Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2657/21.0T9STB.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: CRIME DE OFENSA A ORGANISMOS
SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A expressão “Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da Guarda Nacional Republicana, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita.”, inserida pelos arguidos em “comunicado” numa página do Facebook não consubstancia o crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artigos 187º e 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b) do Código Penal.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo 2657/21.0T9STB os arguidos AA, BB, CC e DD, foram acusados da prática de um crime de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artºs 187º, 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b), do Código Penal.

Remetidos os autos para julgamento, a acusação foi rejeitada nos seguintes termos:

“Questão Prévia

Lida a acusação constata-se que é imputada aos arguidos AA, DD, BB e CC a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa colectiva dos artigos 187.º e 188.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, por referência ao artigo 183.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

Dispõe o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, que o juiz rejeita a acusação na eventualidade de a considerar manifestamente infundada, sendo que os casos em que tal ocorre resultam especificados nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo ora em menção, as quais dispõem, respectivamente, que a acusação é manifestamente infundada “quando não contenha a identificação do arguido”; “quando não contenha a narração dos factos”, “se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam”; ou “se os factos não constituírem crime”.

No caso vertente resulta inequívoco que a acusação deduzida nos autos contém a identificação dos arguidos e, bem assim, alude às provas e as disposições legais aplicáveis, o que significa que, a esta parte, inexiste fundamento para rejeitar aquele despacho.

É, todavia, de aquilatar se os factos, tal qual descritos, configuram a prática de um crime por banda dos arguidos, mormente aquele cujo cometimento lhes é imputado na sobredita acusação.

Dispõe o artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, que “quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.

O bem jurídico tutelado pela incriminação ora enunciada tem natureza heterogénea, visando-se a protecção da credibilidade, prestígio e confiança e, em última análise, o bom nome de entes de natureza colectiva (cfr., neste sentido, José de Faria Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, p. 677).

O crime em referência corresponde a uma incriminação de perigo abstracto-concreto e de mera actividade (v. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, p. 584).

Relativamente ao elemento objectivo, cumpre salientar que o mesmo é realizado mediante, por um lado, a afirmação ou propalação de factos inverídicos, e, por outro, que esses factos sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança da pessoa colectiva.

No que tange a factos inverídicos, ensina Faria Costa que não existe absoluta identidade entre estes e factos falsos, referindo que os primeiros abarcam um universo mais lato que os segundos, abrangendo não apenas as falsidades, mas também as chamadas “meias-verdades” (ob. cit., p. 680).

Relativamente à idoneidade do facto inverídico para ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, é de aferir objectivamente se o facto afirmado ou propalado tem a capacidade de violação de tais dimensões (Faria Costa, ob. cit., p. 680).

Ademais, a actuação é penalmente relevante se o agente não reputar, enquadrado pela boa-fé, os factos afirmados como verdadeiros.

Finalmente, é de reter que o tipo subjectivo admite qualquer modalidade do dolo, sendo que é bastante que o agente actue com a vontade de afirmar/propalar o facto inverídico, não sendo necessária a intenção de ofender o bom nome do ente visado.

Volvendo ao caso dos autos, ressalvada diversa análise, afigura-se-me que as expressões pretensamente publicadas por banda dos arguidos em grupo da rede social “Facebook” não se aferem por dirigidas ao organismo que neles figura enquanto queixoso – EE. Com efeito, é de relembrar, no que ora interessa, que se mostra redigido na peça acusatória que os arguidos fizeram publicar na aludida rede social “Infelizmente, nos últimos meses, a atividade intimidatória do grupo criminoso, voltou a acentuar-se, tendo sido furtados e vandalizados mais de 200 sobreiros de cortiça sem idade legal, e inclusivamente alvejada uma viatura a tiro. Os furtos foram presenciados por várias pessoas da população tendo estas identificado claramente os criminosos, mas compreende-se, a dificuldade de as testemunhas oficializarem as ocorrências, tendo em conta o clima de medo e de terror. Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita” (destaque nosso).

