Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
938/20.9T8ENT-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CONTRATO DE ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Não se está perante um contrato de locação financeira quando se convenciona que o locatário não tem o direito a adquirir a propriedade do bem apesar deste ter sido adquirido pela locadora no interesse do locatário após ter sido previamente seleccionado por este.
II. Assim sendo, ao contrato em apreço são aplicáveis as respectivas cláusulas e o regime do contrato de locação constante dos artigos 1022º e seguintes do Código Civil.
III. Se após as reparações, as impressões efectuadas com o equipamento nunca chegaram a corresponder à expectativa do executado/embargante, designadamente ao nível da nitidez e do contraste compatíveis com qualidade fotográfica, não pode deixar de ser ele a suportar tal risco, uma vez que foi ele que procedeu à escolha do bem.
IV. Não havia, portanto, fundamento para o embargante pôr termo ao contrato que o ligava à embargada e para ficar eximido de efectuar a sua contraprestação.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO


1. Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa que, sob a forma de processo comum ordinário, lhe foi movida pela sociedade “Grenke Renting, S.A.”, veio AA deduzir oposição mediante embargos de executado, invocando, fundamentalmente, que não autorizou o preenchimento da livrança dada à execução, na medida em que o equipamento objecto do contrato subjacente àquela livrança lhe foi entregue com defeitos, que se mantiveram mesmo após as intervenções dos técnicos de manutenção.

Por esse motivo, não vendeu ao consumidor final, no seu estabelecimento, um único produto feito no equipamento em causa, tendo resolvido o contrato de locação celebrado com a exequente e devolvido o equipamento.
Destarte, entende nada dever à exequente.
A exequente/embargada contestou, impugnando a generalidade dos factos alegados pelo executado/embargante, descrevendo depois a – do seu ponto de vista incumprida por aquele - relação contratual que deu azo à emissão da sobredita livrança dada à execução.
Realizada audiência final, veio, subsequentemente, a ser proferida sentença que julgou os embargos improcedentes e determinou o prosseguimento da execução.

2. É desta sentença que, desaprazido, recorre o embargante/executado, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

1º. A questão fundamental objecto de recurso tange à admissibilidade ou não da resolução do contrato pelo recorrente, enquanto, locador e com as consequências jurídicas dela derivadas.

2º. Por isso, pugna, o recorrente que a decisão recorrida -ao concluir que a embargada não incumpriu o contrato em análise e que foi o primeiro ao não pagar os alugueres vencidos desde junho/2019 que legitimou o preenchimento da livrança dada à execução - fez uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 1022.º, 1031.º, 1032.º e 1033.º do Código Civil, merecendo, o competente reparo.

3º. Efectivamente, reza o artigo 1032.º do CC que quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada ou carecer das qualidades destinadas a esse fim ou asseguradas pelo locador, o contrato considera-se não cumprido: a) se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa;

b) se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.

4º. O regime previsto para os vícios da coisa locada constitui a consequência lógica da obrigação imposta ao locador pelo art. 1031.º de assegurar o gozo da coisa

- se a coisa apresentar vícios (quer de facto quer de direito) que lhe não permitam realizar o fim a que se destina, o locador é responsável pelo prejuízo causado ao locatário, nos termos do artigo 798.º do CC.

5º. A doutrina ensina que o regime previsto nos arts.1032.º a 1034.º enquadra-se na figura geral do cumprimento defeituoso das obrigações, valendo em tais casos a presunção de culpa do art. 799.º do CC, presumindo-se a culpa do locador sempre que a coisa apresente vícios de direito ou defeitos cfr., “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos – Compra e Venda, Locação e Empreitada”, Almedina, 2ª ed., pag. 188.

6º. Bastará, assim, ao locatário demostrar a existência do vício, incumbindo ao locador a prova de que o vício não provém de culpa sua.

7º. No caso dos autos, entende o recorrente, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, que é patente e ostensivo o vício da coisa locada, que não servia para o fim a que estava destinada, tão pouco tendo a recorrida embargada sequer assegurado ao embargante recorrente o gozo da mesma. Corolário disto são as circunstâncias - provadas – das impressões nunca terem correspondido às expectativas do embargante e do mesmo nunca ter vendido ao consumidor final nenhum produto resultante do equipamento locado, mesmo após, pelo menos, 2 intervenções técnicas - provadas – para substituição de diversos componentes do equipamento e limpeza de áreas internas.

