Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/08.5TBPSR.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: CONTRATO DE DEPÓSITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos termos do artº 474º, do C. Civil, a obrigação de restituição por enriquecimento ilegítimo tem natureza subsidiária, não sendo invocável, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 35/08.5TBPSR.E1 (2ª secção cível)
ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

No Tribunal de Ponte de Sôr, (…) – Torrefacção e (…) Cafés Lda., com sede na, Rua do (…), Zona Industrial da (…) – Sector I, (…), intentou ação declarativa de condenação, com processo sumário contra (…), residente na Rua (…), nº 131, (…), pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 9.945,00, acrescida dos respetivos e legais juros de mora vincendos.
Como sustentáculo do peticionado, alega, em síntese:
- Celebrou um contrato de depósito para vigorar pelo prazo de seis anos, tendo cedido por força de tal contrato alguns bens ligados a exploração de café, bem como a necessidade durante a vigência do contrato de consumir 250 Kg por ano de café do Lote Buono;
- O contrato foi incumprido pelo réu, devendo este pagar-lhe o valor dos bens dados em depósito ao réu, acrescentando-se a importância devida pelo incumprimento do consumo de café estipulado, a título de cláusula penal.
Citado o réu veio contestar impugnando parcialmente os factos articulados pela autora, assumindo que recebeu os bens alegados por esta, mas declinando a existência de incumprimento contratual, até porque não assinou qualquer contrato.
Saneado o processo e realizado o julgamento veio a ser proferida, em 20/05/2013, sentença cujo dispositivo reza:
“Face ao exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios indicados, o Tribunal julga:
A ação procedente, por provada, condenando-se o pagamento ao Autor por parte do Réu do valor de € 5.445,00 (cinco mil quatrocentos e quarenta e cincos euros), valor esse que se considera ressarcível, bem como respetivos juros vencidos e vincendos, a contar da data de citação.
No mais improcede o pedido.
Custas pelo autor e réu pelo respetivo decaimento.”
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Inconformado, com esta decisão, interpôs o réu recurso de apelação terminando nas respetivas alegações, por formular seguintes conclusões que se transcrevem:
“A) «Revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que o enriquecimento sem causa não é susceptível de conhecimento ex officio» (Ac. TRP de 21/03/2013 e Acs. do STJ de de 15/10/1998 e 23/05/1985, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
B) A sentença recorrida, ao ter fundamentado juridicamente a sua decisão de condenação parcial do pedido com base no instituto do enriquecimento sem causa, excedeu os seus poderes, tendo-se pronunciado e decidido sobre questão que não foi levada ao seu conhecimento nos articulados das partes, constituindo, para o ora Recorrente, uma verdadeira decisão surpresa de cujos fundamentos não lhe foi dada sequer a possibilidade de se defender e de esgrimir argumentos em contrário, o que implica a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 668/1 al. d) 2ª parte do CPC, que aqui desde já se invoca.
C) Sendo certo que, da matéria provada, nenhum facto resulta que permita o seu enquadramento no referido instituto do enriquecimento sem causa.
D) Apreciando o mérito da ação, tendo em conta a causa de pedir invocada pela A. na sua PI, facilmente se constata que a A. não provou, como lhe competia, os factos em que sustentava a sua causa de pedir e, consequentemente, o seu pedido, conforme resulta das respostas negativas aos artigos 1º, 2º e 5º da Base Instrutória, pelo que a ação nunca podia proceder.
E) Decidindo, como decidiu, violou a Exma. Juiz, designadamente, o disposto nos artigos 668º/1 al. d) do CPC e 473º a 482º do CC.”
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Não foram apresentadas alegações por parte da apelada.
Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a questão relevante que importa conhecer prende-se com a nulidade da sentença, nos termos do artº 668º, nº 1 al. d) 2ª parte, do CPC.

No Tribunal “a quo” foi considerada assente a seguinte matéria de facto:
1 - A A. (…) Torrefacção e (…) de Cafés, Lda., dedica-se à torrefação e comércio de cafés, comercializando a marca de cafés que circula sob a denominação de “Cafés (…)”.
2 - O R. (…) explorou o estabelecimento comercial denominado restaurante “(…)”, sito em (…).
3 - A A. entregou ao R. uma máquina II Grupos Arianne, um moinho Compack, uma máquina de gelo, um luminoso de série e três toldos de Concha.