Ora, do que se acaba de transcrever, afigura-se-me que o comunicado alegadamente feito publicar por parte dos arguidos não se nos afigura dirigido à instituição EE como um todo, mas a um universo, não concretamente identificado é certo, todavia delimitado, de militares que integram a referida força de segurança – há militares não é equivalente a todos os militares. Ademais, é diferente afirmar “há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita” e afirmar, por exemplo, “a EE, que protege e dá cobertura a esta actividade ilícita”. No primeiro caso, a censura ínsita ao comentário afigura-se-nos que é dirigida a uma pretensa prática de um número delimitado pessoas que integram o organismo e que, por isso, não se confundem com este, enquanto no segundo essa censura já é veiculada à própria instituição.

É certo que não se descura que a alusão, porventura desprestigiosa, a um grupo de pessoas que integra determinado organismo pode reflectir-se no bom nome dessa instituição, mas, porventura, tão-somente de forma reflexa, realidade que se afigura que já não se mostra tutelada pelo tipo de crime, tanto mais que deve ser interpretado tendo-se como assente a dicotomia entre o bem jurídico que visa proteger e a liberdade de expressão enquanto valor constitucionalmente garantido e, ademais, o próprio princípio da intervenção mínima enquanto cláusula interpretativa dos ilícitos penais.

Em suma, torna-se inviável considerar que o comentário que os arguidos, segundo o que se descreve na acusação, fizeram publicar na rede social “Facebook”, se dirigiu à instituição EE e, assim, logo seria inviável concluir pela verificação do tipo de crime a que se reporta o artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, sendo que inclusivamente, não sendo aquela ofendida, não resultariam verificadas as condições de procedibilidade de que dependeria o prosseguimento do procedimento criminal.

Em todo o caso, é ainda de ter em mente que o elemento objectivo do tipo de crime a que se reporta o artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, contrariamente ao que se sucede a respeito dos crimes de difamação e de injúria – fazendo-se notar que estas incriminações não contemplam, enquanto ofendidos, organismos ou pessoa colectivas (v., entre outros, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8.3.2018, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Martins Simão, processo n.º 195/16.1PAESP.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt) - abrange tão-somente a afirmação ou propalação de factos inverídicos, já não a emissão de juízos, opiniões ou considerações, ainda que estes sejam aptos a provocar uma afectação da credibilidade, prestígio e confiança da entidade visada. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.3.3022, “no crime previsto no art.187º do CP estão excluídos os juízos de valor depreciativos do bom nome da pessoa coletiva, e muito embora o seu potencial lesivo, apenas são susceptíveis de tutela cível. Somente a propalação de factos inverídicos associados a pretensas condutas da pessoa coletiva, com um potencial muito mais lesivo sobre a sua credibilidade e confiança, determinam a tutela penal” (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Nuno Pires Salpico, processo n.º 2129/20.0T9VFR.P1; em sentido idêntico, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.3.2022, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Júlio Pinto, processo n.º 2411/19.9T9VCT.G1; ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

Ora, regressando uma vez mais ao caso sub juditio, a expressão que constitui o cerrne da peça acusatória – ou seja, “este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita” – não constituiu a afirmação de um facto, isto é, não se reporta a um concreto “acontecimento da vida real, inserido num tempo e espaço precisos ou determináveis” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.3.2021, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Jorge Gonçalves, processo n.º 2464/19.0T9LSB.L2-5, também disponível para consulta em www.dgsi.pt), antes consubstanciando um juízo de valor sobre a prestação de alguns militares que integram a EE, insistindo-se, todavia, que não se mostra identificada qualquer conduta concreta ou identificável que tenha sido prosseguida por esses militares e, assim, sem que seja delimitada uma concreta situação da vida (que militares? Quando e de que forma deram cobertura a uma actividade ilícita? Que concreta actividade ilícita?) que permita considerar verificada a afirmação ou propalação de um facto, daí que a descrição que se mostra efectivada na peça acusatória, salvaguardada melhor análise, não se mostre coincidente com o elemento objectivo do tipo de crime em referência.

