Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
146/19.1GBLGS.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ESTADO DE NECESSIDADE
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na situação sub judice, ainda que se admita a atualidade do perigo de agressão a bens jurídicos de terceiros - quais sejam a saúde e integridade física do filho da arguida -, em qualquer caso, a conduta adequada à remoção daquele teria sido providenciar pela respetiva deslocação a um, v.g., hospital onde o mesmo pudesse receber tratamento, recorrendo, para tanto, aos vários meios idóneos ao seu dispor, entre outros, ligar para o número de telefone de emergência único europeu, vulgo, 112, acionando, assim, dependendo da gravidade da situação, os correspondentes ativos médicos. Ou, na eventualidade de tal ligação, por qualquer motivo, não ser bem sucedida, socorrer-se de outro tipo de transporte (v.g., táxi/uber, conforme já supra aludidos), conduzido por alguém que, contrariamente à arguida, estivesse legalmente habilitado para tanto.
Portanto, em face da idoneidade/adequação dos demais meios ao seu dispor, designadamente, nos moldes supra expostos, a conduta da arguida - que, sem possuir habilitação legal para conduzir, desconhecendo, para todos os efeitos, as regras estradais, opta por transportar o seu filho, acometido de um problema de saúde (segundo a própria, de uma crise asmática), ao Hospital, numa viatura por si conduzida, de noite, durante um percurso ainda bastante longo, sem que possua, de resto, quaisquer conhecimentos médicos - não se traduz, de todo, num meio idóneo/adequado a afastar o sobredito perigo de agressão da saúde/integridade física do seu filho. Aliás, muito pelo contrário, antes o potencia.

Concluindo, entende-se não estarem verificados os pressupostos do estado de necessidade, pelo que, não se verificando quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade, dúvidas não restam de que a arguida cometeu o crime de condução sem habilitação legal que lhe vem imputado.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 146/19.1GBLGS, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi a arguida AA condenada, por sentença de 08/09/2023, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, na pena de 6 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, sendo autorizada a saída da habitação para frequência de consultas de psicologia, a terem lugar todas as quintas-feiras, pelas 15:00 horas.

2. A arguida não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

a) O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da Sentença proferida nos presentes autos, através da qual condenou a Recorrente pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

b) As conclusões referidas na Sentença não têm qualquer tipo de correspondência com a prova testemunhal, carreada para o processo.

c) O depoimento da testemunha BB inquirida em julgamento permite concluir que a Recorrente praticou o crime de condução sem habilitação legal.

d) Todavia, existiram motivos perfeitamente compreensíveis que levaram a Recorrente a agir dessa forma.

e) O episódio grave de asma do seu filho CC fez com que a Recorrente conduzisse a viatura no dia dos factos, sem ser portadora de carta de condução.

f) Esses motivos não foram tidos em conta nem valorados de forma correcta por parte do Tribunal de 1ª Instância.

g) As transcrições dos depoimentos da Recorrente e da testemunha BB permitem facilmente concluir que o depoimento da testemunha BB é coincidente com as declarações prestadas pela Recorrente.

h) A Recorrente encontrava-se no dia dos factos com familiares num sítio ermo e o seu filho teve passou por episódio de asma e, por isso, ligou para as várias linhas de assistência médica, mas mesmas tardavam a dar uma resposta.

i) Perante a ausência de resposta, a Recorrente estaria numa situação de pânico, pânico esse que a levou a tomar a atitude mais ajustada e adequada ao caso concreto: pegar no carro que estava no local e dirigir-se imediatamente para o hospital mais próximo.

j) A Recorrente, no trajecto, apercebeu-se de um carro patrulha da G.N.R. e parou imediatamente a viatura, tendo solicitado ajuda aos militares da GNR que se encontravam naquela viatura policial.

k) Foi referido pelo militar da GNR que, após a chegada do INEM ao local e, inicialmente, foi uma equipa de enfermeiros ou bombeiros e, posteriormente, foi uma equipa médica que atestou a gravidade em que o seu filho se encontrava e o dirigiu para o hospital mais próximo.

l) Todos estes factos foram demonstrados pelo depoimento do militar da GNR em conjugação com as declarações prestadas pela Recorrente.

m) A situação em causa poderia perfeitamente ter tido consequências bastante negativas e até fatais, uma vez que o filho da Recorrente passou por episódio grave de dificuldades respiratórias.

n) A Recorrente procedeu à condução do seu veículo na via pública, não obstante não ter carta de condução, por ter sido confrontada com uma situação que representava perigo iminente (atual) para a integridade física do seu filho CC.

o) A predita situação de perigo para integridade física do filho da Recorrente não foi por esta voluntariamente criada, uma vez que se deveu a um episódio grave de asma não diagnosticado na altura da prática dos factos.

p) O interesse na salvaguarda do direito à vida do filho da Recorrente se apresenta no caso concreto como notoriamente superior ao interesse subjacente à proibição legal da conduzir veículos sem estar habilitada para tal.

q) Entendemos que o meio utilizado pela Arguida/Recorrente para afastar o perigo real e a vida do filho CC que estava sob a sua responsabilidade, o que equivale por dizer que a condução do veículo automóvel sem ter carta de condução, revela-se, no circunstancialismo do caso, adequado.

r) Não era exigível à Recorrente aguardar pelos contactos telefónicos da linha de assistência médica, pois que essa circunstância não garantiria de forma satisfatória e eficaz o estado de saúde do seu filho CC.

s) Conclui-se que a Recorrente actuou ao abrigo do direito de necessidade, e, em conformidade, de uma causa legal de exclusão da ilicitude do facto, pelo que se considera justificada a conduta atinente à condução sem habilitação legal, impondo-se a sua absolvição.

t) Por outro lado, a Recorrente actuou perante uma situação de perigo actual para a vida do seu filho CC.

