Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
30/03.0TASTR.E2
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ACIDENTE FERROVIÁRIO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
NEGLIGÊNCIA
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA
CAUSALIDADE CUMULATIVA
COMPORTAMENTO LÍCITO ALTERNATIVO
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário:
I - O tipo objectivo negligente, nos crimes materiais ou de resultado, inclui a violação de dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado típico.

II - A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme às leis científico-naturais, previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado.

III - Em casos de causalidade cumulativa, em que o evento típico é produto de várias causas sendo cada uma insuficiente para produzir o resultado por si só, o princípio da confiança cede relativamente a comportamentos ilícitos de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar.

IV - Resultando dos factos provados que todos os arguidos violaram deveres objectivos de cuidado – o maquinista ao imprimir ao comboio uma velocidade superior à devida e os outros dois arguidos ao descurarem informação e procedimentos sobre uma peça danificada – e que a essas violações se seguiu a produção de um resultado típico – lesão grave da integridade física da vítima em consequência da projecção da peça metálica – pode dizer-se que todos contribuíram para a produção do evento.

V - Mas relevante para a imputação objectiva é ainda a demonstração (com uma elevada probabilidade) de que o cumprimento do dever não se apresentava em concreto como inútil, pois a consideração do comportamento lícito alternativo não evidencia uma ausência de conexão de risco entre a conduta e o resultado. Tal ausência verificar-se-ia nos casos em que o resultado se apresentasse como inevitável mesmo que o agente tivesse cumprido o dever.

VI - Não sendo processualmente exigível ao arguido (para a sua absolvição) a demonstração da verificação do resultado independentemente da sua actuação negligente, sob pena de violação do in dubio pro reo, também não pode impor-se à acusação a prova de que o resultado não ocorreria sem a violação do dever, sob pena de prova diabólica.

VII - Mas a imputação (objectiva) deixar-se-á de fazer na presença duma dúvida fundada sobre a probabilidade razoável do cumprimento do dever se revelar inútil para o resultado não ocorrer.

VIII - Identificada e reconhecida a conexão de risco entre as condutas ilícitas dos três arguidos e o resultado, e afastada a consideração do comportamento lícito alternativo, é então de concluir pela imputação objectiva do resultado ofensa à integridade física grave à conduta dos demandados. [1]
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Do relatório

No Processo n.º 30/03.0TASTR do Tribunal Judicial de Santarém foi proferida sentença em que se decidiu:

- Absolver o arguido A.;

- Condenar os arguidos B., C. e D. como autores de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência do artigo 148°, n.º 1, e n.º 3, com referência ao artigo 144°, alíneas a), b), c), e d) do Código Penal, cada um deles, na pena de um ano de prisão suspensa na execução;

- Condenar solidariamente os arguidos e demandados B., C. e D. e a CP – Caminhos de Ferro Portugueses a pagarem ao assistente PM a quantia total em que importarem os danos patrimoniais e não patrimoniais que se provaram ter sido sofridos pelo Assistente e Demandante em consequência das condutas dos Arguidos e Demandados resultante do acidente ferroviário descrito nos factos provados que ainda não são determináveis na sua extensão, cujo valor será relegado para determinação em momento ulterior.

- Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de fixação de uma indemnização provisória deduzido pelo assistente, e em consequência, condenar solidariamente os arguidos e demandados B., C. e D. e a CP – Caminhos de Ferro Portugueses a pagarem ao Assistente a quantia de 45.000 euros.

Inconformados com o assim decidido recorreram os arguidos, concluindo da forma seguinte:

O arguido B.,

“1ª O art. 374º, n.º2, do CPP impõe uma fundamentação, ainda que concisa, de facto e de direito e uma análise crítica da prova;

2ª Essa análise, ainda que também sucinta, é, por definição, mais que um resumo acrítico do que se passou em audiência de julgamento;

3ª Devendo haver indicação, ainda que sumária, de que elementos de prova se considerou com ligação aos factos, provados e não provados;

4ª Assim é, uma vez que, como no caso dos autos, geralmente tal conexão não se pode simplesmente extrair do conteúdo dos elementos referenciados na sentença;

5ª O que impossibilita uma pronúncia eficaz do arguido sobre a totalidade dessa prova, cerceando os seus direitos de defesa;

6ª Apesar de ter sido a sentença completada, em sequência de Decisão do Tribunal da Relação, continuam a existir pontos não devidamente fundamentados;

7ª Estão nessa situação a relação da velocidade e da libertação da peça em causa nos presentes autos e a prova de que o arguido devia ter desligado o sistema Convel;

8ª A Sentença é, por isso, nula nos termos do art. 379º, n.º1, a), do CPP;

9ª Foi incluída como factualidade matéria que é simplesmente conclusiva, o constante dos n.ºs 14 a 16 e 21 a 25;

10ª Foi mal fixada a matéria constante dos n.º 8 a 10;

11ª As medições de velocidade e distância constantes dos autos são inválidas face ao disposto no DL n.º 291/90, de 20.09;

12º Esse diploma é aplicável a qualquer instrumento metrológico, incluindo os referidos nos autos;

13ª Não competia ao recorrente provar a sua inexactidão mas ao Ministério Público provar a sua correcção;

14ª Os Srs Peritos limitaram-se a dar como boas as informações dos documentos constantes dos autos, baseando-se em medições inválidas feitas por pessoas desconhecidas;

15ª Foram relatadas deficiências existentes noutras medições feita pela parte civil CP;

16ª Os Srs. Peritos mostram desconhecer o funcionamento e as características do sistema Convel, bem como da distribuição de funções dentro da CP;

17ª Os Srs. Peritos não tiveram acesso à regulamentação mencionada no seu relatório, limitando-se a dar como boas informações recebidas de uma parte processual;

18ª Tais regulamentos não se encontram também nos autos;

19º Não existe nenhuma “carta do comboio”, nem nenhum “software” que precisasse de ser alterado;

20ª O sistema Convel não regula automaticamente a velocidade do comboio;

21ª Limita-se a não permitir a ultrapassagem de limites máximo, sinais fechados e a proceder à leitura dos sinais existentes na linha;

22ª A velocidade do comboio é determinada pelo Maquinista, acelerando ou travando;

23ª O desligar do sistema Convel e a alteração da velocidade do comboio estava dependente de autorização do gestor da infraestrutura;

24ª O recorrente apenas recebeu o comboio, não o tendo preparado;

25ª Todos os modelos e autorizações necessários teriam de estar preparados para que deles tomasse conhecimento;

26ª Não cabia ao recorrente pedi-los, mas a quem preparara o comboio ou determinara a sua circulação;

27ª Sendo necessário desligar o Convel e/ou circular a velocidade mais baixa, deviam as mesmas ter-lhe sido determinadas pelos modelos próprios por quem procedeu à preparação do comboio, pelo Inspector de Tracção ou pela Equipa de Material, obtida a necessária autorização do gestor da infraestrutura;

28ª O recorrente tendo recebido o comboio sem qualquer dessas instruções apenas poderia considerar que se nada lhe era determinado era porque nada era necessário, circulando como normalmente;

29ª O regulamento referido nos autos foi posteriormente alterado, determinando-se o não desligar do Convel e a realização da circulação a velocidade normal;

30ª Já à época nas linhas sem sistema Convel instalada não se desligava o mesmo e circulava-se a velocidade normal;

31ª O recorrente não agiu de forma imprudente, tendo o seu comportado sido adoptado por norma regulamentar posterior;

32ª O sistema Convel é um instrumento de segurança sobremaneira importante na circulação ferroviária;

33ª É sempre preferível ter o sistema Convel ligado que desligado;

34ª Estando o mesmo ligado não se justifica qualquer limitação de velocidade, como se percebe pelo que era então determinado para as linhas onde não estava instalado;

35ª O isolamento do freio da MY não impunha por si uma limitação de velocidade, como se percebe pelo que era então determinado para linhas sem sistema Convel instalado;