Não obstante, o que se acaba de referir, para além de afirmação ou propalação a que se reporta o artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal, se ter de referir a factos, estes devem ser ainda inverídicos. Ora, se é certo que essa menção a “factos inverídicos” resulta narrada na peça acusatória a respeito da factualidade atinente ao elemento subjectivo (v. ponto 9 da peça acusatória), não se menciona esse carácter inverídico em sede de imputação objectiva, sempre se acrescentando, ademais, que talqualmente é necessário que narração fáctica contemple que o agente não teve razões sérias para aceitar os factos como verdadeiros, o que também integra o elemento objectivo da incriminação (v., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.3.2022, já referido supra), daí que a esta parte outrossim seja de considerar que não se mostra inteiramente descrito o elemento objectivo do tipo de crime.

Prosseguindo, conforme se enquadrou supra, será ainda necessário que os factos inverídicos sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança da pessoa colectiva. Acontece, porém, também conforme se teve o ensejo de referir, que a expressão alegadamente emitida por banda dos arguidos não se atém à entidade EE, mas sim a alguns elementos, não identificados, que em parte a integram, daí que a expressão ali referida não se possa considerar como apta a colocar em causa o prestígio do mencionado organismo, meramente podendo ocorrer esse circunstancialismo, em abstracto, reflexamente. Tal como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2.10.2013, ofensas dirigidas a elemento de um conselho de administração de uma instituição hospitalar “não são susceptíveis de serem entendidas como dirigidas ao próprio hospital e assim de porem em causa o bom nome (prestígio, credibilidade e confiança) da instituição”, acrescentando-se que “entendimento contrário levaria a considerar que uma ofensa à honra – bem jurídico pessoalíssimo, atributo exclusivo da pessoa individual – é susceptível de preencher um tipo legal que tutela um bem jurídico (o bom nome, que agrega a credibilidade, prestígio e confiança) de que só podem ser titulares pessoas colectivas ou entidades equiparadas” (relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Neto de Moura, processo n.º 4213/12.4TDPRT.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Ademais, é precisamente esta circunstância, ou seja, a da afirmação dos arguidos se referiram, pretensamente, a “há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita”, não aludindo a uma conduta concreta deste organismo, mas sim, reitera-se, a uma eventual prática por parte de alguns elementos que o integram, que talqualmente torna inidónea a referida expressão para afectar de forma relevante a credibilidade, o prestígio e a confiança da referida força, não surgindo estes atingidos, pelo menos de “modo suficientemente significativo, ou seja, com a intensidade que sempre se exigiria num direito penal de ultima ratio e de mínima intervenção” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, relatado pela Exma. Sra. Juíza Conselheira Ana Barata Brito, processo n.º 3737/09.5TDLSB.L2.E2, também disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Em suma, é de referir que, ressalvada diversa análise, a acusação deduzida nos presentes autos não contempla a totalidade da descrição dos elementos típicos da incriminação a que se reporta o artigo 187.º, n.+ 1, do Código Penal, o que significa que a factualidade nela narrada não integra a prática de um ilícito de natureza criminal, daí que a mesma se considere manifestamente infundada ante o preceituado no artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, o que determina a sua rejeição considerando o exarado no n.º 2, alínea a), de tal diploma legal.

Assim sendo, rejeito a acusação pública deduzida nos presentes autos.

Ante o exposto, fica prejudicada a emissão de despacho sobre a admissibilidade do pedido de indemnização cível.”

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Inconformado com o referido despacho, dele recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. O Ministério Público deduziu acusação, em processo comum, com intervenção do Tribunal de estrutura Singular contra AA, DD, BB e CC pela prática de em co-autoria e na forma consumada de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artigos 187º e 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b) do Código Penal.

2. O Mmº Juiz do Juizo Local Criminal de … proferiu despacho no âmbito do art. 311º do Código de Processo Penal, no qual rejeitou a acusação pública por os factos vertidos na acusação não constituírem a pratica do crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artigos 187º e 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b) do Código Penal, sendo, desta forma, manifestamente infundada, segundo o art.º 311º nº2 alínea a) e nº3 al. d) do Código de Processo Penal.

