Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
62/17.1T9FAL.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA
SEQUESTRO
SENTIDOS SOCIAIS DE ILICITUDE
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – É pacífico que a ação, para efeitos penais, tem uma estrutura valorativa e, assim, o número de infrações determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa atividade, sendo a determinação da ilicitude material - que se exprime nos tipos legais de crime - que constitui a fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de valorações jurídicas, sem perder de vista os juízos de censura que ao agente possam ser assacados.

II - Os diversos sentidos sociais de ilicitude devem ser integralmente valorados para efeito de punição e a presunção de que se estará perante pluralidade de ilícitos pode ser elidida quando os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social.

III - Na ausência de uma maior concretização factual da privação da liberdade do menor, conjugada com a circunstância de que os arguidos se moveram pelo intuito de que aquele não fosse à cozinha buscar comida e quando não estavam em casa, a posição acolhida pelo Tribunal, de não autonomizar os factos integradores da privação da liberdade do crime de violência doméstica, decorre como aceitável.

IV - O sentido de desvalor da conduta dos arguidos, no que tange àqueles atos formalmente suscetíveis de integrarem sequestro, não se desprende, com a exigida dimensão, da unicidade valorativa refletida no conjunto dos seus atos praticados quanto ao menor, enquanto lesivos, nessa vertente, da sua integridade física e psíquica e da sua dignidade humana, para que se considere que se devam autonomizar com o objetivo de fazer prevalecer a visada punição.

V - Acresce que decorre do provado que os arguidos sempre agiram mediante idêntico desiderato, o de molestar o menor, física e psicologicamente, atentando, além do mais, contra o seu corpo e integridade física, sujeitando-o a contínuo tratamento cruel, indigno e degradante, confluindo, pois, para o sentido de imagem global que incluiu, entre outros, os atos em causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de Beja do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o Ministério Público deduziu acusação contra SS e PP, imputando-lhes a prática dos seguintes crimes, em concurso efetivo:

- ao arguido PP, de
(i) 10 (dez) crimes de sequestro agravado, p. e p. pelo art. 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal (CP), em coautoria com a arguida SS;

(ii) 2 (dois) crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, alínea a), do CP, a que são aplicáveis as sanções acessórias previstas nos n.ºs 4 a 6 do mesmo preceito legal;

(iii) 1 (um) crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea c), do CP; e

(iv) 2 (dois) crimes de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo art. 387.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a que são aplicáveis as sanções acessórias previstas no art. 388.º-A, n.º 1, do CP;

- à arguida SS, de
(i) 10 (dez) crimes de sequestro agravado, p. e p. pelo art. 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal (CP), em coautoria com o arguido PP;

(ii) 2 (dois) crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, alínea a), do CP, aos quais são aplicáveis as sanções acessórias previstas nos n.ºs 4 a 6 do mesmo preceito legal; e

(iii) 1 (um) crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea c), do CP.

Foi atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável a AA e a EE, a quem foram nomeados Patronos para os representarem, ao abrigo da Lei n.º 112/2009, de 16.09.

O Ministério Público requereu que, em caso de condenação, os arguidos fossem igualmente condenados a pagar a título de compensação por danos não patrimoniais a cada uma das vítimas quantia nunca inferior a € 10 000,00 para cada um deles, ao abrigo dos arts. 16.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 130/2015, de 04.09 (Estatuto da Vítima), 82.º-A, do Código de Processo Penal (CPP), e 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09 (Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica).

O arguido apresentou contestação, na qual ofereceu o merecimento dos autos e arrolou prova testemunhal.

A arguida apresentou contestação segundo a qual refutou a prática dos crimes que lhe eram imputados e alegou que o menor AA, devido à doença de que padece, apresenta uma personalidade manipuladora, fantasia e efabula situações de pretensos maus tratos, razão por que as suas declarações não correspondem à realidade. Arrolou prova testemunhal.

A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, designadamente tendo sido assegurado aos arguidos o contraditório com respeito ao pedido de arbitramento de indemnizações.

Proferido acórdão, decidiu-se, além do mais:

- julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação pública e, em consequência:

- absolver os arguidos SS e PP da prática de dez crimes de sequestro agravado, p. e p. pelo art. 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CP;

- absolver os arguidos da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, alínea c), do CP;

- condenar a arguida SS pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, alínea a), do CP, nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão, quanto à menor EE, e de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, quanto ao menor AA;

- em cúmulo jurídico, condenar a arguida na pena única de 6 (seis) anos de prisão;

- condenar o arguido PP pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, alínea a), do CP, nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão, quanto à menor EE e, de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, quanto ao menor AA e, pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo art. 387.º, n.º 2, do CP, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- condenar os arguidos nas penas acessórias de frequência de programas específicos de violência doméstica, em ambiente prisional, nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do CP;

- condenar o arguido na pena acessória de proibição de detenção de animais de companhia pelo período de 2 (dois) anos, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art. 388.º-A, do CP;

- condenar os arguidos a pagar ao menor AA, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros);

- condenar os arguidos a pagar à menor EE, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros).

Inconformados com tal decisão, o Ministério Público e os arguidos interpuseram recursos, formulando as conclusões:

I - Ministério Público:
1.ª
A arguida SS foi acusada pela prática, em concurso efectivo, de:

- Dez crimes de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal;

- Dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, alínea a), n.º 4, n.º 5 e n.º 6, do Código Penal;

- Um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea c), do Código Penal.

2.ª
O arguido PP, por sua vez, foi acusado pela prática, em concurso efectivo, de:

- Dez crimes de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal;

- Dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, alínea a), n.º 4, n.º 5 e n.º 6, do Código Penal;

- Um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea c), do Código Penal.

- Dois crimes de maus-tratos a animais de companhia, p. e p. pelos artigos 387.º, n.º 1 e n.º 2, e 388.º-A, n.º 1, do Código Penal.

3.ª
Realizado o julgamento, o tribunal colectivo do Juízo Central Cível e Criminal de Beja decidiu:

a) Absolver os Arguidos da prática dos dez crimes de sequestro agravado;

b) Absolver os Arguidos da prática do crime de maus tratos;

c) Condenar a Arguida SS pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, nas penas parcelares de 3 anos de prisão, quanto à menor EE, e de 4 anos e 6 meses de prisão, quanto ao menor AA;

d) Em cúmulo jurídico, condenar a Arguida na pena única de 6 anos de prisão;

e) Condenar o Arguido PP pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, nas penas parcelares de 3 anos de prisão, quanto à menor EE, e de 4 anos e 6 meses de prisão, quanto ao menor AA;

f) Condenar o Arguido PP pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;

g) Em cúmulo jurídico, condenar o Arguido na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão;

h) Condenar os Arguidos nas penas acessórias de frequência de programas específicos de violência doméstica, em ambiente prisional, nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal.

4.ª
O Ministério Público entende que:
- Os factos que envolvem o menor AA devem ser punidos pela moldura penal do crime de sequestro agravado [artigos 152.º, n.º 1, parte final, e 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal];

- Deve haver uma diferenciação na penalização dos arguidos pelos crimes de sequestro agravado, em que é ofendido o menor AA, e de violência doméstica, em que é ofendida a menor EE;

- O arguido PP deve ser condenado na pena acessória de proibição de contactos com a menor EE.
Com efeito,

5.ª
Ficou provado que o menor AA é filho da arguida SS e de RS, nasceu a 23 de Janeiro de 2004 e padece de síndrome de asperger, que os arguidos mantêm uma relação marital desde Junho de 2015, e que os arguidos, de forma livre, voluntária e consciente, entre os dias 1 Junho de 2015 e 13 de Agosto de 2017, em múltiplas ocasiões, agrediram fisicamente e insultaram o menor AA, ataram-lhe as mãos e os pés com fita adesiva e, dessa forma, confinaram-no ao interior do seu quarto durante várias horas, e entre 1 de Junho de 2017 e 13 de Agosto do mesmo ano, obrigaram-no a realizar trabalhos de construção civil inapropriados para a sua idade e para a sua capacidade física, privando-o, frequentes de vezes, de almoço.

6.ª
Diante deste quadro factual, não restam dúvidas de que o crime de violência doméstica e que é ofendido o menor AA integrou a prática de factos que, isoladamente considerados, preenchem os pressupostos típicos dos crimes de ofensa à integridade física qualificada [artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 132.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal], de injúria [artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal], de maus tratos [artigo 152.º-A, n.º 1, alínea c), do Código Penal] e de sequestro agravado [artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal].

7.ª
Sendo o crime de sequestro agravado punido com pena de 2 a 10 anos de prisão, é pela sua prática que os arguidos devem ser condenados relativamente aos factos que envolvem o menor AA por força do princípio da subsidiariedade [v. a parte final no artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal].

8.ª
Ao considerar que o crime de sequestro agravado está consumido pelo crime de violência doméstica e que, por conseguinte, os arguidos incorrem na pena abstracta estabelecida no artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, o douto acórdão violou o princípio da subsidiariedade e o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, parte final, e 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal.

Por outro lado,
9.ª
Perante os elementos de facto atinentes à culpabilidade, ao grau de ilicitude e às exigências de prevenção que se destacam na decisão recorrida, justifica-se que aos arguidos sejam aplicadas as seguintes penas:

a) Arguida SS:
- 6 anos de prisão pelo crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA;

- 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de violência doméstica em que é ofendida a menor EE;

- 7 anos e 6 meses de prisão de pena conjunta;

b) Arguido PP
- 5 anos e 6 meses de prisão pelo crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA;

- 7 anos e 3 meses de prisão de pena conjunta.

10.ª
Ao fixar as penas em medida inferior às referidas na antecedente conclusão, o douto acórdão fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 40.º, n.º 1 e n.º 2, 71.º, n.º 1 e n.º 2, e 77.º, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal.

Por último,

11.ª
Face à matéria de facto provada, deve ser aplicada ao arguido PP a pena acessória de proibição de contactos com a menor EE durante o período de 4 anos.

12.ª
Ao afastar a aplicação da referida pena acessória, o douto acórdão postergou, assim, também, o disposto no artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal.

Em síntese,

13.ª
O douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, acolhendo o entendimento ora exposto:

a) Condene os arguidos pela prática de um crime de sequestro agravado relativamente à factualidade que envolve o menor AA;

b) Condene a arguida SS na pena de 6 anos de prisão pela prática do crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA;

c) Condene a arguida SS na pena de 3 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica em que é ofendida a sua filha EE;

d) Condene a arguida SS na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão;

e) Condene o arguido PP na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA;

f) Condene o arguido PP na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão;

g) Condene o arguido PP na pena acessória de proibição de contactos com a menor EE pelo período de 4 anos.

II - SS:
A. O presente recurso tem como objecto a impugnação dos factos constantes dos sob os pontos/números 7 a 26; 31 a 35; 38 a 50 da matéria de facto dada como provada no douto acórdão de que se recorre.

B. Assim como a matéria de direito do acórdão recorrido que condenou a aqui recorrente (A) pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, nas penas parcelares de três (3) anos de prisão, quanto à menor EE, e de quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão, quanto ao menor AA; e, em cúmulo jurídico, condenar a aqui recorrente na pena única de seis (6) anos de prisão; e, ainda, decidiu condená-la (B) nas penas acessórias de frequência de programas específicos de violência doméstica, em ambiente prisional, nos termos do artigo 152.º n.º 4, do Código Penal; e condená-la (C) a pagar ao menor AA, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros) e (D) a pagar à menor EE, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de €
10 000,00 (dez mil euros); com o que não se conforma.

C. O Tribunal a quo considerou provado que:
(…)
7. Desde data não concretamente apurada e até à sua institucionalização, a arguida SS exerceu diversos atos de violência física e psicológica sobre AA.

8. Em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre 1 de junho de 2015 e 13 de agosto de 2017, por diversas ocasiões, os arguidos SS e PP, no interior da sua habitação, desferiram murros e pontapés em várias partes do corpo de AA.

9. Mais desferiram golpes com o cinto na pessoa de AA, em várias ocasiões e no mesmo hiato temporal.

10. Como consequência direta e necessária desses eventos, a vítima AA sofreu hematomas e dores.

11. Para evitar que os colegas e pessoal docente da escola que frequentava vissem os efeitos das agressões assim sofridas, AA frequentemente se furtava a participar nas aulas de educação física, alegando ter-se esquecido do material, o que fazia por exigência da arguida SS.

12. Os arguidos mais obrigavam a vítima a faltar à escola, sempre que o mesmo apresentava lesões visíveis das agressões sofridas, para evitar que tal realidade fosse percecionada pelo pessoal docente da escola.

13. Os arguidos SS e PP, em diversas ocasiões e datas não concretamente apuradas, compreendidas no lapso temporal descrito em 8, dirigiram a AA as expressões “monte de merda”, “desperdício de ADN”, “deficiente” e “mongoloide”, e mais lhe disseram que a vítima não prestava para nada e não ia ser ninguém na vida, o que fizeram com o intuito concretizado de lesar a sua honra e autoestima.

14. Em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre 1 de junho e 13 de agosto de 2017, durante o período de férias escolares de Verão de AA, os arguidos SS e PP forçaram o menor a realizar diversos trabalhos de construção em residência para a qual planeavam mudar-se, sita em local não apurado da localidade de Ferreira do Alentejo.

15. Mais concretamente, forçaram o menor a partir paredes, a pintar, a fazer cimento à mão e a abrir buracos no chão, atividades superiores à sua força física, destreza e aptidão.

16. Nos dias em que era forçado a realizar tais trabalhos, AA era obrigado a trabalhar durante o dia inteiro pelos arguidos, os quais frequentemente o proibiam de almoçar.

17. Caso AA recusasse realizar tais atividades ou não as completasse do modo desejado pelos arguidos, os arguidos agrediam-no com murros ou com recurso a tubos.

18. Caso AA manifestasse sinais de cansaço, os arguidos SS e PP diziam não querer saber e forçavam-no a continuar tais atividades.

19. Como consequência direta e necessária desses trabalhos, AA ficou com calos, bolhas e feridas nas mãos.

20. Os arguidos SS e PP, em data não concretamente apurada, mas mais do que uma vez, ataram as mãos e os pés AA, com fita adesiva, deixando-o no interior do seu quarto durante várias horas, sem poder sair daquela divisão.

21. Faziam-no, proibindo-o de comer e utilizando essa imobilização para evitar que o mesmo fosse à cozinha buscar comida nas alturas em que os arguidos não se encontrassem em casa.

22. Para concretizar essa imobilização, os arguidos fizeram valer-se da sua superioridade física em relação ao menor AA, bem como do ascendente que tinham sobre o mesmo, que daqueles dependia, e das fragilidades emocionais da vítima, que exploraram.

23. Nessas situações, AA apenas comia o que a vítima EE conseguia dissimuladamente levar-lhe, o que correspondia sempre a pequenas porções de alimentos, para evitar ser apanhada e sofrer agressões em resultado disso.

24. No dia 13 de agosto de 2017, aproveitando a ausência dos arguidos SS e PP, AA fugiu da residência sita na Rua…, nesta localidade de Ferreira do Alentejo, e dirigiu-se a casa de FC, mãe de uma colega de escola da vítima.

25. AA foi então conduzido ao posto da GNR de Ferreira do Alentejo, comparecendo no local a arguida SS, que levou consigo a vítima e transportou-a até Grândola. 26. No caminho para essa localidade, a arguida SS repetidamente verbalizou expressões ameaçadoras visando AA, dizendo-lhe que ia “para o monte de merda do teu pai, que aí é que estás bem”.
(…)
31. Concomitantemente aos eventos relativos AA, os arguidos SS e PP exerceram diversos atos de violência física e psicológica sobre EE.

32. Em diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, entre 1 de junho de 2015 e 19 de outubro de 2017, os arguidos SS e PP golpearam EE com murros, com um cinto e com cabos de vassoura, em várias partes do corpo.

33. Como consequência direta e necessária desses atos, EE sofreu dores e hematomas.

34. Os arguidos SS e PP, em diversas ocasiões, forçaram EE bater em AA, dizendo-lhe que se não o fizesse, lhe batiam.

35. Lograram dessa forma levar EE a golpear AA, em diversas ocasiões.
(…)
38. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 1 de janeiro de 2016 e 13 de agosto de 2017, o agregado familiar composto por EE e AA e pelos arguidos SS e PP recebeu um cão na sua residência, de características não concretamente apuradas.

39. Em data não concretamente apurada, mas compreendida no hiato temporal descrito, o arguido PP muniu-se de uma corda grossa, atou um nó de forca na mesma e utilizou-a para proceder ao enforcamento desse animal, causando-lhe a morte em resultado disso.

40. Praticou tais atos na presença da vítima EE.

41. Após, o arguido PP ordenou à vítima AA que acondicionasse o cadáver do canídeo em sacos do lixo e que o fosse despejar no contentor do lixo, tomando o cuidado de o fazer em momento em que ninguém passasse na rua.

42. Ao atuarem do modo descrito, os arguidos SS e PP sabiam e queriam, em autorias paralelas, infligir maus tratos físicos e psíquicos a AA e EE, como sejam agressões físicas, insultos e ameaças várias.

43. Agiram sempre com o desiderato de molestar AA e EE, física e psicologicamente, atentando contra o seu corpo e integridade física, contra a sua honra e consideração e contra o seu sossego e tranquilidade, sujeitando-os a um contínuo tratamento cruel, indigno e degradante.

44. Ambos os arguidos sabiam que AA e EE eram menores de idade e pessoas particularmente indefesas, o primeiro em resultado da sua idade e de padecer de doença de asperger, e a segunda em resultado da sua idade, circunstância que em nenhum momento os demoveu de agirem do modo descrito.

45. Mais sabiam e queriam praticar tais atos dentro da residência que partilhavam com as vítimas, atentando contra a estabilidade e sossego das mesmas, e sujeitando os menores a assistir aos maus tratos que eram infligidos a cada um, quando não eram os próprios os visados.

46. Os arguidos SS e PP mais sabiam e queriam, em autorias paralelas, forçar AA a realizar trabalhos que exigiam força, destreza e aptidão física superiores àquela de que o mesmo dispunha, mostrando-se indiferentes aos rogos deste último.

47. Mais sabiam que AA era menor de idade e particularmente indefeso à data, e que o mesmo se encontrava aos seus cuidados, fazendo impender sobre os arguidos os deveres de cuidado, guarda e educação, circunstância que em nada os demoveu de atuar do modo descrito.

