ilícitos desta natureza, tornando necessário uma efectiva afirmação da validade da norma violada, por via da reprovação das condutas ilícitas.

Ora, importa se saliente que o arguido sofreu já as seguintes condenações:

Pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 10/03/2019, na pena de 80 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 30/10/2020.

Pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 28/11/2021, na pena de 150 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 26/01/2022.

Pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 02/02/2022, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um 1 ano, subordinada à regra de conduta de se inscrever em escola de condução, frequentar as correspondentes aulas e submeter-se aos correspondentes exames teórico e prático, disso fazendo prova documental nos autos, sendo o cumprimento desta regra fiscalizada pelos serviços de reinserção social, por sentença transitada em julgado em 17/03/2022.

E, vero é que o crime dos presentes autos foi cometido em 25/03/2022.

Ou seja, escassos dias depois do trânsito em julgado da última condenação, o que patenteia o alheamento do recorrente, não só pelas normas, mas pelas reacções penais aplicadas.

Face ao que supra ficou transcrito, é patente que a decisão revidenda levou em linha de conta e de forma correcta os factores relevantes para a determinação da pena, nos termos estabelecidos no artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

Cumpre se diga ainda, os fundamentos em que alicerça o seu inconformismo (padece de algumas limitações cognitivas; é oriundo de uma família disfuncional; aprendeu a confiar em pessoas de má índole que o levaram a esta situação; reside com uma senhora que o acolheu no concelho de …, em …; encontra-se a trabalhar numa carpintaria; está inscrito em escola de condução; não tinha capacidade económica para se deslocar aos locais para onde estava convocado, para se pronunciar sobre a aceitação do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação e mostra-se arrependido), não têm assento algum na factualidade que assente se mostra.

Não se podendo olvidar, como parece fazer, que não compareceu em audiência de julgamento, por duas vezes, não obstante se encontrar devidamente notificado e não justificou as suas faltas, bem como se ausentou para paradeiro desconhecido – não obstante as diversas diligências efectuadas para o localizar - assim inviabilizando que os serviços de reinserção social apurassem as suas condições pessoais e condição económica, incluindo tendo em vista o eventual cumprimento da pena em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica e em conformidade as dessem a conhecer ao tribunal recorrido.

Face ao exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a culpa, como medida superior da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, do Código Penal, não se mostra que a pena de sete meses de prisão encontrada, ainda que musculada, seja desajustada, por exceder a medida da respectiva culpa.

Verificação dos pressupostos de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância

Discorda também o recorrente de a pena que lhe foi aplicada não ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, o que agora impetra.

De acordo com o estabelecido no artigo 43º, do Código Penal, na versão dada pela Lei nº 94/2017, de 23/08 (que entrou em vigor em 22/11/2017):

“1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos”.

As finalidades da execução da pena de prisão, são a defesa da sociedade e prevenção da prática de crimes, devendo orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, no dizer do artigo 42º, do Código Penal, ou, de acordo com o artigo 2º, nº 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009, de 12/10, a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a protecção de bens jurídicos e a defesa da sociedade.

O tribunal a quo afastou a aplicação deste regime, com os seguintes fundamentos:

“Após as alterações introduzidas ao Cód. Penal pela Lei n.º 94/2017, temos que tal pena substitutiva de prisão em permanência na habitação está agora prevista no art. 43.º do citado diploma legal, onde se estabelece que:

«1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos; b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º; c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º.

2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.

3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.

4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente: a)Frequentar certos programas ou atividades; b) Cumprir determinadas obrigações; c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado; d) Não exercer determinadas profissões; e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas. 4. Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes. Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.».

Resulta de tal normativo legal que um dos critérios à luz do qual o julgador, perante uma solicitação do condenado nesse sentido, deverá apreciá-la será o seguinte: «sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades [da execução] da pena de prisão.».