3. O Mmº Juiz verificou o preenchimento dos elementos objetivos do crime de ofensa a organismo imputado aos arguidos baseando-se apenas no seguinte trecho da publicação descrita na acusação “Infelizmente, nos últimos meses, a atividade intimidatória do grupo criminoso, voltou a acentuar-se, tendo sido furtados e vandalizados mais de 200 sobreiros de cortiça sem idade legal, e inclusivamente alvejada uma viatura a tiro. Os furtos foram presenciados por várias pessoas da população tendo estas identificado claramente os criminosos, mas compreende-se, a dificuldade de as testemunhas oficializarem as ocorrências, tendo em conta o clima de medo e de terror. Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita” (destaque nosso).

4. O despacho recorrido não teve em consideração todas as expressões proferidas pelos arguidos e objeto de publicação efetuada na rede social Facebook e descrita na Acusação, concluindo que tal expressão não foi dirigida à EE enquanto Organismo mas a um grupo determinado de Militares daquele EE.

5. Não podemos concordar com tal conclusão, porquanto quando se refere que “há Militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita”, não se pretende, em nosso ver, referir-se a um número restrito e identificado de Militares, mas sim à EE como um organismo que, no ver dos arguidos, não atua como devia ou que encobre os factos criminosos relatados no citado “comunicado”.

6. Ao não se identificar os “Militares”, não sendo sequer os mesmos identificáveis, e não tendo sido apresentada qualquer queixa formal contra os eventuais Militares, é demonstrativo que se quis dizer que é a EE que adaptou tal conduta censurável aos olhos dos arguidos..

7. Ao se imputar factos a um universo não identificado de Militares terá se de concluir que tal afirmação é suscetível de ofender a Instituição em si mesma, afetando a sua credibilidade, prestigio e confiança.

8. Acresce que, logo no ponto seguinte do publicação descrita na Acusação e imputada aos arguidos no seu nº9 , se conclui dizendo “Pelo que fica exposto, e em face da indiferença e inoperância da entidades acima mencionadas, declinamos qualquer responsabilidade por um verdadeiro Crime Ecológico(…)” (sublinhado nosso).

9. Neste ponto, referem-se, os arguidos às entidades acima mencionadas, entre as quais se encontra a EE. E acrescentam ainda (…) “e lamentamos profundamente que a entidades oficiais, pagas pelos nossos impostos, não cumpram o seu dever, com evidente prejuízo para toda a população”.

10. Os arguidos não delimitam tal universo de Militares, não circunscrevendo sequer de forma territorial a identificação de tais Militares, ou seja, não fazem uma eventual referência a Militares de um determinado posto territorial

11. Ao se referirem a “Militares da EE”, não estamos perante um número delimitado de pessoas, sendo que tal expressão certamente se confunde com o organismo EE.

12. Em nosso entendimento, salvo devido respeito por opinião diversa, os arguidos referem-se à Instituição EE e não apenas a um grupo restrito e identificado ou identificável de Militares, deixando claro pretender insurgir-se contra a inoperância da EE.

13. A publicação objeto da acusação terá sido lida por um Universo não identificável de pessoas, mas certamente de grande dimensão, pelo que sua idoneidade a ofender o Organismo EE terá de ser aferiu à luz da perceção do “homem médio”.

14. À Luz desse padrão do “homem médio” entendemos que o cidadão comum ao ler tal comunicado fique com a clara certeza de que ai se refere à existência apenas de um grupo restrito de Militares que se demitiram das suas funções, mas certamente concluiriam por uma não atuação da EE enquanto Organismo de Autoridade Pública.

15. O Mmº Juiz no despacho recorrido refere que a expressão que constitui o cerne da peça acusatória – ou seja, “este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita” – não constituiu a afirmação de um facto, isto é, não se reporta a um concreto “acontecimento da vida real, inserido num tempo e espaço precisos ou determináveis”.

