Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1911/12.6TBLGS-F.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
VENDA
PROPOSTAS EM CARTA FECHADA
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Quando o administrador de insolvência, ao abrigo do disposto no art.164º nº1 do CIRE, anuncia que a venda de imóveis pertencentes à insolvente será realizada mediante propostas em carta fechada terá, necessariamente, de observar as normas legais (arts. 816º e segs.) que regulamentam tal venda no C.P.C., por força do estipulado no art.17º do CIRE.
2. Por isso, face ao disposto no art.821º nº3 do C.P.C., o administrador de insolvência não poderá adjudicar a um credor tais imóveis, por um preço inferior ao valor base dos mesmos, sem que, para esse efeito, tenha a anuência e a aceitação por parte da comissão de credores e da insolvente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA, S.A., na sua qualidade de credor da BB, S.A., entretanto declarada insolvente, veio interpor recurso da decisão que declarou nula a venda de diversos imóveis que tinha adquirido - através da modalidade de venda por propostas em carta fechada - oportunamente realizada pelo administrador de insolvência.
Para o efeito apresentou o apelante as suas alegações de recurso, terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
I. O ora Recorrente não se conforma com a prolação do douto despacho recorrido na parte em que declarou nula a adjudicação e consequente venda do património imobiliário da insolvente a seu favor.
II. Contrariamente ao entendimento perfilhado na decisão de que se recorre, a venda em causa não enferma de qualquer irregularidade nem tão pouco foram omitidas pelo Senhor Administrador da Insolvência quaisquer formalidades que ponham em causa sua validade e, muito menos, que acarretem a sua nulidade.
III. Com efeito, transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a Assembleia de Credores que deliberou no sentido do prosseguimento dos autos para liquidação do activo da insolvente, compete ao Sr. Administrador de Insolvência proceder à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente - cfr. n.º do artigo 158 do CIRE.
IV. Cabendo-lhe, designadamente, a escolha da modalidade de alienação dos bens “podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente” - cfr. artigo 164.º n.º1 do CIRE.
V. À luz do aludido dispositivo legal, determinou, assim, o Senhor Administrador da Insolvência que a venda dos autos se realizaria mediante a abertura de propostas em carta fechada, através da publicação prévia de anúncio, em jornal diário, pelos valores mínimos de venda indicados pelo credor hipotecário – em respeito pelo disposto no artigo 164º, nº 2 do CIRE - no dia, hora e local aí designados e de acordo com as condições fixadas no regulamento de venda aí publicado.
VI. A venda dos presentes autos não estava pois condicionada à observância da integralidade das disposições previstas no CPC para a venda Executiva mas apenas e tão-só às condições previstas no regulamento da venda constante do respectivo anúncio; daí se extraindo que, contrariamente ao entendimento do douto tribunal de 1ª instância, a intenção do Senhor Administrador de Insolvência foi precisamente afastar a aplicação dessas disposições, doutro modo teria sujeitado a venda, de forma expressa a esse regime.
VII. Donde não se compreende que a douta decisão recorrida possa, sem mais, ter concluído nesse sentido; são, aliás, notórias as diferenças entre as condições fixadas para venda dos autos e as regras a que se encontra sujeita a venda que, sob a mesma denominação, vem prevista no Código do Processo Civil - cfr. artigos 817.º, 820.º, 824.º, 827 do CPC.
VIII. Em sede de processo de insolvência não está, pois, vedada ao Administrador de Insolvência a possibilidade de fixar, nos termos em que o fez, regras e condições específicas para a venda, diferentes das previstas no CPC; o que, desde logo, se justifica, pela celeridade desejada e carácter urgente deste tipo de processos e que inexiste nos comuns processos executivos.
IX. A venda dos autos foi pois validamente realizada de acordo e segundo a modalidade que o Administrador da Insolvência entendeu ser a mais conveniente e no estrito cumprimento do disposto no artigo 164.º do CIRE, com a necessária audição do credor com garantia real; encontrando-se, por conseguinte, plenamente afastada a necessidade de ouvir e muito menos obter da devedora insolvente o consentimento.