36ª Pois a diferença de eficácia do freio, para mais com duas unidades, era ínfima;

37ª O desligar do sistema Convel apenas estava relacionado com a sua exactidão e com a protecção do fabricante;
38ª A diminuição de velocidade resultante do desligar do sistema Convel era apenas fruto da retirada dos sinais verticais de velocidade a partir dos 100 Kms/h;

39ª De toda a forma, o comboio teria circulado mais seguro se não tivesse sido isolado o freio;

40ª Se não tivesse sido isolado o freio não se discutiria nos presentes autos a necessidade de desligar o sistema Convel, nem de circular a velocidade mais baixa;

41ª Deve ser reapreciada a prova;

42ª No que se refere à matéria constante do n.º 8 da decisão de facto apenas poderia ter sido dado como provado que “O comboio n.º 4415 partiu dentro do horário e o maquinista e arguido B. não desligou o sistema Convel”;

43ª No que diz respeito à matéria constante do n.º 9 da matéria de facto apenas poderia, no máximo, ter ficado assente que “De acordo com as normas regulamentares em vigor à época na CP, que viriam a ser posteriormente alteradas, o isolamento do freio da MY deveria, numa linha equipada com este sistema, determinar o desligamento do sistema Convel que, por sua vez, implicava que a circulação se fizesse a uma velocidade máxima de 80 Km/h sem estar o maquinista acompanhado por um agente de apoio e a uma velocidade máxima de 100 Km/h quando acompanhado por esse agente”;

44ª No que concerne ao constante do n.º 10 da matéria de facto apenas poderia ser considerado provado que “Entre as estações de Mato de Miranda e Vale Figueira, o comboio n.º 4415 cruzou-se com o comboio n.º 832, o qual procedia do Porto com destino a Lisboa”;

45ª A interpretação feita pelo Mmº Juiz a quo das normas em presença, particularmente do art. 15º do CP viola o Principio Constitucional Penal da Culpa, sendo inconstitucional;

46ª A interpretação feita sustenta a existência de deveres de 2º e 3º nível, não imediatos;

47ª Essa interpretação implica a incorporação sucessiva dos deveres, e suas eventuais violações, de quem actuou antes em quem actuou depois;

48ª Não era dever de recorrente perguntar o motivo de isolamento do freio, nem se informar “da composição do interior da peça tubo cilíndrico”;

49ª Não era também dever seu desligar o Convel e circular a 100 Km/h ou 80 Km/h;

50ª O recorrente não foi descuidado face ao comportamento do Maquinista médio;

51ª Todos os Maquinistas que depuseram nos autos afirmaram que teriam adoptado o mesmo comportamento;

52ª Não é exigível ao recorrente a diligência de Maquinista, Inspector de Tracção e Chefe de Equipa de Material, como se tivesse as três qualidades;

53ª O comportamento adoptado seria hoje, sem dúvida, inteiramente correcto;

54ª O comportamento adoptado seria à época correcto em linha não equipada com sistema Convel;

55ª O recorrente não violou qualquer dever de cuidado, bem pelo contrário foi mais cuidadoso do que o que se lhe exigia;

56ª Não há nexo causal entre não desligar o Convel e circular a velocidade normal e o resultado;

57ª Não era previsível para um homem médio tal resultado;

58ª O resultado era imprevisível mesmo para quem dominasse a totalidade do nexo causal;

59ª Não ficou provado nos autos, bem pelo contrário, que o resultado ter-se-ia evitado se o recorrente tivesse actuado de forma diversa;

60ª O recorrente não cometeu o crime pelo qual foi, mal, condenado;

61ª Não é também civilmente responsável pelos danos sofridos pelo assistente;

62ª De toda a forma, a pena aplicada é manifestamente desproporcional;

63ª Não existe qualquer razão de prevenção geral ou especial que imponha a aplicação de uma pena privativa da liberdade;

64ª Por todas estas razões o Mmº Juiz a quo violou o disposto nos arts. 1º, 27º e 29 da CRP, 15º, 40º e 148º, nº1 e n.º3 do CP, 125º, 362, 363, 364, n.º2 e 374º do CPP.

Os arguidos C. e D.,

“I. Os Recorrentes não praticaram os crimes por que vieram a ser condenados, como resulta de modo absolutamente cristalino da redacção na decisão proferida em obediência ao douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido nos autos.

II. Na decisão recorrida é agora estabelecido nexo causal entre a velocidade em que a composição seguia (em concreto, a ultrapassagem do limite de velocidade regulamentarmente previsto) e a verificação do dano causado na pessoa do Assistente, ora recorrido.

III. De acordo com a nova redacção da decisão final proferida e de forma inovadora surgem contradições que tornam impossível a responsabilização em simultâneo, do maquinista da composição, o Arguido B. e dos Recorrentes

IV. A nova matéria de facto provada quando conjugada com a matéria de facto respeitante à conduta dos Recorrentes, evidencia a existência de contradições insanáveis existentes entre pontos da matéria de facto provada, conforme previsto nos termos do disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

97. O Aresto condenatório de que ora se recorre estabelece um claro e inequívoco nexo causal entre a actuação do Arguido maquinista e o dano verificado, conforme resulta dos pontos 7, 8, 9, 10 e 16 da matéria de facto provada.

V. A actuação do Recorrente C., nomeadamente a informação por este prestada ao Arguido B., maquinista, era bastante – e por isso mais do que suficiente – para que este último adoptasse a conduta regularmente prevista, acima transcrita, conforme resulta da conjugação dos pontos 7 e 16 da matéria de facto provada.

VI. Pelo que o Recorrente C. como devia e era exigível, cumprindo todos os deveres de cuidado a que estava adstrito, nos termos da matéria de facto provada na decisão recorrida.

VII. Em qualquer caso, e conforme supra melhor demonstrado, existe manifesta contradição entre os pontos 7, 8, 9 e 16 e o ponto 17 da matéria de facto provada.

VIII. Resulta assim de todo o acima exposto que o ponto 17 da matéria de facto provada foi indevidamente julgado provado, vício que expressamente se argui, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal e que deverá ser doutamente sanado.

IX. Conclui-se, pois, atento o nexo causal estabelecido na decisão recorrida que veio a produzir o dano proibido, e a matéria de facto provada, que deverá ser proferida decisão absolutória dos Recorrentes, o que expressamente se requer.

X. Outros argumentos aduzem que justificam a absolvição dos Recorrentes, nomeadamente, a inexistente apreciação de provas constantes dos autos (documentais e testemunhais devidamente registadas em suporte áudio) cuja valoração sempre conduziria à prolação de uma decisão absolutória quanto aos ora Recorrentes e que ora se promove nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do n.9 3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

XI. Foi indevidamente julgada provada a factualidade constante dos pontos 4, 14, 18, 21, 22, 24, 25 da matéria de facto provada.

XII. Não são verdadeiros os pontos 14, 18, 21, 22, 24 e 25 da matéria de facto provada, cujo teor contraria a abundante prova produzida nos autos em sentido contrário à sua verificação.

XIII. A actuação dos Recorrentes D. e C. não é omissiva, tão pouco violadora de quaisquer deveres de cuidado.

XIV. Os Recorrentes perante um problema concreto, agiram em função dos conhecimentos que tinham, procurando activamente reduzir o perigo que conheciam e que em face da experiência profissional que detinham era expectável.

XV. De resto, os regulamentos aplicáveis não proíbem, antes permitem e justificam a actuação empreendida pelos Recorrentes, como decorreu dos depoimentos prestados pelos senhores peritos ouvidos nos autos.

XVI. Certo é que os Recorrentes não determinaram que a composição seguisse normalmente viagem, e muito menos no estado em que lhes chegou às mãos!

XVII. Mais, os Recorrentes reconheceram que a composição tinha de ser reparada por quem tinha competência para o efeito, ou seja, pelos serviços especializados existentes no Entroncamento.