16. Contudo, salvo o devido respeito, a expressão supra referida não é o cerne na peça acusatória, mas sim o “comunicado” publicado pelo arguidos na rede social Facebook, que foi transcrito na integra na peça acusatória.

17. Tal “comunicado” deve ser analisado como um todo e não ter-se apenas em conta uma determinada frase, descontextualizada do demais tema trazido pelos arguidos.

18. Não se pode olvidar que no texto que publicam, os arguidos alegam a ocorrência de crimes de natureza muito grave, como associação criminosa, tráfico de estupefacientes, furtos em residências e ofensa à integridade física, entre outros. É sobre esta matéria que versa o texto e a critica dirigida à EE e a omissão de atuação, “apesar das inúmeras queixas apresentadas..(…)”, como referem os arguidos.

19. E tal peça, vista como um todo é idónea a afetar de forma relevante a credibilidade, o prestigio e a confiança na referida força de segurança.

20. No texto intitulado “Comunicado”, publicado na rede social Facebook e objeto de acusação, encontram-se descritas as alegadas atividades ilícitas a que, nas palavras dos arguidos, os Militares da EE terão dado cobertura, nomeadamente nos pontos 1 a 4 e 8 desse texto.

21. Com efeito, estão devidamente descritas pelos arguidos as atividades ilícitas que alegam terem ocorrido e relativamente às quais consideram que a EE é inoperante e “dá cobertura”, factos que preenchem, a nosso ver, os elementos objetivos do crime em apreço nos autos.

22. Assim, terá de se concluir que foram alegados factos concretos suscetíveis de integrar a atividade ilicita, não nos parecendo exigível que fossem descritas espaciotemporalmente as condutas alegadamente praticadas.

23. Ficou ainda explanado na peça acusatória que a conduta imputada à EE é inverídica e que os arguidos tinham disso conhecimento.

24. Em face do exposto, entendemos que a factualidade descrita na peça acusatória integra os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelo art. 187º do Código de Processo Penal.

25. Em consequência, sendo a EE ofendida, estão verificadas as condições de procedibilidade de que depende o prosseguimento do procedimento criminal.

26. Por todo o exposto, verifica-se que o despacho recorrido violou o principio da acusação, o próprio principio da legalidade contrariando o disposto no art. 187º, 188º nº1 alínea b) e 183º nº1 do Código Penal e do art. 311º n.º2 alínea a); nº 3 alínea d) do CPP

Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público pelo crime ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva, previstos e punido pelo art. 187º e 183º nº1 alínea a) e 188º nº1 alínea b) do Código Penal e designe data para realização da audiência de discussão e julgamento.

V. Exas., no entanto, melhor decidirão e farão, como sempre, a habitual Justiça!”

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Os arguidos não responderam ao recurso.

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., os arguidos apresentaram resposta em que pugnam pela manutenção da decisão recorrida.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar no presente recurso é de se saber se a expressão “Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita.” (realce nosso), publicada pelos arguidos no facebook consubstancia a prática de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artºs 187º, 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b), do Código Penal, tendo como vítima a própria EE.

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A acusação rejeitada é do seguinte teor:

“1. Os arguidos são proprietários da Herdade …, sita em … explorada pela “FF, Lda”.

2. A arguida AA é detetora do perfil da rede social Facebook com nome de utilizador “AA”.

3. Assim, através desse perfil, no dia 18 de agosto de 2021, em hora não concretamente apurada, os arguidos, efetuaram uma publicação no grupo da rede social Facebook denominado “…”, com o seguinte conteúdo:

“ Comunicado

Associação criminosa, atos de vandalismo da Herdade …

“A FF, enquanto detentora da exploração da Herdade … e nas pessoas dos seus proprietários sente-se no dever de comunicar publicamente seguinte:

1 - Nos últimos 12 anos a Herdade … e a região onde se insere, tem vindo a ser alvo de atos de vandalismo consubstanciados em numerosos furtos de animais, de infraestruturas destinadas a maneio do gado, utensílios de uso agrícola, corte e destruição de vedações e respetivos portões de acesso, e descortiçamento selvagem de árvores sem a idade legal para o efeito.