8º. Se juntarmos a isto, o facto - demonstrado - de que o contrato de locação teve por objecto um equipamento adquirido pela locadora, com o objectivo de o alugar no estado de NOVO (ponto provado em 4) ao locatário recorrente, mas que quando foi entregue ao mesmo em 28.03.2019 (ponto provado em 15) já contava com mais de MEIO MILHÃO de páginas impressas, mais precisamente 628.623 (seiscentos vinte oito mil seiscentos vinte três) páginas forçoso é de concluir pelo incumprimento contratual da locadora embargada.

9º. Até porque resulta NÃO PROVADO que aquando da recepção do equipamento o locatário declarou que o mesmo estava em perfeito estado de funcionamento e que correspondia exactamente às descrições constantes do pedido.

10º.É, pois, da mais elementar Justiça que não se dê guarida a um negócio jurídico que é um exemplo flagrante do “gato por lebre”, locando-se como novo, equipamento que já tinha produzido, no momento da entrega ao locatário, nada mais, nada menos, que 628.623 páginas impressas, que obrigou a várias reparações e de onde não foi vendido um único produto ao consumidor final.

11º.Não pode dar-se acolhimento, nem manter-se no comércio jurídico um negócio de semelhante natureza, claramente ofensivo da boa fé negocial, das expectativas da contraparte e dos direitos do recorrente enquanto locatário, a quem devia ter sido assegurado o gozo de uma coisa de que nunca usou ou fruiu.

12º.Até porque convém não esquecer, que, entretanto, o recorrente locatário - crédulo e cumpridor - foi fazendo o pagamento dos alugueres devidos por alguns meses, mas que confrontado com a contínua inoperacionalidade do equipamento se viu obrigado a resolver o contrato, de forma fundamentada, como melhor resulta da factualidade assente em 20 dos factos provados, ali tendo desde logo solicitado para que procedessem ao levantamento da máquina em causa, o que a embargada não fez, obrigando o recorrente a proceder à devolução do equipamento, consoante melhor resulta do ponto 22 dos factos provados.

13º.Ponto assente é que a recorrida nunca assegurou ao recorrente o gozo do equipamento, não sendo, por outro lado, minimamente credível, que ignorasse o dever de adquirir um equipamento novo para locar – e que era a escolha do locatário - quando o mesmo já tinha mais de meio milhão de impressões aquando da entrega, na certeza de que a culpa disto não é, manifestamente, do embargante, que, seguramente, não poderá ser responsabilizado pela inoperância da máquina, por através da mesma nunca ter vendido nenhum produto à sua clientela, por já ter devolvido esse equipamento, que nunca para nada serviu e ainda por cima, manter-se como devedor, em execução, da embargada.

14º. As deficiências apontadas são,claramente, reveladoras de que o equipamento fornecido pela recorrida embargada nunca cumpriu com o fim a que se destinava, que era operar no estabelecimento do embargante e é inegável a relevância que a operacionalidade de tal equipamento assume na vida do contrato de locação em crise nos autos, atenta a sua finalidade, pelo que tem de considerar-se, face às deficiências de nitidez e contraste existentes, e, especialmente, por ter locado como novo, um equipamento usado (e bem usado, por mais de meio milhão de vezes), que esta faltou culposamente ao cumprimento do contrato;

15º.Incumprimento que, numa apreciação objectiva do caso concreto, se tem por definitivo atento o teor das missivas endereçadas pelo embargante à embargada.

16º.Assim, e não ocorrendo qualquer dos casos de irresponsabilidade do locador previstos no artigo 1033.º do Código Civil, era lícito ao recorrente, contraente não faltoso, resolver o contrato.

17º.O mesmo é dizer, que a sentença do tribunal «a quo» que se respeita, mas não se concorda, fez uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 1022.º, 1031.º, 1032.º e 1033.º do Código Civil, merecendo o reparo devido;

18º.Impondo-se daí concluir pela inexigibilidade da quantia exequenda, face ao incumprimento do contrato de locação (na base da emissão da livrança dada à execução) pela embargada.

Nestes termos, nos melhores de direito aplicável e sempre com o mui douto Suprimento de V.Exas., deve dar-se integral provimento ao recurso do embargante e consequentemente, procedentes os embargos do recorrente, face à inexigibilidade da quantia exequenda, tudo com as legais consequências e;

Como é, de inteira, JUSTIÇA!