Desde já deixamos assente que esta nova «abordagem jurídica» da permanência na habitação com VE efectuada pela citada Lei n.º94/2017, pretendendo, contra o entendimento da doutrina majoritária, configurá-la como um simples «meio de cumprimento» e não como uma verdadeira pena substitutiva da pena de prisão efectiva, não nos impressiona juridicamente, nem tão-pouco merece a nossa adesão, porquanto continuamos a encará-la materialmente como uma verdadeira pena substitutiva, dado que entendemos, tal como o faziam a doutrina e jurisprudência maioritária (7), que a permanência na habitação com VE não se reduz a um mero meio de cumprimento da pena de prisão, antes se assume [e continua a assumir, diga-se] como uma verdadeira pena autónoma, com natureza de pena de substituição, pese embora formalmente se tivesse intencionalmente conferido tal «rotulagem» de meio de cumprimento.

In casu, tal regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância [cf. art. 43.º do Cód. Penal], em termos abstractos, mostra-se aplicável no presente caso, uma vez que ao arguido foi aplicada pena de prisão inferior a dois anos.

Porém, a aplicação de tal pena substitutiva sempre necessita de passar pelo crivo da conclusão de que “por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades (da execução) da pena de prisão”, sendo que in casu para além de o arguido ter inviabilizado a realização da informação a prestar pela DGRSP, por não ter comparecido para ser ouvido por tal entidade, pese embora as convocatórias postais e por telefone que lhe foram remetidas sem sucesso (cf. fls. 46), sempre diremos que, bem ponderada a conduta do arguido em todas as suas vertentes, temos para nós que a execução da pena de prisão através deste regime se revelaria igualmente inadequada, uma vez que atento o comportamento refractário do arguido se nos afigura que esta “forma de execução” da pena de prisão se mostraria manifestamente inadequada e insuficiente para salvaguardar as finalidades da execução pena de prisão, que por sua vez têm subjacente as necessidades de punição aqui reclamadas, as quais exigem o efectivo contacto do arguido com o sistema prisional.

Efectivamente, ao nível da forma de execução da pena de prisão, atenta a personalidade desviante do arguido apurada nos termos supra indicadas, afigura-se-nos que as prementes necessidades de prevenção geral e especial que, in casu, se fazem sentir desaconselham, quanto a nós, outra forma de execução da pena de prisão que não seja a de cumprimento efectivo em estabelecimento prisional. Também, neste domínio, parece linear o acerto desta opção, dado que, em face do evidente percurso criminal do arguido, espelhado nos abundantes antecedentes criminais, este tribunal, de forma séria e isenta, não consegue mais emitir um juízo de prognose favorável apto a estribar a convicção de que o arguido não mais iria conduzir sem habilitação legal, caso lhe fosse concedida a possibilidade de cumprir esta pena em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica e, até, lhe fosse concedida a possibilidade de continuar a trabalhar, dado que nada parece demover o arguido de conduzir veículos sem habitação legal, ou seja, entende-se que tal seria uma decisão destituída de razoabilidade, artificial e sem apoio na teleologia que esteve subjacente no pensamento do legislador ao tutelar este tipo de crime cuja ocorrência está envolvido na ocorrência de acidentes de viação que infelizmente ceifam a vida de cidadãos todos os anos.

É que ficámos com a legítima percepção que subjacente ao comportamento delitivo assumido pelo arguido de conduzir um veículo automóvel na via pública parece estar uma banalização e, quiçá até, relativização por aquele assumida, já que as várias condenações a que tem vindo a ser sujeito, ademais num curto espaço de tempo, não o inibem, nem de perto nem de longe, de voltar a reincidir na prática deste crime de condução sem habilitação legal, importando, desta feita, fazer ver ao arguido que não vive na impunidade, como é óbvio.

Basta.