2 - Todos estes atos têm sido perpetrados, pretendendo os seus agentes instalar um clima de terror junto das populações locais, tendo inclusivamente sido alvejadas por várias vezes as viaturas dos nossos guardas, tendo mesmo um deles sido ferido num desses atos.

3-Estes atos, têm sido perpetradas por um grupo com cariz de associação criminosa que se autointitula "donos da região", e que entre outras atividades criminosas, nomeadamente agredindo pessoas, também se dedica ao assalto a moradias e tráfico de droga.

4- Na Herdade …, ao longo destes anos, contam-se já por milhares os sobreiros alvo do descortiçamento selvagem, de cortiça sem idade legal, com o entre casco seriamente danificado, comprometendo a vida do Montado o que, para além do prejuízo que já ultrapassa muitas centenas de milhares de euros constitui inequivocamente um verdadeiro Crime Ecológico.

5-A área de exploração da Herdade …, está na sua totalidade dentro da Reserva Natural do Estuário do …, cujo Regulamento cumpre escrupulosamente, e ainda dentro das normas estipuladas por um Plano de Gestão Florestal próprio, aprovado oficialmente,

6-Apesar das inúmeras queixas apresentadas junto da EE, do Ministério Público e das entidades oficiais, que tutelam a Região e a nossa atividade, tudo isto se passa perante a indiferença do poder autárquico, e do HH, ao contrário, sempre muito zelosos em verificar se a nossa atividade está devidamente licenciada e de acordo com a Lei.

7-Não obstante a esta estranha situação do poder politico local, a Herdade … consciente da suas responsabilidades sociais, nunca deixou de contribuir com o que estivesse ao seu alcance para o avanço do desenvolvimento e bem estar da população nomeadamente com cedência de espaços para a construção de escolas de ensino básico e pré-escolar e respetivos campos desportivos, Sede do Clube Desportivo de … e respetivo campo de futebol, estaleiro da Junta de Freguesia de …, área conveniente para instalação duma ETAR, áreas e acessos para a instalação de saneamento básico e abastecimento de água doméstica, diversas áreas para espaços de lazer, e reordenamento dos arruamentos de acesso às habitações, sem quaisquer contrapartidas. Desde já fica o compromisso público, de que mesmo tendo em conta a lamentável situação, a Herdade …, nas pessoas dos seus proprietários, estará sempre disponível para continuar a ajudar e a colaborar com a população local.

8-Infelizmente, nos últimos meses, a atividade intimidatória do grupo criminoso, voltou a acentuar-se, tendo sido furtados e vandalizados mais de 200 sobreiros de cortiça sem idade legal, e inclusivamente alvejada uma viatura a tiro. Os furtos foram presenciados por várias pessoas da população tendo estas identificado claramente os criminosos, mas compreende-se, a dificuldade de as testemunhas oficializarem as ocorrências, tendo em conta o clima de medo e de terror. Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita.

9-Pelo que fica exposto, e em face da indiferença e inoperância da entidades acima mencionadas, declinamos qualquer responsabilidade por um verdadeiro Crime Ecológico dentro duma Reserva Natural, que está a ocorrer à vista de todos, no Montado de Sobro sob a nossa responsabilidade, e lamentamos profundamente que a entidades oficiais, pagas pelos nossos impostos, não cumpram o seu dever, com evidente prejuízo para toda a população.”

4. O citado “Comunicado” publicado através do perfil de Facebook de AA foi subscrito pela própria e pelos arguidos BB, DD e CC, onde se identificaram na qualidade de proprietários da Herdade ….

5. Ao publicar o referido comunicado, nomeadamente quando se refere que “Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita”, pretenderam os arguidos ofender a credibilidade, prestígio e confiança que são devidos à EE enquanto organismo que exerce a autoridade pública, visando, nomeadamente a atuação dessa EE da área territorial da Comarca de ….

6. Tal documento podia ser visto e lido por todos os visitantes da referida página de internet e especificamente por todos os Militares da EE que à mesma acedessem.