3. Contra-alegou a exequente defendendo a manutenção do decidido.

4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se ocorreu preenchimento abusivo da livrança exequenda.

II.FUNDAMENTAÇÃO

5. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que constam da sentença recorrida, a saber:

5.1 FACTOS PROVADOS

1. Por requerimento datado de 17-03-2020 a sociedade “Grenke Renting, S.A.” moveu contra AA acção executiva para pagamento da quantia global de € 11.986,69 (onze mil novecentos e oitenta e seis euros e sessenta e nove cêntimos), dando à execução a Livrança n.º ...40, com aquele valor aposto e vencimento em 05-02-2020.
2. A aludida livrança, subscrita pelo executado, teve por base um contrato denominado «Locação Clássica - Contrato de Locação para Clientes Empresariais» a que foi atribuído o n.º ...62, outorgado entre a exequente/embargada (na qualidade de locadora) e o executado/embargante (na qualidade de locatário), contrato cujo teor se considera integralmente reproduzido.
3. De acordo com o respectivo pacto de preenchimento, a livrança encontrava-se em branco quanto ao prazo, quantia e local de pagamento, devendo o preenchimento dos elementos em branco ser realizado pela Grenke, que ficou expressamente autorizada pelo subscritor a proceder a tal preenchimento logo que ocorresse o incumprimento, mesmo que parcial, por parte deste, das obrigações para si decorrentes e constantes do contrato de locação, ficando ao critério da Grenke o local e a data do pagamento da livrança, sendo certo que esta não poderia ser anterior à data do incumprimento.
4. O susodito contrato de locação teve por objeto uma fotocopiadora/impressora multifunções, de marca Xerox, modelo C60/C70 Printer A3, com o n.º de série ...00, adquirida pela locadora à “Digitoeste – Equipamentos e Serviços, Lda.” pelo preço de € 10.169,89 (dez mil cento e sessenta e nove euros e oitenta e nove cêntimos), com o objetivo de a alugar, no estado de novo, ao locatário, que escolheu o equipamento e se obrigou a pagar no mínimo 60 alugueres mensais de € 161,97 (cento e sessenta e um euros e noventa cêntimos) cada, acrescidos de IVA.
5. O dito equipamento destinava-se a equipar o estabelecimento de fotografia e impressões fotográficas do executado/embargante sito em Santarém, não tendo a exequente/embargada participado na escolha do mesmo.
6. À luz da Cláusula 1 dos Termos e Condições Gerais do contrato, o objecto locado (OL) foi previamente seleccionado pelo locatário e adquirido pela locadora, no interesse daquele.
7. De acordo com a Cláusula 2, o contrato de locação teria início no primeiro dia do mês/trimestre civil após a recepção do OL, sendo automaticamente prorrogado por seis meses se não fosse denunciado, por escrito, com aviso prévio não inferior a três meses sobre o prazo inicial ou renovado.
8. Nos termos da Cláusula 3, no acto de entrega o locatário deveria inspecionar o OL e indicar a existência de algum defeito, só devendo confirmar a aceitação do OL se pudesse assegurar que a entrega estava completa e o OL se encontrava nas condições contratadas.
9. Da Cláusula 4 dos mesmos Termos e Condições Gerais do contrato resulta, por seu turno, o seguinte:
«O Locatário deve manter o OL em boas condições de funcionamento e seguir as instruções de funcionamento e outras instruções do fabricante e da GR, bem como deve imediatamente reportar quaisquer problemas com a OL à GR. O Locatário é obrigado a obter e manter, a expensas suas, as licenças oficiais e outras necessárias para utilização do OL, incluindo as actualizações de sistema recomendadas, bem como deve cumprir toda a legislação e outras normas aplicáveis».
10. De acordo com a Cláusula 9, «[a] partir do momento da confirmação do recebimento do OL, o Locatário assume o risco de perda acidental, roubo, destruição ou deterioração do OL ou risco equivalente. Tais eventos não libertam o Locatário do cumprimento das obrigações decorrentes do presente contrato de locação. Estes riscos são cobertos por uma apólice de seguro de propriedade».
11. Cláusula 10: «O Locatário é obrigado a contratar um seguro de propriedade para o período de vigência do contrato de locação a suas próprias expensas que garanta a reparação ou substituição do OL, dando suficiente cobertura aos riscos típicos do sector, em especial incêndio, roubo e danos causados por água e em que a GR surja como beneficiária. A franquia não pode ser superior a 150,00 € (…) por evento. Até o Locatário exibir perante a GR a prova de que contratou tal apólice de seguro e indicou a GR como beneficiária do mesmo, a GR tem o direito de, não sendo porém obrigada, incluir a cobertura do OL na sua própria apólice de seguro de propriedade a expensas do Locatário. Se o OL estiver coberto pela apólice de seguro de propriedade da GR, os custos da referida cobertura serão cobrados antecipadamente ao Locatário, no primeiro dia de cada ano civil. No primeiro ano de vigência do contrato de locação, os custos do seguro são cobrados proporcionalmente no momento da celebração do contrato. O Locatário mantém o direito de contratar a sua própria apólice de seguro a qualquer momento».
12. Cláusula 11: «Em caso de incumprimento das obrigações do Locatário, serão devidos juros de mora equivalentes à taxa legal para as operações comerciais (…)».
13. Cláusula 13: «A GR tem o direito de resolver o contrato se o Locatário não pagar duas rendas consecutivas.
Tendo em conta