É que o sentir da comunidade, cada vez mais, não tolera este tipo de comportamentos irresponsáveis, atentatórios da vida em comunidade, reivindicando, assim, que tais comportamentos sejam sancionados de forma justa, adequada e proporcional, sendo que, como supra já se enfatizou, para esta primeira instância tal reacção penal passará inelutavelmente pelo cumprimento do arguido de uma pena de prisão em estabelecimento prisional, por forma a assegurar-se que, sendo submetido a tal pena, não volte, de facto, de futuro a insistir na prática de crimes, designadamente de condução de veículo sem habilitação legal.

Em suma, como já enfatizamos, entendemos que o caso sub iudice, além de exigir a aplicação de uma pena de prisão, reclama ainda que esta execução seja efectiva e com contacto com o estabelecimento prisional, o que, por sua vez, afasta, quanto a nós, a aplicação no caso vertente da possibilidade prevista no art. 43.º do Cód. Penal, por se considerar que a mesma não assegura suficiente e adequadamente as prementes necessidades de punição que se fazem sentir, já que nada perece demover o arguido de prevaricar.

Na verdade, a este respeito, consideramos que atento o evidente percurso criminal do arguido a pena de prisão ora aplicada não deve ser substituída por uma pena de diferente espécie, por tal não se revelar suficiente nem eficaz do ponto de vista das intensas exigências de prevenção especial que se fazem sentir ao mesmo, pelo que somente a execução da pena de prisão se mostra apta a prevenir a prática de novos crimes pelo arguido.

Entende-se, destarte, que perante a frustração pelo arguido da possibilidade de cumprir as anteriores penas «fora de muros», as necessidades de punição agora já reivindicam um contacto efectivo do mesmo com o sistema prisional.

Nestes termos, entende-se que será necessário, atentas as prementes necessidades de prevenção especial, que o arguido tenha um contacto com o estabelecimento prisional, de forma a aperceber-se da gravidade dos seus actos e a (re)aprender a respeitar as leis.

Do que ficou supra exposto, deve entender-se que o arguido demonstra uma acentuada insensibilidade pelos bens jurídicos tutelados pelas normas em apreço, nos quais se incluem, para além da segurança das comunicações rodoviárias, conquanto reflexamente, a vida e a integridade física de terceiros - [até por força do elevadíssimo número de acidentes de viação que ocorrem no nosso país, muitas vezes associados à prática deste tipo de criminalidade rodoviária relacionado com a condução de veículo sem habilitação legal na via pública, atenta a insegurança que tal conduta implica, por sequer se saber se o agente estará a par da pertinente legislação e prescrições rodoviárias]

Evidencia-se, assim, a sua incapacidade para manter uma conduta conforme ao Direito, conforme atesta, destarte, o seu passado ligado a este tipo de criminalidade, diga-se.

Por outras palavras, não só o arguido manifesta, neste particular, carência de socialização, como a segurança da comunidade, designadamente ao nível rodoviário, impõe a sua inoculização temporária, sob pena de o mesmo persistir na prática de comportamentos desviantes [que só por um acaso – felizmente – não terão dado causa a consequências mais graves]

Isto para concluir que o tribunal entende que as exigências de prevenção especial e geral, demonstradas, além do mais, pelos seus três (3) antecedentes criminais e por sentimentos de impunidade, não permitem outra forma de execução que não seja a do cumprimento efectivo da pena de prisão ora aplicada ao arguido em estabelecimento prisional, tendo, aliás, o arguido cometido o ilícito dos autos justamente em pleno período de suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada no proc. n.º …, o que faz com que as exigências de prevenção especiais sejam elevadas e, por conseguinte, que todo o juízo de prognose favorável num caso grave como este seria, salvo melhor entendimento, meramente artificiar e sem qualquer suporte material.

Portanto, está-se perante um caso em que se justifica o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, conquanto de curta duração, fenómeno também conhecido pela signa Short Sharp Shock (8), pelo arguido em reclusão no estabelecimento prisional, com base nas razões supra expendidas.