48. Os arguidos SS e PP mais sabiam e queriam, em comunhão de esforços, prender os membros superiores e inferiores do menor AA com fita isoladora, assim o mantendo imobilizado no colchão do seu quarto durante várias horas, o que lograram fazer, mais do que uma vez, por algumas horas.

49. O arguido PP, por fim, sabia e quis enforcar um canídeo, infligindo-lhe dor e sofrimento geradores de morte.

50. Em todo o circunstancialismo descrito, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubessem que os seus comportamentos são censurados por lei como crime.

D. A recorrente considera que tais pontos de facto foram incorrectamente julgados como provados e houve um erro de julgamento da matéria de facto.

E. Tal decorre da prova produzida em sede de julgamento não ser suficiente para considerar provados aqueles pontos de facto, como o demonstram as declarações da aqui arguida, os depoimentos para memória futura dos menores ofendidos, os depoimentos das testemunhas e os relatórios periciais identificados nas alegações e que aqui se reproduzem e que constam designadamente de fls. 421 verso, 436 e 441 dos autos e ainda das gravações dos depoimentos supra referidos.

F. Assim como decorre das dúvidas levantadas maxime pela contradição total da posição da arguida e dos ofendidos resultantes dos seus depoimentos e declarações supra identificadas nas alegações e que aqui se reproduzem, designadamente as passagens referidas nas alegações e que aqui se reproduzem.

G. Perante as dúvidas deixadas por estes meios de prova e por violação do princípio da investigação os referidos factos não deveriam ter sido dados como provados.

H. Deveria ter-se concluído que a arguida não praticou os factos porque vem condenada e com o que não se conforma e, por isso, deve ser absolvida.

I. O Tribunal a quo ao considerar como provados tais factos violou o disposto no art. 127.º do CPP e art. 355.º, n.º 1 do CPP.

J. E violou o princípio da presunção de inocência, devendo ter julgado pro reo.

K. Em suma, ao não se dar como provados tais factos, não se encontram preenchidos os elementos dos tipos de crime de violência doméstica, ou se qualquer outro, porque foi condenada a recorrente e/ou porque viesse acusada,

L. Pelo que consequentemente deve a recorrente ser absolvida da sua prática e, não lhe deve ser aplicada qualquer pena de prisão ou pena acessória.

M. Assim como não deve ser arbitrada oficiosamente qualquer indemnização aos lesados,

N. Pelo exposto o Tribunal a quo não interpretou, nem aplicou o disposto nos artigos 152.º, n.ºs 1 e 3, 14.º e 26.º, do Código Penal, normas que violou.

O. Assim como violou o artigo 16.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, o artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e o artigo 82.º- A, do Código de Processo Penal.

P. Sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese académica, como provados os factos em que assentou o acórdão recorrido, constata-se que a medida concreta da pena aplicada à arguida é severa e deve ser reduzida.

Q. O Tribunal a quo violou os artigos 40.º, 47, n.º 2, 69.º, n.º 1, al. a), 71.º, 72.º, 73.º e 77.º do Código Penal;

R. As penas de prisão efectivamente aplicadas e a pena única de prisão aplicada em cúmulo, é severa, excessiva e desproporcional aos fins da prevenção especial e ultrapassa a medida da culpa e, por isso, deve ser reduzida para os termos constantes das alegações, assim como o deve ser reduzido o valor da indemnização arbitrada oficiosamente aos lesados, o qual não deve ser fixado em valor superior a € 4.000,00 (quatro mil euros), por ser esse o valor mais justo e adequado.

TERMOS EM QUE V. EXAS.DEVERÃO ACORDAR EM DAR PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO, E POR VIA DELE REVOGAR O ACÓRDÃO RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER A RECORRENTE ABSOLVIDA DOS CRIMES POR QUE VEM CONDENADA E, SE ASSIM NÃO SE ENTENDER, ALTERAR A SENTENÇA RECORRIDA E APLICAR À ARGUIDA UMA PENA MAIS LEVE E SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO, MESMO SUJEITA AO REGIME DE PROVA, ASSIM COMO REDUZIR O QUANTUM INDEMNIZATÓRIO A FAVOR DOS MENORES, FAZENDO ASSIM JUSTIÇA!

III – PP:
A. - O recurso incide sobre a douta sentença que condena o Arguido na prática de dois crimes de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, pº e pº pelos Artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2, al. a) do Código Penal, nas penas parcelares de 3 anos de prisão, quanto à menor EE, e de 4 anos e 6 meses de prisão, quanto ao menor AA, pela prática de um crime de MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA, pº pº pelo Artº 387º, n 2 do Código Penal e em cúmulo jurídico na pena única de 6(SEIS) ANOS E 6 (SEIS) MESES DE PRISÃO;

B. - Mais foi condenado nas penas seguintes penas acessórias: 1) ­- Frequência de programa especifico de violência doméstica, em ambiente prisional, nos termos do Artº 152º nº 4 do C.P.; -2) - Proibição de detenção de animais de companhia pelo período de 2 anos, ao abrigo do disposto no Artº 388º, nº 1 do C.P.;

C. - Foram ambos os Arguidos condenados a pagar ao menor AA e à menor EE, a título de indemnização arbitrada oficiosamente, a quantia de €: 10.000,00 para cada um dos menores;

D. - O recurso incide sobre à matéria de facto e à medida da pena;

E. - O douto acórdão padece de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio da livre apreciação, nos termos dos Artº 127º e 410º nº 2, alínea a), ambos do C.P.P.

F. - Nos termos do Artº 127º, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

G. - A livre apreciação da prova, conforme salienta o Cons. Maia Gonçalves, “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica ...” ­Código de Processo Penal Anotado" 9ª Ed., pág. 322

F. - Da matéria de facto dada como provada encontram-se factos com os quais não nos podemos conformar - Factos que se reportam os artigos 8 a 23, 32 a 35, e 39 a 43 -, porque não foi feita prova suficiente e consistente;

G. - Os Arguidos negaram a prática dos factos, mas o tribunal “a quo” assentou a condenação essencialmente no depoimento dos menores EE e AA;

H. - Se no testemunho de pessoas adultas são vários os problemas que temos para aferir da sua credibilidade, associados a várias condicionantes, maiores são as dificuldades quanto ao testemunho infantil;

I. - No entanto sempre existiram reservas quanto à credibilidade do seu testemunho. Tais reservas baseiam-se em quatro critérios que se consubstanciam ao nível das competências dos menores; “- a distinção entre a verdade e a mentira e a percepção da responsabilidade de dizer a verdade; - a compreensão do evento vivenciado; - a capacidade de manter uma recordação não contaminada do evento; - e a capacidade de expressão verbal do evento vivido” - O Protocolo de Entrevista Forense do NICHID - PEIXOTO, Carlos Eduardo, RIBEIRO, Catarina, ALBERTTO, Isabel. - Revista Mº Pº nº 134 - Abril-Junho 2013 pag. 150.

J. - Assim o testemunho dos menores, em termos de credibilidade, deve revestir-se das maiores prudências porque nos seus depoimentos podemos encontrar mentiras conscientes e inconscientes;

K. - Como afirma BATTISTELLI, a criança ... fala e diz, na maior parte dos casos inconscientemente, coisas não verdadeiras; e muitas vezes insiste e teima, porque está convencida de que diz a verdade. Ela pode mentir para esconder uma inconveniência, ou para evitar uma punição; pode mentir por brincadeira, por espirita de imitação, por preguiça, por inveja, por maldade, por amor próprio, por vaidade, não raro simplesmente para impressionar quem a escuta”, - BATTISTELLI, Luigi, A Mentira nos Tribunais,

L. - O depoimento da EE e do AA é uma narração fragmentada e incompleta sem uma narrativa objectiva e consistente;

M. - A conclusão de que o Arguido praticou aqueles factos resulta de uma DEDUÇÃO sem suporte consistente e rígido de que não exista qualquer dúvida;

N. - Aliás compulsando o teor das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento revelaram não terem conhecimento directo dos factos;

O. - Assim é com muitas reservas que a defesa do Arguido aceita os depoimentos dos menores como totalmente verdadeiros;

P. - Não temos é certezas, e para a condenação do Arguido não pode subsistir qualquer dúvida em relação à sua autoria;

Q. - Em processo penal não basta que a hipótese colocada pela acusação seja provável ou mesmo a mais provável, pois o princípio da culpa e da presunção da inocência exigem que o tribunal decida para além de toda a dúvida com base em meios de prova efectivamente produzidos.

R. - Para a condenação exige-se UM JUÍZO DE CERTEZA e NÃO MERA PROBABILIDADE e, na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida), vale o princípio de presunção de inocência do Arguido – Artº 32º, nº 2 da CRP) e a regra, seu corolário, IN DUBIO PRO REO.

S. - O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

T. - O Tribunal Constitucional debruçando-se sobre a norma do Artº 127º do CPP, acompanhou estas considerações, realçando que a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos cientificos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão, - Ac. 1165/96, de 1.11 - Procº 142/96 – 1ª, in BMJ 461º/93.

U. - É pacífico que a livre convicção não significa uma mera auto-sugestão, uma convicção avulsa, simples conjecturas ou opiniões pessoais de quem decide, por mais honestas que sejam;

V. - Termos em que não podemos aceitar que tais factos tenham sido dados como provados.

W. - Além disso, tendo em atenção a matéria de facto dada como provada, e com todo o respeito que nos merecem os Mº Juízes, e que é muito, parece-nos legítimo concluir que a pena aplicada ao Recorrente deveria ser mais benevolente.

X. - Nos termos do Artº 152º, nº 2 do Código Penal, a moldura penal para o crime de violência doméstica agravado é a prisão de 2 a 5 anos;

Z. - A determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente e das exigências da prevenção – Artº 71º nº 1, do C. Penal.

AA. - O Arguido é pessoa de humilde condição social e está integrado social e familiarmente.

BB. - Salvo melhor opinião, é nosso entendimento que no caso sub judice a prevenção geral e a reintegração do Arguido na sociedade se poderá também fazer de forma mais equilibrada, mediante uma pena menos gravosa.

CC. - A decisão recorrida violou as normas constantes dos Artº 40º, 71º e 152º, todos do C. Penal, por aplicar pena manifestamente excessiva e desconforme aos elementos favoráveis ao arguido que o Tribunal se absteve de ponderar.

DD. - Tudo ponderado, entendemos adequado a aplicação ao Arguido das seguintes penas parcelares: - pena de 2 anos de prisão, quanto à menor EE e 3 anos de prisão, quanto ao menor AA.

EE. - E em cúmulo jurídico na pena única de 5 CINCO) anos de prisão.

FF. - Nos termos dos critérios decorrentes dos Artº 70º e 71º do Código Penal, a pena também tem uma finalidade preventiva e não apenas repressiva;

GG. - Da curta história social e criminal do Arguido não é compatível com um perigoso delinquente que exija do sistema judiciário fortes e duradouras penas para que a comunidade viva em paz;

HH. - Nos termos do Artº. 50º, nº. 1 do C.P., o Tribunal deve suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.

II. - A tendência do direito penal actual é o recurso à prisão efectiva em última instância sempre que outras medidas não possam preencher os objectivos das finalidades da punição;

JJ. - E já nos tempos remotos o Profº Eduardo Correia assim pensava:
... toda o tendência do futuro direito penal- naturalmente condicionada pelo afinamento da sensibilidade dos homens para o efeito penoso que qualquer forma de tutelo exterior sobre eles sempre envolve - há-de caracterizar-se pelo esforço para a substituição integral de uma tal forma externa de exprimir a reprovação ético-social por outra, ou outras, que melhor se harmonizem com o sentido reeducativo, que a toda a pena deve caber” (a propósito da pena de prisão) - Código Penal - Projecto da Parte Geral - 1963.

KK. - A simples censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

LL. - O envio do Arguido para a clausura do Estabelecimento Prisional em nada contribuía para a recuperação e reintegração do Arguido;

MM. - Assim, e perante todos os factos passados e presentes do arguido podemos concluir por um prognóstico de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer os fins de prevenção geral e especial e a necessidade de punição.

NN. - Apesar dos lesados não terem deduzido pedido de indemnização, o douto Tribunal arbitrou indemnização para cada um dos menores no valor unitário de €: 10.000,00.

OO.- Este valor é manifestamente exagerado tendo em consideração os danos eventualmente sofridos pelos menores;

PP. - O montante indemnizatório tem de ser fixado equitativamente nos termos do Artº 496º nº 3 do Código Civil.

QQ. - Arguido vice exclusivamente do seu salário que ascende sempre próximo do salário mínimo nacional e muitas vezes incerto;

RR. - Salvo melhor opinião, entendemos que o valor de C: 5.000,00, para cada um dos menores, será mais justo e proporcional às condições económicas e familiares do Arguido.

NESTES TERMOS,
deve ser dado provimento ao recurso e alterar-se a douta sentença recorrida.

Os recursos foram admitidos.

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso dos arguidos, concluindo:

- quanto ao recurso de SS:
A. A arguida/recorrente SS “envereda” pelo caminho da arguição de um erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, mas nesse caso a indagação tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, dito de outra forma, o vício terá de constar do teor da própria decisão de facto, sucede que a arguida/ recorrente não demonstra que do texto da decisão recorrida conste erro algum, e, ao arrepio do que estipula o mencionado preceito, pretende fundamentar a ocorrência desse erro com recurso a elementos estranhos (ainda que provenientes do próprio julgamento), o que não é, de todo, admissível.

B. A pretensão da arguida/recorrente de ter havido erro na apreciação da prova revela-se incongruente/incompatível com o facto de, simplesmente, ter ficado com dúvidas, pois isso significa que a prova permite ou consente a decisão sobre a matéria de facto que o tribunal tomou, não impondo decisão necessariamente diferente, pelo que há aí uma contradição insanável.

C. Para ter havido violação do princípio in dubio pro reo, teria que resultar evidente do texto da decisão recorrida que o tribunal ficou em dúvida e que, nesse estado, decidiu contra a arguida em vez de a seu favor, acontece que, também aqui, a arguida/recorrente não demonstra nada disso, sendo que, de facto, tal não se verifica.

D. O que a arguida/recorrente pretende é que a prova foi mal apreciada, devendo, no seu entender, ter conduzido o julgador a um estado de dúvida, o qual deveria ter sido reconhecido pelo tribunal, e por isso a arguida/ recorrente procedeu à impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.º 412.º, n.º 3 do CPP, pois só nesse caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência de julgamento.

E. O legislador explicitou que a impugnação tem de ser feita através da especificação dos «concretos» pontos de facto incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa (art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP), sendo que no n.º 4 do mesmo artigo foi aditado o segmento da norma segundo o qual «deve o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», pelo que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso.

F. Não corresponde, de todo, à verdade que os «factos apenas são corroborados pelo depoimento dos menores, sem qualquer outra espécie de confirmação probatória», como, aliás, se pode facilmente comprovar a partir da mera leitura do Acórdão recorrido, na parte da «Motivação da decisão de facto» que se deixou aqui transcrita.

G. Entende a arguida/recorrente que «o tribunal a quo dispõe apenas das versões dos ofendidos e da versão da arguida/recorrente» e, nessa medida, «a recorrente não vê como se ultrapassa a dúvida acerca da prática dos factos, quando apenas temos a palavra dos ofendidos e a negação dos factos pela arguida», como se o tribunal não pudesse, em circunstância alguma, conferir mais credibilidade a uma versão em detrimento de outra… (o que, obviamente, pode!)

H. A respeito dos depoimentos das testemunhas, a única coisa que se lhe oferece dizer é que aquelas não têm conhecimento directo dos factos…, mas isso não significa que o tribunal tivesse que desatender a todo o contributo que, ainda assim, conseguiram dar para a descoberta da verdade, designadamente compatibilizando o que disseram com o que, por seu turno, os menores referiram e, bem assim, com os restantes elementos documentais que já constavam dos autos, e nem isso invalida ou coloca em crise, como é óbvio, os depoimentos das crianças, como, aliás, foi constatado no douto Acórdão recorrido na parte da «Motivação da decisão de facto».

I. Quanto ao que a arguida/recorrente refere acerca dos depoimentos das crianças, note-se que tudo o que consta das suas alegações não passa de considerações gerais e abstractas acerca da avaliação do relato de toda e qualquer criança, e não, concretamente, da EE e do AA, sendo que respeitante a estes só se lhes refere em dois parágrafos: o primeiro em que diz que «na motivação da decisão de facto, refere-se a existência de lacunas e até discrepâncias nas declarações dos dois menores», mas, também aqui, não transcreveu quaisquer passagens relEEntes dos respectivos depoimentos de onde resultasse isso; e o segundo em que diz que «se apresentam diversos aspectos que trazem aos autos dúvidas razoáveis sobre a versão apenas narrada pelos ofendidos», mas não esclarece seja o que for, designadamente, que «aspectos» são esses, e, também aqui, não transcreveu quaisquer passagens.

J. A respeito «dos meios de prova periciais» há que começar por referir que nenhuma perícia deste tipo oferece (ou será capaz de oferecer) maior certeza do que esta (desengane-se a arguida se esperava certezas absolutas…) e, naturalmente, acompanhamos a fundamentação do douto Acórdão uma vez que «as conclusões decorrentes das perícias psicológicas realizadas às duas crianças não deixam margem para dúvidas, na medida em que resulta de fls. 421v e 441 que os relatos verbalizados pelas crianças, durante as avaliações, foram coerentes e consistentes, sem aparente influência externa, podendo ser considerados “provavelmente credíveis”, sendo o perito da opinião que os seus relatos corresponderão a situações efetivamente vivenciadas ou sentidas como tal» e porque «os relatórios periciais realizados às duas crianças atestam as lesões físicas que apresentavam à data da sua institucionalização, que são condizentes com as agressões que descrevem».

K. O tribunal a quo não deixou, contudo, de ponderar, como se pode ler na parte da «Motivação da decisão de facto» do douto Acórdão, a existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias mas, ainda assim, apesar das vicissitudes inerentes a tais testemunhos, as declarações prestadas pelas duas crianças foram críveis, espontâneas, lógicas e coerentes, referindo ainda o tribunal que em nenhum dos relatos destas crianças foram percetíveis laivos de mimetismo de experiências de terceiros, contornos de efabulação ou de contaminação, sendo que a este respeito, importa sublinhar que as conclusões decorrentes das perícias psicológicas realizadas às duas crianças não deixam margem para dúvidas, na medida em que resulta de fls. 421v e 441 que os relatos verbalizados pelas crianças, durante as avaliações, foram coerentes e consistentes, sem aparente influência externa, podendo ser considerados “provavelmente credíveis”, sendo o perito da opinião que os seus relatos corresponderão a situações efetivamente vivenciadas ou sentidas como tal e terminando o tribunal por referir que os depoimentos das testemunhas validaram e corroboraram as descrições tecidas pelas duas crianças e, concatenando-os, o Tribunal conferiu credibilidade e verosimilhança aos seus relatos, até porque os relatórios periciais realizados às duas crianças atestam as lesões físicas que apresentavam à data da sua institucionalização, que são condizentes com as agressões que descrevem.