XVIII. E assim agiram de molde a evitar ao máximo a verificação qualquer dano, em respeito pelos Regulamentos vigentes e aplicáveis à circulação de composições.

XIX. Tal entendimento resulta da prova testemunhal e documental constantes dos autos, devidamente identificada do artigo 74.º das presentes motivações.

XX. Resulta assim de todo o acima exposto que os pontos 14, 18, 21, 22, 24 e 25 da matéria de facto provada foram indevidamente julgados provados, vício que expressamente se argui, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal e que deverá ser doutamente sanado.

Finalmente,

XXI. Em qualquer caso a sentença recorrida viola o disposto no artigo 148.º, n.º 1 e n.º 3, com referência ao artigo 144.º, alíneas a), b), c), d), e d), todos do Código Penal.

XXII. Não era previsível, conforme da prova testemunhal acima elencada, para os Recorrentes a verificação de qualquer outro dano, e muito menos o dano concretamente ocorrido, apesar das cautelas por estes empregues.

XXIII. É manifesto não preenchimento do requisito típico do crime porque vieram a ser condenados, em concreto o elemento subjectivo do tipo.

XXIV. Julgamos que o entendimento sufragado nos doutos arestos acima invocados e parcialmente transcritos quando conjugado com a factualidade demonstrada nos autos é bastante para determinar in casu a absolvição dos Recorrentes, em virtude da não verificação dos elementos subjectivo do tipo dos crimes por que foram condenados.”

O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela improcedência e concluindo, por seu turno:

Quanto ao primeiros,

“1. A sentença recorrida cumpriu com o disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pelo que não é nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a) também do Código de Processo Penal;

2. Não existe erro notório na apreciação da prova:

3. O Recorrente pretende substituir a sua convicção à convicção do Tribunal;

4. O Recorrente violou os deveres de cuidado a que estava obrigado e que era capaz;

5. O Recorrente, como condutor de um comboio, sabendo que o mesmo não estava em prefeitas condições, devia ter solicitado informações sobre como circular com o mesmo e devia ter circulado a uma velocidade inferior à normal, atendendo a que as condições não eram as normais;

6. Não é por os outros arguidos não terem cumprido com os seus deveres objectivos de cuidado que o Recorrente estava dispensado de cumprir com os seus;

7. Assim, foi bem condenado pelo crime de ofensas à integridade física graves por negligência;

8. A pena aplicada ao Recorrente, por ter cumprido o disposto nos artigo 40.º, 70.º e 71.º, mostra-se adequada e proporcional.”

Quanto aos segundo e terceiro,

“1. Os Recorrentes conformaram-se com a matéria de facto dada como provada na sentença que veio posteriormente a ser anulada por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia;

2. Alegam, agora, que da nova matéria de facto dada como provada na segunda sentença, existem contradições;

3. No entanto, não houve alteração na matéria de facto dada como provada entre a primeira e a segunda sentença;

4. Após a declaração de nulidade da primeira sentença, por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, o Meritíssimo Juiz a quo proferiu nova sentença, com os mesmos factos provados, fundamentando apenas de forma mais completa a sua convicção sobre esses mesmos factos;

5. Pelo que, os factos dados como provados na sentença elaborada de acordo com o determinado no Acórdão da Relação de Évora, são os mesmos, factos com os quais os Recorrentes já se tinham conformado aquando da primeira sentença, porque dela não recorreram;

6. Os Recorrentes imputam a responsabilidade dos factos unicamente ao arguido B.;

7. Mas se os Recorrentes tivessem cumprido com o seu dever de cuidado, os factos, tal como ocorreram, nunca se teria dado;

8. O Recorrente C. devia ter informado o maquinista que devia adequar a velocidade em face das circunstâncias, assim como devia ter ordenado que circulasse com o sistema Convel desligado;

9. E o Recorrente D. devia ter se informado sobre o estado da composição interior do freio e devia ter tomado os cuidados necessários ao estado dessa peça, não devia ter atado essa peça com arame de aço, devendo antes ter procedido à reparação completa dessa peça de forma a que o comboio pudesse circular em condições adequadas;

10. Todos os arguidos contribuíram para a produção do resultado, todas as condutas, umas por acção e outras por omissão, contribuíram para a produção do resultado;

11. Os Recorrentes impugnam, agora (após já se terem conformado com a mesma) a matéria de facto dada como provada nos pontos 4, 14, 18, 21, 22, 24 e 25, mas não cumpriram com o estipulado pelo artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto apôs o visto.

Colhidos os vistos, teve lugar a Audiência.

2. Dos factos provados

Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.- No dia 06 de Janeiro de 2003, chegou à estação da CP de Lisboa Santa Apolónia o comboio n.º 4404, constituído pela UTE 2116, a qual apresentava um tubo cilíndrico do sistema de freio partido e virado para a cauda da composição.

2.- Após receber ordens de MC, inspector de tracção do depósito de Santa Apolónia, JJ, maquinista de reserva de Lisboa Santa Apolónia, conduziu a aludida UTE para a linha n.º 3 do cantão.

3.- D. e A., chefe de equipa de material e operador de material, respectivamente, receberam ordens de MC para que verificassem a anomalia assinalada pelo maquinista do comboio n.º 4404.

4.- Após observação da anomalia, os arguidos D. e A. por ordem daquele não desmontaram o tubo cilíndrico do sistema de freio partido, (regulador SAB), optando D. por prender tal peça com um arame de aço, após o que D. informou disso o arguido C. que entretanto havia substituído pelas 9 horas como inspector de tracção do depósito de Santa Apolónia MC.

5.- O arguido C. ordenou ao maquinista de reserva de Santa Apolónia, RH, que isolasse o freio da MY daquela UTE, o que aquele fez coadjuvado pelo arguido A., bem como testasse a frenagem, que ficou a funcionar, tendo RH registado no Diário Técnico de Bordo da UTE 2116 "freio da My isolado", do que foi informado o seu superior hierárquico e arguido C..

6.- Por ordem do arguido C., a UTE 2116 foi conduzida para a linha n.º 6 da Estação de Santa Apolónia, a fim de ser integrada no comboio 4415, igualmente constituído pela UTE 2157, com destino às oficinas da CP do Entroncamento, para aí ser reparada.

7.- O arguido C. informou o arguido B. de que o freio da MY 2116 havia sido isolado, não lhe prestando qualquer outro esclarecimento.

8.- O comboio n.º 4415 partiu dentro do horário e o maquinista e arguido B. não pediu a alteração da carta do comboio para que fosse diminuída a velocidade, conduziu à velocidade de cerca de 120 km/hora e não desligou o sistema de CONVEL, sistema de controlo de velocidade do comboio.

9.- O maquinista do comboio n.º 4415 e arguido B. sabia que de acordo com as normas regulamentares em vigor da C P. com o freio da My da UTE 2116 isolado teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio, bem como deveria circular com o sistema de CONVEL desligado.

10.- Ao km 88 da linha do Norte, entre as estações de Mato de Miranda e Vale Figueira, o comboio n.º 4415 seguia a uma velocidade de cerca de 120 km/hora, não inferior a 110 km/hora cruzou-se com o comboio n.º 832, o qual procedia do Porto com destino a Lisboa.

11.- Ao cruzarem-se, do comboio n.º 4415 soltou-se a rosca que fazia parte do tubo cilíndrico do sistema de freio (regulador SAB) que vinha amarrado com um arame de aço, com um peso aproximado de 3,9 kg..

12.- A qual embateu na carruagem n.º 22-40.032-4 do comboio n.º 832 partindo o vidro da janela, sendo projectada para o seu interior, vindo a atingir a face de PM que seguia sentado junto da referida janela, que foi transportado para o Hospital Distrital de Santarém, onde esteve internado na UCI até ao dia 15 de Janeiro de 2003.

13.- Sendo, depois, transferido para o Hospital de São João do Porto onde ficou internado até ao dia 7 de Julho de 2003 no serviço de cirurgia plástica.