Uma nota adicional é devida neste domínio. É que tendo o arguido sido julgado na sua ausência, tendo sido porém regularmente notificado com as advertências legais, não se logrou cabalmente apurar a sua concreta situação pessoal e económico-social (9). Sem embargo, crê este tribunal que os elementos recolhidos a partir do TIR por ele prestado nos autos, bem como dos constantes das pesquisas efectuadas nas bases de dados disponibilizadas pela Segurança Social e pelo registo de propriedade automóvel, e que foram levados à matéria de facto dada como provada, foram suficientes para este tribunal tomá-los em devida consideração nesta sede.”

Como vimos, o recorrente foi já condenado pela prática, em 10/03/2019, 28/11/2021 e 02/02/2022, respectivamente, de três crimes de condução de veículo sem habilitação legal, sendo que aquele por que foi condenado nos presentes autos se mostra praticado no decurso do período de suspensão da execução de outra pena.

Também, é certo, nada fez para demonstrar a interiorização do desvalor da sua conduta delituosa, mormente comparecendo em audiência de julgamento, para o que foi devidamente notificado e esclarecendo das razões do seu comportamento delituoso e postura actual face a ele.

Assim como resulta clara a sua falta de colaboração com os serviços de reinserção social, com o que poderia ter evitado a situação jurídico-processual em que agora se encontra.

Pois bem.

Os pressupostos formais da aplicação do regime (consentimento - manifestado no pedido recursório - e pena de prisão efectiva de medida não superior a dois anos) estão preenchidos.

Conforme se elucida no Ac. R. de Évora de 13/09/2022, Proc. nº 225/19.5T9ABF.E1, disponível em www.dgsi.pt: “o regime do artº 43 do C. Penal destina-se, como se sabe, a preservar o condenado do contacto com o meio prisional e dos vícios que, do mesmo podem resultar para a sua personalidade”, pois, “não se ignoram os efeitos criminógenos das penas curtas de prisão”.

Ora, se vero é que as exigências de prevenção geral são efectivamente elevadas, importa assinalar que o grau de ilicitude da conduta não deixa de ser mediano, como até reconhece o tribunal recorrido, sendo certo que “o são sentimento da comunidade na confiança na validade das normas que proíbem a condução sem habilitação legal há-de ficar satisfeito e reforçado com o cumprimento de uma pena de prisão: seja na cadeia ou em casa. A perda de liberdade implicada é decerto suficiente para reforçar tal sentimento comunitário” – cfr. Ac. R. do Porto de 18/12/2018, Proc. nº 229/18.5GAFLG.P1, que pode ser lido no referenciado sítio.

Já quanto às necessidades de prevenção especial, igualmente elevadas, também serão satisfeitas, uma vez que da sua liberdade será privado (ainda que não em meio institucional) e ficará sujeito a fiscalização que (presumimos) será eficaz, com observância dos deveres enunciados no artigo 6º, da Lei nº 33/2010, de 02/09, que sobre ele recaem, melhor se assegurando também a sua reinserção social, tanto mais que é um jovem com vinte e quatro anos de idade, que não possui condenação pela prática de outro crime que não o de condução de veículo sem habilitação legal.

Face ao exposto, entendemos que o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação nos termos do artigo 43º, do Código Penal, realiza, ainda (quiçá como uma última oportunidade para evitar a passagem pelo meio prisional), de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão.

Verificado está, assim, também, o pressuposto material.

De onde, importa aplicar o regime de permanência na habitação ao arguido/recorrente,

Quanto às questões técnicas para a execução do regime, como sejam as que se prendem com a instalação dos meios de vigilância electrónica e o consentimento das pessoas que com ele coabitem, bem como a definição dos períodos de ausência de acordo com as necessidades que se forem verificando, a sua concretização competirá ao tribunal de 1ª instância, que para tanto realizará as diligências tidas por pertinentes.

E, na circunstância de se não mostrar possível a concretização das condições técnicas necessárias à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, o recorrente terá de cumprir a pena em estabelecimento prisional.