u) A Recorrente pratica o crime de condução sem habilitação legal como meio para alcançar um fim que consiste em salvar a vida do seu filho, salvaguardando a saúde do mesmo. Esse fim é o motivo determinante da sua conduta.

v) A importância e valor do motivo determinante, o facto de se tratar do seu filho, o fim subjectivo da Recorrente em confronto com o desvalor objectivo do crime praticado e as demais circunstâncias do caso são de molde a não exigir da Recorrente um comportamento ajustado à norma.

w) Em conclusão, a Recorrente não agiu em circunstâncias normais mas, antes, exposto a uma pressão motivadora extraordinária.

x) Perante as circunstâncias do caso não seria razoável exigir da Recorrente um comportamento diferente. Por isso, o comportamento ilícito não mereça um juízo de censura.

y) Conclui-se pela absolvição da Arguida / Recorrente pela prática do crime de condução sem habilitação legal que lhe é imputada, por ter agido em estado de necessidade desculpante e, sendo este uma causa de exclusão da culpa, a Recorrente deve assim ser absolvida do crime de condução sem habilitação legal.

z) Além disso, a pena aplicada é excessiva, elevada e desproporcionada, não tendo correspondência com a prova produzida em sede de julgamento.

aa) A substituição da pena de prisão por pena de multa ou por trabalho a favor da comunidade satisfaz as necessidades de prevenção geral e especial do tipo de crime em causa.

bb) O pagamento de uma multa ou a prestação de trabalho a favor da comunidade é, na verdade, uma pena de substituição, na medida em que visa evitar a execução da pena de prisão (não superior a um ano) que, em princípio, deveria caber ao caso.

cc) A sentença não faz qualquer referência à possibilidade de substituição, no caso da pena de prisão por prestação de trabalho.

dd) Daí que, não tendo sido equacionada essa questão, não tenham sido efectuadas diligências para se apurar da existência desse consentimento (que desde já dá o seu assentimento), no pressuposto de que ninguém se sujeita a uma pena de prisão domiciliária, sendo-lhe permitida a substituição por trabalho a favor da comunidade.

ee) Devendo assim ser substituída a pena de prisão por pena de multa ou por trabalho a favor da comunidade.

Termos em que e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser nula a citada sentença por falta de análise e exame crítico (artigo 32º C.R.P. e artigos 374º, nº 2 e 379º, ambos do C.P.P.), por se considerar a actuação da Recorrente em direito de necessidade e, por força da causa de exclusão da ilicitude, absolvendo-se assim a Recorrente da prática do crime de condução sem habilitação legal.

Caso assim não se entenda, deve ser nula a sentença em crise por falta de análise e exame crítico (artigo 32º C.R.P. e artigos 374º, nº 2 e 379º, ambos do C.P.P.), por se considerar a actuação da Recorrente em estado de necessidade desculpante e, em consequência da causa de exclusão da culpa, absolvendo a Recorrente da prática do crime de condução sem habilitação legal.

Por fim, ainda que assim não se entenda, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que seja aplicada à Recorrente uma pena de prisão substituída por multa ou por trabalho a favor da comunidade, dando a Recorrente desde já o seu consentimento.

Resolvendo no sentido da procedência do recurso, só assim se decidirá de acordo com a Lei e Vossas Excelências farão inteira JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão revidenda.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer como se transcreve:

Aderimos à fundada argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância pela sua correção jurídica e clareza, bem se pronunciando acerca das questões a dirimir, com os aditamentos que seguem quanto à pena aplicada.

Foi a arguida, ora recorrente, condenada pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, na pena de 6 (seis) meses de prisão, em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.

Entende a recorrente, para além do mais, que pena que lhe foi aplicada é excessiva, elevada e desproporcional, devendo ser substituída a pena de prisão por pena de multa ou por trabalho a favor da comunidade.

Ora, o tempo de aplicação da norma continua a ser um tempo de elevados níveis de sinistralidade rodoviária e um tempo que demanda sanções eficazes contra os que, através da condução nos termos provados, põem em causa a vida, a integridade física e o património de terceiros.

São elevadas no caso as exigências de prevenção geral de integração e, a tal não se considerar, seria atentatório da necessidade estratégica de combate a este tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.

Tal facto coloca uma responsabilidade acrescida quer na prevenção, quer na repressão de tal tipo de criminalidade, não podendo as instâncias jurisdicionais deixar de dar uma resposta claramente dissuasora de forma a evitar a prática de crimes nas circunstâncias apuradas.

Os critérios de prevenção geral resultariam esvaziados a perfilhar o entendimento da recorrente, deixando a sociedade de crer na efetiva punição deste tipo de crimes, esvaziando quer o efeito socializador quer o efeito dissuasor das penas, uma vez que as necessidades de prevenção geral positiva fazem-se sentir de forma intensa, cumprindo reforçar a validade das normas, crime que, suscitando acentuado alarme social, é praticado com frequência e intensidade, pois que, de outra forma, gera-se um sentimento social de insegurança e permissividade perante tais condutas.

Fazem-se ainda sentir elevadas exigências de prevenção especial positiva, sendo que os critérios de prevenção especial emitiriam um perigoso sinal à arguida, permitindo-lhe, ao invés de inverter o caminho percorrido, optar pela prática de crimes.

A arguida regista os seguintes antecedentes criminais:

a. -Por sentença transitada em julgado em 19.12.2012 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 227/12.2…, que correu termos no Juízo Local Criminal da … - Juiz …, foi condenada pela prática, em 30.03.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €7,00, no total de €700,00 (extinta pelo cumprimento em 29.02.2016);

b. Por sentença transitado em julgado em 25.02.2013 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 1304/12.5…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da …, foi condenada pela prática, em 23.03.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no total de €660,00 (extinta pelo cumprimento em 14.07.2015);

c. Por sentença transitada em julgado em 24.01.2013 e proferida no âmbito do processo especial sumário n.º 5/13.1…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal de … - Juiz …, foi condenada pela prática, em 03.01.2013, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €10,00, no total de €1.000,00 (extinta pelo cumprimento em 25.03.2015);

d. Por sentença transitada em julgado em 20.05.2019 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 166/18.3…, que correu termos no Juízo Local Criminal da … - Juiz …, foi condenada pela prática, em 19.07.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, com regime de prova e subordinada à condição de a arguida, no período da suspensão da pena de prisão em que foi condenada, se submeter aos exames necessários à obtenção de título de condução, comprovando nos autos, em idêntico período, a sua realização (extinta em 20.05.2020).