X. Não padece assim a venda dos autos de qualquer irregularidade, muito menos nulidade decorrente da omissão de audição da insolvente porquanto não era, desde logo, de se lhe aplicar o disposto no art.º 821.º n.3 do CPC que impõe tal audição – norma aplicável ao processo executivo.
XI. Acresce que, a ter ocorrido qualquer violação das formalidades da venda - o que apenas por hipótese e dever de patrocínio se admite - para afectada a eficácia da venda, a mesma teria que ter acarretado qualquer prejuízo para massa insolvente e/ou para os seus credores; o que, manifestamente, não ocorreu - cfr. artigo 163.ºdo CIRE.
XII. A verdade é que tentada uma segunda venda em 31/03/2014, por valores superiores – precisamente os defendidos pela Insolvente - nenhuma outra proposta de aquisição foi recebida para além da apresentada pelo ora Recorrente, aquando da primeira venda de 17/02/2014.
XIII. Pelo que tendo uma deliberação da Comissão de Credores favorável à adjudicação dos imóveis ao Recorrente pelos valores de venda, por si, indicados, e tendo salvaguardado no segundo anúncio de venda que ficariam registadas propostas de valor inferior - que nesse caso, como é evidente, poderiam vir ainda a ser aceites - acabou por adjudicar os imóveis em causa ao ora Recorrente pelos valores de venda, por este, indicados; tudo em prol e benefício da massa e dos credores.
XIV. Por último, sempre se dirá que o ora Recorrente, atendo o teor do n.º6 do artigo 161.º do CIRE não assiste à devedora legitimidade para vir arguir a nulidade da venda nos termos em que o fez.
XV. Com efeito, para sobrestar à alienação em causa, sempre a devedora poderia/ deveria, ter requerido ao tribunal a convocação de uma Assembleia de Credores par vir prestar o seu consentimento à venda devendo, para tanto - ónus que sobre si impendia - “demonstrar a plausibilidade de que a alienação a outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente”; o que igualmente, em momento algum logrou fazer - cfr. n.º 6 do artigo 161.º do CIRE.
XVI. Em síntese, o douto despacho recorrido enferma de manifesto erro de julgamento e deverá ser revogado por outro que o substitua e, em conformidade, decida pela validade e eficácia da venda sub judice.
XVII. Deverá ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido na parte em que declarou nula a venda, com todas as consequências legais.
XVIII. Só assim se decidindo, será cumprido o Direito e feita a costumada Justiça.
Pela insolvente foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º nº 1 do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão seja desfavorável ao recorrente (art. 635º nº3 do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo credor AA, S. A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se a venda de diversos imóveis da insolvente, por propostas em carta fechada - realizada pelo administrador de insolvência e que, para esse efeito, tinha designado o dia 31/3/2014 - seguiu os devidos trâmites legais e, consequentemente, sempre haverá que considerar tal venda como plenamente válida e eficaz.
Apreciando, de imediato, a questão supra referida importa dizer a tal respeito que o administrador de insolvência no anúncio da venda dos imóveis em questão, publicitou a mesma, através de anúncio com a antecedência de pelo menos 10 dias, referindo que aquela seria feita mediante propostas em carta fechada, indicando os valores mínimos da venda, bem como o dia, hora e local de abertura das propostas, fixando também uma caução a ser junta com as propostas e referindo haver licitação em caso de propostas iguais – cfr. arts.816º, 817º, 820º e 824º do C.P.C.
Além disso, ainda foi feito constar no dito anúncio que as propostas de valor inferior (ao valor base da venda) serão registadas, não constando – de todo – que o administrador de insolvência, sem mais, as pudesse vir a aceitar…
Deste modo, quando o administrador de insolvência, ao abrigo do disposto no art.164º nº1 do CIRE, anuncia que a venda em causa será realizada mediante propostas em carta fechada terá, necessariamente, de observar as normas legais (arts. 816º e segs.) que regulamentam tal venda no C.P.C., por força do estipulado no art.17º do CIRE.