Termos em que, cumpre conceder parcial provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência:

A) Alteram a sentença recorrida, determinando que a pena de sete meses de prisão aplicada ao arguido seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mantendo-se, no mais, a decisão revidenda;

B) O Tribunal de 1ª instância realizará as diligências necessárias à concretização da execução do regime;

C) Na circunstância de se não mostrar possível a concretização das condições técnicas necessárias à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, o recorrente terá de cumprir a pena em estabelecimento prisional.

Sem tributação.

Évora, 14 de Março de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso

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1 Porém, não ignoramos que existe jurisprudência dissonante, v.g. a constante do acórdão da Relação de Guimarães, datado de 31-05-2010, relatado por José Manuel Saporiti Machado da CRUZ BUCHO, onde se decidiu que: «As denominadas conversas informais são desprovidas de valor probatório, quer ocorram antes ou depois da constituição de arguido. O depoimento do agente policial, que nada presenciou, sobre a “confissão” que ouviu do arguido não constitui meio de prova admissível, (…), devendo ser ignorado pelo juiz.» Veja-se ainda, nesse sentido, na doutrina José Manuel DAMIÃO DA CUNHA, O Regime Processual de Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento (arts. 356.º e 357.º do CPP), in RPCC, ano 7, fase. 3, Julho-Setembro 1997, pp. 436 e 437, nota 32, respectivamente: «Os órgãos de polícia criminal não podem prestar depoimento sobre declarações que perante eles tenham sido prestadas», pelo que «não é admissível a prestação de depoimento indirecto pelos órgãos de polícia criminal.».

2 Segundo a jurisprudência constante das nossas instâncias superiores, «não constitui depoimento indirecto, não sendo, portanto, enquadrável no art. 129.º do Cód. Proc. Penal e, portanto, não constituindo prova proibida, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio, (…).» - [cf. o acórdão da R.C., de 20-12-2011, in www.dgsi.pt (proc. n.º160/10.2JACBR.C1); no mesmo sentido, vejam-se ainda os acórdãos da R.C., de 13-12-2011, in www.dgsi.pt (proc. n.º473/08.3PAPTS.C1), e da R.P., de 09-11-2011, in www.dgsi.pt (proc. n.º11263/08.3TDPRT.P1)]. Na verdade, configurando o direito ao silêncio «o núcleo do nemo tenetur», tal significa apenas que ele tem o direito a não se auto-incriminar, mas tal não significa, como é evidente, que não possa ser produzida prova contra si, designadamente através de testemunhos que relatem aquilo que o arguido disse ou/e fez aquando do cometimento dos factos objecto dos autos, dado que tal, resultando da percepção directa e pessoal das testemunhas, não configura um meio proibido de prova, rectius não constitui um depoimento indirecto, nos termos do art. 129.º do Cód. Proc. Penal. Parece linear.

3 O valor da prova baseada em declarações ou testemunhos mede-se em CREDIBILIDADE, factor que será composto pelos seguintes subfactores: (i) Seriedade (boa motivação da testemunha para depor); (ii) Isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); (iii) Razão de Ciência (fonte de conhecimento dos factos); (iv) Coerência lógica: - Interna (depoimento confrontado consigo mesmo); - Externa (depoimento confrontado com os demais). É no âmbito da coerência lógica que podem (e devem) ser ponderados aspectos como o rigor (total coerência interna) e a forma objectiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes). A lógica é equiparada às leis matemáticas. As leis que determinam que um determinado acontecimento só se pode ter verificado dessa maneira e não de outra qualquer. Se a lógica pura e simples não der resposta, aí entra em consideração a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras da experiência – [art. 127.º do C.P.P.]

4 Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24-05-2005, disponível em www.dgsi.pt., donde se retira que: «pertencendo ao foro interno do agente, o dolo é insusceptível de directa apreensão, apenas sendo possível captar a sua existência através de factos materiais que lhe dêem expressão plástica, segundo as regras da experiência comum.»