E não obstante, no caso dos autos, voltou a conduzir um veículo automóvel na via pública, o que denota que a mesma vem reiterando há anos a condução de veículos na via pública sem estar habilitada a tal.

Ponderados os factos em conjunto conclui-se que a sua gravidade objetiva é elevada e a prática de novo ilícito, conhecido o percurso de delinquência anterior da arguida, denuncia que a sua personalidade tem traços de contrariedade ao direito evidentes, sendo negativa a visão global das suas condutas.

Em suma, a pena tem de ser como tal sentida, e daí estarem incluídos na finalidade que a norma visa proteger e nos efeitos que com a condenação se pretendem atingir todos os incómodos decorrentes do cumprimento da mesma, sendo certo que tais consequências negativas têm de se mostrar balizadas por critérios de justiça, adequação e proporcionalidade, observados no caso.

Tudo ponderado, somos de parecer que o recurso não deve obter provimento.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Verificação dos pressupostos do direito de necessidade ou do estado de necessidade desculpante.

Adequação das penas de substituição de multa ou prestação de trabalho a favor da comunidade.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 01.08.2019, pelas 22:50 horas, na Avenida …, em …, a arguida, AA, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca …, modelo …, com a matrícula ….

2. Nestas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida não era titular de carta de condução ou de qualquer outro título que legalmente a habilitasse a conduzir veículos motorizados da sobredita categoria ou de qualquer outra; o que a mesma bem sabia.

3. Bem sabia, também, a arguida que para o exercício da condução - designadamente, nos moldes supra descritos em 1. - era necessário possuir habilitação legal, a qual só é conferida pela autoridade competente após a respetiva sujeição a aulas de código e de condução, bem como a aprovação nos correspondentes exames.

4. Ao agir da forma acima descrita, a arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

5. No circunstancialismo de tempo e lugar supra referido em 1., a arguida transportava consigo, no interior do veículo automóvel por si conduzido e do qual é proprietária, entre outros, o seu filho CC, menor de idade, dirigindo-se com este último ao Hospital de …, a fim de o mesmo aí receber o correspondente tratamento médico, por conta do problema de saúde de que foi acometido.

6. Em idênticas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida era titular da licença de a habilitação à condução de veículos automóveis de categoria B, encontrando-se, então, inscrita na escola de condução …, em …, sem que tenha realizado - à data e desde então -qualquer exame tendente à obtenção de carta de condução.

7. A arguida frequentou o ensino superior, designadamente - e em primeiro lugar -, o curso de informática e gestão e, subsequentemente, o curso de direito, sem que tenha concluído qualquer um deles.

8. Iniciou o respetivo percurso profissional com 15 anos de idade, trabalhando, na altura, como empregada fabril, tendo, desde então, exercido diversas atividades profissionais, mormente, na área da restauração, do secretariado, como assistente de imagem, consultora de beleza e, ainda, agente imobiliária.

9. Encontra-se de baixa médica desde o pretérito mês de abril de 2022, padecendo de patologias crónicas, a saber, hipertensão, anemia drepanocítica, e perturbação ango-depressiva, a propósito da qual é seguida em consulta de psicologia, todas as quintas-feiras, pelas 15:00 horas.

10. Reside numa habitação arrendada, de tipologia T3, juntamente com os seus quatro filhos, dois menores e dois maiores de idade, fruto de dois relacionamentos amorosos entretanto terminados, efetuando o pagamento da renda mensal de €450,00.

11. A título de pensão de alimentos e abono de família recebe, mensalmente, a quantia global de €1.270,00.

12. Demonstra arrependimento pela conduta adotada nos moldes supra descritos, reconhecendo o desvalor da mesma.

13. Consentiu no cumprimento da eventual pena de prisão que lhe venha a ser aplicada em regime de permanência na habitação.

14. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações:

a. Por sentença transitada em julgado em 19.12.2012 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 227/12.2…, que correu termos no Juízo Local Criminal da … - Juiz …, foi condenada pela prática, em 30.03.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €7,00, no total de €700,00 (extinta pelo cumprimento em 29.02.2016);

b. Por sentença transitado em julgado em 25.02.2013 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 1304/12…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da …, foi condenada pela prática, em 23.03.2012, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no total de €660,00 (extinta pelo cumprimento em 14.07.2015);

c. Por sentença transitada em julgado em 24.01.2013 e proferida no âmbito do processo especial sumário n.º 5/13.1…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal de … - Juiz …, foi condenada pela prática, em 03.01.2013, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €10,00, no total de €1.000,00 (extinta pelo cumprimento em 25.03.2015);

d. Por sentença transitada em julgado em 20.05.2019 e proferida no âmbito do processo especial abreviado n.º 166/18.3…, que correu termos no Juízo Local Criminal da … - Juiz…, foi condenada pela prática, em 19.07.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, com regime de prova e subordinada à condição de a arguida, no período da suspensão da pena de prisão em que foi condenada, se submeter aos exames necessários à obtenção de título de condução, comprovando nos autos, em idêntico período, a sua realização (extinta em 20.05.2020).

Quanto aos factos não provados, inexistem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada nos termos supra expostos em 1. a 3. radicou, desde logo, nas declarações prestadas pela arguida, que admitiu a mesma. Pese embora tenha referido que, ao atuar da forma em apreço, visava transportar um dos seus filhos para o Hospital de …, posto que o mesmo sofria, no momento, de uma crise asmática, carecendo, por conseguinte, de tratamento médico.