L. Resulta bem evidente a leitura conjugada que o tribunal faz de toda a prova, e por isso considerou que a existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias nas declarações das crianças não eram de molde a pôr em causa a credibilidade do seu relato e nelas continuou a acreditar, e a convicção criada no espírito do julgador acerca da credibilidade que esta ou aquela testemunha lhe mereceu é insindicável pelo tribunal superior, já que a segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção, que lhe está de todo em todo vedada atento o princípio da imediação da prova, e a arguida/recorrente nada alega, em concreto, donde resulte que o tribunal não devesse ter conferido a credibilidade que conferiu aos relatos dos menores, antes pelo contrário, pois, além de não ter transcrito quaisquer passagens relevantes dos respectivos depoimentos, limita-se a tecer considerações gerais e abstractas a esse respeito.

M. O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) devessem conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente, pois se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.

N. No caso em apreço é manifesto que as razões justificativas invocadas para a formação da convicção do tribunal encontram suporte razoável nos meios de prova, e não impõem conclusão necessariamente diferente, não resultando demonstrada pelos meios de prova indicados pela arguida/recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, para que aquele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido por si pretendido.

O. Se a própria arguida/recorrente fica com dúvidas, então, é evidente que a prova permite ou consente a decisão sobre a matéria de facto que o tribunal tomou, não impondo decisão necessariamente diferente, aliás, dificilmente seria de outro modo a partir do momento em que, como se pode ler no douto Acórdão recorrido, na parte da «Motivação da decisão de facto», a arguida «Admitiu, contudo, ter-lhe batido pelo menos numa ocasião, (…)».

P. Como melhor resulta das conclusões 4.ª a 8.ª----- e das conclusões 9.ª a 10.ª do recurso interposto pelo M.P., que aqui se dão por reproduzidas e para onde agora se remete, os factos envolvendo o menor AA devem ser punidos pela moldura penal do crime de sequestro agravado e, por conseguinte, deve haver uma diferenciação na penalização pelo crime de sequestro agravado, em que é ofendido o menor AA, e de violência doméstica, em que é ofendida a menor EE e perante os elementos atinentes à culpabilidade e ao grau de ilicitude e, bem assim, às exigências de prevenção, justifica-se que à arguida seja aplicada pena de prisão bem mais elevada.
*
Termos em que deverá considerar-se que o douto Acórdão recorrido não incorre em qualquer erro na apreciação da prova e, não sendo possível alterar a decisão da matéria de facto, deverá a mesma ser confirmada.

- relativamente ao recurso de PP:
A. O arguido/recorrente PP“envereda” pelo caminho da arguição de um erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, mas nesse caso a indagação tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, dito de outra forma, o vício terá de constar do teor da própria decisão de facto, sucede que arguido/recorrente não demonstra que do texto da decisão recorrida conste erro algum, e, ao arrepio do que estipula o mencionado preceito, pretende fundamentar a ocorrência desse erro com recurso a elementos estranhos (ainda que provenientes do próprio julgamento), o que não é, de todo, admissível.

B. A pretensão do arguido/ recorrente de ter havido erro na apreciação da prova revela-se incongruente/incompatível com o facto de aceitar o depoimento dos menores como verdadeiro e de, simplesmente, não ter ficado com certezas, pois se «aceita o depoimento dos menores como verdadeiro» então, é evidente que esse concreto elemento de prova permite ou consente a decisão sobre a matéria de facto que o tribunal tomou, da mesma forma que, ao «não ter (ficado com) certezas», em face, naturalmente, da prova produzida, significa isso que a mesma também não impõe decisão necessariamente diferente, pelo que há aí uma contradição insanável.

C. Para ter havido violação do princípio in dubio pro reo, teria que resultar evidente do texto da decisão recorrida que o tribunal ficou em dúvida e que, nesse estado, decidiu contra o arguido em vez de a seu favor, acontece que, também aqui, o arguido/recorrente não demonstra nada disso, sendo que, de facto, tal não se verifica.

D. O que o arguido/recorrente pretenderá (embora não o refira expressamente…) é que a prova foi mal apreciada, devendo, no seu entender, ter conduzido o julgador a um estado de dúvida, o qual deveria ter sido reconhecido pelo tribunal, mas, nesse caso, deveria o arguido/recorrente ter procedido à impugnação (ampla) da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.º 412.º, n.º 3 do CPP, pois só nesse caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência de julgamento.

E. O legislador explicitou que a impugnação tem de ser feita através da especificação dos «concretos» pontos de facto incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa (art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP), sendo que no n.º 4 do mesmo artigo foi aditado o segmento da norma segundo o qual «deve o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», pelo que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso.

F. Além de o arguido/recorrente não ter transcrito quaisquer passagens relevantes dos depoimentos das testemunhas (daí a incorrecta forma de especificar), a única coisa que se lhe oferece dizer é que aquelas não têm conhecimento directo dos factos…, mas isso não significa que o tribunal tivesse que desatender a todo o contributo que, ainda assim, conseguiram dar para a descoberta da verdade, designadamente compatibilizando o que disseram com o que, por seu turno, os menores referiram e, bem assim, com os restantes elementos documentais que já constavam dos autos, e nem isso invalida ou coloca em crise, como é óbvio, os depoimentos das crianças, como, aliás, foi constatado no douto Acórdão recorrido na parte da «Motivação da decisão de facto».

G. Quanto ao que o arguido/recorrente refere acerca dos depoimentos das crianças, note-se que tudo o que consta das suas conclusões H. a K. não passam de considerações gerais e abstractas acerca da avaliação do relato de toda e qualquer criança, e não, concretamente, da EE e do AA, sendo que respeitante a estes diz apenas o arguido/recorrente na conclusão L. que o seu «depoimento é uma narração fragmentada e incompleta», mas, também aqui, não transcreveu quaisquer passagens relevantes dos respectivos depoimentos de onde resultasse isso o que alega (daí, mais uma vez, a incorrecta forma de especificar).

H. O tribunal a quo não deixou, contudo, de ponderar, como se pode ler na parte da «Motivação da decisão de facto» do douto Acórdão, a existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias mas, ainda assim, apesar das vicissitudes inerentes a tais testemunhos, as declarações prestadas pelas duas crianças foram críveis, espontâneas, lógicas e coerentes, referindo ainda o tribunal que em nenhum dos relatos destas crianças foram percetíveis laivos de mimetismo de experiências de terceiros, contornos de efabulação ou de contaminação, sendo que a este respeito, importa sublinhar que as conclusões decorrentes das perícias psicológicas realizadas às duas crianças não deixam margem para dúvidas, na medida em que resulta de fls. 421v e 441 que os relatos verbalizados pelas crianças, durante as avaliações, foram coerentes e consistentes, sem aparente influência externa, podendo ser considerados “provavelmente credíveis”, sendo o perito da opinião que os seus relatos corresponderão a situações efetivamente vivenciadas ou sentidas como tal e terminando o tribunal por referir que os depoimentos das testemunhas validaram e corroboraram as descrições tecidas pelas duas crianças e, concatenando-os, o Tribunal conferiu credibilidade e verosimilhança aos seus relatos, até porque os relatórios periciais realizados às duas crianças atestam as lesões físicas que apresentavam à data da sua institucionalização, que são condizentes com as agressões que descrevem.

I. Resulta bem evidente a leitura conjugada que o tribunal faz de toda a prova, e por isso considerou que a existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias nas declarações das crianças (aquilo a que, provavelmente, o arguido/recorrente se refere na conclusão L. como «narração fragmentada e incompleta») não eram de molde a pôr em causa a credibilidade do seu relato e nelas continuou a acreditar, e a convicção criada no espírito do julgador acerca da credibilidade que esta ou aquela testemunha lhe mereceu é insindicável pelo tribunal superior, já que a segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção, que lhe está de todo em todo vedada atento o princípio da imediação da prova, e o arguido/ recorrente nada alega, em concreto, donde resulte que o tribunal não devesse ter conferido a credibilidade que conferiu aos relatos dos menores, antes pelo contrário, pois – além de não ter transcrito quaisquer passagens relevantes dos respectivos depoimentos de onde resultasse o que alega em L. e de se ter limitado a tecer considerações gerais e abstractas nas conclusões H. a K. –, é o próprio arguido/recorrente que (embora «com reservas») «aceita o depoimento dos menores como verdadeiro» (conclusão O.).

J. O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) devessem conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente, pois se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.

K. No caso em apreço é manifesto que as razões justificativas invocadas para a formação da convicção do tribunal encontram suporte razoável nos meios de prova, e não impõem conclusão necessariamente diferente, não resultando demonstrada pelos meios de prova indicados pelo arguido/recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, para que aquele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido por si pretendido.

L. Se o próprio arguido/recorrente «aceita o depoimento dos menores como verdadeiro» então, é evidente que esse concreto elemento de prova permite ou consente a decisão sobre a matéria de facto que o tribunal tomou, da mesma forma que, ao «não ter (ficado com) certezas», em face, naturalmente, da prova produzida, significa isso que a mesma também não impõe decisão necessariamente diferente, pelo que a interpretação, apreciação e valoração das provas permite/consente a decisão proferida e não exclui logicamente a razoabilidade desta, aliás, dificilmente seria de outro modo a partir do momento em que – e isto resulta do próprio recurso – «o arguido assumiu que algumas vezes bateu no AA»!

M. Como melhor resulta das conclusões 4.ª a 8.ª----- e das conclusões 9.ª a 10.ª do recurso interposto pelo M.P., que aqui se dão por reproduzidas e para onde agora se remete, os factos envolvendo o menor AA devem ser punidos pela moldura penal do crime de sequestro agravado e, por conseguinte, deve haver uma diferenciação na penalização pelo crime de sequestro agravado, em que é ofendido o menor AA, e de violência doméstica, em que é ofendida a menor EE e perante os elementos atinentes à culpabilidade e ao grau de ilicitude e, bem assim, às exigências de prevenção, justifica-se que ao arguido seja aplicada pena de prisão bem mais elevada.
*
Termos em que deverá considerar-se que o douto Acórdão recorrido não incorre em qualquer erro na apreciação da prova e, não sendo possível alterar a matéria de facto, deverá a mesma ser confirmada.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando acompanhar a argumentação do Ministério Público junto da 1.ª instância.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto de cada recurso define-se pelas conclusões que o respectivo recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades do acórdão, os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas, previstos nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Sem embargo que, da decisão de determinada questão, resulte prejudicada a análise de outra(s), reconduz-se, então, a apreciar:

I - recurso do Ministério Público:
A) - da diversa medida abstracta da pena aplicável aos crimes de violência doméstica;
B) - da elevação das penas aplicadas;
C) - da aplicação, ao arguido PP, da proibição de contactos com a vítima EE e pelo período de 4 anos;

II - recurso de SS:
A) - da impugnação da matéria de facto e consequente absolvição;
B) - da redução das penas aplicadas;
C) - da suspensão da execução da prisão;
D) - da redução das indemnizações;

III - recurso de PP:
A) - da impugnação da matéria de facto e consequente absolvição;
B) - da redução das penas aplicadas;
C) - da suspensão da execução da prisão;
D) - da redução das indemnizações.

A análise obedecerá à lógica sequência de se iniciar pela matéria de facto, além de que, atentando na conveniência e por economia de exposição, não afasta a incidência conjunta em questão idêntica aos recursos, sem prejuízo da individualização que for necessária.

Ao nível da matéria de facto, consta do acórdão recorrido:

Factos provados:
Da discussão da causa resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1. A arguida SS é mãe de AA, nascido a 23 de janeiro de 2004, e fruto de relação da arguida com RS.

2. A arguida SS é igualmente mãe de EE, nascida a 23 de dezembro de 2010, e fruto de relação da arguida com LS.

3. O arguido PP é o atual companheiro da arguida SS, vivendo com a mesma em condições análogas às dos cônjuges, desde junho de 2015, e não tem qualquer relação de parentesco e afinidade com AA e EE.

4. Desde as respetivas datas de nascimento e até junho de 2015, a arguida SS residiu, juntamente com os seus filhos AA e EE e com os sucessivos companheiros, em Grândola.

5. A partir de junho de 2015, e até à institucionalização de AA e EE, a arguida SS e o arguido PP residiram com aqueles na Rua…, na localidade de Ferreira do Alentejo.

6. AA sofre de síndrome de asperger, patologia que implica que o mesmo tenha dificuldades de comunicação e socialização, revelando forte timidez e fragilidade emocional e que leva a que o mesmo necessite de permanente acompanhamento médico-psicológico.

7. Desde data não concretamente apurada e até à sua institucionalização, a arguida SS exerceu diversos atos de violência física e psicológica sobre AA.

8. Em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre 1 de junho de 2015 e 13 de agosto de 2017, por diversas ocasiões, os arguidos SS e PP, no interior da sua habitação, desferiram murros e pontapés em várias partes do corpo de AA.

9. Mais desferiram golpes com o cinto na pessoa de AA, em várias ocasiões e no mesmo hiato temporal.

10. Como consequência direta e necessária desses eventos, a vítima AA sofreu hematomas e dores.

11. Para evitar que os colegas e pessoal docente da escola que frequentava vissem os efeitos das agressões assim sofridas, AA frequentemente se furtava a participar nas aulas de educação física, alegando ter-se esquecido do material, o que fazia por exigência da arguida SS.

12. Os arguidos mais obrigavam a vítima a faltar à escola, sempre que o mesmo apresentava lesões visíveis das agressões sofridas, para evitar que tal realidade fosse percecionada pelo pessoal docente da escola.

13. Os arguidos SS e PP, em diversas ocasiões e datas não concretamente apuradas, compreendidas no lapso temporal descrito em 8, dirigiram a AA as expressões “monte de merda”, “desperdício de ADN”, “deficiente” e “mongoloide”, e mais lhe disseram que a vítima não prestava para nada e não ia ser ninguém na vida, o que fizeram com o intuito concretizado de lesar a sua honra e autoestima.

14. Em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre 1 de junho e 13 de agosto de 2017, durante o período de férias escolares de Verão de AA, os arguidos SS e PP forçaram o menor a realizar diversos trabalhos de construção em residência para a qual planeavam mudar-se, sita em local não apurado da localidade de Ferreira do Alentejo.

15. Mais concretamente, forçaram o menor a partir paredes, a pintar, a fazer cimento à mão e a abrir buracos no chão, atividades superiores à sua força física, destreza e aptidão.

16. Nos dias em que era forçado a realizar tais trabalhos, AA era obrigado a trabalhar durante o dia inteiro pelos arguidos, os quais frequentemente o proibiam de almoçar.

17. Caso AA recusasse realizar tais atividades ou não as completasse do modo desejado pelos arguidos, os arguidos agrediam-no com murros ou com recurso a tubos.

18. Caso AA manifestasse sinais de cansaço, os arguidos SS e PP diziam não querer saber e forçavam-no a continuar tais atividades.

19. Como consequência direta e necessária desses trabalhos, AA ficou com calos, bolhas e feridas nas mãos.

20. Os arguidos SS e PP, em data não concretamente apurada, mas mais do que uma vez, ataram as mãos e os pés AA, com fita adesiva, deixando-o no interior do seu quarto durante várias horas, sem poder sair daquela divisão.

21. Faziam-no, proibindo-o de comer e utilizando essa imobilização para evitar que o mesmo fosse à cozinha buscar comida nas alturas em que os arguidos não se encontrassem em casa.

22. Para concretizar essa imobilização, os arguidos fizeram valer-se da sua superioridade física em relação ao menor AA, bem como do ascendente que tinham sobre o mesmo, que daqueles dependia, e das fragilidades emocionais da vítima, que exploraram.

23. Nessas situações, AA apenas comia o que a vítima EE conseguia dissimuladamente levar-lhe, o que correspondia sempre a pequenas porções de alimentos, para evitar ser apanhada e sofrer agressões em resultado disso.

24. No dia 13 de agosto de 2017, aproveitando a ausência dos arguidos SS e PP, AA fugiu da residência sita na Rua …, nesta localidade de Ferreira do Alentejo, e dirigiu-se a casa de FC, mãe de uma colega de escola da vítima.

25. AA foi então conduzido ao posto da GNR de Ferreira do Alentejo, comparecendo no local a arguida SS, que levou consigo a vítima e transportou-a até Grândola.

26. No caminho para essa localidade, a arguida SS repetidamente verbalizou expressões ameaçadoras visando AA, dizendo-lhe que ia “para o monte de merda do teu pai, que aí é que estás bem”.

27. Como não encontrou o pai do menor, a arguida SS entrou em contacto com a CPCJ de Ferreira do Alentejo, recusando levar a vítima AA de regresso a casa e exigindo que o mesmo fosse institucionalizado, o que veio a verificar-se.

28. Desde o dia 14 de agosto de 2017 e até ao presente, AA encontra-se acolhido no Centro de Acolhimento Temporário “Gente Pequena”, em Vila Real de Santo António.

29. Na data em que foi acolhido no CAT “Gente Pequena”, AA apresentava as seguintes lesões, resultantes de apertões e murros que sofrera, bem como de ter sido manietado com fita adesiva isoladora, que não afetaram as capacidades de trabalho geral ou profissional, nem deixarão previsivelmente efeitos permanentes:

(i) Equimose de cor rosada no terço distal da face posterior do antebraço direito, transversal com 3x1cms;

(ii) Equimose de cor rosada no terço distal da face posterior do antebraço esquerdo, transversal com 2x2cms;

(iii) Equimoses de cor roxa-acastanhada, dispersos por ambos os membros superiores, com cerca de 1,5 cms de diâmetro.

30. Mais apresentava sintomas compatíveis com perturbação de stress pós-traumático.

31. Concomitantemente aos eventos relativos AA, os arguidos SS e PP exerceram diversos atos de violência física e psicológica sobre EE.

32. Em diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, entre 1 de junho de 2015 e 19 de outubro de 2017, os arguidos SS e PP golpearam EE com murros, com um cinto e com cabos de vassoura, em várias partes do corpo.