Ora, conforme consta do anúncio supra referido, o valor base para a venda dos imóveis (entretanto adjudicados ao recorrente) foi fixado em 6.758.193,00 €, sendo que o valor da adjudicação não podia ser inferior a 85% daquele valor base (cfr. art.816º nº2 do C.P.C.), ou seja, 5.744.464,05 €, salvo se houvesse acordo de todos os interessados, nomeadamente da insolvente (cfr. art.821º nº3 do C.P.C.).
Porém, resulta dos autos que a insolvente não foi notificada da data da abertura das propostas e, muito menos, veio a consentir que a venda fosse efectuada por um valor inferior a 85% do valor base dos imóveis, sendo certo que o valor pelo qual os bens foram adjudicados ao recorrente, ou seja 3.552.200,00 €, é um valor muito inferior ao valor base acima referido.
Por isso, não obstante a proposta apresentada pelo recorrente, para que lhe fossem adjudicados os imóveis, tivesse sido registada pelo administrador de insolvência, quando da abertura de propostas, a verdade é que não estava verificada - de todo - a condição prevista no art.821º nº3 do C.P.C., pelo que a venda em causa sempre deveria ser feita por negociação particular, conforme estatui o nº2 do art.822º do C.P.C.
Acresce que, também não colhe o argumento de que a comissão de credores emitiu deliberação favorável em relação à adjudicação dos bens ao credor, aqui apelante, pois tal deliberação foi tomada em reunião efectuada em 4/7/2014, quando é certo que a decisão recorrida, que declarou a nulidade da referida adjudicação, foi proferida em data anterior aquela deliberação, isto é, em 20/6/2014, tendo sido notificada às partes em 23/6/2014.
Assim sendo, não pode a comissão de credores pretender alterar, com tal deliberação, os efeitos da decisão recorrida, a qual foi proferida anteriormente, não sendo despiciendo reafirmar que, mesmo que a deliberação em causa pudesse ser considerada válida, sempre aqui faltava a anuência da insolvente (cfr. citado nº3 do art.621º) - que, como vimos, inexistiu - para que a adjudicação dos imóveis ao recorrente, por preço inferior ao valor base, fosse tida como legal, regular e plenamente eficaz.
Finalmente, sustenta o recorrente que a insolvente não podia vir arguir a nulidade da referida adjudicação por a isso se opor o nº5 do art.161º do CIRE.
No entanto, tal argumentação não procede, de todo, atendendo a que a insolvente veio suscitar a nulidade da mencionada adjudicação por entender que foram cometidas irregularidades no processo da venda dos imóveis, que influíram no preço de tal adjudicação (muito inferior ao valor base dos bens) traduzindo-se num prejuízo para a massa insolvente e, por isso, serem tais irregularidades susceptíveis de determinar a nulidade oportunamente arguida (cfr. arts.195º nº1, 197º nº1 e 199º nº1, todos do C.P.C.).
Ora, a situação acima referida - arguição atempada, por parte da insolvente, de nulidades cometidas no processo - nada tem a ver com aquela que se encontra prevista no citado nº5 do art.161º do C.P.C., e, por isso, é totalmente estranha aos presentes autos.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões do recurso formuladas pelo credor, ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ele indicados.

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Por fim, atento o estipulado no nº7 do art.663º do C.P.C. passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Quando o administrador de insolvência, ao abrigo do disposto no art.164º nº1 do CIRE, anuncia que a venda de imóveis pertencentes à insolvente será realizada mediante propostas em carta fechada terá, necessariamente, de observar as normas legais (arts. 816º e segs.) que regulamentam tal venda no C.P.C., por força do estipulado no art.17º do CIRE.
- Por isso, face ao disposto no art.821º nº3 do C.P.C., o administrador de insolvência não poderá adjudicar a um credor tais imóveis, por um preço inferior ao valor base dos mesmos, sem que, para esse efeito, tenha a anuência e a aceitação por parte da comissão de credores e da insolvente.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se inteiramente a decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pelo credor, ora apelante.

Évora, 21 de Abril de 2016
Rui Machado e Moura
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).