Situação esta que, de resto, foi confirmada pelo militar da G.N.R. BB, aqui testemunha e responsável pela elaboração do auto de notícia de fls. 3 a 4., e a qual, portanto, foi considerada provada em 5.

Com efeito, a referida testemunha - que intercetou a arguida no exercício da condução, nas circunstâncias de tempo e lugar tidas por assentes em 1. - confirmou que no interior da viatura automóvel conduzida pela arguida se encontrava, entre outros, um menor de idade, filho da arguida, que carecia de ser observado, com urgência, em contexto hospitalar - conforme aliás, ainda segundo esta testemunha, foi corroborado pela equipa médica acionada para o local, na sequência do telefonema por si efetuado para o 112, isto é, para o número de telefone de emergência único europeu.

A este propósito, referiu a arguida que, perante a crise asmática de que o seu filho foi acometido, ligou para a linha de Saúde 24. Contudo, perante a ausência de resposta atempada por parte da mesma, optou por se dirigir com o seu filho ao Hospital de …, conduzindo, para o efeito, o veículo automóvel de que é proprietária.

Isto quando, nas sobreditas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida, antes de encetar a condução do referido veículo automóvel, se encontrava acompanhada por outras 7 ou 8 pessoas -as quais, em todo o caso, referiu que não se prontificaram a efetuar o transporte do seu filho ao referido Hospital, tanto que já haviam ingerido bebidas alcoólicas -, estando todos num convívio, num parque sito em …, residindo a arguida na localidade de …, distrito de ….

Portanto, a arguida, perante a condição de saúde do seu filho menor de idade, ao invés de ligar para o 112 - ainda que refira que já várias vezes, no passado, o fez, tendo-lhe sido dito para “esperar” (utilizando, aqui, expressão empregue pela própria), acabando por acrescentar, em todo o caso, não conseguir afirmar com certeza se, no caso sub judice, efetuou (ou não) tal contacto -, optou por ligar para uma linha de contacto destinada a situações menos graves e urgentes.

E na ausência, segundo a própria, de uma resposta atempada por parte da mesma, ao invés de procurar meios de transporte alternativos (v.g., táxi, uber, etc.), optou por encetar a condução de um veículo automóvel que bem sabia não estar autorizada a conduzir, fazendo-o de noite, percorrendo (se o lograsse ter feito na íntegra) uma longa distância entre … e …, correndo o risco de colocar ainda mais em perigo a saúde e integridade física do seu filho. Posto que, para além de não possuir quaisquer conhecimentos médicos necessários ao tratamento da condição clínica daquele, não se encontra(va) apta a efetuar a condução de quaisquer veículos automóveis, inexistindo, de resto, quaisquer registos de que se tenha submetido a qualquer exame, teórico e/ou prático, que permita inferir o seu conhecimento das regras estradais.

Em face do exposto, não se pode excluir, aqui, a culpa da arguida ou a ilicitude da conduta por si adotada in casu. Donde, pois, se considerar provada a factualidade tida por assente em 4.

Quanto à factualidade considerada provada em 6. a 14., o Tribunal considerou o teor da informação fornecida pelo I.M.T., de fls. 26, do relatório social com as ref.ªs citius … (de 05.12.2022) e … (de 16.08.2023), das declarações da arguida, nomeadamente, a propósito da sua situação socioeconómica e, ainda, do respetivo certificado de registo criminal oportunamente junto aos autos.

Apreciemos.

Nulidade da sentença por falta de fundamentação

Sustenta a arguida que a decisão recorrida é nula “por falta de análise e exame crítico (artigo 32º C.R.P. e artigos 374º, nº 2 e 379º, ambos do C.P.P.), por se considerar a actuação da Recorrente em direito de necessidade e, por força da causa de exclusão da ilicitude, absolvendo-se assim a Recorrente da prática do crime de condução sem habilitação legal.”

Ora, importa se diga desde já que não se compreende cabalmente a que “exame crítico” plasmado nos enunciados artigos do CPP se refere a recorrente, tendo em conta a sua referência ao direito de necessidade.

Mas, analisemos.

Conforme resulta do estabelecido no artigo 374º, do CPP, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas, a saber: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Esta imposição de fundamentação, acolhida no texto constitucional no seu artigo 205º, nº 1 e materializada também no artigo 97º, nº 5, do CPP, como tem acentuado a doutrina e a jurisprudência, - vd. Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Revista Julgar, nº 3, 2007, pág. 23 e, por todos, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 408/07, de 11/07/2007, in www.pgdl.pt. - cumpre duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, afirmada nas leis adjectivas, que visa essencialmente: impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão; permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação; colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

Os motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 228 e segs., traduzindo-se, pois, o exame crítico, na menção das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a afirmação das provas que mereceram aceitação e das que lhe mereceram rejeição, a razão de determinada opção relevante por uma ou outra das provas, os motivos substanciais da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal priveligiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção – neste sentido, Acórdãos do STJ de 16/01/2008, Proc. nº 07P4565, de 26/03/2008, Proc. nº 07P4833 e de 15/10/2008, Proc. nº 08P2864, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se que contém a especificação dos factos provados, a menção à inexistência de não provados, a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, mormente aqueles em que assentou a convicção do tribunal e, de forma bem clara, o exame crítico desses meios de prova, com explicitação da sua credibilidade, concretamente no que tange ao depoimento da testemunha BB (militar da GNR) e declarações da arguida.

E, basta a sua simples leitura, sem grande esforço interpretativo, para concluir que foi feita a explicitação detalhada dos elementos probatórios tidos em conta e do raciocínio lógico-dedutivo que culminou no entendimento que os factos tinham de considerar-se como provados nos termos em que o foram, pelo que carece de razão a recorrente na crítica que faz.