33. Como consequência direta e necessária desses atos, EE sofreu dores e hematomas.

34. Os arguidos SS e PP, em diversas ocasiões, forçaram EE bater em AA, dizendo-lhe que se não o fizesse, lhe batiam.

35. Lograram dessa forma levar EE a golpear AA, em diversas ocasiões.

36. Em 19 de outubro de 2017, a menor EE foi acolhida no Centro de Acolhimento Temporário “Gente Pequena”, …em Vila Real de Santo António, onde se manteve até à presente data.

37. Na data em que foi acolhida no CAT “Gente Pequena”, EE apresentava as seguintes lesões, resultantes de agressões que sofrera, que não afetaram as capacidades de trabalho geral ou profissional, nem deixarão previsivelmente efeitos permanentes:

(i) Equimose, em fase de absorção, no terço médio da face anterior da coxa, com 2 por 3 cm de maiores dimensões;

(ii) Equimose esverdeada, no terço médio da face anterior da coxa, com 2 por 0,5 cm de maiores dimensões;

(iii) Equimose esverdeada no terço médio da face anterior da perna, com 5 por 4 cm de maiores dimensões.

38. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 1 de janeiro de 2016 e 13 de agosto de 2017, o agregado familiar composto por EE e AA e pelos arguidos SS e PP recebeu um cão na sua residência, de características não concretamente apuradas.

39. Em data não concretamente apurada, mas compreendida no hiato temporal descrito, o arguido PP muniu-se de uma corda grossa, atou um nó de forca na mesma e utilizou-a para proceder ao enforcamento desse animal, causando-lhe a morte em resultado disso.

40. Praticou tais atos na presença da vítima EE.

41. Após, o arguido PP ordenou à vítima AA que acondicionasse o cadáver do canídeo em sacos do lixo e que o fosse despejar no contentor do lixo, tomando o cuidado de o fazer em momento em que ninguém passasse na rua.

42. Ao atuarem do modo descrito, os arguidos SS e PP sabiam e queriam, em autorias paralelas, infligir maus tratos físicos e psíquicos a AA e EE, como sejam agressões físicas, insultos e ameaças várias.

43. Agiram sempre com o desiderato de molestar AA e EE, física e psicologicamente, atentando contra o seu corpo e integridade física, contra a sua honra e consideração e contra o seu sossego e tranquilidade, sujeitando-os a um contínuo tratamento cruel, indigno e degradante.

44. Ambos os arguidos sabiam que AA e EE eram menores de idade e pessoas particularmente indefesas, o primeiro em resultado da sua idade e de padecer de doença de asperger, e a segunda em resultado da sua idade, circunstância que em nenhum momento os demoveu de agirem do modo descrito.

45. Mais sabiam e queriam praticar tais atos dentro da residência que partilhavam com as vítimas, atentando contra a estabilidade e sossego das mesmas, e sujeitando os menores a assistir aos maus tratos que eram infligidos a cada um, quando não eram os próprios os visados.

46. Os arguidos SS e PP mais sabiam e queriam, em autorias paralelas, forçar AA a realizar trabalhos que exigiam força, destreza e aptidão física superiores àquela de que o mesmo dispunha, mostrando-se indiferentes aos rogos deste último.

47. Mais sabiam que AA era menor de idade e particularmente indefeso à data, e que o mesmo se encontrava aos seus cuidados, fazendo impender sobre os arguidos os deveres de cuidado, guarda e educação, circunstância que em nada os demoveu de atuar do modo descrito.

48. Os arguidos SS e PP mais sabiam e queriam, em comunhão de esforços, prender os membros superiores e inferiores do menor AA com fita isoladora, assim o mantendo imobilizado no colchão do seu quarto durante várias horas, o que lograram fazer, mais do que uma vez, por algumas horas.

49. O arguido PP, por fim, sabia e quis enforcar um canídeo, infligindo-lhe dor e sofrimento geradores de morte.

50. Em todo o circunstancialismo descrito, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubessem que os seus comportamentos são censurados por lei como crime.

Mais se provou quanto às condições pessoais, económicas e respetiva inserção social dos Arguidos:

A Arguida SS
51. A Arguida reside com o Arguido e com a filha comum do casal, de vinte meses de idade, em habitação arrendada à Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Alentejo.

52. O processo de desenvolvimento e socialização de SS decorreu num contexto familiar conflituoso, agravado com o falecimento da progenitora, associado à violência doméstica e maus tratos por parte do progenitor, embora desafogado em termos económicos.

53. Tal quadro familiar esteve na génese da sua saída precoce de casa, como forma de se autonomizar familiar e financeiramente do agregado de origem.

54. A Arguida iniciou os estudos em idade própria, tendo obtido o 12.º ano com muita dificuldade, por interrupções em razão da gravidez do primeiro filho e por trabalhar em simultâneo, só conseguido com o apoio incondicional de algumas entidades patronais em Grândola, que a tratavam como família.

55. A Arguida integrou mercado de trabalho precocemente, quando tinha apenas 13 anos de idade, iniciando também nessa altura vida marital; teve vários relacionamentos conjugais de idêntico padrão, reproduzindo o quadro de relacionamento intrafamiliar em que se processou o seu desenvolvimento, trespassado por relações de alegados maus tratos físicos e psicológicos.

56. A arguida teve várias experiências profissionais na área da restauração (empregada de mesa, camareira em turismo rural), balconista numa drogaria, integrou Programa Ocupacional na Câmara Municipal de Grândola, mantendo-se ativa profissionalmente desde os 13 anos de idade até ao termo da terceira gravidez não planeada, ocorrida há cerca de 2 anos.

57. À data, a Arguida encontra-se em situação de desemprego.

58. Segundo parecer da DGRSP, a Arguida revela capacidade para acatar e cumprir as decisões judiciais.

59. A Arguida não conta com antecedentes criminais registados.

O Arguido PP
60. O processo de desenvolvimento do Arguido decorreu no agregado familiar de origem, com os pais e irmãos, integrado numa fratria de sete elementos, sendo o quarto, por ordem de nascimento, em contexto relacional harmonioso e em condição económica que, embora modesta, apresentava estabilidade.

61. Frequentou o ensino em idade própria e concluiu o 4.º ano de escolaridade, não tendo concluído o 5.º ano.

62. Aos 18 anos de idade, o Arguido autonomizou-se do agregado familiar de origem, estabelecendo relação de união de facto e integrou o agregado da companheira.

63. Fruto desta relação, que decorreu durante cerca de três anos, o Arguido tem um filho com 8 anos de idade, que reside com a mãe em França e que vê cerca de duas vezes por ano, quando se deslocam a Ferreira do Alentejo.

64. Não participa nas despesas desse menor e mantém relação distante com o filho.

65. Com 14 anos de idade, o Arguido iniciou atividade laboral na área da construção civil e posteriormente dedicou-se à pintura de construção civil, área em que tem formação e para a qual se sente especialmente motivado.

66. Ao longo do seu percurso profissional, existem períodos de inatividade, pelo que tem passado por períodos com dificuldades económicas não negligenciáveis.

67.Tentou enquadramento profissional em França, sem sucesso.

68. Atualmente, o Arguido trabalha para a sociedade Casa Agrícola…, Lda., na área das atividades agrícolas, auferindo um vencimento mensal variável, dependendo das horas e dos dias que trabalha, num valor médio de € 800,00.

69. O Arguido trabalha cerca de 15 horas por dia, por vezes sábados e domingos, podendo, nesta situação, o vencimento aproximar-se dos € 1 000,00 mensais.

70. Atualmente, é com o salário do Arguido que este e a Arguida fazem face às despesas do seu agregado familiar.

71. No meio de origem e de residência, o Arguido é tido por individuo trabalhador, em termos sociais algo conflituoso, nomeadamente em festas, contexto em que por vezes se envolve em situações de conflito e agressões físicas, sob o efeito de bebidas alcoólicas em excesso.

72. Na relação social e institucional, o Arguido é tido por alguma rudeza, rispidez e pouca empatia, padrão que caracterizará alguns elementos da família de origem parecendo, assim, um comportamento que terá assimilado e reproduzido.

73. Segundo parecer da DGRSP, o Arguido evidencia competências para se submeter a regras e normas, bem como capacidade para compreender e cumprir as decisões judiciais, nomeadamente as que possam vir a resultar do presente processo.

74. O Arguido conta com as seguintes condenações:

(i) Processo n.º ---/08.8GTBJA, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 4/08/2008, foi condenado numa pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante global de € 350,00, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, em 28/06/2008, pena já declarada extinta;

(ii) Processo n.º --/09.6GAASL, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 4/06/2010, foi condenado pela prática de um crime de furto simples e de um crime de burla informática, em 10/07/2009, na pena única de 170 dias de multa, razão de € 5,00 euros/dia, pena já declarada extinta;

(iii) Processo sumário n.º --/12.5GAFAL, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 27/02/2012, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 29/01/2012, na pena de 100 dias de multa, à razão de € 5,00 euros/dia, pena já declarada extinta;

(iv) Processo sumário n.º ---/12.5GCSLV, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 23/03/2013, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 2/02/2012, na pena de quatro meses de prisão suspensa na sua execução, já declarada extinta;

(v) Processo sumário n.º --/12.3GAFAL, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 12/04/2012, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 13/03/2012, na pena de quatro meses de prisão suspensa na sua execução, pena já declarada extinta;

(vi) Processo sumário n.º --/14.0GAFAL, que correu termos do Tribunal de competência genérica de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 9/05/2014, foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, em 29/03/2014, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução e sujeita a obrigações, pena já declarada extinta;

(vii) Processo sumário n.º --/13.0GAFAL, do Tribunal de competência genérica de Ferreira do Alentejo, por sentença transitada em julgado em 9/01/2015, foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, em 21/03/2013, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, já declarada extinta;

(viii) Processo sumário n.º --/19.4GAFAL, que correu termos no Tribunal de Competência Genérica de Ourique, por sentença transitada em julgado em 13/02/2019, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em 13/01/2019, na pena de nove meses de prisão suspensa na sua execução.

Factos não provados:
Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
A. A Arguida começou a exercer atos de violência física e psicológica a AA pouco depois do seu nascimento e incentivava os seus companheiros a participarem e exercerem o mesmo tipo de atos.

B. A partir do momento em que os Arguidos começaram a residir juntos em Ferreira do Alentejo, a arguida SS passou a praticar atos de violência na pessoa da AA conjuntamente com o arguido PP.

C. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 8, as agressões dos Arguidos a AA eram quase diárias e era frequente aqueles atirarem-no contra as paredes e o chão.

D. O arguido PP, em diversas ocasiões e datas não concretamente apuradas, mas compreendidas no mesmo lapso temporal, muniu-se de um pau de características não determinadas e utilizou o mesmo para golpear AA em várias partes do seu corpo.

E. Em virtude dessa conduta, AA sofreu, em ocasiões pontuais, feridas com sangramento no nariz e na boca, necessitando de tratamento hospitalar, numa ocasião verificada em data não concretamente apurada.

F. Os Arguidos ataram AA, nos termos descritos em 21, exigindo que aquele arranjasse emprego para deixar de ser sustentado pelos arguidos.

G. A arguida SS mais dizia frequentemente aos seus companheiros anteriores e ao arguido PP, na presença de AA, que este último roubava coisas em Grândola, que ia ser igual ao seu pai que era toxicodependente e que já tivera problemas com cigarros, pese embora soubesse que tais factos não correspondiam à verdade.

H. Os arguidos SS e PP deixaram AA atada de mãos e pés no seu quarto, nos dias 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 de agosto de 2017.

I. Nessas ocasiões, os arguidos prenderam os braços e pernas de AA com fita adesiva isoladora à noite, largando-o sobre o colchão onde pernoitava, no chão do seu quarto, com absoluta indiferença sobre o conforto ou desconforto da posição em que ficasse.

J. Libertavam-no apenas na manhã do dia seguinte, altura em que o forçavam a realizar trabalhos domésticos ou de construção durante todo o dia, voltando a atá-lo nos membros superiores e inferiores ao final do dia.

K. Quando chegou a casa de FC, AA revelou ter fugido de casa por sofrer maus tratos físicos e psíquicos e não comer há cinco dias.

L. Os arguidos SS e PP impediram AA de comer durante dias inteiros em várias ocasiões, entre as quais nos dias 9, 10, 11, 12 e 13 de agosto de 2017.

M. As agressões dos Arguidos a EE intensificaram-se após a institucionalização do menor AA.

N. Os Arguidos obrigavam EE a bater em AA com um cinto e ficavam a rir enquanto isso acontecia.

O. O Arguido enforcou um segundo cão que havia sido acolhido na residência perante EE.

P. Os Arguidos atuaram nos termos descritos nos factos provados contra AA, com o intuito de atentarem contra a sua liberdade ambulatória.

Q. Devido à doença a que está acometido, o menor AA efabula situações de maus tratos, o que aconteceu no passado, enquanto residiu com a mãe em Grândola, mas também no presente, desde que se encontra institucionalizado (contestação da Arguida).

R. AA detém um forte ascendente sobre a sua irmã EE, que tem medo e temor do primeiro (contestação da Arguida).

S. AA não ia às aulas de natação e de ginástica porque era gozado pelos colegas e ficava de livre vontade sozinho em casa (contestação da Arguida).

Motivação da decisão de facto:
A decisão respeitante à factualidade considerada por provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador.

Por sua vez, no que toca à factualidade considerada por não provada, a decisão estriba-se na circunstância de os elementos probatórios produzidos a esse respeito não terem logrado atingir um valor persuasivo e razoável que permitisse sustentar a convicção do Tribunal quanto à certeza da sua verificação, além da dúvida razoável.
*
Os factos consignados por provados resultaram da prova pericial e documental produzida nos autos – relatórios de perícias médicas a fls. 96 a 97, 469 a 470; relatórios de perícias psicológicas a fls. 418 a 422 e 431 a 434; comunicação da CPCJ a fls. 2; ficha de sinalização da CPCJ a fls. 6 e 7; comunicação da CPCJ a fls. 61 a 65; comunicação da CPCJ a fls. 79 e 80; certidão de assento de nascimento do menor AA a fls. 181 e 182; comunicação da CPCJ a fls. 213 a 219; elementos da CPCJ a fls. 239 a 245; transcrição das declarações para memória futura prestadas pelo menor AA a fls. 326 a 343; transcrição das declarações para memória futura prestadas pela menor EE a fls. 349 a 364; informação psicológica a fls. 388 e 389; certidão de assento de nascimento da menor EE a fls. 464 e 465; informação do CAT “Gente Pequena” a fls. 491; certificados de registo criminal dos Arguidos a fls. 612 a 630; e relatórios sociais a fls. 642 a 646 – que foi devidamente conjugada com as declarações dos Arguidos prestadas em audiência de julgamento e com os depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa.

Vejamos.
Os Arguidos refutaram a prática dos factos que lhes são imputados na acusação.

Confirmaram a data de início do seu relacionamento e coabitação com as crianças AA e EE, filhos da Arguida, em Ferreira do Alentejo.

Segundo a versão da Arguida SS, em virtude da doença de que padece (síndrome de asperger), a convivência com o menor AA era difícil e penosa, uma vez que este não acatava ordens, era agressivo e mal-educado e não sabia lidar com as suas emoções.

Admitiu, contudo, ter-lhe batido pelo menos numa ocasião, porque aquela criança havia roubado dinheiro da renda da casa, o que deu origem à primeira denúncia na CPCJ, e que costumava colocá-lo de castigo no quarto.

No tocante às faltas às aulas e à resistência de AA em realizar as aulas de educação física e natação, recusando a despir-se, a Arguida arguiu que os colegas de escola escarneciam do menor e lhe batiam, justificando, assim, a sua postura e comportamento.

Referiu que o AA realizou as obras na casa em construção de modo voluntário, sem que o tivessem obrigado.

Instada sobre os motivos que levaram AA a fugir no dia 13 de agosto de 2017, bem como sobre os motivos que o levaram a descrever tais condutas em declarações para memória futura, a Arguida referiu que o mesmo tinha uma personalidade manipuladora, que efabulara situações de maus tratos no passado e que tinha ciúme pelo facto de Arguida se encontrar grávida, nessa data.

Admitiu, contudo, que após a fuga do AA de casa não quis que o mesmo voltasse para casa.

Negou igualmente ter infligido qualquer tipo de agressão à menor EE.

Foi patente a emoção com que a Arguida se referiu a esta criança, contrastando com a frieza e distância com que se referia ao menor AA.

Na verdade, a Arguida chegou mesmo a referir que teria sido o menor AA que atemorizou a menor EE e a influenciou a inventar as alegadas agressões que descreveu no processo.

Apesar de ter apresentado um discurso idêntico ao da Arguida, o Arguido PP admitiu ter batido no menor AA em duas ocasiões, aquela em que pretensamente o menor terá retirado dinheiro da renda sem autorização e, numa segunda ocasião, em que aquele estava a comer chocolate em pó em demasia.

Referiu, ainda, que o menor AA ajudava nas obras da casa que o casal atualmente habita, porque estava de férias e queria realizar tais tarefas.

Todavia, apresentou um discurso algo titubeante ao afirmar, já no final das suas declarações, que também batia, na brincadeira, com um pau de vassoura no menor AA.

Quanto à morte dos canídeos que lhe é imputada na acusação, o Arguido referiu que existiu uma queixa de ruído de um cão por parte de uns vizinhos e que a GNR lhe sugeriu que abandonasse o animal, o que fez, abandonando-o num monte.

Contraditoriamente, a Arguida referiu que o dito cão foi abandonado numa rua junto da casa que habitavam.
*
As versões dos Arguidos não se afiguraram críveis, nem patentearam verosimilhança, apresentando-se, ao invés, dissonantes de todo o acervo probatório recolhido nos autos.

Por um lado, importa reter que a defesa não carreou quaisquer elementos de prova suscetíveis de colocar em crise as declarações prestadas pelas crianças AA e EE e as respetivas descrições que teceram das agressões físicas e psicológicas de que foram vítimas.

Importa, por isso, analisar de forma crítica e conjugada as declarações para memória futura prestadas por estas duas crianças, uma vez que, considerando a natureza dos factos, não existe outra prova direta sobre os mesmos.

Sempre se dirá que se tratam de declarações de difícil e complexa análise, sujeitas a fatores de influência internos e externos, como sejam, a idade dos menores, o melindre e a exposição do thema probandum, o número de vezes que tiveram que falar com diferentes pessoas sobre a mesma matéria e o tempo que vai decorrendo desde da ocorrência dos factos.