4 - Os bens mencionados no artigo 3º permanecem até esta data com o réu.
5 - Os bens acima referidos, acima têm um valor global de € 5.445,00 com IVA incluído.
6 - O R. consumiu 160 Kg de café.
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Conhecendo da questão
O recorrente invocou a nulidade da decisão sob censura nos termos da alínea d) 2ª parte do nº 1 do artº 668 do VCPC, por em seu entender o Mº Juiz conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento.
Refere para tanto que a sentença recorrida ao ter fundamentado juridicamente a sua decisão de condenação parcial do pedido com base no instituto do enriquecimento sem causa, excedeu os seus poderes, tendo-se pronunciado e decidido sobre questão que não foi levada ao seu conhecimento nos articulados das partes.
Compulsados os autos, nomeadamente a sentença sob censura, constatamos que é no instituto do enriquecimento sem causa, que se suporta juridicamente a sentença (fls. 292), sendo certo que em nenhuma parte da petição inicial a autora se refere ao enriquecimento sem causa, como fonte da obrigação imputada ao réu.
A autora invocou, sim, que celebrou por escrito, com o réu, um contrato de depósito (v. artº4º a 6º da petição e doc. n.º 1 junto com a mesma)
Acresce que nos termos do artº 474º, do C. Civil, a obrigação de restituição por enriquecimento ilegítimo tem natureza subsidiária, não sendo invocável, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.
Analisando a questão da nulidade, diremos que a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica, que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade (cfr. Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 51).
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença consta das alíneas a) a e) do nº 1 do art.º 668º do VCPC.
A alínea d) deste normativo comina a sentença de nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artº 660º, nº 2 do VCPC).
Ora, revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que o enriquecimento sem causa não é suscetível de conhecimento oficioso, devendo ser invocada factualidade atinente e enunciada a pretensão a coberto de tal figura jurídica (conforme se refere nos Acs. do STJ de 15/10/1998 e de 23/05/1985 e Ac. TRP de 21/03/2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt), bem como na Revista nº 5339/07.1TVLSB.L1.S1 2ª secção, proferida em 17/06/2010 disponível in Sumários do STJ).
Não obstante o tribunal, independentemente do enquadramento jurídico efetuado pelas partes, ser livre de interpretar e aplicar as regras do direito que tenha como mais adequadas ao tratamento normativo das questões, não tem liberdade total e absoluta, pois, não lhe é permitido proferir decisões-surpresa, (cfr. artº 3º n.º 3 do VCPC) e a liberdade na qualificação jurídica dos factos só é admissível desde que tal não implique a alteração da causa de pedir (- v. Alberto dos Reis in Código Processo Civil Anotado, 5º, 453). O que a lei refere – artº 664º do VCPC – é que se proceda à qualificação da causa de pedir independentemente da feita pelo autor, sem que, por isso, seja lícito ao tribunal convolar oficiosamente para outra causa de pedir (v. Vaz Serra in RLJ, 105º, 233).
No caso em apreço, foi invocada a existência de um contrato escrito à luz do incumprimento do qual se formula a pretensão, aceitando, por isso a autora a existência de uma causa determinada para o ressarcimento que pretende com a propositura da ação, cujos factos que lhe serviam de sustentáculo não logrou, todavia, provar, o que inevitavelmente conduzia à improcedência da ação nos termos em que foi configurada a pretensão, o que aliás foi reconhecido pelo Julgador a quo, senão enveredasse pela aplicação ex officio do instituto do enriquecimento sem causa.
Como salienta o recorrente, da matéria provada nenhum facto resulta que permita enquadrar oficiosamente o instituto do enriquecimento sem causa, pelo que temos de reconhecer que a arguição de nulidade se revela procedente, no caso em apreço, por excesso de pronúncia, pelo que se terá de declarar nula a sentença proferida na 1ª instância, na parte em que conheceu da questão do enriquecimento sem causa, e que levou à condenação do réu nos termos em que o foi, donde à míngua de outros factos, haverá pura simplesmente que declarar a improcedência da ação e a consequente absolvição do réu, do pedido.
Deste modo, haverá que declarar-se nula a sentença proferida na 1ª instância, com as consequências referidas, relevando as conclusões formuladas pelo recorrente.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, julgando improcedente a ação e absolvendo o réu do pedido.
Custas pela apelada.
Évora, 30 de Abril de 2015
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda Mira Branquinho Canas Mendes