i) que a GR adquiriu o OL no interesse do Locatário,
ii) o custo financeiro com a aquisição do OL e a sua perda de valor e
iii) os custos administrativos com a celebração deste contrato, entre outros,
se a GR exercer o seu direito de resolução sem aviso prévio, terá direito a exigir, a título de cláusula penal, o valor equivalente à soma de todas as rendas que fossem devidas até ao termo inicial base do contrato. O mesmo se aplica em caso de denúncia antecipada do contrato por iniciativa do Locatário. Esta valor será devido no momento da recepção da notificação da resolução ou da comunicação da denúncia».
14. Cláusula 16: «O Locatário não tem o direito de adquirir a propriedade do OL».
15. O equipamento locado foi entregue ao locatário (aqui executado/embargante) em 28-03-2019, data em que contava já com 628623 páginas impressas.
16. As impressões efectuadas com tal equipamento nunca corresponderam à expectativa do executado/embargante, designadamente ao nível da nitidez e do contraste compatíveis com qualidade fotográfica.
17. Tal situação foi comunicada pelo executado/embargante à “Digitoeste – Equipamentos e Serviços, Lda.”, dando azo a, pelo menos, duas intervenções por parte de um técnico da “Xerox”, uma delas levada a cabo em 15-05-2019 com substituição de diversos componentes do equipamento e limpeza de áreas internas.
18. Em decorrência de tais intervenções o equipamento ficou apto a produzir impressões de qualidade máxima dentro dos respectivos parâmetros, coincidentes, não com a qualidade fotográfica pretendida pelo executado/embargante, mas com a mera impressão digital laser, mantendo-se, consequentemente, a situação descrita em 16 supra, não tendo aquele vendido ao consumidor final qualquer produto oriundo do equipamento em causa.
19. O executado/embargante não pagou os alugueres vencidos desde Junho de 2019.
20. Em 11-07-2019 remeteu à exequente/embargada, que a recebeu em 12-07-2019, carta registada com o seguinte teor:
«(…) assunto: denúncia contrato locação n.º ...62 (…)
Por referência ao assunto identificado em epígrafe e na qualidade de locatário no contrato de locação clássica celebrado com V.Exas., no passado dia 27 de Março de 2019, venho por este meio e ao abrigo do disposto nas cláusula 2.ª e 12.ª das Condições Gerais, proceder à denúncia do contrato, com efeitos imediatos.
Mais se esclarece, que à veiculada denúncia preside a inoperância e falta de qualidade do objecto locado (…). Com efeito, o equipamento em causa não oferece as condições garantidas no momento da aquisição, sendo a qualidade da impressão francamente reduzida e consequentemente sem a aptidão expectável que lhe estava destinada para este estabelecimento (de fotografia e cópia/impressão fotográfica). Acresce, que nem mesmo após as várias intervenções efectuadas pelos técnicos de manutenção no objecto locado, se mostrou possível melhorar os trabalhos de cópia e impressão.
Nessa conformidade e a partir do dia 15 de Julho de 2019, deverão V.Exas. ter por extinto e de nenhum efeito o contrato locação n.º ...62 celebrado com o aqui declarante, mais lhes solicitando, que no prazo máximo de 10 dias, procedam ao levantamento do objecto locado neste estabelecimento.
(…)».
21. Em 21-08-2019, o executado/embargante remeteu à exequente/embargada, que a recebeu em 22-08-2019-2019, carta registada com o seguinte teor:
«(…)
assunto: denúncia contrato locação n.º ...62 entrega do equipamento (impressora Xerox C60) (…)
Por referência ao assunto identificado em epígrafe, na sequência da denúncia por mim efectuada por carta do passado dia 10 de Julho do corrente e do email de V.Exas. do dia 17 do mesmo mês, venho por este meio solicitar agendamento de data para efeitos de devolução do equipamento objecto do contrato.
Mais informo, que se pretende resolver a situação de forma célere e definitiva, com a entrega da impressora em causa, impreterivelmente até ao final do presente mês de Agosto. (…)».
22. O equipamento foi devolvido à exequente/embargada em 09-10-2019.
23. A exequente/embargada remeteu ao executado/embargante, sob registo, carta datada de 05-02-2020, com o seguinte teor: «(…)
N/Ref.: 124-012162
Assunto: Interpelação para pagamento de Livrança n.º ...40 (…)
GRENKE RENTINGE, S.A. (…), na qualidade de Tomadora e Beneficiária da Livrança supra identificada, preenchida de acordo com Pacto de Preenchimento de Livrança, vem solicitar a V. Exa., na qualidade de subscritor, o pagamento à Beneficiária GRENKE RENTING, S.A. da quantia de 11.986,69 € (onze mil novecentos e oitenta e seis euros e sessenta e nove cêntimos), por incumprimento do contrato locação n.º ...62 no qual V.Exa. era Locatário.
O valor em dívida preenchido na livrança, com vencimento em 05/02/2020, corresponde à some de:
a) Capital: 11.408,79 €;
b) Juros de Mora vencidos até 05/02/2020: 517,97 €;
c) Despesas de cobrança/Reembolso do Imposto de Selo: 59,93€.
O pagamento deverá ser realizado no prazo de 2 (dois) dias úteis, a contar da data do vencimento da Livrança (07/02/2020), para a conta da GRENKE RENTING, S.A., no Deutsche Bank, S.A., em Lisboa, com o IBAN ...19.
(…)».
5.2. FACTOS NÃO PROVADOS:
a) Aquando da recepção do equipamento o executado/embargante declarou que o mesmo estava em perfeito estado de funcionamento e que correspondia exactamente às descrições constantes do pedido;
b) O executado/embargante colocou o aludido equipamento à venda na plataforma “OLX”.