5 Como ensinava Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 292: «Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica»; sufragando esta asserção, diz-nos N. F. MALATESTA, A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pp. 172 e 173: «Exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intelectual, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas passa-se a concluir pela sua existência.».

6 Com efeito, apenas nos casos em que se forma uma situação de dúvida razoável e insuperável [ou seja, a dúvida que deve indubitavelmente beneficiar o arguido, não pode ser uma dúvida qualquer; ela tem de ser uma dúvida séria, plausível, inultrapassável para o julgador e sobre os factos relevantes; o que implica que, na apreciação dos factos, se actue de forma séria, experiente e fria e que se possua uma experiência de vida ampla, equilibrada e diversificada – cf. Manuel FERREIRA ANTUNES, Psicologia Judiciária, Apontamentos, p. 75] no espírito do julgador deve necessariamente ser resolvida em benefício da presunção de inocência do arguido, em obediência ao seu corolário probatório in dubio pro reo - [art. 32.º, n.º2 da C.R.P.; art. 11.º, n.º1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; e art. 6.º, n.º2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º65/78, de 13 de Outubro]. Sem embargo, importa, pois, expender outras singelas considerações adicionais sobre a teleologia e o recorte jurídico do aludido princípio in dubio pro reo, tendo em vista a fundamentar-se a sua não aplicação ao caso. Desde já se diga que a prova em processo penal, não é, nem pode ser nunca, a certeza absoluta da ocorrência do facto [ela tem como função, para usar a expressão do art. 341.º do Cód. Civil, a demonstração da realidade dos factos], em razão da impossibilidade de fuga à deformação sofrida até à apreensão pelo receptor dos factos. É, aliás, da natureza das coisas e, como é afirmado, «suspeita, dúvida, certeza, evidência, são etapas de um caminho até à verdade» – [cf. Sentis MELENDO, apud de Miguel PEDROSA MACHADO, O princípio in dubio pro reo e o novo C.P.P., in ROA 49, pp. 583 a 611]. Os factos, quando ocorrem, esgotam-se em si mesmos, tornando impossível a sua reconstituição natural. O que se pretende – e pretendeu – fazer nesta fase de instrução foi reconstituir o que se passou, através do que ficou retido naqueles que nela testemunharam por estarem presentes. Assim, a verdade que surge ao Tribunal é a verdade da instrução, do que nela se passou, já com o filtro do tempo e com os depoimentos dos arguidos, dos assistentes e das testemunhas, com o perigo que estes trazem ínsitos: como assinalava a doutrina, «o erro espreita insidiosamente a decisão, pelo lado do testemunho verbal» – [veja-se Dário MARTINS DE ALMEIDA, O Livro do Jurado, p. 94] e são elas, as testemunhas, justamente «os auxiliares do juiz, são os olhos e os ouvidos da justiça» – [vejam-se Pietro ELLERO, citando MITTERMAIER, De la certidumbre en los juicios criminales o Tratado de la Prueba en matéria penal, p. 114; vd., por todos, quanto à apreciação da prova testemunhal, pp. 109 a 132]. Continuando na doutrina, sendo incerta a prova impõe-se ao Tribunal que não use um critério formal, como resultante do ónus legal da prova, para decidir da condenação do arguido, a qual terá sempre que assentar na certeza dos factos probandos, impondo-se antes o recurso ao princípio de direito probatório in dubio pro reo, comportando o mesmo a presunção de inocência do arguido – [cf., neste domínio, Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português, I, p. 111]. Trata-se, com efeito, de um princípio vigente no que diz respeito à decisão da questão-de-facto. Quer se entenda que constitui «um princípio natural de prova imposto pela lógica e pelo senso moral, pela probidade processual» – [veja-se, neste ponto, CAVALEIRO DE FERREIRA, in op. cit., p. 310], quer como princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito – [cf. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, p. 214], trata-se de um princípio indiscutível no que concerne à apreciação da prova na decisão da questão-de-facto. Tanto no que diz respeito à prova dos elementos constitutivos do crime, como à prova dos factos extintivos ou causas de exclusão da responsabilidade criminal – [vejam-se, neste domínio, Manuel CAVALEIRO DE FERREIRA, in op. cit., p. 312, e J. FIGUEIREDO DIAS, in op. cit., p. 215]. Tal princípio, em suma, significa que «em caso de dúvida razoável», após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido – [veja-se a formulação de J. FIGUEIREDO DIAS, in op. cit., p. 215]. Já se vê assim, que não é uma qualquer dúvida que obriga à aplicação do referido princípio, mas apenas a dúvida razoável, que persiste no espírito do julgador, após a produção de todas as provas e sua avaliação de acordo com a lei e as regras da experiência comum, nos termos acima referenciados. Se após a ponderação da prova – toda a prova – o julgador se convenceu, com base numa análise objectiva e racional, de acordo com os critérios legais e doutrinais de valoração da prova sem que no seu espírito se tenha instalado a dúvida consistente ou razoável, não se verifica, pois, a violação de tal princípio axial do processo penal.