Mas, na verdade, o que parece pretender a recorrente ao invocar esta nulidade é censurar o entendimento do tribunal recorrido de que se não verificava a sua actuação em estado de necessidade – causa de exclusão da ilicitude, prevista nos artigos 31º, nº 2, alínea b) e 34º, do Código Penal -, sendo certo que na decisão revidenda se analisou e foi emitida pronúncia sobre a questão, o que também afasta a existência de nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP.

Na verdade, nesta peça podemos ler:

(…) E na ausência, segundo a própria, de uma resposta atempada por parte da mesma, ao invés de procurar meios de transporte alternativos (v.g., táxi, uber, etc.), optou por encetar a condução de um veículo automóvel que bem sabia não estar autorizada a conduzir, fazendo-o de noite, percorrendo (se o lograsse ter feito na íntegra) uma longa distância entre … e …, correndo o risco de colocar ainda mais em perigo a saúde e integridade física do seu filho. Posto que, para além de não possuir quaisquer conhecimentos médicos necessários ao tratamento da condição clínica daquele, não se encontra(va) apta a efetuar a condução de quaisquer veículos automóveis, inexistindo, de resto, quaisquer registos de que se tenha submetido a qualquer exame, teórico e/ou prático, que permita inferir o seu conhecimento das regras estradais.

Em face do exposto, não se pode excluir, aqui, a culpa da arguida ou a ilicitude da conduta por si adotada in casu.

(…)

Finalmente, tendo em conta, sobretudo, a factualidade considerada provada em 5., poder-se-ia equacionar a hipótese de a arguida ter atuado a coberto de um suposto estado de necessidade, com consequente exclusão da respetiva culpa e/ou ilicitude.

A este propósito, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 28.01.2015, proferido no processo n.º 9/13.4GCFLG.P1, disponível em www.dgsi.pt, que “Como se apreende pela leitura do texto das normas contidas nos artigos 34.º e 35.º do Código Penal, a lei distingue o estado de necessidade objetivo ou justificante do estado de necessidade subjetivo ou desculpante e a principal diferença está em que no primeiro o facto típico praticado pelo agente visa a salvaguarda de um bem jurídico (penalmente tutelado ou não e não necessariamente individual), próprio ou de terceiro, de maior valia do que o sacrificado, ao passo que no segundo os bens jurídicos em perigo, necessariamente individuais, não têm que ser de maior valor que o sacrificado. Mas há um denominador comum que é a existência de um perigo atual que ameaça bens jurídicos do agente ou de terceiro, perigo esse afastado pela prática de um facto que, noutras circunstâncias, será um facto ilícito, quiçá um ilícito penal. (…) Pressuposto (ainda) do estado de necessidade (quer o justificante, quer o desculpante) é, também, a adequação do meio (proémio do artigo 34.º e n.º 1, do artigo 35.º do Código Penal), ou seja, o agente tem de utilizar um meio que se revele objetivamente idóneo para afastar o perigo, adequação que há-de revelar-se numa perspetiva ex ante, de prognose póstuma, para salvaguardar o interesse jurídico ameaçado…” (sublinhado nosso).

Na situação sub judice, ainda que se admita a atualidade do perigo de agressão a bens jurídicos de terceiros - quais sejam a saúde e integridade física do filho da arguida -, em qualquer caso, a conduta adequada à remoção daquele teria sido providenciar pela respetiva deslocação a um, v.g., hospital onde o mesmo pudesse receber tratamento, recorrendo, para tanto, aos vários meios idóneos ao seu dispor, entre outros, ligar para o número de telefone de emergência único europeu, vulgo, 112, acionando, assim, dependendo da gravidade da situação, os correspondentes ativos médicos. Ou, na eventualidade de tal ligação, por qualquer motivo, não ser bem sucedida, socorrer-se de outro tipo de transporte (v.g., táxi/uber, conforme já supra aludidos), conduzido por alguém que, contrariamente à arguida, estivesse legalmente habilitado para tanto.

Portanto, em face da idoneidade/adequação dos demais meios ao seu dispor, designadamente, nos moldes supra expostos, a conduta da arguida - que, sem possuir habilitação legal para conduzir, desconhecendo, para todos os efeitos, as regras estradais, opta por transportar o seu filho, acometido de um problema de saúde (segundo a própria, de uma crise asmática), ao Hospital, numa viatura por si conduzida, de noite, durante um percurso ainda bastante longo (entre … e …), sem que possua, de resto, quaisquer conhecimentos médicos - não se traduz, de todo, num meio idóneo/adequado a afastar o sobredito perigo de agressão da saúde/integridade física do seu filho. Aliás, muito pelo contrário, antes o potencia.

Concluindo, entende este Tribunal não estarem verificados os pressupostos do estado de necessidade, pelo que, não se verificando quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade, dúvidas não restam de que a arguida cometeu o crime de condução sem habilitação legal que lhe vem imputado.

Na nulidade por falta de fundamentação não está compreendida a dissensão da recorrente sobre a verificação ou não dos pressupostos de causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, ainda que sejam incorrectas ou passíveis de censura as soluções a que o tribunal recorrido chegou (o que não significa que no caso sub judice o sejam, como infra se analisará), apenas está presente quando inexistem ou são ininteligíveis as razões por este aduzidas, o que não acontece, como se vê.

Face ao exposto, a decisão recorrida não padece de nulidade, considerando o disposto no artigo 379º, nº 1, alíneas a) ou c), do CPP, pelo que improcede o recurso quanto a esta questão.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

A recorrente aduz que o “recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da Sentença” e no corpo da motivação de recurso faz apelo às próprias declarações e ao depoimento da testemunha BB, prestados em audiência de julgamento, transcrevendo segmentos do que refere ter sido, respectivamente, revelado.

Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de discriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º (cumprindo, actualmente, face à revogação deste nº 3 pela Lei nº 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022, considerar a remissão como feita para o seu nº 1), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Analisando as conclusões e a motivação (corpo) de recurso, constata-se que não se assinalam os concretos pontos de facto considerados como incorrectamente julgados.