Por todas essas razões, não é de estranhar a existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias de umas declarações para as outras.

Ainda assim, apesar de todas as vicissitudes inerentes a tais testemunhos, diremos que as declarações prestadas pelas duas crianças foram críveis, espontâneas, lógicas e coerentes.

O Tribunal conjugou as duas versões e inferiu das mesmas os factos comuns, relatados por ambos, ou que encontram eco na demais prova, para sustentar a sua convicção quanto à factualidade consignada por provada, dando por não provado a matéria não concretizada por ambos.

Como resulta da análise das reproduções áudio e das transcrições das declarações para memória futura Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2017, de 11/10/2017 (processo n.º 895/14.0PGLRS.L1-A.S1) publicado em DR, I SÉRIE, Nº 224, 21 DE NOVEMBRO DE 2017, P. 6090 – 6113, que fixou jurisprudência nos seguintes termos: “As declarações para memória futura, prestadas nos termos do art. 271.º, do CPP, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do mesmo Código” (disponível para consulta em www.dgsi.pt)., AA e EE descreveram de modo coerente as várias circunstâncias e situações em que os Arguidos lhes batiam, o modo como o faziam, as várias agressões dirigidas ao AA e nomes injuriosos que lhe chamavam.

No seu discurso, EE refere que o irmão acabava por “apanhar” mais vezes do que ela e, em sintonia com o irmão, referiu que os Arguidos chamavam a este último os nomes descritos na acusação, que lhe batiam com a mão, com o cinto e com paus. À EE batiam-lhe também com pau de vassoura.

A descrição dos trabalhos e obras que o menor AA era obrigado a realizar pelos Arguidos foi corroborada pela irmã EE, que de modo espontâneo assinalou as lesões físicas que o irmão sofreu na decorrência de tais trabalhos.

No tocante às ocasiões em que o Arguido amarrou as mãos e os pés do menor AA, no seu quarto, o Tribunal consignou por provado o que confluiu das duas versões dos menores, ou seja, que tal sucedeu mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas, que a Arguida sabia e não contestava tal conduta, e que o intuito de tal comportamento era evitar que AA se dirigisse à cozinha e tirasse comida, enquanto os Arguidos estivessem ausentes da residência.

A descrição da menor EE é bastante impressiva, neste ponto, ao referir que chegou uma vez a levar comida ao quarto do irmão para que este pudesse comer depois de ser solto pelo padrasto.

Contudo, dos discursos apresentados pelas crianças não resulta que aquele tivesse sido amarrado o número vezes descrito na acusação, sendo certo que a menor EE não referiu que o irmão alguma vez tivesse chegado a dormir amarrado.

O mesmo se diga quanto à parte de os Arguidos privarem o menor AA de comida, tal versão não ficou devidamente concretizada nas declarações dos menores, com a ênfase vertida na acusação.

No tocante ao episódio do enforcamento do canídeo, o Tribunal conjugou, mais uma vez, os dois depoimentos e concluiu, com segurança, que o Arguido enforcou apenas um cão perante as crianças, tendo sido o menor AA quem se desfez do cadáver do animal, a mando do Arguido.

Nas suas declarações, qualquer uma das crianças empregou linguagem própria à sua idade e logrou descrever pormenores importantes, conseguindo contextualizar e descrever de modo simples – dentro das linguagens típicas das respetivas idades – as condutas dos Arguidos.

Acresce que, no que concerne à postura da menor EE, aquela sempre demonstrou e verbalizou vontade de regressar aos cuidados da mãe, mesmo tendo reportado a conduta agressiva que aquela infligia ao irmão e à própria menor, o que é típico das crianças vítimas destas condutas por parte dos progenitores, desculpabilizando-os.

Por seu turno, o menor AA demonstra uma aversão e uma mágoa para com a progenitora igualmente compreensível, atenta a gravidade das agressões que lhe eram infligidas, revelando que ao fugir de casa no dia 13 de agosto de 2017 tinha chegado a um ponto de saturação tremendo, condizente com o estado de trauma psicológico que lhe foi diagnosticado.

Em nenhum dos relatos destas crianças foram percetíveis laivos de mimetismo de experiências de terceiros, contornos de efabulação ou de contaminação.

A este respeito, importa sublinhar que as conclusões decorrentes das perícias psicológicas realizadas às duas crianças não deixam margem para dúvidas, na medida em que resulta de fls. 421v e 441 que os relatos verbalizados pelas crianças, durante as avaliações, foram coerentes e consistentes, sem aparente influência externa, podendo ser considerados “provavelmente credíveis”, sendo o perito da opinião que os seus relatos corresponderão a situações efetivamente vivenciadas ou sentidas como tal.

Já no tocante ao vínculo afetivo manifestado pelas crianças com a progenitora, ao passo que o menor AA evidenciou receio por uma eventual entrega aos cuidados da mesma, com quem mantém um relacionamento superficial, EE demonstrou interesse por manter coabitação com a mãe.

Em nenhum dos casos os Peritos detetaram que as crianças padecessem de patologia psíquica ou perturbação da personalidade que pudesse colocar em crise o seu discurso e relato dos factos, sendo certo que o diagnóstico a AA de um quadro de síndrome de asperger não influencia o seu desenvolvimento psíquico, nem a sua capacidade de narrar de forma inteligível e adequada situações do quotidiano.

Aqui chegados, cumpre sublinhar que os relatos das duas crianças e os pontos em que convergiram os seus discursos encontraram eco na prova testemunhal produzida nos autos, a saber:

(i) MM, representante na CPCJ de Ferreira do Alentejo e que acompanhou os processos de promoção e proteção das duas crianças em 2017, descreveu os contactos que manteve com as mesmas, nesse âmbito, designadamente que a primeira denúncia ocorreu por alegados maus tratos e negligência da progenitora para com AA, que a institucionalização deste verificou-se na sequência da sua fuga de casa, em agosto de 2017; que AA sempre tentou proteger a progenitora e não denunciar quaisquer maus tratos, mas que uma vez se “descaiu” e referiu que aquele lhe dizia para não levar roupa para a natação; que a menor EE demonstrava medo do padrasto; que voltou a privar com as crianças já na instituição onde se encontram acolhidas, em dezembro de 2017, e que o AA se revelou mais desenvolto e sereno, não tendo observado qualquer tentativa de manipulação deste para com a irmã;

(ii) Aurora, professora e diretora de turma do 7.º ano (ano letivo 2016/2017) que o menor AA integrava, descreveu-o como um menino reservado, inteligente, cumpridor e preocupado; salientou que os colegas de turma adotavam uma postura de proteção; que a criança tinha receio e vergonha de mostrar o seu corpo porque tinha marcas de agressões, o que lhe era reportado pelos colegas de turma; que tinha uma adoração pela mãe, que protegia e evitava denunciar o que se passava em casa; que era comum o AA faltar às aulas e quando a testemunha lhe perguntava pelas justificações de faltas, o menor respondia “não me arranje problemas”, referindo-se ao facto de tal circunstância lhe poder custar algumas represálias;

(iii) FC, mãe de uma colega de turma do AA e vizinha, relatou que no dia 13 de agosto de 2017, aquele surgiu em sua casa, muito agitado, dizendo-lhe “eu fugi” e “esconda-me na sua casa”, referindo-lhe que tinha fome; depois de lhe dar que comer, levou-o ao posto da GNR e não a casa por presumir os problemas adviessem da família;

(iv) PL, militar da GNR, tomou conta da ocorrência no dia da fuga do menor de casa, referiu que aquele denunciou ser vítima de agressões por parte dos Arguidos, que os mesmos o mantinham em casa, tendo referenciado que o menor apresentava marcas nos pulsos, compatíveis com a descrição feita de ter sido amarrado.

Todos os depoimentos destas testemunhas de acusação validaram e corroboraram as descrições tecidas pelas duas crianças e, concatenando-os, o Tribunal conferiu credibilidade e verosimilhança aos seus relatos.

Por outro lado, os relatórios periciais realizados às duas crianças atestam as lesões físicas que apresentavam à data da sua institucionalização, que são condizentes com as agressões que descrevem.

Contudo, como acima se explicitou, o Tribunal consignou como provado os factos que resultam das duas versões das crianças, tendo consignado por não provado os factos que não foram validados por ambas, ou que não foram minimamente concretizados por alguma delas.
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No que concerne à factualidade referente à intenção e representação inerentes às condutas dos Arguidos, ou seja, vetores intelectuais da sua conduta, o conhecimento da idade das vítimas, o Tribunal ponderou a matéria consignada por provada e conjugou-a com critérios de razoabilidade e com regras de experiência comum, daí extraindo, sem margem para dúvida, a intenção que presidiu à sua realização e exteriorização, bem assim a representação dos resultados da mesma por parte dos Arguidos.
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Para efeitos da consignação dos factos relativos à situação económica e pessoal dos Arguidos, bem como as características de personalidade, o Tribunal teve em conta o teor dos relatórios sociais elaborados pela DRGSP e as suas declarações dos mesmos, quanto a esta matéria.

Os antecedentes criminais dos Arguidos resultam dos certificados de registo criminal juntos aos autos.
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No tocante à factualidade consignada por não provada, consideramos que não foi carreada aos autos prova suscetível de sustentar a sua convicção quanto à sua verificação.

A factualidade vertida nos pontos A a G e L a N não foi minimamente concretizada, nem devidamente circunstanciada, nas declarações prestadas pelos dois menores.

No tocante à matéria relativa às condutas em que os Arguidos amarraram o menor AA, o Tribunal apenas consignou por provado os factos que decorreram das versões das duas crianças.

Por um lado, nas suas declarações, o menor AA não referiu quaisquer datas concretas, por outro, EE negou que o irmão dormisse amarrado, tendo referido que o padrasto o soltava quando voltava para casa.

Em face disso, o Tribunal não logrou formar convicção segura quanto a esses factos constantes do libelo acusatório.

O mesmo se diga quanto à privação de comida por dias completos, apesar de o Tribunal admitir que em algumas ocasiões os Arguidos não davam comida à criança, não ficou provada a intensidade descrita na acusação, ou seja, que tal perdurasse por dias completos.

O facto descrito em K não foi mencionado pela testemunha FC e, no que concerne ao enforcamento dos cães, o Tribunal, mais uma vez, teve em conta a matéria em que as duas versões dos menores confluíram.
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Quanto à matéria factual alegada na contestação da Arguida, relativa à personalidade do menor AA e ascendente do mesmo sobre a irmã, essa matéria não foi minimamente demonstrada pelas testemunhas arroladas pela defesa.

Na verdade, as testemunhas SD, psicóloga clínica do CAT onde os menores se encontram institucionalizados, NV, professor do AA, e HP, psicóloga clínica na Câmara Municipal de Grândola, refutaram de forma perentória qualquer traço de manipulação daquele menor, ou de efabulação de situações de maus tratos, tendo os primeiros descrito traços próprios de pessoas que padecem da doença de asperger que aquele menor evidencia, ao passo que a última testemunha descreveu as denúncias de maus tratos e negligência da parte da progenitora, já em Grândola, quando ali residiram.

As testemunhas JF e MR, progenitores do Arguido, apresentaram depoimentos parciais e negaram qualquer tipo de violência e maus tratos aos menores, o que é, face à prova recolhida, manifestamente falso.

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Apreciando, conforme definido:

II - recurso de SS:
A) - da impugnação da matéria de facto e consequente absolvição:

III - recurso de PP:

A) - da impugnação da matéria de facto e consequente absolvição:

Os recorrentes SS e PP manifestam a sua discordância em matéria de facto, preconizando a sua absolvição.

Ora, a impugnação da matéria de facto, tendente à visada modificação nos termos do art. 431.º do CPP, pode-se configurar através da presença de vícios da decisão, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, bem como da reapreciação probatória obedecendo às condições exigidas pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.

Intentando, ambas as perspectivas, aquele desiderato, revestem, contudo, diferente amplitude na apreciação da matéria de facto.

Ao passo que a incidência em vício da decisão, tem subjacente que o mesmo resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, cingindo-se, assim, ao que essa decisão em si mesma contenha, sem apelo a elementos que não lhe sejam intrínsecos e à luz das máximas da experiência comummente conhecidas, a vertente da reapreciação da prova, ainda que tendencialmente cirúrgica, comporta maior abrangência, uma vez que implica a análise de provas que, alegadamente, sustentem decisão diversa.

Há que notar, contudo, como vem sendo pacificamente entendido, que o recurso é mero remédio jurídico, e não novo julgamento com repetição dos meios de prova produzidos em 1.ª instância (exceptuado o caso em que seja admissível a renovação da prova), traduzindo reapreciação necessariamente em plano alheio à imediação e à oralidade que regem a audiência de julgamento.

Já Cunha Rodrigues o salientava, in “Lugares do Direito”, Coimbra Editora, 1999, págs. 498/499, ao referir que o Código de Processo Penal assume claramente os recursos como remédios jurídicos e não como meios de refinamento jurisprudencial, não visando o único objectivo de uma «melhor justiça».

Por isso, mesmo quando se considere a impugnação da matéria de facto de forma processualmente válida, nem por isso ela equivale à modificação da decisão de facto recorrida.

Tal impugnação não se bastará, para que venha a proceder, com a pretensão de dar-se como provada determinada versão, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre, já que a censura do tribunal ad quem não incidirá sobre a decisão do tribunal a quo que assente a sua convicção sobre a credibilidade da prova produzida, ou a falta dela, em elementos que relevam daqueles princípios da imediação e da oralidade, aos quais o tribunal de recurso não tem acesso, sem prejuízo dos limites do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP.

Nesse âmbito, a impugnação visa corrigir erros de julgamento assentes em prova inválida e/ou insuficiente e não, propriamente, obter a prevalência de convicção diversa do tribunal ad quem, acompanhando total ou parcialmente a convicção de quem recorre.

Se é certo que aquele princípio da livre apreciação da prova não é absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções - designadamente, as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169.º do CPP), ao caso julgado (art. 84.º do CPP), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344.º do CPP) e à prova pericial (art. 163.º do CPP) -, não é menos real, também, que não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável.

Aos seus limites, consubstanciados nas regras da experiência e na livre convicção do julgador, terá de corresponder a necessária fundamentação objectiva, inteligível e adequada à individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados, sem perder de vista os critérios generalizadores da experiência que orientam os caminhos da descoberta da verdade, oferecendo probabilidades conclusivas, mas susceptíveis de motivação e controlo (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96, de 19.11, in BMJ n.º 461, pág. 93).

No entanto, quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só tendencialmente estará habilitado a exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende as regras da experiência comum.

Tendo em conta a natureza e a finalidade do recurso em matéria de facto, a impugnação não deve significar, pois, mera sobreposição relativamente à convicção formada em audiência.

E conforme ao acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219, Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.

Sendo que através do acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03, in D.R. I Série n.º 77, de 18.04.2012, vista a sua fundamentação, bem definidos ficaram, a razão de ser das especificações previstas naquele art. 412.º e os contornos do seu adequado cumprimento, sem os quais não se mostra viável a sua avaliação, pelo menos com a amplitude que, muitas vezes, quem recorre, o deseja.

Postas estas considerações, por pertinentes, afigura-se que o recorrente PP limita a sua alegação à invocada existência de erro notório na apreciação da prova.

Sustenta-o na relação com o aludido princípio da livre apreciação da prova, alegando, como refere, que não há qualquer outra prova (para além do depoimento dos menores), directa ou indirecta, que sustente a condenação, reportando-se a que a conclusão de que praticou aqueles factos resulta de uma dedução sem suporte consistente e rígido de que não exista qualquer dúvida, bem como a que as testemunhas MF, FC e PL revelaram não terem conhecimento directo dos factos.

Mais acrescenta que o depoimento de EE e AA é uma narração fragmentada e incompleta sem uma narrativa objectiva e consistente.

Ora, a interpretação do que constitua erro notório na apreciação da prova não é diversa do sentido que é dado ao conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (acórdão do STJ de 06.04.1994, in CJ Acs. STJ, ano II, tomo II, pág. 185).

Deparar-se-á, pois, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (acórdão do STJ de 24.03.2004, no proc. n.º 03P4043, in www.dgsi.pt).

Ou ainda, como referem Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7.ª edição, págs. 77/78, consubstancia falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

Constitui, por isso, uma limitação à livre apreciação da prova, já que, conforme Maria João Antunes, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4 (1994), pág. 120, verifica-se «sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art.127º do CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência».

Colocados os parâmetros relevantes, entende-se que não se descortina, de modo algum, que a decisão incorra no invocado vício.

Desde logo, como decorre da motivação do Tribunal, não só os alegados depoimentos dos menores foram tidos em conta, uma vez que os factos provados, como ali se consignou, também “resultaram da prova pericial e documental produzida nos autos”, que se descriminou.

A tanto se aliou a necessidade de “analisar de forma crítica e conjugada as declarações para memória futura prestadas por estas duas crianças, uma vez que, considerando a natureza dos factos, não existe outra prova direta sobre os mesmos”, o que se fez de forma bem pormenorizada, concluindo que “Em nenhum dos relatos destas crianças foram percetíveis laivos de mimetismo de experiências de terceiros, contornos de efabulação ou de contaminação”, alicerçado nas “conclusões decorrentes das perícias psicológicas realizadas às duas crianças”, de “fls. 421v e 441”.

E tal como o Ministério Público sublinha, na sua resposta ao recurso, as reservas colocadas pelo recorrente quanto aos depoimentos dos menores não passam de considerações gerais e abstractas acerca da avaliação do relato de toda e qualquer criança, e não, concretamente, da EE e do AA.

Acresce que, apesar das referidas testemunhas não terem tido conhecimento directo dos factos, diga-se, também acompanhando o Ministério Público, que isso não significa que o tribunal tivesse que desatender a todo o contributo que, ainda assim, conseguiram dar para a descoberta da verdade, designadamente compatibilizando o que disseram com o que, por seu turno, os menores referiram e, bem assim, com os restantes elementos documentais que já constavam dos autos, e nem isso invalida ou coloca em crise, como é óbvio, os depoimentos das crianças, como, aliás, foi constatado no douto Acórdão recorrido.

Afinal, nem sequer se pode afirmar que alguma prova estivesse inquinada na sua validade, assim como que não tivesse sido criteriosamente analisada, em sintonia com os critérios impostos pelo art. 127.º do CPP.