14.- Como consequência directa e necessária da actuação dos arguidos B., C. e D., PM sofreu as lesões examinadas e descritas nos autos, designadamente nos documentos clínicos e no relatório pericial de avaliação de dano corporal de folhas 598-599, 700-704 e 695-699, aqui dados por inteiramente reproduzidos para todos os efeitos legais, o que lhe causou um período de doença entre 6 de Janeiro de 2003 e até 5 de Novembro de 2003, com afectação da capacidade e trabalho geral e profissional por igual lapso temporal.

15.- Da factualidade supra descrita resultou, em concreto, perigo para a vida de PM e consequências permanentes ao nível da desfiguração grave, (dano estético qualificável no grau 7/7), e que não será facilmente recuperável relativamente ao aspecto que o mesmo tinha antes do acidente e, bem assim, impossibilidade de utilizar o seu corpo, sentidos e linguagem, (prejuízo de afirmação pessoal quantificável no grau 5/5), e um quantum dolorís durante a data do acidente e 5 de Novembro de 2003 quantificável no grau 6/7.
16.- O arguido B. devia, ao ser-lhe dito pelo arguido C., que o freio da MY 2116 havia sido isolado, devia inteirar-se dos motivos porque tal ocorrera em ordem a informar-se do estado do freio, (regulador SAB), danificado e tomar os cuidados necessários ao estado dessa peça, o que não fez e sabia que, por força das normas regulamentares em vigor na C. P. conduzindo um comboio com o freio da My isolado deveria fazê-lo a uma velocidade não superior a 100 km/hora, desde que acompanhado por um elemento de apoio na cabine ou até 80 km/hora se sozinho e, bem assim, que deveria circular com o sistema de CONVEL desligado.

17.- O arguido C., na qualidade de inspector de tracção e como superior hierárquico, sabia que deveria ter ordenado expressamente ao maquinista do comboio n.º 4415 que desligasse o sistema de CONVEL e que circulasse a uma velocidade reduzida.

18.- Os arguidos D. e A., enquanto operadores de material, desconheciam a composição do interior da peça tubo cilíndrico, (regulador SAB), avariado e o arguido D. devia informar-se do estado e composição interior do freio, (regulador SAB), danificado do interior da peça tubo cilíndrico desse (regulador SAB) a fim de tomar os cuidados necessários ao estado dessa peça, o que não fez.

19.-O arguido A. limitava-se por dependência hierárquica a cumprir as ordens que lhe eram dadas pelo arguido D..

20.- O arguido D. não sabia as consequências que poderiam advir de não ter desmontado o tubo cilíndrico (regulador SAB) e de não ter reparado a anomalia, e de não dever, apenas, ter prendido o aludido tubo com um arame.

21.- Os arguidos B., C. e D., pelas funções que exerciam, sabiam que os comboios circulam a grandes velocidades, que se cruzam nas linhas, e qual o estado em que circulava o comboio n.º 4415 e, embora não tendo previsto que a aludida rosca se poderia soltar por força da velocidade, se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, podiam e deviam prevê-lo.

22.- Os arguidos B., C. e D., ao actuar da forma acima descrita, omitindo o dever de se informarem da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado agiram de forma voluntária.

23.- Não previram sequer a possibilidade da rosca se poder soltar embora se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado o pudessem e devessem prever, e não representaram também que a mesma causasse a PM as lesões supra referenciadas.

24.- Os arguidos B. C. e D. actuaram com imprudência ao não se terem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, e designadamente o arguido B. ao não conduzir o comboio n.º 4415 a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; o arguido C. ao não ordenar ao maquinista que circulasse a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; e o arguido D. ao não ter procedido à reparação devida do referido tubo cilíndrico da UTE 2116, antes optando por amarrá-lo com um arame de aço.

25.- Todos os arguidos tinham capacidade de se auto determinar de acordo com as proibições legais, e os arguidos B. C. e D. actuaram sabendo ser vedada a sua conduta.

26.- O arguido B. exerce a actividade profissional de maquinista da C. P., auferindo em média mensalmente cerca de 1400 euros.

27.- O arguido B. é casado exercendo sua esposa a actividade profissional de operadora de padaria, auferindo em média mensalmente cerca de 600 euros.

28.- O arguido B. vive em casa adquirida com empréstimo bancário contraído para o efeito para amortização do qual despende mensalmente cerca de 400 euros e tem duas filhas que estão a seu cargo.

29.- A pesquisa de antecedentes criminais do arguido B. não detetou qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 1270, cujo teor se da por reproduzido.

30.- O arguido C. é reformado da C. P., auferindo mensalmente de reforma cerca de 1500 euros.

31.- O arguido C. é casado sendo sua esposa reformada, auferindo de reforma mensalmente cerca de 256 euros.

32.- O arguido C. vive em casa própria e financeiramente uma filha e um neto.

33.- A pesquisa de antecedentes criminais do arguido C. não detetou qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 1271, cujo teor se da por reproduzido.

34.- O arguido D. é reformado, auferindo mensalmente de reforma cerca de 971 euros.

35.- O arguido D. é casado sendo sua esposa reformada, auferindo de reforma mensalmente cerca de 800 euros.

36.- O arguido D. vive em casa própria.

37.- A pesquisa de antecedentes criminais do arguido D. não detetou qualquer condenação sua conforme documento junto a folhas 1272, cujo teor se da por reproduzido.

38.- Desde 6 de Janeiro de 2003 quando o assistente PM era transportado do Porto para Lisboa no supra referido comboio até ao presente, que PM tem a sua vida condicionada pelos tratamentos, intervenções cirúrgicas, períodos de recuperação orgânica, e, outra vez tratamentos, operações e recuperações.

39.- Desde o acidente que lhe desfigurou o rosto, PM tem apenas vivido na esperança da sua máxima recuperação física.

40.- Por isso encetou operações para recuperação óssea, muscular, orgânica e espera, mais tarde, fazer a recuperação estética.

41.- Desde Abril de 2005, PM passou a ser assistido na "Clínica Ivo Pitanguy LTDA", sita no Rio de Janeiro, Brasil.

42.- PM encontra-se em tratamento cirúrgico para reconstrução da face, devido ao trauma facial extenso com perda total do nariz, perda parcial do pálato e zigoma.

43.- Foi submetido até o momento a pelo menos 42 quarenta e duas operações, iniciadas em 4 de Abril de 2005.

44.- Em 07/04/05 - Colocação de expansor em região frontal e confecção de retalho em braço esquerdo,
Ressecção de cometo esquerdo e avanço de retalho cutâneo em hemiface esquerda.

45.- Em 16/04/05 - Avançamento de retalhos locais no assoa lho nasal para isolar a cavidade oral da nasal, Autonomização do retalho tubular e enxerto de pele total de região inguinal esquerda para face interna do braço esquerdo.

46.- Em 16/05/05 - Autonomização do retalho tubular do braço esquerdo para a região cervical esquerda e fechamento de abertura de palato com retalho de mucosa.

47.- Em 13/06/05 - Rotação de retalho tubular da região cervical para a região mandibular esquerda.

48- Em 13/07/05 - Autonomização e rotação de retalho de região cervical para a região do palato.

49.- Em 01108/05 - Autonomização de retalho médio frontal.

50.- Em 18/05/05 - Retirada de cartilagem costa I esquerda e enxertia em dorso nasal, após rotação do retalho médio frontal e liberação do retalho tubular para confecção do forro nasal.

51.- Em 15/09/05 - retalhos atípicos da glabela e confecção de asa nasal esquerda com enxerto dermocartilaginoso de orelha esquerda.

52.- Em 08/11/05 - Retalhos de avançamento em hemiface esquerda, enxerto composto de orelha direita para a columela.

53- Em 29/11/05 - Incisão do pedículo do retalho médio frontal e revisão de cicatriz de asa nasal esquerda.