Ora, não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão.

Não tendo cumprido a recorrente (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação, realça-se pela repetição) o ónus de impugnação especificada a que está vinculada, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respectivo recurso nesta parte afectada e defeso estava fazer-lhe convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, Ac. do STJ de 07/10/2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt e Acs. do Tribunal Constitucional nºs 259/2002, de 18/06/2002 e 140/2004, de 10/03/2004, ambos consultáveis no sítio respectivo.

Pois bem.

O tribunal a quo explicitou cabalmente o processo lógico subjacente à formação da sua convicção para dar como assente a factualidade que provada se encontra, resultando que a

prova produzida foi valorada com razoabilidade e os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto se mostram coerentemente explanados e tidos em conta de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum.

Por outro lado, manifesto se torna que o que almeja a recorrente é que se considere que estão preenchidos os pressupostos da actuação em direito de necessidade ou estado de necessidade desculpante, o que é susceptível de colocar em causa a factualidade vertida na fundamentação de facto de que ao agir da forma descrita, a arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

Assim, importa analisar da verificação desses respectivos pressupostos, considerando-se como definitivamente assente a demais matéria de facto.

Verificação dos pressupostos do direito de necessidade ou do estado de necessidade desculpante

Sustenta a recorrente que apenas exerceu a condução do veículo automóvel, para o que não estava devidamente habilitada, porque seu filho menor foi acometido de um ataque de asma, ligou para as várias linhas de assistência médica, mas estas tardavam a dar resposta e as pessoas que estavam consigo numa festa, em lugar ermo, não se disponibilizaram a conduzir para a transportar, pelo que actuou, para “salvar a vida do seu filho, salvaguardando a saúde do mesmo, ao abrigo do direito de necessidade”.

A arguida foi condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.

Estabelece-se no referido artigo 3º:

“1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”

Bem jurídico protegido pela norma é “a segurança das pessoas e coisas que circulam na via pública e bem assim a regularidade do trânsito e a observância das regras que o disciplinam”, como elucida Tolda Pinto, Comentário das Leis Penais Extravagantes, UCE, Vol. 1, pág. 409, ou, ainda no dizer do mesmo autor, em Código da Estrada Anotado, Vislis Código da Estrada Anotado, Vislis Editores, 2000, pág. 254, Editores, 2000, pág. 254, entendeu o legislador que as necessidades de prevenção de condutas que, por colocarem frequentemente em causa valores jurídicos de particular relevo, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, se revestem de acentuada perigosidade, impunham a criminalização do exercício da condução por quem não esteja legalmente habilitado para o efeito (cfr. também Ac. da Relação de Évora de 10/12/2014, Proc. nº 119/14.0PGGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt, que elucida ser o bem jurídico protegido a segurança rodoviária, “mas igualmente como forma de antecipação de proteção de bens singulares (pessoais e patrimoniais), pois que a infração põe em causa a vida e os bens.”)

Ora, provado está que a arguida conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros na via pública, sem que para tanto estivesse legalmente habilitada, sendo que estava ciente que para o exercício dessa condução era necessário possuir habilitação legal, a qual só é conferida pela autoridade competente após a respetiva sujeição a aulas de código e de condução, bem como a aprovação nos correspondentes exames.

Provado se mostra ainda que, no momento em que exercia a condução, a recorrente transportava na viatura o seu filho CC, menor de idade e se dirigia com este ao Hospital de …, com o intuito de o menor receber tratamento médico a um problema de saúde de que fora acometido.

Vejamos então a pela recorrente assinalada actuação ao abrigo do direito de necessidade.

De acordo com o estabelecido no artigo 31º, nº 2, alínea b), do Código Penal, o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, sendo que, nomeadamente, não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.

E rege o artigo 34º, do mesmo Código o “direito de necessidade”, consagrando-se:

“Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

d) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”

Como resulta cabalmente da enunciada alínea b), para que opere esta causa de exclusão da ilicitude tem de estar, entre o mais, em causa a defesa de um bem jurídico maior valor do que sacrificado, adoptando--se, assim, o princípio do interesse preponderante, como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Direito Penal –– Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 445, esclarecendo que “a lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau de perigo que os ameaça, é dizer, dos decursos possíveis do acontecimento em função da violação (ou perigo de violação) dos bens jurídicos que lhe está ligada.”

Relevantes para esta ponderação, ainda seguindo o entendimento do mesmo autor sobre a hierarquia dos bens jurídicos, que seguimos de perto, subscrevendo-o, integrando critérios válidos para a sua determinação, são, nomeadamente, o da medida legal da pena, com que é ameaçada a sua violação, quando os bens jurídicos conflituantes se encontram protegidos pela lei penal; a intensidade da lesão do bem jurídico, mormente tendo em atenção “se está em causa o aniquilamento completo do interesse ou só uma lesão parcial ou passageira”; o grau de perigo que é afastado ou criado com a acção de salvamento; o da autonomia pessoal do lesado, quando o bem jurídico ofendido seja de natureza eminentemente pessoal; a “imponderabilidade” da vida de pessoa já nascida, porquanto cada vida vale o mesmo, não podendo ser ponderadas diferenciações qualitativas ou quantitativas.

Daí que tenhamos de concluir, na esteira do Ac. da Relação de Guimarães de 23/05/2022, Proc. nº 19/21.8PFGMR.G1, consultável em 23/05/2022, Proc. nº 19/21.8PFGMR.G1, consultável em www.dgsi.ptwww.dgsi.pt, que “a exigência legal da “sensível superioridade” do interesse salvaguardado, contida na al. b) do art. 34º, pressupõe não só ou não tanto que este último interesse se situe muito acima do interesse sacrificado, mas também ou essencialmente que a justificação apenas opere quando é clara e indubitável a superioridade à luz dos sobreditos fatores relevantes de ponderação”.