7. Tal publicação veio a ser noticiada pelo “Jornal …”, no dia 25/08/2021 no site de internet do referido jornal disponível em https:…, o que permitiu a sua divulgação por um número indeterminado de pessoas.

8. Sabiam que o teor do texto em causa extravasava o direito à critica garantido numa sociedade democrática, resvalando para a formulação de imputações de factos e juízos ofensivos da honra e consideração da EE.

9. Sabiam ainda que os referidos comentários propalavam factos inverídicos acerca da EE e que eram suscetíveis de ofender a credibilidade, prestígio e confiança que lhes eram devidos enquanto organismo que exerce a autoridade pública.

10. Apesar do conteúdo de tais comentários e de os conhecer, a arguida enquanto titular do perfil “AA” tendo a opção de eliminar tal publicação, decidiu mantê-la on line, permitindo a sua publicação e visualização.

11. Sabiam os arguidos que o meio por si utilizado facilitava a divulgação de tais juízos e imputações.

12. Não obstante, quiseram e conseguiram reproduzir publicamente juízos ofensivos da hora e consideração da EE, fazendo-o em circunstâncias que facilitavam a sua divulgação por um número indeterminado de pessoas e querendo, designadamente, que o teor da publicação fosse conhecido por todos os visitantes da pagina “…”.

13. Os arguidos agiram sempre livre deliberada e conscientemente, sabendo que tais condutas lhes estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiram de as realizar.

Face ao exposto, mostram-se os arguidos incursos, na prática, em co-autoria e na forma consumada de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido pelos artigos 187º e 183º nº 1 alínea a) e 188º nº1 alínea b) do Código Penal.”

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Temos para nós que a decisão recorrida é acertada.

O que está em causa, devidamente enquadrada no restante, é a expressão “Este clima de medo e terror, torna-se ainda mais vincado, quando é do conhecimento geral de que há militares da EE, que protegem e dão cobertura a esta atividade ilícita.”, designadamente na parte agora por nós sublinhada.

Depois de fazerem referência ao furto e vandalização de sobreiros na Herdade …, sua propriedade, e de outros actos criminosos praticados na região, os arguidos inseriram no texto publicado no facebook a referida expressão.

Como bem refere José de Faria e Costa no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 677, o bem jurídico protegido como a previsão do artº 187º do Cód. Penal “é um pedaço fragmentado da realidade social com ressonância axiológica. É um bem jurídico mais do poliédrico, um bem jurídico heterogénico. Heterogeneidade que ressalta da sua diferenciada composição: credibilidade, prestígio e confiança”.

E mais adiante: “… pensamos que o núcleo do bem jurídico que aqui se quer defender se prende, de modo incontornável, com a ideia de bom nome.”

Será que com a expressão acima referida se pretendeu pôr em causa a credibilidade, o prestígio ou a confiança, ou seja, o bom nome da corporação EE?

Não nos parece.

Em primeiro lugar, como também se refere no despacho recorrido, os arguidos não estão propriamente a imputar factos (inverídicos e enquanto acontecimentos da vida real) à EE. Não estão a dizer, por exemplo, que no dia tal, no sítio tal, elementos da EE. viram pessoas a furtar sobreiros e nada fizeram.

Estão sim a fazer um juízo de valor sobre elementos da EE.

Mas mesmo que se considere que, no fundo, está a imputar-se factos (embora como refere Renato Lopes Militão, revista julgar on line, Março de 2016, “Sobre a tutela penal da honra das entidades colectivas”: “em caso de dúvida, deve considerar-se que se está perante um juízo valorativo”), o que é certo é que essa imputação não é dirigia ao ente colectivo em si, mas sim a alguns dos seus elementos, não existindo qualquer delimitação do grupo dos mesmos.

E isto é importante: o que se pretende não é pôr em causa a actuação da EE em si, enquanto corporação, mas sim a actuação de alguns dos seus elementos, independentemente do seu número.