7 A natureza do regime de permanência na habitação tem sido questionada pela doutrina, rectius existindo quem defenda que esta consubstancia uma pena substitutiva [vd. neste sentido, António João LATAS, O Novo Quadro Sancionatório das Pessoas Singulares/Revisão do Código Penal de 2007, in A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia, sob a coordenação de Conceição GOMES e José MOURAZ LOPES, pp. 106 e ss.; e Maria João ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, p. 23] e, ao invés, há quem entenda que tal constitui uma mera forma de execução da pena de prisão [cf., neste sentido, Manuel Lopes MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado e Comentado, 18.ª Ed., pp. 198 e 199]. Ao nível jurisprudencial, a tese que vem merecendo maior acolhimento pelas nossas instâncias superiores vai no sentido de considerar que tal reacção penal configura uma verdadeira pena substitutiva, ou seja: «A obrigação de permanência na habitação prevista no art. 44.º do Código Penal corresponde a uma nova pena de substituição e não uma forma de execução da pena. Consequentemente, o momento próprio da sua aplicação é o da sentença condenatória» - [acórdão da Relação do Porto, de 18-09-2013]; em sentido idêntico, pode ler-se: «O regime de permanência na habitação, sendo uma pena autónoma, com natureza de pena de substituição e não um específico regime de execução da pena só pode ser aplicada na sentença, (…)» - [ac. da Relação de Coimbra, de 10-12-2013]; ou ainda que: «O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, como sucede com a prisão por dias livres ou com o regime de semidetenção, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, (…)» - [ac. da Relação de Coimbra, de 23-05-2012]; todos estes arestos estão disponíveis em www.dgsi.pt.

8 Não se deverá subestimar a especial eficácia que este tipo de pena tem dado o cariz intimidatório sobre as pessoas – [cf., por todos e neste sentido, o acórdão do STJ, datado de 03-04-2003, relatado por Pereira MADEIRA, disponível em www.dgsi.pt]

9 Cf. neste domínio por todos o acórdão da Relação de Coimbra, de 23-01-2013, relatado por Jorge Miranda JACOB, disponível em www.dgsi.pt, mormente quando nele se verteu as seguintes considerações: «(…), o tribunal apenas poderia dispensar a consideração desses elementos [circunstâncias pessoas, sua inserção social e suas condições económicas e financeiras] na decisão se porventura se lhe fosse de todo em todo impossível obtê-los, como frequentemente sucede nos casos de arguidos ausentes em parte incerta e relativamente aos quais não é possível proceder a inquérito às suas condições pessoais ou reunir um mínimo de elementos que possam ser atendíveis na fixação da pena. Mas, mesmo nesses casos, deve o tribunal consignar essa impossibilidade na motivação da matéria de facto, (…), pois só assim resultará inequívoco que a ausência de factos relativos às condições pessoais e económicas não resulta da inércia do tribunal, mas da impossibilidade objectiva de os obter.».