Acresce que, como se pode ler no mesmo aresto, “outro requisito legal é o da adequação ou idoneidade do meio utilizado para afastar o (cf. corpo do art. 34º), pelo qual se afasta para este efeito a utilização pelo agente de um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objetiva, seja inidóneo para salvaguardar o interesse ameaçado.”

E, salienta Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, UCE, pág. 186, que “o meio adequado para afastar o perigo é aquele que é objetivamente idóneo, numa perspetiva ex ante, de prognose póstuma, para salvaguardar o interesse jurídico ameaçado. Sendo possível o recurso à força pública, não é admissível o direito de necessidade. Havendo vários meios disponíveis, é adequado o recurso ao meio menos lesivo para o terceiro, pelo que não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio excessivo (que não é o menos prejudicial) para realização do objetivo da salvaguarda do interesse ameaçado. De idêntico modo, não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio inútil, isto é, ineficaz para a salvaguarda do interesse ameaçado.”

Ora, revertendo ao caso concreto, dúvidas não há de que a situação de doença do filho da arguida (que foi acometido de crise asmática, perigo iminente, actual, para a saúde) impunha premente assistência médica para defesa da sua integridade física, mas este valor não é, objectivamente, significativamente superior à vida e integridade física das pessoas que circulam na via pública (ainda que o crime de condução de veículo sem habilitação legal seja um crime de perigo abstracto), não se podendo deixar de ter em atenção que a condução foi exercida à noite (22:50 horas), visando realizar o percurso de … para o Hospital de …, o que aumentou seriamente o perigo de lesão efectiva destes valores.

Sob outra perspectiva, o meio utilizado pela ora recorrente para afastar o perigo de lesão da saúde de seu filho, qual seja, a condução de veículo automóvel na via pública sem habilitação legal, mostra-se, no caso, desadequado.

Com efeito, ainda que dando como verídico que tenha contactado o SNS 24 e o Número Europeu de Emergência (112), sem que obtivesse uma resposta tida por atempada, não procurou, como bem se salienta na decisão revidenda, meios de transporte alternativos, o que lhe era exigível.

Termos em que, temos de concluir que a recorrente não actuou ao abrigo do direito de necessidade, não se verificando, por conseguinte, esta causa legal de exclusão da ilicitude do facto, pelo que o recurso improcede neste segmento.

Subsidiariamente, apela também a arguida por estarem preenchidos os pressupostos do estado de necessidade desculpante.

Consagra-se no artigo 35º, do Código Penal, relativo ao “estado de necessidade desculpante”:

“1 - Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

2 - Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”

A propósito, revela-nos o Ac. da Relação de Évora de 08/02/2022, Proc. nº 100/19.3GBMMN.E1, que pode ser lido no sítio já referenciado:

(…) para que a culpa seja excluída têm de se verificar os seguintes e cumulativos requisitos:

- atualidade do perigo, isto é, que o mesmo seja presente e efetivo; sendo certo que a atualidade do perigo se afere em termos idênticos à da “atualidade” da agressão na legítima defesa, embora se admitam correções no sentido do seu alargamento, podendo o perigo não ser, sequer, iminente, embora, neste caso, se exija que o protelamento da ação salvadora agravaria (potenciaria) seriamente esse perigo.

- indispensabilidade e adequação do ato a removê-lo;

- desrazoabilidade da exigência ao agente de um comportamento diferente, naquelas concretas circunstâncias.

A exclusão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.”

Ora, como retro já se deu conta, o facto ilícito praticado não se mostra idóneo a afastar o perigo, pois seria removível por outro modo, com recurso a meios de transporte alternativos, sendo também razoável exigir da arguida comportamento diferente, até porque estava completamente ciente da perigosidade da sua conduta, tanto mais que até já sofrera anteriormente quatro condenações pela prática do mesmo tipo de crime, sendo a primeira reportada a Dezembro de 2012, de onde resulta que há mais de seis anos que conduzia sem habilitação legal, o que mais impunha a ponderação de outra opção.

Face ao que, também não se verifica uma actuação da arguida que preencha os pressupostos do estado de necessidade desculpante, nos termos previstos no artigo 35º, nº 1, do Código Penal, pelo que correcta se mostra a sua condenação pelo cometimento do crime previsto e punido pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01.

Adequação das penas de substituição de multa ou prestação de trabalho a favor da comunidade

Insurge-se ainda a recorrente contra a pena aplicada de 6 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pugnando pela aplicação das penas de substituição de multa ou de prestação de trabalho a favor da comunidade.

A propósito da aplicação das penas de substituição, diz-se na sentença recorrida:

Atento o quantum da pena aplicada, é de considerar a faculdade de substituir a pena de prisão pela multa, prestação de trabalho a favor da comunidade ou suspensão da execução da pena de prisão.

De acordo com o disposto no artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal “A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (…)”.

Relativamente à substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, preceitua o artigo 58.º, n.ºs 1 e 5 do Código Penal que se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o Tribunal substitui-a por esta pena “sempre que concluir nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição” e desde que o condenado a aceite.

No que concerne à suspensão da execução da pena de prisão, preceitua o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal que “O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Ora, a arguida, já por uma vez, beneficiou do instituto da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenada, sem que tal circunstância a tenha impedido de, pela quinta vez, adotar idêntico comportamento delituoso.

Por conseguinte, não é possível estabelecer um juízo de prognose que permita assegurar que a arguida, apenas perante a ameaça de execução da pena de prisão, não volte a reincidir.

Em face do exposto, entende o Tribunal não estarem reunidos os pressupostos para suspender a pena de prisão aplicada à arguida; considerações estas que valem também para afastar a possibilidade de substituir a pena de prisão aplicada por multa - na qual, aliás, a arguida já por três vezes foi condenada - ou, sequer, por trabalho a favor da comunidade.