Inexiste qualquer erro notório na apreciação, uma vez que as circunstâncias, de se atribuir diferente credibilidade aos diversos meios de prova produzidos e examinados e de conferir especial relevância ao que foi declarado pelos menores, não contende com aqueles critérios, desde que, como no caso sucede, a fundamentação da convicção alcançada, e versando especialmente as razões que justificaram a avaliação dos depoimentos dos menores, surja como devidamente fundamentada.

No que concerne à recorrente SS, se bem que preconizando uma maior abrangência de análise, ao abrigo daquele art. 412.º, envereda por proceder à indicação de conjunto de factos, que impugna - provados em 7 a 26; 31 a 35; 38 a 50 -, com o sentido de se reportar àqueles que lhe dizem respeito e, assim, de modo tendencialmente genérico.

Apesar disso, aceita-se a visada reapreciação, porém, apenas por apelo, como invocou, às suas declarações em audiência, tendo apresentado excertos das mesmas e com menção à respectiva localização no suporte de gravação.

Se assim é, atentos tais excertos, a versão dos factos que oferece ao recurso não merece diferente análise daquela que foi levada à motivação do Tribunal, no essencial negando as condutas imputadas e, mesmo, referindo supostas justificações, que não deixaram de ser valoradas, ainda que no sentido de não servirem para credibilizar o que relatou.

Contrariamente ao invocado pela recorrente, a matéria considerada como provada não assentou unicamente nas declarações para memória futura dos ofendidos menores, dado que não se prescindiu da corroboração na prova pericial e documental disponível e relevante.

Não surpreende que o Tribunal, não obstante as alegadas versões diferentes (dos menores e da aqui recorrente), tivesse estabelecido níveis de valoração também diferentes, na medida em que resulta como o fundamentou, em sintonia com a ausência, legal, de parâmetros de análise que obrigassem a não estabelecer solução que acolhesse uma dessas versões em detrimento da outra.

E cuidou, além do mais, de salientar a dificuldade e a complexidade da análise das declarações dos menores, confluindo para a “existência de lacunas ou mesmo de algumas discrepâncias”, mas logrando conjugar as declarações e inferir “factos comuns, relatados por ambos”.

Contudo, não se diz, na motivação, contrariamente ao alegado, que os depoimentos tivessem sido contraditórios e lacunosos, no sentido de que, como invocado, se devessem considerar inquinados.

Aliás, sempre haverá de se considerar que, conjugando os depoimentos, qualquer disparidade nos pormenores apenas revela, normalmente, a espontaneidade das testemunhas, pois é do conhecimento comum que, quer a perspectiva, quer a memória, de cada pessoa não são, naturalmente, completamente coincidentes, o que é inerente à condição de unicidade humana e, inevitavelmente, ainda mais evidente em menores tão jovens.

Criteriosa análise das declarações produzidas pelos menores, a que nesta Instância de recurso não deixou de se proceder por avaliação do que ficou transcrito relativamente à prestação para memória futura, constante de fls. 326/343 e 349/364, consente plenamente a reflexão crítica que o Tribunal operou, apesar das reconhecidas reservas que se colocam relativamente aos depoimentos de crianças, como a recorrente dá nota.

Ainda assim, sublinhe-se, que Contrariamente à ideia amplamente difundida de que a criança revela menos capacidade para testemunhar do que os adultos, os dados das investigações científicas têm vindo a demonstrar que as crianças revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, bem como uma capacidade de discernimento superior à que frequentemente lhes é atribuída (Catarina Ribeiro/Celina Manita, in “Crianças vítimas de abuso sexual intra-familiar: significados do envolvimento no Processo Judicial e do papel dos magistrados”, na Revista do Ministério Público n.º 110, pág. 59/60).

Essas declarações revelaram-se, quanto exigível, objectivas, por devidamente questionadas e no contexto vivenciado, como também suportadas nas perícias psicológicas e nas perícias médicas e, ainda que indirectamente, pelos depoimentos das indicadas testemunhas MF, Aurora, FC e PL.

Acerca dessas perícias psicológicas, concretamente de fls. “421v e 441”, apesar da menção a que as declarações poderiam considerar-se provavelmente credíveis, não serve para a recorrente sublinhar incerteza ou dúvida, uma vez que, tratando-se de avaliação da natureza em causa, estranho seria que se estabelecesse a conclusão de que eram infalivelmente credíveis, tanto mais que sempre caberia ao Tribunal, como aconteceu, aferir, a final, dessa credibilidade.

Além de que aquela menção surge alicerçada no que ali consta, que se dispensa aqui reproduzir, e não como ilação subjectiva que não pudesse contribuir para essa oportuna aferição.

Com efeito, não se pode olvidar que a perícia a realizar será sobre a personalidade do menor e o modo como isso poderá influenciar o seu testemunho e não sobre a valoração a dar ao conteúdo do próprio testemunho. Caso assim não fosse, colocar-se-ia em causa o princípio de livre apreciação da prova, subtraindo-se o depoimento à livre convicção do juiz, sendo que tal não é legalmente admissível (Rita Estrela Lemos Carneiro, in Dissertação de Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Forenses apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa “A obtenção do testemunho do menor: o desafio da credibilidade e a questão da protecção”, 2016, pág. 43, acessível via internet).

A Perícia psicológica constitui-se como um instrumento privilegiado de interface entre a Psicologia e o Direito (Catarina Ribeiro/Celina Manita, ob. cit., pág. 60), consubstanciando precioso auxiliar do juiz, nos termos do art. 131.º, n.º 2, do CPP, relativamente ao que o Tribunal foi sensível para aquilatar da analisada credibilidade das declarações dos menores.

No mais, a alegação da ausência de prova directa, seja porque a recorrente negou os factos, seja porque as referidas testemunhas não os presenciaram, não constitui obstáculo a que o Tribunal tivesse conferido a valoração que explicitou para os diversos meios de prova e pelas razões que, conjugadamente, dissecou.

A motivação operada em matéria de facto reflecte, pois, raciocínio lógico e congruente.

Compadece-se com o critério de que a convicção - acompanhando Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, 1.º volume, pág. 205 - existirá quando e só quando (…) o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse.

E se é certo que a liberdade de apreciação não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação (Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, 1967/68, pág. 53) e, por isso, a livre apreciação da prova não deve, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 111), não é menos real que a motivação decisória acatou tais parâmetros.

Em síntese conclusiva, dir-se-á, os recorrentes, a pretexto da invocação daqueles erros, pretenderiam, sim, que outra convicção o Tribunal tivesse firmado, esquecendo, todavia, que o acórdão retrata cabalmente o caminho trilhado para esse resultado, assente em confortáveis razões.

Não se descortina qualquer violação dos alegados arts. 127.º e 355.º do CPP.

E ainda, pois, a preconizada aplicação do princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção da inocência consagrada no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), não se justifica, uma vez que, aferidas as razões por que os factos foram considerados como provados, as mesmas se impõem, não se vislumbrando que qualquer dúvida objectiva e insanável, que devesse fundar outra decisão, favorecendo os recorrentes, tivesse subsistido ou devesse ter decorrido da avaliação probatória.

A matéria de facto tem-se, então, por assente.

Por isso, a consequente absolvição dos recorrentes está votada ao fracasso, dispensando acrescido esclarecimento.

I - recurso do Ministério Público:
A) - da diversa medida abstracta da pena aplicável aos crimes de violência doméstica:

O recorrente Ministério Público vem preconizar diferente medida abstracta da pena aplicável aos crimes de violência doméstica por que os arguidos foram condenados, relativamente ao menor AA.

Para tanto, alega que não restam dúvidas de que o crime de violência doméstica em que é vítima o menor AA integrou a prática de factos que, isoladamente considerados, preenchem os pressupostos típicos objectivos e subjectivos dos crimes de ofensa à integridade física qualificada [artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 132.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal], de injúria [artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal], de maus tratos [artigo 152.º-A, n.º 1, alínea c), do Código Penal], e de sequestro agravado [artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal], este último, por referência aos factos provados em 20, 21, 48 e 50.

Mais refere, que O crime de sequestro agravado é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos e Por força do princípio da subsidiariedade, como a este último crime, que protege «a liberdade de locomoção ou seja a liberdade física de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para outro», «o direito a não ser aprisionado ou de não ser, por qualquer modo, fisicamente confinado a determinado espaço», cabe pena superior a 5 anos de prisão, é pela sua prática que os arguidos devem ser condenados relativamente aos factos que envolvem o menor AA, [com o senão de não lhes poderem ser aplicáveis as penas acessórias cominadas para a violência doméstica].

Conclui, por isso, que errou o tribunal colectivo quando entendeu que o sequestro «está consumido pelos crimes de violência doméstica» [página 28 do douto acórdão] e que, por conseguinte, os arguidos incorriam na pena de 2 a 5 anos de prisão estabelecida no artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal [página 30 do douto acórdão].

Traz, pois, à colação o art. 152.º, n.º 1, do CP, que prevê a punição para o crime de violência doméstica, de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, o que contém, em si, verificando-se o preenchimento de factos que se integrem nessa tipologia de violência, mas punidos de forma mais grave, como invoca, a consagração expressa da relação de subsidiariedade entre o crime de violência doméstica e esse outro crime, redundando em que, nesse caso, ficará a punição da violência doméstica afastada e prevalece a punição mais grave (entre outros, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 407).

Na verdade em sede de concurso de normas pode ao intérprete e aplicador da lei deparar-se como situações em que as normas se posicionam numa relação de grau; um delito menos abrangente pode considerar-se incluído numa norma mais ampla; esta, a norma primária, absorve a subsidiária. A essa relação se chega por critérios de valoração jurídica; na norma primária se englobará então toda a ofensa jurídica que esgota o âmbito da punição previsto na norma subsidiária, esvaziando-a de conteúdo. A norma dominadora será primária e a dominada a subsidiária. Há elementos a mais que a norma subsidiária não prevê (acórdão do STJ de 23.06.2016, rel. Armindo Monteiro, no proc. n.º 125/15.8PHSNT.S1, in www.dgsi.pt).

Com relevo, relativamente à configuração do tipo legal da violência doméstica e, mormente, a propósito dos actos em que o mesmo se manifestou, o Tribunal fundamentou:

«Dispõe o artigo 152.º-A n.º 1, alínea c), do Código Penal, que “quem, tendo a seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez e (…) c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
(…)
Relativamente às condutas que integram o tipo legal previsto na citada alínea a), importa ter presente que podem revestir a mais diversa natureza, cabendo dentro da noção de maus tratos, condutas que integrem também os tipos legais de ofensas à integridade física, ameaça, coação, difamação ou injúria, ou mesmo condutas que não configurem, de per se, infrações criminais.

(…)
Como é comumente aceite pela doutrina e jurisprudência, o crime de violência doméstica encontra-se numa relação de concurso aparente (especialidade) com o crime de maus tratos.

Por outro lado, uma vez que os Arguidos se encontram igualmente acusados da prática de crime de violência doméstica na sua forma agravada, ao qual é aplicável uma pena superior – artigo 152.º n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), do Código Penal – tal circunstancialismo deverá ser tido em conta para se considerar verificado esse mesmo concurso aparente, na modalidade de subsidiariedade expressa, como resulta da expressão “se pena mais grave não lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Por conseguinte, considerando a factualidade provada nos autos, muito embora seja possível considerar preenchido o elemento do tipo objetivo do crime de maus tratos, em relação ao menor AA, porquanto os Arguidos o obrigavam a realizar trabalhos físicos excessivos para sua idade e condição física, entendemos que, face à relação de concurso aparente entre os dois sobreditos crimes, as condutas dos Arguidos deverão ser ponderadas e valoradas apenas em sede do tipo de violência doméstica.
(…)
O crime de violência doméstica é caracterizado como um delito de relação e um crime específico impróprio, cometido no âmbito de relações próximas e familiares, que consagra a ilicitude da violação de determinadas regras éticas de conduta que se verificam (e devem verificar) no seio de uma estreita comunidade de vida.

Através do presente tipo de crime, o legislador pretende proteger a dignidade e a integridade da pessoa, enquanto membro de uma relação conjugal e/ou familiar, enquanto participante de uma realidade familiar ou “análoga” a esta.

O bem jurídico tutelado é complexo, na medida em que abrange a tutela da saúde física, psíquica e mental da vítima, a liberdade, nas suas expressões sexual e de natureza pessoal (cfr. Carvalho, Américo Taipa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 333).

O que se pretende proteger é o "eu" pessoal ou a dignidade na vertente de identidade da pessoa, sendo a família o marco propiciador do desenvolvimento de uma agressão permanente e tão intrínseca como o espaço de convivência onde se estabelecem relações afetivas especiais e estreitas.

Tal bem jurídico não é mais do que uma concretização do direito fundamental à integridade pessoal e também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, previstos nos artigos 25.º e 26.º, da Constituição da República Portuguesa.

Contudo, tal tutela de valores, do ponto de vista hermenêutico do tipo de ilícito, decorre no âmbito da especial relação existente entre o agente e a vítima, de cariz próximo, afetivo, se não física ao menos existencial, de partilha (atual ou anterior), de afeto e de confiança, merecedora de respeito mútuo e abstenção de violação da dignidade dos elementos dessa relação.
(…)
Por conseguinte, o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral da vítima e afete a sua dignidade pessoal que, apreciados à luz da vida em comum, possam de modo relevante colocar em risco a sua saúde, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade familiar.

O preceito legal em questão abrange as mais variadas espécies de condutas, que até poderiam sobreviver como crimes autónomos, se não estivessem unificadas na unidade de sentido que lhes é conferida pela figura jurídica prevista na norma de que vimos tratando.

No que tange ao tipo subjetivo de ilícito, trata-se de um tipo legal doloso (artigo 14.º Código Penal).

Da factualidade provada resulta que os Arguidos SS e PP, entre junho de 2015 a 19 de outubro de 2017, residiram com os menores AA e EE, filhos da Arguida, mantendo relação análoga à de cônjuges.

O menor AA permaneceu nesse agregado até 14 de agosto de 2017, data da sua institucionalização, ao passo que a menor EE esteve aos cuidados da progenitora e padrasto até 19 de outubro do mesmo ano.

Durante esse lapso temporal, os Arguidos fizeram uso do mais comum meio de violência doméstica que consiste no exercício de violência física na pessoa daquelas duas crianças, em diversas ocasiões e de forma reiterada, mediante agressões físicas com murros, com cinto e com paus.

Além disso, no que respeita ao menor AA, os Arguidos dirigiam-lhe e apelidavam-no de nomes injuriosos e desonrosos, como “monte de merda”, “mongoloide” e “não vales nada”, atentando contra a sua dignidade.

Acresce a isto que o menor era obrigado a realizar trabalhos e tarefas de construção que não eram adequadas à sua idade, principalmente durante as férias de Verão de 2017, e que, pelo menos numa ocasião, os Arguidos lhe amarraram as mãos e os pés para que aquele permanecesse dentro do quarto.

O menor AA apresentava marcas físicas dessas agressões, faltava às escolas, evitava despir-se junto dos colegas de turma, como se encontra provado.

As lesões sofridas pelas duas crianças eram patentes à data da respetiva institucionalização.

Perpassa pela factualidade provada um profundo intuito de menosprezo e humilhação das duas crianças, atingindo-as no ponto nevrálgico de sua individualidade pessoal, a sua dignidade.

Tais condutas, praticadas no interior da residência de ambos, assumem um carácter de progressão de agressividade manifesto, em especial, em relação ao menor AA, portador de uma doença que afeta a sua relação interpessoal, o que denota um total desprezo e desinteresse pelo seu bem-estar físico e psicológico.

Com tais condutas, os Arguidos perturbaram estas duas crianças de modo reiterado, além do mais, na sua tranquilidade, na sua honra e na sua integridade física, almejando e logrando deter um ascendente sobre as mesmas, anulando-as e menosprezando-as, enquanto pessoas e tratando-as de modo manifestamente indigno e inexplicável.

A conduta dos Arguidos plasmada nos factos provados reveste-se de violência e preenche o elemento objetivo do crime de violência doméstica.

No que tange ao elemento subjetivo do tipo, o mesmo encontra-se igualmente verificado, uma vez que decorre dos factos provados que os Arguidos infligiram maus tratos físicos e psíquicos a AA e EE, representando e querendo atingir os mesmos na sua consideração, honra, tranquilidade e integridade física, o que lograram alcançar, agindo, deste modo, com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).

Preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime, e inexistindo causas de exclusão da ilicitude do ato ou da culpa, concluímos que cada um dos Arguidos cometeu dois crimes de violência doméstica na forma agravada, pelos quais vinham acusados, independentemente dos factos dados por não provados que em nada colidem com esta conclusão».

E relativamente à questão da verificação de actos susceptíveis de se configurarem como de sequestro agravado:

«Dispõe o artigo 158.º n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal, que quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa e que o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos se a privação da liberdade for praticada contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

Através da proteção dispensada pela norma incriminadora ora em análise, garante-se uma ampla e adequada tutela a um bem jurídico que, reportando-se diretamente à liberdade de locomoção, se apresenta como um elemento essencial e indispensável à mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade.

Seguindo de perto as considerações a propósito expendidas por Taipa de Carvalho, dir-se-á que, embora não estabeleça o tipo legal em presença qualquer duração de privação de liberdade para que o crime se tenha por consumado, é entendimento geral da doutrina que as privações insignificantes não bastam, isto é, não são subsumíveis à duração mínima de privação de liberdade que se deve considerar pressuposta pela ratio do tipo de crime de sequestro (cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 408).

Uma vez que se trata de um crime permanente ou duradouro, a consumação material ocorre com a efetiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima.

Assim, a gravidade do ilícito é tanto maior quanto maior for a duração da privação da liberdade.

A conduta prevista pelo tipo de sequestro consiste em privar outra pessoa da liberdade de se deslocar, da liberdade de mudar de lugar.

A conduta pode ser uma ação – “detiver, prender” – ou uma omissão – “mantiver presa ou detida”.

A descrição legal contém, ainda, a cláusula geral “ou de qualquer forma privar a liberdade”.

Não se trata de uma alternativa às condutas de deter, manter presa ou detida, mas sim de uma referência aos meios da conduta privadora da liberdade, indicando que são relevantes e, portanto, subsumíveis ao tipo legal todo e qualquer meio, desde que adequado a impedir a liberdade de deslocação.

Acresce que a impossibilidade de a pessoa se libertar não precisa de ser absoluta, não precisa de ser invencível, bastando que o meio utilizado seja um impedimento sério, isto é adequado.