6. Do mérito do recurso


6.1. A livrança dada à execução era inicialmente uma livrança em branco, que a embargada veio a preencher tal como resulta do escrito junto à contestação, com data de emissão de 5.2.2020 e idêntica data de vencimento, pelo valor de € 11.986,69.
A livrança (tal como a letra) em branco é claramente admitida pelo artº 10º da LULL.
In casu tinha subjacente a existência de um contrato de locação outorgado pelo embargante na qualidade de locatário e a embargada como locadora.

Tendo a livrança sido emitida para assegurar o pontual cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato outorgado entre a exequente e o executado será que a prova produzida é de molde a concluir estarmos perante um preenchimento abusivo i.e. em desconformidade com o acordo que esteve subjacente ao seu preenchimento ?

Na óptica do embargante, o mesmo estaria desvinculado de pagar as rendas emergentes do contrato de locação na sequência da “denúncia” do contrato por si levada a efeito com fundamento na “inoperância e falta de qualidade do objecto locado”.

Vejamos então.

6.2. Não estamos, como bem é salientado na sentença, perante um contrato de locação financeira mas sim perante um contrato de locação.

Com efeito, como decorre do art.º 1º do Decreto-lei n.º 149/95 de 24 de Junho, que estatui o regime jurídico da locação financeira, “Locação Financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

“O contrato de locação financeira é um “mais” perante o contrato de locação. Ou seja: a lei (artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 149/95) acrescenta algumas características distintivas à “base” constituída pelo contrato de locação, definido no art.º 1022º do Código Civil.
Tal como na locação:
a) Existe a obrigação de ceder o gozo de uma coisa;
b) O locador é e continua a ser proprietário da coisa;
c) A outra parte tem o direito de exigir aquela cedência;
d) O gozo é temporário;
e) O gozo é retribuído.
A mais, quanto à locação:
f) O objecto do contrato é adquirido ou construído por indicação do locatário;
g) O locatário pode adquirir a coisa decorrido o prazo acordado;
h) Esse preço deve ser determinado no contrato ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.
É esta a distinção que a lei fixa. Por ela, portanto, nos devemos guiar.[1]”.