54. Em 30/01/06 - Enxerto de cartilagem costa direita para região maxilar esquerda.

55.- Em 07/03/06 - Enxerto de lóbulo de orelha esquerda para a região columelar e enxerto de pele retroauricular para a região maxilar esquerda, Zetaplastia em comlssura labial esquerda, com perda dos mesmos por alterações imunológicas.

56.- Em 23/03/06 - Biópsia de gânglios cervicais.

57.- Em 09/10/06 - Retirada de enxerto de cartilagem costal em hemitórax direito e enxertia em região zigornática esquerda e raiz nasal.

58.- PM apresenta evolução satisfatória conforme o tratamento proposto; porém, necessita de novos procedimentos e acompanhamento.

59.- A CP - Caminhos de Ferro Portugueses, tem custeado as despesas médicas do PM; quer as despesas feitas em Portugal, quer mesmo as que actualmente contrai em virtude de estar a ser acompanhado pela "Clínica Ivo Pitanguy LTOA", sita no Rio de Janeiro, Brasil.

60.- Para além disso tem suportado os custos inerentes às deslocações e alimentação.

61.- É, neste momento, impossível a determinação de qualquer diagnóstico que, com exactidão, possa dar garantias do grau de incapacidade ou até, do grau de deformação que não seja possível ser corrigido no rosto do ofendido.

62.- As importâncias pagas pela CP ascendem a montante não concretamente apurado.

63.- A CP já ressarciu a PSP de valores que esta entidade despendeu com o Assistente até junho de 2007 e lhe foram presentes, a título de consultas, vencimentos, subsídios de alimentação e outros suplementos, no valor de 57.815,13 euros, conforme decorre da carta da CP de 10.07.2008 e do recibo de € 57.815/13 do Núcleo de Finanças da PSP de 24.07.2008, conforme documentos juntos a folhas 1327 e 1328 dos autos.”

3. Da questão prévia (prescrição do procedimento criminal)
Os arguidos mostram-se condenados como autores de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, do artigo 148°, n.º 1, e n.º 3 do Código Penal, punível com a pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

Por força do art. 118º, nº 1, alínea c) do Código Penal, corresponde-lhe o prazo prescricional normal de cinco anos e, conforme art. 121º, nº 3 do Código Penal, o prazo prescricional máximo de dez anos e seis meses (pois “a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade”).

Os factos ocorreram em 06.01.2003, pelo que a prescrição sobreveio em 06.07.2013, antes ainda da distribuição do recurso a este Tribunal da Relação.

Impõe-se declarar a extinção do procedimento criminal por prescrição e, em consequência, revogar a sentença na parte da condenação em matéria crime.

4. Da (re)definição do objecto do recurso

Seguindo a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão nº 3/2002, declarada a prescrição devem os autos prosseguir no caso, para conhecimento dos pedidos cíveis, passando a proceder-se à apreciação dos recursos da sentença na parte relativa à condenação na matéria cível.

Mantendo a causa crime e a causa cível uma relativa autonomia substantiva, o objecto da causa cível fundada na prática do crime não deixa de ser, no entanto, o mesmo facto ilícito, a imputação do ao agente, o dano e o nexo causal. Assim, a responsabilidade civil por facto ilícito inclui o conhecimento – de facto e de direito – dos pressupostos acabados de enunciar.

Nessa medida, a decisão do recurso na parte sobrante continua a envolver o conhecimento do facto ilícito, no caso também penalmente ilícito. E independentemente da impossibilidade de condenação pela prática de crime, por virtude da prescrição sobrevinda, há que conhecer dos factos perpetrados e da correcção da sentença com a finalidade de se lhe poder retirar as necessárias consequências civis.

Assim, após declaração de extinção da responsabilidade criminal por prescrição, e tendo em conta que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do(s) recorrente(s) (sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP - AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar circunscrevem-se agora às seguintes:

(a)Do recurso interposto pelo arguido B.,

(a.1.) Nulidade da sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto (art. 374º, nº2 e 379º, nº 1-a) do Código de Processo Penal);
(a.2.) Impugnação da matéria de facto;
(a.3.) Erro de direito
(b) Do recurso interposto pelos arguidos C. e D.:
(b.1.) Contradição insanável da matéria de facto provada;
(b.2) Impugnação da matéria de facto;
(b.3) Erro de direito

(a.1.) Da nulidade da sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto (art. 374º, nº2 e 379º, nº 1-a) do Código de Processo Penal)

A sentença objecto dos recursos substituiu decisão anterior, tendo sido lavrada na sequência de acórdão anulatório proferido por esta Relação. Neste se declarara a nulidade da sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto e por omissão de pronúncia.

Proferida nova sentença, o recorrente B. persiste na arguição da nulidade consistente em deficiente fundamentação da matéria de facto.

Como se disse no anterior acórdão, a exigência de fundamentação consiste na imposição de que “as decisões sejam eficazmente motivadas em matéria de facto e de direito”. “Motivar, na sua aproximação mais óbvia, é justificar a decisão adoptada para que possa ser controlada do exterior (Perfecto Andrés Ibañez, Sobre a Formação Racional da Convicção Judicial, Julgar nº 13, p. 167, p. 167).

Recordou-se, então, que o caminho percorrido desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 sedimentou o entendimento, hoje incontroverso, de que a motivação da matéria de facto exige exame crítico das provas, de todas as provas conducentes ao conjunto dos enunciados fácticos afirmados na sentença, no sentido de que não basta enumerar, mencionar, transcrever ou reproduzir provas, impondo-se exteriorizar em que medida a prova influenciou o julgador, convencendo-o em determinado sentido.

Ao motivar, o tribunal tem, hoje, de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objectivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).

Abundante é, também, a jurisprudência do Tribunal Constitucional a este propósito. No Acórdão n.º 198/2004, de 24.03.2004, chama-se a atenção para que “esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

O recorrente, que anteriormente situara a nulidade na circunstância da sentença não ter revelado como chegara o tribunal à prova do facto “velocidade” (de circulação do comboio por ele conduzido), arguição em que fora acompanhado pelo recorrido Ministério Público e que esta Relação então atendeu, fica-se agora por considerações neste ponto (de deficiências de fundamentação) algo vagas e pouco concretizadas.

Assim, alega que a sentença não explica “a relação da velocidade e da libertação da peça em causa” e a prova do facto de que o arguido devia ter desligado o convés.

Adiantamos que tanto uma como a outra asserção se mostram infundadas e que a sentença não padece agora de nulidade por falta de fundamentação. As deficiências anteriores foram integralmente sanadas e outras novas não existem.

Concretizando, quanto à explicação da relação da velocidade com a libertação da peça em causa, diremos até que a justificação do juízo de “provado” se apresenta como modelar, como facilmente decorre da leitura da motivação.

Reveja-se a motivação da matéria de facto:

“O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados na análise critica do conjunto da prova produzida.

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados desde logo nas declarações dos arguidos na parte em que estas foram coincidentes com os factos provados tendo o Arguido B. admitido a veracidade da maior parte dos factos provados que lhe respeitam, negando que tenha o seu comportamento sido causal do acidente em questão, o que é desmentido pela omissão do dever de se inteirar da razão do isolamento do sistema de frenagem do comboio que lhe foi comunicado pelo Arguido C., omissão que admitiu, o que certamente o conduziria ao conhecimento da situação da peça acidentada que segundo referiu se soubesse o seu estado possivelmente não sairia com o comboio ou só o faria se alguém assumisse essa responsabilidade.

O Arguido C. por seu turno afirmou que o seu colega MC já tinha mandado verificar a motora pelos operários existentes e disse que a motora estava já em condições de seguir para o entroncamento, o que foi por este desmentido e que na altura estava ele o Sr. D. e que trataram disso de verificar a motora que desconhecia a situação da peça, que igualmente foi contrariado pelas declarações do Arguido D. que referiu que reportou ao Sr. C. que entretanto tinha entrado explicando a situação e inclusivamente o Sr. A. e o maquinista foram lá isolar o boguis estava lá o anterior senhor foi no render do turno explicamos que a peça não era fácil estava inamovível completamente empancada para trás mas em principio não corria risco mas que de qualquer maneira puseram lá um arame isso foi explicado ao Sr. C.