De qualquer modo, a omissão da ação de libertação só configurará uma conduta de sequestro desde que o omitente assuma uma posição de garante, nos termos do artigo 10.º n.º 1, do Código Penal, omitindo a ação adequada a evitar o resultado.

Da factualidade provada resulta que os Arguidos em datas não apuradas, mais do que uma vez, ataram as mãos e os pés do menor AA por modo a que este permanecesse no interior do seu quarto e, assim, evitarem que aquele se dirigisse à cozinha para retirar comida, enquanto os Arguidos estavam fora de casa.

Ora, a factualidade provada não é suficiente, na nossa ótica, para que se considere preenchido o requisito de privação de liberdade suficientemente grave por modo a autonomizá-lo dos restantes maus-tratos infligidos pelos Arguidos àquela criança.

A matéria de facto provada é manifestamente grave, mas o ato de amarrar este menor consubstancia uma outra forma aviltante de o agredir e de atentar contra a sua dignidade, traduzindo-se mais numa forma de tratamento desumano, do que numa verdadeira privação de liberdade autonomizável por si só e enquadrável no crime de sequestro.

Por outro lado, a privação de liberdade que resultou demonstrada cabe plenamente no tipo objetivo de violência doméstica que estabelece essa conduta como uma das modalidades da prática do crime.

Como tal, entendemos que a conduta dos Arguidos se integra numa das formas de maus tratos praticados na pessoa daquele menor e está consumido pelos crimes de violência doméstica já acima escrutinados e praticados por cada um dos Arguidos».

Vejamos.

Para o efeito, interessam os seguintes factos provados:
20. Os arguidos SS e PP, em data não concretamente apurada, mas mais do que uma vez, ataram as mãos e os pés AA, com fita adesiva, deixando-o no interior do seu quarto durante várias horas, sem poder sair daquela divisão.

21.Faziam-no, proibindo-o de comer e utilizando essa imobilização para evitar que o mesmo fosse à cozinha buscar comida nas alturas em que os arguidos não se encontrassem em casa.

22.Para concretizar essa imobilização, os arguidos fizeram valer-se da sua superioridade física em relação ao menor AA, bem como do ascendente que tinham sobre o mesmo, que daqueles dependia, e das fragilidades emocionais da vítima, que exploraram.

43. Agiram sempre com o desiderato de molestar AA e EE, física e psicologicamente, atentando contra o seu corpo e integridade física, contra a sua honra e consideração e contra o seu sossego e tranquilidade, sujeitando-os a um contínuo tratamento cruel, indigno e degradante.

48. Os arguidos SS e PP mais sabiam e queriam, em comunhão de esforços, prender os membros superiores e inferiores do menor AA com fita isoladora, assim o mantendo imobilizado no colchão do seu quarto durante várias horas, o que lograram fazer, mais do que uma vez, por algumas horas.

50. Em todo o circunstancialismo descrito, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubessem que os seus comportamentos são censurados por lei como crime.

Desde logo, note-se, o Tribunal não descurou a eventualidade de que a punição por crime de sequestro agravado se pudesse autonomizar, embora tivesse enveredado por considerar que “a privação de liberdade que resultou demonstrada cabe plenamente no tipo objetivo de violência doméstica que estabelece essa conduta como uma das modalidades da prática do crime”.

Fundamentou-o, além do mais, em que “a factualidade provada não é suficiente, na nossa ótica, para que se considere preenchido o requisito de privação de liberdade suficientemente grave”.

Pacífico é, que a acção, para efeitos penais, tem uma estrutura valorativa e, assim, o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade, sendo a determinação da ilicitude material - que se exprime nos tipos legais de crime - que constitui a fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de valorações jurídicas, sem perder de vista os juízos de censura que ao agente possam ser assacados (Eduardo Correia, in ”Direito Criminal”, Almedina, 1971, vol. II, págs. 200 e seg.).

Por isso, Muitas normas do direito criminal (…) estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras (…) Neste sentido se afirma que se estará então perante um concurso legal ou aparente de infracções (ainda Eduardo Correia, ob. cit., pág. 204)

Também, segundo Figueiredo Dias, in “Lições de Direito Penal”, FDUC, 1975/76, págs. 102/103, O que sucede é que o conteúdo ou a substância criminosa do comportamento é aqui tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados que os restantes devem recuar.

Como refere Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal, I - Unidade e 'Pluralidade de Infracções”, Almedina, 1983, pág. 130, As relações de parentesco que se estabelecem entre os diversos preceitos penais não se resumem, porém, naquelas que logo se surpreendem pela mera comparação dos elementos constitutivos dos tipos de crime descritos na lei. Depois de esgotadas as que desse confronto resultam e se olharmos os valores ou bens jurídicos que os diferentes tipos legais de crime respiram ou referem, descobriremos entre eles laços de dependência mais estreita. Alguns desses bens jurídicos são formados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais protegem, outros resultam de se acrescentar um elemento novo ao valor ou bem jurídico doutro tipo, e outros ainda são entre si diversos só porque exprimem no plano criminal a especifica significação de diferentes formas ou graus de ofensa de um mesmo interesse ou valor.

Não obstante, a apreciação haverá, sempre, de ser feita em concreto, por referência aos bens jurídicos violados.

Assim, acompanhando os ensinamentos de Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, 2.ª edição, tomo I, págs. 1005 e segs., os diversos sentidos sociais de ilicitude devem ser integralmente valorados para efeito de punição e a presunção de que se estará perante pluralidade de ilícitos pode ser elidida quando os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, ou seja, quando se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem (…) como dominados, subsidiários ou dependentes.

E ainda, critério de primacial relevo para a conclusão pela tendencial unidade substancial do facto – apesar da pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global – é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc sensu do “evento” ou “resultado”) ilícito global-final, isto é, quando o agente se propôs uma realização típica de certa espécie (…) e, para lograr (e consolidar) o desiderato, se serviu, com dolo necessário ou eventual de métodos, de processos ou de meios já em si mesmos também puníveis.

Além de que se impõe que, ao actuar, por um lado, o agente conheça tudo o que é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito, de outro, se exige a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização, que se pode manifestar com maior ou menor grau de intensidade.

Diante de tais considerações, afigura-se, na ausência de uma maior concretização factual da privação da liberdade do menor AA, conjugada com a circunstância de que os arguidos se moveram pelo intuito de que aquele não fosse à cozinha buscar comida e quando não estavam em casa, a posição acolhida pelo Tribunal decorre como aceitável.

Apesar da pertinência, concreta, do suscitado, o sentido de desvalor da conduta dos arguidos, no que tange àqueles actos formalmente susceptíveis de integrarem sequestro, não se desprende, com a exigida dimensão, da unicidade valorativa reflectida no conjunto dos seus actos praticados quanto ao menor AA, enquanto lesivos, nessa vertente, da sua integridade física e psíquica e da sua dignidade humana, para que se considere que se devam autonomizar com o objectivo de fazer prevalecer a visada punição.

Acresce que decorre como provado que sempre agiram mediante idêntico desiderato, o de molestar o menor, física e psicologicamente, atentando, além do mais, contra o seu corpo e integridade física, sujeitando-o a contínuo tratamento cruel, indigno e degradante, confluindo, pois, para o sentido de imagem global que incluiu, entre outros, os actos em causa.

Enfim, sem prejuízo da bondade da hipótese preconizada pelo recorrente, porque não descabida, a opção tomada pelo Tribunal é mais razoável e equilibrada, por retratar melhor a avaliação da realidade a que a análise valorativa em apreço não se pode furtar.

Razão por que deve subsistir.

Em sede de medida das penas, o tribunal consignou no acórdão:

“Das Penas Abstratas

Pela prática dos crimes acima descritos, incorrem os Arguidos nas seguintes penas:

(i) Crime violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 2 do Código Penal, é punido com pena de dois (2) a cinco (5) anos de prisão;

(ii) Crime de maus tratos de animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º n.º 2, do Código Penal, é punido com pena de um (1) mês a dois (2) anos de prisão ou com pena de dez (10) a duzentos e quarenta (240) dias de multa.
*
Considerando que a este último crime de maus tratos de animais de companhia cometido pelo Arguido é aplicável pena alternativa de multa e de prisão, importa, em primeiro lugar, determinar o tipo de pena aplicável.

A este respeito, importa salientar que o Arguido conta já com um número significativo de condenações anteriores, o que denota uma sentida dificuldade em pautar-se pelas regras básicas de convivência em sociedade.

Por outro lado, as finalidades de prevenção geral são elevadíssimas, uma vez que urge transmitir junto da comunidade uma censura deste tipo de condutas violentas para com animais, ainda mais realizadas perante crianças.

Tratam-se de condutas de violência extrema, sendo importante o aparelho de justiça nesta primeira fase de implementação deste tipo de crime, mudar mentalidades e evitar que se propaguem formas de tratamento animal desumano.

Assim, tudo ponderado, entende o Tribunal que as finalidades de prevenção geral e especial que a situação demanda depõem a favor da aplicação de pena de prisão ao Arguido.
*
Da Determinação da Medida da Pena
Há que determinar as penas parcelares, tendo em consideração que essa operação é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), ou seja, para a determinação concreta da medida da pena, a efetuar dentro dos limites legais, a culpa do agente e as finalidades de prevenção constituem o binómio fundamental.

O julgador deve atender, assim, às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), no sentido da defesa dos bens jurídicos e do ordenamento jurídico, assegurando a estabilização das expectativas da comunidade, na vigência das normas jurídicas violadas.

Por outro lado, deve ponderar a finalidade de prevenção especial, uma vez que a pena aplicada ao arguido deverá, igualmente, visar a reintegração ou ressocialização daquele, possibilitando a que no futuro aquele adote condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito.

A culpa, ou juízo de censura que recai sobre o arguido, constitui, por sua vez, o pressuposto-fundamento da validade da pena e tem, ainda, por função estabelecer o limite máximo da pena concreta a aplicar, como resulta do artigo 40.º n.º 2, do Código Penal.

Como tal, a culpa funciona como moldura de topo da pena, funcionando dentro dela as submolduras da prevenção.

Estabelece, ainda, o artigo 71.º n.º 2, do Código Penal que, na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, sendo certo que não poderá valorar duplamente circunstâncias que o legislador já sopesou ao estabelecer a moldura penal aplicável ao crime em cotejo.

Desçamos, então, ao caso concreto:
- As necessidades de prevenção geral afiguram-se acentuadíssimas, atentos os bens jurídicos violados pela prática dos crimes em causa.

No tocante ao crime de violência doméstica, este configura um flagelo social que decorre no âmbito íntimo e familiar; a conduta do agressor implica uma menorização, submissão e subjugação das vítimas. Sendo tais vítimas crianças, como é o caso dos autos, tais condutas são ainda mais preocupantes e graves, pois têm repercussões profundíssimas no desenvolvimento da personalidade das mesmas e do seu bem-estar.

Comportamentos desta índole praticados por progenitores, familiares, ou pessoas com quem as crianças coabitem constituem um tratamento desumano contrário aos mais basilares princípios e direitos das crianças.

Numa sociedade moderna, civilizada e humana, o Estado e o aparelho judicial devem proteger, em primeira linha, todas as crianças que sejam vítimas de maus tratos pelas pessoas que, naturalmente, mais tinham a obrigação de as proteger, educar e proporcionar condições para o seu desenvolvimento global.

É relevante o papel do Estado enquanto conformador da consciencialização da comunidade civil para a inadmissibilidade e censura destas condutas, por forma a evitar comportamentos, anteriormente, noutras épocas tolerados, por respeitarem a um campo familiar e alheio ao espaço público.

Numa sociedade evoluída, sublinhe-se, norteada pelo respeito pelos direitos fundamentais e pela dignidade da pessoa humana, o Estado tem o papel de proteger as crianças, conferindo-lhes proteção e cuidados especiais, designadamente proteção jurídica adequada, que deverá ser eficaz e concretaComo indicado na Declaração dos Direitos da Criança, adotada em 20 de Novembro de 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, «a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma proteção e cuidados especiais, nomeadamente de proteção jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento»; artigo 19.º da Convenção sobre os Direitos das Crianças, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990; o artigo 20.º Convenção do Conselho de Europa de 2007 para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais (Convenção de Lanzarote); artigo 2.º alínea e) da Diretiva 2011/92/EU, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 13 de Dezembro de 2011..

Nesta senda, o aparelho judiciário desempenha um papel fundamental na dissuasão da prática deste tipo de crimes, cabendo-lhe assegurar de forma eficaz a tutela das crianças vítimas destas condutas, cujas repercussões físicas e psíquicas são gravíssimas nas suas pessoas, colocando em causa o seu normal desenvolvimento e a sua conceção de intimidade e sexualidade livre, autónoma e discernida.

No tocante ao crime de maus tratos de animais, as finalidades de prevenção geral são igualmente elevadas, na medida em que urge ao Tribunais contribuir para uma mudança de mentalidades a este respeito e consciencializar a comunidade para a manifesta ilicitude de atitudes bárbaras para com animais, sensibilizando para a tutela dos seus direitos.

- O grau de ilicitude das condutas praticadas pelos Arguidos é muitíssimo elevado: se por um lado a Arguida, na qualidade de mãe, exercia um papel de garante afetivo e de tutela dos seus filhos, convocando por isso a sua conduta uma ilicitude mais exponenciada, tendo agido não só por ação, mas igualmente por omissão perante os maus tratos infligidos pelo seu companheiro; não podemos olvidar que o Arguido realizou os comportamentos mais graves na pessoa do menor AA.

Acresce a isto as consequências físicas e psicológicas, quer presentes e futuras, de carácter indelével e permanente que tais condutas acarretam e acarretarão para a vida de cada uma das crianças, que se afiguram profundíssimas.

De todo o modo, as penas parcelares deverão ser distintas com respeito a cada um dos menores, uma vez que os maus-tratos infligidos ao menor AA são manifestamente mais graves do que os perpetrados na pessoa da EE.

No tocante ao crime de maus tratos de animais, importa ter em atenção que o mesmo foi praticado pelo Arguido perante as duas crianças, por um meio bastante agressivo que é o enforcamento.

- A culpa dos Arguidos é intensa, já que deliberadamente quiseram praticar os factos, agindo com dolo direto.

- No que tange às necessidades de prevenção especial, milita a favor da Arguida o facto de ser primária, atenuante que é neutralizada pela ilicitude exponenciada da sua conduta, por ser progenitora das crianças.

Quanto ao Arguido, apesar de este se encontrar profissionalmente inserido, conta já com várias condenações pela prática de crimes de diversa natureza.

- No que concerne à conduta posterior à prática dos factos, a Arguida demonstrou uma personalidade fria e indiferente ao sofrimento dos dois filhos, principalmente de AA, a quem tentou descredibilizar de um modo perverso em julgamento.

Também o Arguido denotou uma postura indiferente e uma falta de autocensura notória sobre a sua conduta.

Nestes termos, tudo ponderado, mostra-se adequado aplicar aos arguidos as seguintes penas parcelares:

- Pelos crimes de violência doméstica na pessoa da criança EE, vão os Arguidos condenados cada um na pena de três (3) anos de prisão;

- Pelos crimes de violência doméstica na pessoa da criança AA, vão os Arguidos condenados cada um na pena de quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão;

- Pelo crime de maus tratos a animais de companhia, vai o Arguido condenado na pena de seis (6) meses de prisão.

CÚMULO JURÍDICO
Considerando que os crimes pelos quais os Arguidos vão condenados se encontram em relação de concurso efetivo, ao abrigo do n.º 1 do artigo 30.º, do Código Penal, cumpre efetuar o cúmulo jurídico das penas parcelares acima determinadas, nesta sede, preenchidos que se encontram os pressupostos do n.º 1 do artigo 77.º, do Código Penal.

De harmonia com o disposto no artigo 77.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal:
- A pena mínima a aplicar à Arguida SS é a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicada, isto é, a pena de quatro anos e seis meses de prisão, sendo que o limite máximo corresponderá à barreira de sete anos e seis meses de prisão, fixando-se a pena única em seis (6) anos de prisão;

- A pena mínima a aplicar ao Arguido PP é a mais elevada das penas parcelares concretamente aplicada, isto é, a pena de quatro e seis meses de prisão, sendo que o limite máximo corresponderá à barreira de oito anos, fixando-se a pena única em seis (6) anos e seis (6) meses de prisão.

As penas únicas fixadas tiveram em consideração o circunstancialismo atrás referido referente, em particular, às exigências de prevenção geral que o caso demanda, à ilicitude dos factos e à personalidade dos Arguidos nos termos supra expendidos.

I - recurso do Ministério Público:
B) - da elevação das penas aplicadas:

Embora manifestando subscrever as considerações aduzidas ao acórdão relativamente à determinação da medida das penas, o recorrente Ministério Público, aludindo aos critérios que aí presidem, invoca duas reservas: o desvalor da conduta da arguida SS é indiscutivelmente superior ao do seu companheiro, o arguido PP, em virtude de a mesma, enquanto mãe dos menores ter um dever acrescido de protecção e de respeito perante os mesmos e o arguido PP não «realizou os comportamentos mais graves na pessoa do menor AA». No quadro da factualidade provada, a motivação e o contributo de ambos os arguidos para o crime são sensivelmente iguais [v. os factos provados 8, 9, 12 a 18, 20, 21 e 22], sendo certo que os maus tratos perpetrados pela arguida SS, aparentemente, até se iniciaram em momento anterior ao seu relacionamento com o arguido PP [v. o facto provado 7].

Por isso, ainda tendo em conta a pena aplicável mais grave, por via do pretendido enquadramento, para o efeito, ao sequestro agravado, propõe que sejam aplicadas as penas: à arguida SS, de 6 anos de prisão pelo crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA e de 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de violência doméstica em que é ofendida a menor EE; e, ao arguido Arguido PP, de 5 anos e 6 meses de prisão pelo crime de sequestro agravado em que é ofendido o menor AA [mantendo-se a pena de 3 anos de prisão pela prática do crime de violência doméstica exercido contra a menor EE].

Reformulando o cúmulo, entende que devem fixadas as penas únicas: para a arguida Arguida SS, de 7 anos e 6 meses de prisão e, para o arguido PP, de 7 anos e 3 meses de prisão.

Vejamos.
Os parâmetros gerais da determinação da medida das penas encontram-se devidamente reflectidos no acórdão, porque consentâneos, além do mais, com o disposto nos arts. 40.º, 71.º e 77.º do CP.

Ainda assim, algumas considerações aqui se deixam.

O ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena. (Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, pág. 1194).