Ora, apesar de o bem ter sido adquirido pela locadora no interesse do locatário após ter sido previamente seleccionado por este, o certo é que ficou convencionado na cláusula 16 do contrato que : «O Locatário não tem o direito de adquirir a propriedade do OL»., o que significa que falta um dos requisitos adicionais da locação financeira.

Posto isto, a primeira conclusão a retirar é a de que ao contrato em apreço são aplicáveis as respectivas cláusulas e o regime do contrato de locação constante dos artigos 1022º e seguintes do Código Civil.

E primeira questão que se coloca é se estamos efectivamente perante uma situação em que ocorre o “vício da coisa locada”.

Dispõe a propósito o artigo 1032º do Código Civil que: “ Quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido:
a) Se o defeito datar, pelos menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa;
b) Se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.

A este propósito ficou provado o seguinte:
“16. As impressões efectuadas com tal equipamento nunca corresponderam à expectativa do executado/embargante, designadamente ao nível da nitidez e do contraste compatíveis com qualidade fotográfica.
17. Tal situação foi comunicada pelo executado/embargante à “Digitoeste – Equipamentos e Serviços, Lda.”, dando azo a, pelo menos, duas intervenções por parte de um técnico da “Xerox”, uma delas levada a cabo em 15-05-2019 com substituição de diversos componentes do equipamento e limpeza de áreas internas.
18. Em decorrência de tais intervenções o equipamento ficou apto a produzir impressões de qualidade máxima dentro dos respectivos parâmetros, coincidentes, não com a qualidade fotográfica pretendida pelo executado/embargante, mas com a mera impressão digital laser, mantendo-se, consequentemente, a situação descrita em 16 supra, não tendo aquele vendido ao consumidor final qualquer produto oriundo do equipamento em causa.”.

Admitindo que de início o equipamento locado não permitia realizar cabalmente o fim a que se destinava, o certo é que após as reparações efectuadas “ ficou apto a produzir impressões de qualidade máxima dentro dos respectivos parâmetros, coincidentes, não com a qualidade fotográfica pretendida pelo executado/embargante, mas com a mera impressão digital laser”.

Portanto, após as reparações, não se pode afirmar que o equipamento continuasse a enfermar de vícios impeditivos da realização do fim a que estava destinado: As impressões efectuadas com ele apenas nunca chegaram a corresponder à expectativa do executado/embargante, designadamente ao nível da nitidez e do contraste compatíveis com qualidade fotográfica.

Ainda que assim não se entenda, o certo é que nenhuma das situações contempladas naquela norma se verificam relativamente ao locador, ora embargada, mormente a vertida na alínea a) : uma vez que a mesma não teve qualquer intervenção na escolha do equipamento, resulta demonstrada a ausência de culpa na existência do possível “ defeito”.

Efectivamente, a circunstância de a escolha do bem ter sido levada a cabo pelo embargante é determinante para a solução jurídica da questão: Foi ele que escolheu o que lhe interessava e, por conseguinte, não pode deixar de ser ele a suportar o risco dele não corresponder afinal às suas expectativas e às finalidades a que o destinou.

Não havia, portanto, fundamento para o embargante pôr termo ao contrato que o ligava à embargada e para ficar eximido de efectuar a sua contraprestação.

Por seu turno, nos termos do contrato de preenchimento bancário, a embargada ficava autorizada a preencher a livrança entregue para titulação de todas as responsabilidades emergentes do contrato.

Ao não pagar os alugueres vencidos desde Junho de 2019 o executado/embargante legitimou o preenchimento da livrança dada à execução pelo valor em dívida e respectivos juros de mora, tendo disso sido advertido ( cfr. ponto 23).

Não resulta, assim, ter havido preenchimento abusivo do título dado à execução, sendo certo que era sobre o embargante, subscritor da livrança exequenda que recaía tal ónus de prova , prova essa que, como se viu, não fez.

A sentença recorrida, como assim também o entendeu, não merece, pois, a menor censura.

III. DECISÃO
Face a todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Évora, 20 de Abril de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

_________________________________
[1] Assim, Diogo Leite de Campos in Locação Financeira ( Leasing) e Locação, consultável em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2002/ano-62-vol-iii-dez-2002/artigos-doutrinais.