O Arguido D. referiu que com o Sr. A. foi lá verificou que era um tubo cilíndrico do sistema de freio partido segundo parece chegou ao entroncamento sem se mexer amarrou com um arame e se tivesse conhecimento técnico da peça era capaz de não proceder como procedeu, que seu trabalho era pequenas intervenções e que lhe pareceu e que não havia qualquer possibilidade da peça se soltar a rosca era interior não era visível não vi essa peça no Entroncamento vi que a peça estava exactamente igual não assumindo culpa na ocorrência do acidente.

O Arguido A. confirmou os factos provados

O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados relativos a situação pessoal dos Arguidos nas declarações dos Arguidos, os quais prestaram declarações em conformidade com os factos provados relativos a estas matérias.

O tribunal fundou primacialmente a sua convicção quanto aos factos provados não obstante a negação parcial dos mesmos nos termos descritos pelos Arguidos no depoimento das testemunhas JJ maquinista da C. P. que conduziu a UTE avariada até S. Apolónia e registou isso no diário técnico de bordo, ( fls., 161), comunicou ao posto de regulação, ao permanente de tracção, e pediu reparação, Testemunha RM revisor da C. P. revisor do comboio 4404 que saiu de Tomar e declarou que no vale de Santarém o comboio não andou e viu o maquinista recordando que ele lhe disse que se ouvisse um barulho puxasse o sinal de alarme, Testemunha MC inspector de tracção da C. P. que estava de serviço das 10 h as 8 h e foi substituído nesse dia pelo Arguido C. e declarou que já sabendo da avaria da UTE informou da avaria a cabine de circulação de S. Apolónia e um maquinista de reserva JC para esperar por esse material que chegou um pouco antes das 8 h e essa unidade motora foi retirada da circulação para ser vistoriada pela manutenção de material ficava retirada da circulação que já não foi não pode adiantar muito mais porque saio do turno as 8 horas e informou o arguido C. do que se estava a passar.

O tribunal fundou a sua convicção igualmente primacialmente nos depoimentos das testemunhas RH Maquinista da C. P., que em 6/1/2003 era o maquinista de reserva em S. Apolónia, JJ maquinista da C. P. em 6/1/2003, que confirmaram a sua intervenção nos factos tal como se deu como provado, MP, operador de revisão e venda da C. P. revisor do comboio 4415 que confirmou a viagem com acoplagem da UTE avariada testemunha ML Maquinista da C. P. que vinha do Porto para Santa Apolónia que tripulava o comboio aonde se transportava o assistente e aonde a peça entrou no comboio que eu viu quando saiu da cabine confirmando o estado em que ficou a carruagem e o banco do passageiro Assistente que a vitima estava maltratado, JQ, Revisor de bilhetes da C. P. revisor do comboio aonde ia a vitima e que ia na carruagem do acidente entre a estação mato de Miranda vale de figueira a cruzamento com outro comboio em que ouviu um barulho anormal ao andamento dos comboios no cruzamento dos comboios um estilhaçar de vidros viu o Assistente com a face desfeita só não foi atingido porque se adiantou no meu serviço sendo que testemunhou que a peça foi encontrada debaixo do ultimo banco da carruagem do lado esquerdo, Testemunha RP, Engenheiro técnico da EMEF sociedade anónima de capitais públicos que faz parte do grupo C. P. responsável de oficinas de uma da EMEF de boguis situada no entroncamento sendo na altura chefe da oficina aonde esse órgão era reparado em Abril Maio de 2002 aonde foi efectuada a ultima reparação desse órgão e que explicou a sua composição e funcionamento.

Passando agora a justificar a convicção do tribunal quanto as duas questões que levaram o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora a determinar a prolacção de nova sentença relativa a dois factos dados como provados – “o da velocidade e o da relação desta com a libertação e projecção da peça” – começar-se-á pela velocidade.

O arguido B. já anteriormente havia suscitado a invalidade da medição de velocidade, cfr., arts. 6º a 14º da contestação constante de fls., 1310 a 1314 do vol 6º., questionando a admissibilidade e valoração da prova relativa à velocidade do comboio por si conduzido.

A este respeito dir-se-á desde logo que o Arguido B. confessou nas declarações que prestou em audiência de julgamento que o comboio por si conduzido seguia a 120km/h, que fez uma viagem normal, com frenagens normais e que por isso chegou à estação do Entroncamento à tabela, tendo-se o tribunal fundado em tais declarações para fundamentar, como não podia deixar de ser, os factos relativos a velocidade do comboio em questão dados como provados.

Tal confissão, só por si em nosso entender já com grande relevância probatória, se não mesmo bastante, (repare-se na relevância que o legislador atribui a confissão no artigo 344.º do C. P. P., é certo que sobretudo em relação a confissão integral e sem reservas), (caso em que a invalidade da medição da velocidade do comboio questionada pelo Arguido se poderia considerar prejudicada, - pois se a confessa -), pode e quiçá deve ser conjugada com a constatação de que a velocidade do comboio 832 foi aferida a partir do equipamento montado na locomotiva n.º 2602, mais propriamente a unidade de registo “UR” existente no CONVEL, que significa sistema de controlo automático de velocidade – cfr., ICS 104/93, 12º Aditamento, do Gabinete de Regulamentação e Segurança da C.P., e que a velocidade do comboio 4415 foi aferida a partir da unidade de registo “UR” existente no CONVEL do reboque piloto “RP” n.º 2164.

Este “RP” 2164 era um dos módulos da UTE 2157 que compunha o comboio 4415.

Efectivamente, As listagens de fls., 181 e seguintes mais não constituem do que o registo da velocidade de cada uma das motoras dos comboios 832 e 4415 que se cruzaram em Mato Miranda, área da Comarca de Santarém, ao quilómetro, (ou ponto kilométrico “PK”), 88.

Os peritos apuraram mesmo que o relógio da UR da UM 2602 estava cerca de 30 segundos adiantado em relação à hora legal, estando a hora legal devidamente registada também.

Ou seja, para aferir a hora do ponto exacto onde se encontraram/cruzaram os dois comboios, foi necessário aferir o acerto de ambos os relógios que se encontram nas unidades de leitura, (v., o gráfico esclarecedor a este respeito de fls., 189).

Foi possível determinar com objectividade e precisão o dia, hora, local e velocidade do cruzamento entre os comboios 832 vindo do Porto Campanhã e 4415 vindo de Lisboa Santa Apolónia.

Estamos no domínio da taquimetria. O aparelho taquímetro, tem por função determinar a velocidade de um veículo, o que é feito de forma instantânea.

Se estamos certos, este registo é feito por um gerador taquimétrico colocado nos rodados, medindo a velocidade angular destes, aparelho este que está instalado nas unidades circulantes da CP referidas como referido a fls., 179.

Estes meios de prova conjugados entre si levam inelutavelmente a que se considere provada nos termos em que foi dada como provada a velocidade do comboio em questão.

Porém o Arguido B. afirma na sua douta contestação que o DL 291/90, de 20/09 impõe o controlo metrológico de “tais instrumentos”. Acontece que tal controlo não existe na nossa ordem jurídica.

Realmente o material ferroviário, de qualquer natureza, não está abrangido pela norma constante do disposto no art. 1º do DL 291/90, de 20/09, Diploma este regulamentado pela Portaria 962/90, de 09/10.

Não existe na nossa ordem jurídica disposição que sujeite os aparelhos leitores e registadores de velocidade ou quaisquer outros instrumentos ferroviários ao controlo metrológico legal.

Isto desde logo porque inexiste regulamentação, específica na matéria, dimanada de um qualquer órgão do Estado ou da E.U. com atribuições e competências para o efeito.