Segundo Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” em “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, pp.25-51, e em Casos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, pp. 31-51 (32/33), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.

De qualquer modo, por respeito à salvaguarda da dignidade humana, a medida da culpa constitui limite inultrapassável da medida da pena e, como já referia Claus Roxin, in “Derecho Penal, Parte General”, tomo I, tradução da 2.ª edição alemã e notas por Diego-Manuel – Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99/100, a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação relevem como desenlace uma detenção mais prolongada (…) não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

Anabela Miranda Rodrigues, in “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução, defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Ainda, Figueiredo Dias (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro.1993, págs. 186 e 187) alude a que o modelo de determinação da medida da pena consagrado no CP vigente comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o “quantum” exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.

Esta (a medida da pena) deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos, sendo que culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena) - mesmo Autor, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs. 231 e 214.

O juízo de culpa, que na realidade é, pois, o suporte axiológico-normativo da punição, reconduz-se a um juízo de valor e apreciação, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168).

Em síntese, como vem sendo pacificamente reconhecido a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

No que se reporta à pena única, a aplicar quando se verifique, como é o caso, a prática pelo agente de vários crimes, e acompanhando, ainda, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” cit. págs. 291/292, Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Analisando, então, a perspectiva do recorrente, afigura-se, desde logo, que, afastada, como ficou apreciado, medida aplicável por crime mais grave no tocante aos ilícitos de violência doméstica, mantendo-se, assim, a moldura de dois a cinco anos de prisão, restará aquilatar da adequação de medida das penas, quanto à arguida SS, ligeiramente mais elevadas do que relativamente ao arguido PP, no que a esses crimes diz respeito.

Tratar-se-á, na visão, do recorrente, de atribuir uma maior responsabilização da arguida, atendendo à sua condição de mãe dos menores e, como o Tribunal, aliás, reconheceu, que “exercia um papel de garante afetivo e de tutela dos seus filhos, convocando por isso a sua conduta uma ilicitude mais exponenciada, tendo agido não só por ação, mas igualmente por omissão perante os maus tratos infligidos pelo seu companheiro”.

Não sofre dúvida que assim é, além de que, contrariamente ao fundamentado no acórdão, não resultou que o arguido “realizou os comportamentos mais graves na pessoa do menor AA”, mas, ao invés, que os arguidos sempre actuaram de modo idêntico relativamente a cada um dos menores.

Aceita-se, por correcta, justificação de que à arguida pudessem ser cominadas penas superiores, ainda que muito ligeiramente, às do arguido, essencialmente com suporte naquela ilicitude superior.

No entanto, tendo por referência a ausência de específica diferenciação na actuação de cada um dos arguidos e a circunstância de que o arguido já averba antecedentes criminais, bem como sem descurar a dimensão das medidas aplicadas dentro da moldura aplicável, não se impõe, por um lado, que as penas, pelos referidos crimes de violência doméstica, sejam elevadas quanto à arguida e, por outro, que as cominadas a ambos os arguidos sejam alteradas.

Na sequência, as penas únicas também não se alteram no sentido proposto.

II - recurso de SS:
B) - da redução das penas aplicadas:

III - recurso de PP:
B) - da redução das penas aplicadas:
Como já deixou antever, a alteração das penas aplicadas no tocante aos crimes de violência doméstica não se justifica.

A alegação dos recorrentes SS e PP não modifica a posição tomada.

A recorrente limita-se a invocar que as penas que concretamente lhe foram aplicadas para cada um dos crimes são severas, bem como a prisão aplicada em cúmulo é severa, excessiva e desproporcional aos fins da prevenção especial e ultrapassa a medida culpa.

Defende a redução das penas para 2 anos e 6 meses de prisão, relativamente ao crime praticado na pessoa da menor EE e, para 3 anos de prisão, quanto ao cometido na pessoa do menor AA e, ainda, da pena única, para 4 anos e 6 meses de prisão.

Por seu lado, o recorrente, invocando que é pessoa de humilde condição social e está integrado social e familiarmente e que a prevenção geral e a reintegração do Arguido na sociedade se poderá também fazer de forma mais equilibrada, mediante uma pena menos gravosa, preconiza a aplicação da pena de 2 anos de prisão, quanto ao crime que incidiu na menor EE e, da pena de 3 anos de prisão, relativamente ao que incidiu no menor AA e, em cúmulo, da pena única de 5 anos de prisão, sendo que, no tocante ao crime de maus tratos a animais de companhia nada refere.

Todavia, não lhes assiste qualquer razão.

Na verdade, como se salientou, no acórdão, “as necessidades de prevenção geral afiguram-se acentuadíssimas”, o crime de violência doméstica configura um “flagelo social”, sendo tais “vítimas crianças, tais condutas são ainda mais preocupantes e graves, pois têm repercussões profundíssimas no desenvolvimento da personalidade das mesmas e do seu bem-estar”, sem que, de modo algum, se possam tolerar, tanto mais com a gravidade subjacente aos actos que os comportamentos manifestaram, suscitando inevitável censura muito elevada, relativamente ao que a comunidade não pode deixar de exigir adequada resposta sancionatória.

Além de que “o grau de ilicitude das condutas praticadas pelos Arguidos é muitíssimo elevado” e “as consequências físicas e psicológicas, quer presentes e futuras, de carácter indelével e permanente que tais condutas acarretam e acarretarão para a vida de cada uma das crianças”, sem que sequer, os recorrentes, tivessem denotado interiorização do desvalor das suas condutas, dado que revelaram, sim, frieza e indiferença.

Assim, também, as exigências de prevenção especial se fazem sentir de forma muito intensa, uma vez que a aparente inserção social dos recorrentes não serviu para que tivessem adoptado diferentes comportamentos e, note-se, não se descortina, mesmo, que, além da ausência de antecedentes criminais quanto à recorrente, alguma atenuante, propriamente com relevo, se depare relativamente a ambos, antes pelo contrário.

Em conformidade, a ponderação de todos os factores comporta, plenamente, a fixação das penas pelos crimes de violência doméstica.

E bem assim, no que concerne às penas únicas encontradas.

Se é certo que as penas devem respeitar a proporcionalidade, exigência que resulta, além do mais, do art. 18.º, n.º 2, da CRP, impondo, por isso, a proibição do excesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, págs. 392 e seg.), no sentido de dever prevalecer a intervenção menos gravosa, mas ainda assim idónea e estritamente necessária para as finalidades em vista, não é menos verdade que, em concreto, a redução das penas dos recorrentes, a fazer-se, redundaria em atropelo a essas mesmas finalidades, atentando na gravidade das suas condutas, correctamente reflectida pela criteriosa análise valorativa a que o Tribunal procedeu.

II - recurso de SS:
C) - da suspensão da execução da prisão:

III - recurso de PP:
C) - da suspensão da execução da prisão:
Atendendo a que as penas aplicadas aos recorrentes SS e PP se mantiveram, conforme analisado, a suspensão da execução da prisão é questão que se mostra prejudicada.

Com efeito, perante as penas únicas fixadas, porque superiores a cinco anos de prisão, falece pressuposto formal que permitisse a invocada suspensão da execução (cfr. art. 50.º, n.º 1, do CP).

I - recurso do Ministério Público:
C) - da aplicação, ao arguido PP, da proibição de contactos com a vítima EE e pelo período de 4 anos:

O recorrente Ministério Público vem preconizar que o arguido PP seja, também, condenado, a título de pena acessória, ao abrigo do art. 152.º, n.º 4, do CP, na proibição de contactos com a vítima EE, durante 4 anos.

Esclarecendo que nada tem a objectar à não aplicação à arguida SS da pena acessória de proibição de contactos e de inibição das responsabilidades parentais relativamente à menor EE, por entender, em sintonia com o douto acórdão, que a imposição de tais medidas será objecto de melhor ponderação no processo de promoção e protecção que corre termos pelo Juízo de Família e Menores de Beja, entende, porém, que em relação ao arguido PP a decisão é criticável.

Invoca a atenção ao elevado grau de ilicitude dos factos, aferido pelo período de tempo durante o qual perduraram os maus tratos [entre 1 de Junho de 2015 e 19 de Outubro de 2017], pelo cunho dos mesmos [a ofendida foi agredida com murros, com um cinto e com cabos de vassoura e foi coagida a agredir o próprio irmão] e pela idade da vítima [nascida a 23 de Setembro de 2010], ao dolo [directo e persistente] e à circunstância de o arguido PP, como melhor resulta do segmento dedicado à motivação da decisão de facto, ter desmentido a sua prática.

Ora, a aplicação da pena em causa, porque tratando-se de pena acessória, é sanção adjuvante ou acessória da função da pena principal, que permite, desse modo, o reforço e a diversificação do conteúdo penal da condenação, não obstante assente em exigências de prevenção, não só especial, mas sobretudo geral e com intimidação, dentro do limite da culpa, não só perante a natureza do crime cometido, como também pela apreciação das circunstâncias dos factos e da personalidade que se revelarem substancialmente censuráveis no âmbito da protecção dos bens visados pela incriminação, sendo certo que se encontra afastado o carácter automático da sua aplicação (cfr. art. 65.º, n.º 1, do CP).

O tribunal recorrido não a aplicou.

Tal aplicação só se justificará se absolutamente necessária e com a finalidade de, tanto quanto viável, contribuir para a eficácia da condenação.

Neste sentido, a posição do recorrente decorre compreensível, atentando nos factores que elencou, dando nota da relevância dos fundamentos que podem suportar essa pena acessória.

Se assim é, também a circunstância de que a situação da menor EE se revele estabilizada, através do que resulta dos elementos constantes do processo de promoção e protecção dos menores AA e EE, de fls. 698/702 (ainda que juntos posteriormente ao acórdão dos autos, mas reportando-se a data anterior, como sendo 21.03.2019), não deve ser descurada, ou seja, que beneficia de medida de acolhimento durante um ano e com o devido acompanhamento técnico, incluindo visitas à menor EE, designadamente da mãe, a arguida SS.

Não obstante a gravidade da conduta do arguido, este, que se saiba, continua a viver com a arguida e, segundo se provou, sob o facto n.º 73, evidencia competências para se submeter a regras e normas, bem como capacidade para compreender e cumprir as decisões judiciais, nomeadamente as que possam vir a resultar do presente processo.

Afigura-se que a visada proibição de contactos, dada a situação, poderá contender com a aproximação da menor à mãe, o que, apesar do ocorrido, não deve ser defendido, desde que, como sucede, a menor se encontre adequadamente protegida, além de que, como já decidido, o arguido foi condenado em diferente pena acessória (de frequência de programa específico de violência doméstica, em ambiente prisional), de utilidade que se crê importante, para lograr a sua auto-censura crítica ao que fez.

A pena acessória pretendida não se torna imprescindível.

Por isso, não se envereda pela sua aplicação ao arguido.

II - recurso de SS:
D)- da redução das indemnizações:

III - recurso de PP:
D) - da redução das indemnizações:
Os recorrentes SS e PP contestam as quantias que foram arbitradas pelo Tribunal, a título de indemnizações em favor dos menores.

Entendem-nas excessivas, à luz do art. 496, n.º 3, do Código Civil.
SS sustenta-o, como refere, face aos danos alegadamente sofridos, a que é desempregada e a que do facto de lhe aplicar uma pena de prisão efectiva torna praticamente impossível o pagamento desse quantum indemnizatório.

Propõe a redução das indemnizações a montante, para cada menor, nunca superior a € 4.000,00.

PP fundamenta que vive exclusivamente do seu salário que ascende sempre próximo do salário mínimo nacional e muitas vezes incerto, para além das responsabilidades familiares que tem para com o seu agregado, preconizando valor, para cada um dos menores, de € 5.000,00.

O Tribunal consignou neste âmbito:
«Segundo o artigo 16.º, da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que estabelece o Estatuto da Vítima, “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito de obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”.

Nos termos do artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 129/2015, de 03/09, “à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito de obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”.

Para esse efeito, dispõe o n.º 2, daquele artigo, que há lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º- A, do Código de Processo Penal, exceto no caso em que a vítima a tal expressamente se opuser.

Segundo o artigo 82.º-A, do C.P.P., sob a epígrafe «Reparação da vítima em casos especiais», o Tribunal está habilitado a arbitrar, oficiosamente, uma indemnização à vítima de um crime, que não tenha deduzido pedido de indemnização civil.

Consistem pressupostos do arbitramento da indemnização em causa, que não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil, em processo penal ou em separado, ser o agente condenado pela prática de crime de violência doméstica e, por fim, que tal arbitramento de indemnização seja demandando por “particulares exigências de proteção da vítima”.

Compulsada a factualidade consignada por provada, verifica-se que as vítimas AA e EE não deduziram pedido de indemnização civil e não se opuseram ao arbitramento de uma quantia indemnizatória.

Dispõe o artigo 129.º, do Código Penal, que a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.

O regime da responsabilidade civil aquiliana, decorrente do artigo 483.º do Código Civil (“C.C.”) consagra que aquele que lesar ou provocar danos a outrem deve indemnizar o lesado.

De acordo com aquele preceito legal, tal dever de indemnizar o lesado fica dependente da verificação dos seguintes pressupostos: a) a prática pelo agente de uma ação ou omissão; b) considerada ilícita ou anti-jurídica, podendo esta ilicitude revestir a modalidade de violação de direito subjetivo ou de violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios; c) culpa do lesante em sentido amplo, analisada da perspetiva do homem-médio (art. 487.º, do C.C.), o que significa que a sua conduta deve merecer a reprovação ou censura do direito, podendo revestir a forma de dolo ou negligência; d) a verificação de dano ou prejuízo; e e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Da matéria de facto provada e da apreciação que dela foi feita no tocante à responsabilidade criminal dos Arguidos, resultam provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – facto ilícito, culposo, verificando-se ainda a existência de nexo causal entre a prática dos factos e o dano.

Com efeito, desde logo é evidente o carácter ilícito do comportamento dos Arguidos, dado que ambos praticaram crimes de violência doméstica nas pessoas das duas crianças AA e EE, atingindo a sua integridade física, honra e tranquilidade, atentando contra a sua dignidade enquanto pessoas, ao bem estar, equilíbrio e desenvolvimento.

Resulta ainda do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais, que devido à sua gravidade, mereçam tutela do direito”.

O montante devido por danos não patrimoniais não corresponde propriamente a uma “indemnização”, na medida em que não se pretende uma reintegração do mal sofrido no património do lesado, mas sim a atribuição de um determinado montante pecuniário que permita ao lesado alcançar uma compensação para a dor física e/ou psíquica que sofreu com a conduta ilícita, sendo mais preciso referirmo-nos a compensação.

A lei admite a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, mas limitando-se aos danos que pela sua gravidade, mereçam essa tutela, cabendo ao Tribunal, caso a caso, aquilatar se um dano não patrimonial concreto é ou não merecedor de tutela.

O montante indemnizatório será fixado equitativamente, ao abrigo, do n.º 3, do art. 496.º, do Código Civil, devendo o julgador fazer uso de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, tendo sempre em conta as circunstâncias referidas no art. 494º do Código Civil, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Deverão, igualmente, ser considerados os padrões de indemnização geralmente adotados pela jurisprudência.

As duas crianças foram molestadas fisicamente e psicologicamente pelos Arguidos, valores e bens merecedores de tutela jurídica.

Nestes termos, levando em conta as necessidades de proteção das vítimas decorrentes da prática do crime de violência doméstica, considerando os danos decorrentes para o seu desenvolvimento e equilíbrio psicossomático, e as apuradas condições económicas modestas dos Arguidos, decide-se arbitrar a quantia de € 10 000,00 (dez mil euros) a pagar pelos Arguidos a cada uma das crianças AA e EE, a título de indemnização.».

Entende-se que a fundamentação obedece aos legais critérios, não requerendo especial esclarecimento.

Foram respeitados os pressupostos por que a fixação das indemnizações se deve nortear, atentando no necessário equilíbrio e ponderação subjacentes à previsão do referido art. 496.º, sem perder de vista a natureza, no caso, dessas indemnizações, por danos não patrimoniais.

Revestem uma natureza acentuadamente mista: por lado, visa compensar de algum modo mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente (Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 5.ª edição, vol. I, pág. 568).

E hão-de ser fixadas equitativamente, tendo em atenção o grau de culpabilidade dos responsáveis, a situação económica destes e do lesado e demais circunstâncias do caso (n.º 3 daquele art. 496.º), entre as quais se contam as lesões sofridas e suas consequências e, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda (acórdãos do STJ de 23.10.1979, in RLJ, ano 113.º, pág. 91, de 26.05.1993, in CJ Acs. STJ, ano I, tomo II, pág. 130, e de 18.03.1997, in CJ, ano V, tomo I, pág. 163, e Antunes Varela, ob. cit., 9.ª edição, vol. I, pág. 629).

Em concreto, resulta, em síntese, que os arguidos actuaram com dolo importante, através de acções que atingiram os menores na sua dignidade humana, com múltiplas facetas e por tempo considerável, manifestado em contínuo tratamento cruel, indigno e degradante, com consequências físicas e psicológicas inegavelmente revelantes, afectando o seu normal desenvolvimento.

No que respeita à medição da gravidade dos danos, há-de ser feita com ponderação das circunstâncias do caso concreto, à luz de critérios objectivos, e não com base em padrões subjectivos, e é apreciada em função da tutela do direito, isto é, os danos devem revelar tal gravidade que justifique a atribuição de uma satisfação de natureza pecuniária ao lesado (Antunes Varela, ob. cit., 8.ª edição, pág. 617).

Em sintonia, cabem os fundamentos levados ao acórdão, para concluir pelos elevados danos, apesar da aparente indiferença que a recorrente transparece transmitir.

Não obstante a modesta condição económica dos recorrentes, que foi atendida, também, pelo Tribunal, não se justifica que as indemnizações acabassem, se reduzidas, por representarem pequeno sacrifício para os recorrentes, comparativamente com a gravidade dos seus comportamentos.

Ainda que se reconheça que venham a ter alguma dificuldade para satisfazer as indemnizações arbitradas, tal não constitui razão para as desvirtuar na sua vertente de adequada compensação como se pretende e em razão das prementes exigências de protecção das vítimas.

Por isso, se mantêm intocadas.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento a todos os recursos, interpostos pelo Ministério Público e pelos arguidos e, em consequência,

- manter integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes arguidos, com taxa de justiça individual de 5 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).

Processado e revisto pelo relator.

19.Dezembro.2019
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(Carlos Jorge Berguete)

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(João Gomes de Sousa)