Para melhor se compreender o que se pretende significar, atente-se no seguinte exemplo, em tudo semelhante ao caso em análise: recentemente foi publicado num jornal on line de grande expansão que o director executivo da associação portuguesa dos industriais de … declarou que: “a GG tem um ou outro inspector que gosta de abusar do poder”.

Está com isto o referido director executivo a pôr em causa o bom nome da GG? Ou está simplesmente a referir que alguns dos seus elementos (“um ou outro inspector”) “gosta de abusar do poder”?

Se se refere “ um ou outro” é porque se está a circunscrever a alguns dos elementos da GG o “gosto” pelo abuso do poder, tal como se se refere que há militares da EE que protegem e dão cobertura a actividades ilícitas está a dizer-se que alguns elementos da referida corporação não têm actuação adequada.

Não é a EE em si que está a ser posta em causa. Não se está a referir que a EE na sua globalidade protege actividades ilícitas.

Outro exemplo: alguém diz “alguns procuradores e alguns juízes são corruptos”. Está com isso a pôr-se em causa o bom nome da magistratura do Ministério Público e da magistratura judicial? Não parece que assim seja.

É evidente que indirectamente sempre que se imputa a prática de factos a elementos de uma entidade, esta pode ficar afectada no seu bom nome. Mas não se pode concluir daí que o objectivo foi atingir a entidade no seu todo. A confiança da comunidade na entidade não fica directamente afectada por aí. Até porque se se diz que há elementos da EE que protegem e dão cobertura a actividades ilícitas é porque se está a transmitir também que haverá outros que não o fazem.

Assim sendo, também por aqui, nada há a censurar no despacho recorrido.

Por outro lado, o argumento apresentado pelo recorrente ao apelar à utilização da expressão “entidades acima mencionadas” como incluindo também a EE não parece dever colher.

É que o que consta acima é o seguinte: “tudo isto se passa perante a indiferença do poder autárquico, e do HH”

Assim sendo, quando se refere mais adiante “em face da indiferença e inoperância da entidades acima mencionadas”, parece que os arguidos se estão a referir às duas indicadas entidades – poder autárquico e HH – únicas a quem anteriormente imputam indiferença (e aqui sim, no que ao HH se refere - não se pode dizer que “poder autárquico” seja uma entidade – dirigindo-se claramente ao organismo no seu todo, embora a imputação de “indiferença” caiba no direito de crítica.

Resta ainda referir que a acusação em causa é omissa quanto a parte do elemento objectivo do crime em apreço.

Como se refere no ac. da rel. do Porto de 30/3/2022:

I - No crime previsto no art.187º do CP estão excluídos os juízos de valor depreciativos do bom nome da pessoa coletiva, e muito embora o seu potencial lesivo, apenas são susceptíveis de tutela cível. Somente a propalação de factos inverídicos associados a pretensas condutas da pessoa coletiva, com um potencial muito mais lesivo sobre a sua credibilidade e confiança, determinam a tutela penal.

II - Essa restrição da tutela no art.187º nº1 do CP, associada à exigência probatória que recai sobre a acusação, devendo, para além do mais, provar a falta de fundamento do agente para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos propalados, cumprem o princípio da intervenção mínima do direito penal e torna a tutela aí prevista mais limitada; por contra-ponto aos crimes de injúrias e difamação, cuja tutela se mantem mais ampla, onde à acusação basta a imputação dos juízos de valor depreciativos, cabendo à defesa a prova da boa fé para os reputar verdadeiros cfr.art.180 nº2 al.b) do CP.”

Tal como também se indica no despacho recorrido, na acusação em análise “não se menciona esse carácter inverídico em sede de imputação objectiva, sempre se acrescentando, ademais, que talqualmente é necessário que narração fáctica contemple que o agente não teve razões sérias para aceitar os factos como verdadeiros, o que também integra o elemento objectivo da incriminação”.

Por tudo o exposto, bem andou a decisão recorrida, nada havendo a censurar à mesma.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Sem tributação.

Évora, 28 de Março de 2023

Nuno Garcia

António Condesso

Edgar Valente