Acresce que não existe qualquer facto ou sequer indício que permita colocar em causa o funcionamento dos equipamentos, bem como os procedimentos que determinaram a velocidade das unidades motoras que compunham os comboios n.ºs 4415 e 832.

A medição e o registo da velocidade de tais unidades é legítima, tendo sido obtida pelas autoridades ferroviárias competentes para o efeito, acedida e valorada de acordo com a respectiva leges artis por engenheiros ferroviários de mérito e profissionalismo inquestionável, como resulta da identificação dos membros que compuseram a comissão de inquérito da C.P. ao acidente e do extinto Instituto Nacional de Transporte Ferroviário.

O tribunal está portanto legitimado a admitir, como já anteriormente o havia feito o J.I.C., na fase de instrução, as provas relativas à medição da velocidade, (art. 125º do CPP).

Impõe-se ainda referir que inexiste qualquer facto ou mesmo indício que impeça o julgador de valorar a prova em apreço. Podendo-se mesmo afirmar que estando em causa uma medição rigorosa não é possível afirmar consistentemente a existência de uma forma alternativa, igualmente fiável, de determinar a velocidade das unidades motoras em questão.

Pelo exposto consideramos mesmo que nesta matéria o tribunal tem o seu campo de livre apreciação da prova bastante limitado, (art. 127º do CPP), face ao valor semelhante ao da prova pericial com o qual se defronta, (art. 163º, nº 1 do CPP), com acrescida obrigação de fundamentação em caso de divergir se não mesmo impossibilidade de divergir do juízo pericial que incidindo sobre a leitura das velocidades, estabeleceu estas como sendo de 120km/h para o comboio conduzido pelo arguido e de 110 km/h para o comboio nº 832 quando ambos se cruzaram pelas 13.34 horas do dia 06/01/2003 no PK 88 da linha do Norte, (art. 163º, nº 2 do CPP), com a ressalva de, na ausência de prova sobre a existência ou inexistência de margem de erro dos aparelhos em questão se poder ter alguma latitude em conceder a sua existência, tal como o tribunal fez.

Passar-se-á agora a justificar a convicção do tribunal quanto a outra questão que levou o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora a determinar a prolacção de nova sentença relativa ao facto dado como provado – “da relação”, (da velocidade), “com a libertação e projecção da peça”.

O tribunal fundou-se primacialmente nas declarações dos senhores peritos Professor JD do Departamento de engenharia mecânica do instituto superior técnico e AD que no essencial confirmaram o relatório pericial de folhas 1672 e seguintes e o relatório complementar de folhas 1740 e seguintes confirmando que a peça em questão sofreu um embate grande e potente e que era expectável, tendo em conta os conhecimentos técnicos que possuem, que os componentes internos do tubo da peça se pudessem soltar - tanto mais que estava inclinado para baixo - com as vibrações da circulação do comboio que são ampliadas com as ondas de choque do cruzamento de dois comboios se o freio de retenção estivesse danificado ou desaparecesse.

Assim, tendo em conta os referidos meios de prova pericial, cuja idoneidade está acima de qualquer suspeita, era expectável que os outros componentes da peça se desenroscassem e viessem a cair e serem projectados, como aconteceu, perigo tanto maior quanto a velocidade do comboio fosse maior, como também é corroborado por tais meios de prova.

São igualmente os mesmos meios de prova pericial que levam também à ilação, que se impõe ao julgador legitimamente retirar, atenta a velocidade excessiva a que circulava o comboio tripulado pelo Arguido B., de que era igualmente expectável e previsível que a projecção dos componentes referidos pudesse produzir o resultado que infelizmente se veio a verificar.

Desta forma crê-se que se explicitou o raciocínio logico dedutivo do julgador que levou à relação da velocidade do comboio provada com o resultado imputado ao (s) Arguidos (s).

Continuando agora a proceder a fundamentação dos factos provados e não provados relativamente a matéria não referida pelo Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora dir-se-á ainda que as testemunhas Ana Catarina e Susana Cristina passageiras do comboio e carruagem aonde se transportava o Assistente depuseram confirmando a entrada da peça que também as atingiu.

A testemunha Ana Maria e João Luís depuseram sobre os danos sofridos pelo Assistente depoimentos em que o tribunal se fundou para dar como provados nos factos relativos a tais aspectos.

O tribunal fundou-se também como não podia deixar de ser nas declarações do Assistente que prestou declarações sobre os danos sofridos declarações em que o tribunal se fundou para dar como provados nos factos relativos a tais aspectos.

O tribunal fundou também a sua convicção nos depoimentos das testemunhas engenheiros António e João Carlos que participaram na comissão de inquérito que elaborou o relatório sobre acidente ferroviário em questão junto a folhas 87 a 136 dos autos, matérias sobre as quais depuseram.

As restantes testemunhas ouvidas em audiência não tem conhecimento directo dos factos aos quais não assistiram. As testemunhas Jorge e José Carlos depuseram no sentido de ser o chefe de tracção quem dá a ordem de marcha aos comboios, por sua vez a testemunha António Augusto depôs sobre o sistema convel e as testemunhas Jacinto e Aníbal sobre as funções de permanente de tracção que já exerceram.

As testemunhas referidas depuseram com isenção.

O tribunal fundou ainda a sua convicção quanto aos factos provados na análise dos documentos juntos a fls., 3 a 15, 18 a 25 v., 30 a 33, 34 a 38, 70 a 71, 86 a 255, 272 a 454, 461 a 462, 470, 476, 482 a 488, 494 a 525, 533 a 546, 579 a 582, 596 a 600, 606 a 661, 670, 673 a 675, 678, 694 a 705, 723 a 726, 922 a 925, 1303 a 1305, 1315 a 1332, 1372 a 1374, 1638 a 1648, 1653 a 1654, 1671 a 1710, 1725 a 1788, 1929 a 1930 1931 a 1950, 1975 a 2038, 2071 a 2073, dos autos, examinados em audiência de julgamento.

Sobre os factos não provados os Arguidos negaram a sua realidade e não foi produzida qualquer prova convincente e dai necessariamente as respostas negativas”.

Como facilmente se constata, a sentença procede com sucesso à correcção das nulidades que sobrevinham na sentença anterior. Elas não se mantêm na presente, pois revelam-se agora as razões (os argumentos) que determinaram a formação da convicção do facto “velocidade de circulação do comboio no momento da libertação/projecção da peça metálica” – a saber: a confissão do arguido e a informação documental e pericial sinalizadas e aqui transcritas.

Se estes meios de prova demonstram efectivamente os factos considerados provados, é já um problema de fundo, de conhecimento material que se apreciará em sede própria, e não uma questão formal de nulidade da sentença.

Do mesmo modo se mostra suficientemente explicada a “relação da libertação da peça com a velocidade”, ou seja, diz-se que ela resulta da avaliação das perícias e da constatação como decorrência normal das condutas dos três intervenientes, ou seja, da circunstância de se dever considerar como expectável que, atento o modo como a peça metálica estava acondicionada, “os componentes da peça se desenroscassem e viessem a cair e serem projectados quanto a velocidade do comboio fosse maior”.

O exame crítico da prova não padece pois, enquanto tal, da arguida nulidade da sentença por falta de fundamentação da matéria de facto (art. 374º, nº2 e 370º, al. a) do Código de Processo Penal), uma vez que o tribunal motivou a decisão de forma correcta. Concedendo a lei liberdade formal de tratamento da explicação da formação da convicção, exige-se apenas que esta se apresente exteriorizada de uma forma racional e perceptível, ou seja, adequadamente objectivada. O julgador terá de lograr transmutar o seu íntimo e subjectivo juízo sobre as provas em algo simultaneamente externo e objectivo, o que na sentença se alcançou.