Destarte, o Tribunal considera que a substituição da pena de prisão aplicada não assegura, de forma adequada e suficiente, as exigências de prevenção que se fazem sentir, devendo a mesma ser, desde já, cumprida, o que se determina.

Da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação

O regime de permanência na habitação, para além de constituir uma pena de substituição, constituiu uma forma de execução da pena de prisão.

(…)

Deste modo, impõe-se que se equacione a aplicação do regime de permanência na habitação.

Com as alterações introduzidas pela sobredita Lei n.º 94/2017, de 23.08 - eliminando a prisão por dias livres e o regime de semidetenção - esteve em causa opção fundamental de política criminal restritiva da aplicação de medidas privativas de liberdade à criminalidade mais grave, privilegiando-se a aplicação de penas não privativas de liberdade para a pequena e média criminalidade, procurando evitar-se os efeitos criminógenos da privação da liberdade em contexto prisional (advindos desde logo do desenraizamento familiar, social e laboral), simultaneamente atenuando os perniciosos efeitos de uma curta detenção de cumprimento continuado, nos casos em que não é possível renunciar à ideia de prevenção geral, permitindo ao arguido manter os seus laços sociais, familiares e laborais.

O disposto no artigo 43.º do Código Penal carece de ser articulado com o disposto na Lei n.º 33/2010, de 02.09 - que regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica) -, aí se regulando, além do mais, a utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, prevista nos artigos 43.º e 44.º do Código Penal - cf. artigo 1.º, alínea a).

De acordo com o artigo 4.º da Lei n.º 33/2010, de 02.09, a vigilância eletrónica depende do consentimento do arguido ou condenado (n.º 1), sendo que o consentimento é prestado pessoalmente perante o juiz, na presença do defensor e reduzido a auto (n.º 2). Consentimento esse que terá de ser prestado por quem possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e o alcance e poderá ser revogado a todo o tempo (n.ºs 6 e 7).

Para além disso, a utilização da vigilância eletrónica depende ainda do consentimento das pessoas, maiores de 16 anos, que coabitem com o condenado (n.º 4); consentimento esse que é prestado aos serviços de reinserção social, por simples declaração escrita, a qual deve acompanhar a informação referida no n.º 2 do artigo 7.º ou ser enviada posteriormente ao juiz (nº 5).

Por sua vez, no que concerne à decisão a proferir quanto à utilização de meios de vigilância eletrónica, estabelece o artigo 7.º do referido diploma legal que o juiz solicita prévia informação aos serviços de reinserção social sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou condenado, e da sua compatibilidade com as exigências da vigilância eletrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar (n.º 2) - sendo tal decisão precedida de audição do Ministério Público, do arguido ou condenado - e tal decisão especifica os locais e os períodos de tempo em que a vigilância eletrónica é exercida e o modo como é efetuada, levando em conta, nomeadamente, o tempo de permanência na habitação e as autorizações de ausência estabelecidas na decisão de aplicação da medida ou da pena; sendo que a decisão é comunicada ao arguido ou condenado e seu defensor, aos serviços de reinserção social e, quando aplicável, ao estabelecimento prisional onde aqueles se encontrem, bem como aos órgãos de polícia criminal competentes, para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 8.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 12.º (cf. n.º 6).

No caso em apreço, mostram-se cumpridas as formalidades atinentes ao regime de permanência na habitação (cf. relatório social junto aos autos).

Para além disso, a arguida consentiu na execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (cf. facto provado número 13).

Doutra parte, a execução da pena de prisão nestes termos permitirá que a arguida continue a ser seguida em consulta de psicologia e retome, quando possível, o exercício da sua atividade profissional.

Nesta conformidade, entendemos que, neste momento, estão reunidos os pressupostos formais e materiais para que a pena de prisão possa ser cumprida em regime de permanência na habitação.

Decorre do artigo 43.º do Código Penal que o Tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado e ainda subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, incluindo a sujeição a tratamento médico, obtido o consentimento prévio do condenado No caso em apreço, uma vez que a arguida, fruto da perturbação ango-depressiva de que padece, é seguida em consulta de psicologia, autoriza-se, desde já, a sua saída da habitação para que possa frequentar tais consultas, todas as quintas-feiras, pelas 15:00 horas.

Em face do exposto e ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 3 do Código Penal, determino que a arguida cumpra a pena de 6 (seis) meses de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios eletrónicos de controlo à distância.

Vejamos então.

Provado está que a arguida sofreu já as seguintes condenações:

- Por sentença transitada em julgado aos 19/12/2012, foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em pena de multa (extinta pelo cumprimento em 29/02/2016).

- Por sentença transitada em julgado aos 24/01/2013, foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em pena de multa (extinta pelo cumprimento em 25/03/2015).

- Por sentença transitada em julgado aos 25/02/2013, foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em pena de multa (extinta pelo cumprimento em 14/07/2015).

- Por sentença transitada em julgado aos 20/05/2019, foi condenada pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova e subordinada à condição de, no período da suspensão, se submeter aos exames necessários à obtenção do título de condução, comprovando nos autos, em idêntico período, a sua realização (pena declarada extinta em 20/05/2020).

O que ressalta claro é que nem as sucessivas penas de multa em que foi condenada a arguida, nem mesmo a pena de prisão suspensa na sua execução também aplicada, serviram para impedir a sua recidiva criminosa, sendo certo que o crime em causa nos autos foi cometido aos 01/08/2019, ou seja, no decurso do período da suspensão da execução da pena que transitou em julgado em 20/05/2019.

Daí que, manifesto se torna que a aplicação de uma pena de substituição de multa não era adequada face à necessidade premente de prevenir o cometimento de futuros crimes - artigo 45º, do Código Penal – e a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade – artigo 58º, do mesmo Código - também não realiza de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, quais sejam, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Destarte, não merece censura a sentença revidenda, cumprindo negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 6 de Fevereiro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(António Condesso)

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(Maria Clara Figueiredo)