(b.1.) Da contradição da matéria de facto provada (art. 410, nº2-b) do Código de Processo Penal)

Alegam os recorrentes D. e C. que existe manifesta contradição entre os factos provados e que ocorre o vício previsto no art. 410, n.º 2, b) do Código de Processo Penal.

O vício previsto no art. 410, n.º 2, b) – contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão – ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados.

É uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a se excluírem mutuamente” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 71).

No caso, tratar-se-ia de uma colisão de factos provados entre si, ocorrendo o vício por se ter considerado como provado, simultaneamente, algo e o seu contrário.

Para tanto, vêem os recorrentes como inconciliáveis os pontos 7, 8, 9 e 16 e o ponto 17 da matéria de facto provada, tendo sido este último indevidamente julgado provado. Contudo, fazem-no sem razão.

Na verdade, não se detecta uma real oposição ou contradição entre os enunciados fácticos em crise, que são os seguintes: “7. – O arguido C. informou o arguido B. de que o freio da MY 2116 havia sido isolado, não lhe prestando qualquer outro esclarecimento; 8.- O comboio n.º 4415 partiu dentro do horário e o maquinista e arguido B. não pediu a alteração da carta do comboio para que fosse diminuída a velocidade, conduziu à velocidade de cerca de 120 km/hora e não desligou o sistema de CONVEL, sistema de controlo de velocidade do comboio. 9.- O maquinista do comboio n.º 4415 e arguido B. sabia que de acordo com as normas regulamentares em vigor da C P. com o freio da My da UTE 2116 isolado teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio, bem como deveria circular com o sistema de CONVEL desligado. 16. – O arguido B. devia, ao ser-lhe dito pelo arguido C., que o freio da MY 2116 havia sido isolado, devia inteirar-se dos motivos porque tal ocorrera em ordem a informar-se do estado do freio, (regulador SAB), danificado e tomar os cuidados necessários ao estado dessa peça, o que não fez e sabia que, por força das normas regulamentares em vigor na C. P. conduzindo um comboio com o freio da My isolado deveria fazê-lo a uma velocidade não superior a 100 km/hora, desde que acompanhado por um elemento de apoio na cabine ou até 80 km/hora se sozinho e, bem assim, que deveria circular com o sistema de CONVEL desligado; 17.– O arguido C., na qualidade de inspector de tracção e como superior hierárquico, sabia que deveria ter ordenado expressamente ao maquinista do comboio n.º 4415 que desligasse o sistema de CONVEL e que circulasse a uma velocidade reduzida”.

Com efeito, o dar-se como provado que C. informou o maquinista de que o freio tinha sido isolado não lhe prestando outro esclarecimento, e que, na qualidade de inspector de tracção e como superior hierárquico, sabia que deveria ter ordenado expressamente ao maquinista que desligasse o sistema de CONVEL e que circulasse a uma velocidade reduzida, não é incompatível com a afirmação de que, independentemente destes esclarecimento e ordem, o maquinista se devia igualmente ter inteirado, por sua iniciativa, das razões do isolamento do freio, que o mesmo devesse ter pedido a alteração da carta do comboio, devesse ter conduzido a velocidade inferior e desligado o sistema de CONVEL, soubesse que teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora ou de 100 km/hora, ou com o sistema de CONVEL desligado. O que, por sua vez, também não é incompatível com a afirmação de que C. devia ter também ordenado o desligar do Convel e a circulação do comboio a velocidade reduzida, e com a afirmação de que os arguidos, caso se tivessem inteirado da composição do interior da peça (tubo cilíndrico) avariada, como deviam, tivessem podido e devessem prever que a rosca se poderia soltar em consequência da velocidade.

O episódio de vida narrado traduz, enquanto tal, um relato lógico do desencadear de um acontecimento, que se apresenta como fenomenologicamente possível e, logo, para o efeito que interessa agora, como racionalmente descrito. Curar das consequências jurídicas deste modo de actuar será já um procedimento posterior, de subsunção de factualidade.

Inexiste, assim, contradição (ou incompatibilidade) detectável nos enunciados linguísticos relativos a acções, afirmados na sentença como verdadeiros (sobre a noção de “enunciados linguísticos” versus factos, ver Perfecto Andrés Ibañez, Sobre a formação racional da convicção judicial, Julgar nº 13, p. 161). Donde, não ocorre o suscitado vício do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal.

Por último, tem razão o Ministério Público quando se insurge contra a afirmação de que estas contradições, só agora apontadas pelos recorrentes que se haviam conformado integralmente com a primeira sentença condenatória, teriam sido resultado (segundo os recorrentes) das alterações entretanto introduzidas na sentença por força da decisão anulatória desta Relação. Na verdade, a matéria de facto permaneceu intocada, pelo que, a existir contradição situar-se-ia na afirmação feita pelos próprios recorrentes.

(a.2.) e (b.2.) Da impugnação da matéria de facto

Os três recorrentes insurgem-se contra a decisão sobre a matéria de facto.

O arguido B. fá-lo ao abrigo do disposto no art. 412º, nº 3 do Código de Processo Penal (recurso efectivo da matéria de facto) e aceita-se que cumpre minimamente os formalismos impostos pela norma.

Já o recurso dos arguidos D. e C. mantendo embora a referência ao art. 412º, nº 3, não cumpre os ónus de especificação, como nota o Ministério Público na sua resposta. O recurso terá de ser rejeitado nesta parte (como recurso efectivo da matéria de facto, entenda-se) por total incumprimento das especificações. Não estará, porém, a Relação dispensada de sindicar a decisão de facto, também quanto a estes recorrentes, por via da fiscalização do texto. O erro notório ou os outros vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal podem dar lugar à alteração da matéria de facto da sentença.

Assim, como se sabe, o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.

A especificação faz-se por referência ao consignado na acta, com concretização das passagens em que se funda a impugnação. Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente” (conforme jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 por AFJ nº 3/2012).

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto. A impugnação tem de ser correctamente identificada – concreto(s) facto(s) ou ponto(s) de facto, acompanhado(s) das concretas provas que impõem decisão oposta à tomada na sentença. Esta exigência de delimitação/confinamento do objecto do recurso não significa que a Relação não aprecie outras provas, ou mesmo que todas as provas possam ser no caso as concretas provas, de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente. Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as reaprecia na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não procede a um segundo julgamento.

O recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento, desde logo porque o seu objecto não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença de facto. Mas também não o é porque a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas – não dispõe de imediação total (embora tenha uma imediação parcial, relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e está impedida de interagir com a prova (ou seja, de questionar).

À Relação só pode, pois, pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direccionados para a (sindicância da) sentença de facto, e sempre de acordo com a impugnação do recorrente.

É-lhe então permitido proceder ao confronto e análise das concretas provas, na parte especificada por referência ao consignado na acta ou transcritas no recurso (sem prejuízo de oficiosamente se poder vir a socorrer de outras provas).

Esta exigência de especificação das “concretas provas”completa o núcleo das especificações.

Concretas, não apenas ou essencialmente no sentido de uma(s) individualizada(s) no conjunto das restantes – já que nada proíbe que o possam ser todas elas – mas concretas porque especificadas, e não meramente nomeadas ou indicadas. Esta exigência é indispensável ao conhecimento amplo da matéria de facto e à possibilidade de intervenção da segunda instância. Visa possibilitar, ou permitir, a detecção do eventual erro de facto.

A aceitação do pedido que os recorrentes D. e C. formulam, de reapreciação de matéria de facto sem o mínimo cumprimento dos ónus de especificação, implicaria um modelo de recurso da matéria de facto que não é o do Código de Processo Penal português. Tratar-se-ia, aí sim, de um segundo julgamento em segunda instância, opção que o legislador claramente não quis, dando todo o sentido às preocupações de Damião da Cunha (“Estrutura dos recursos na proposta de revisão do Código de Processo Penal”), expressas aquando da revisão de 1998 ao Código de Processo Penal. Esta revisão, segundo a Exposição de Motivos, pretendeu “assegurar um recurso efectivo em matéria de facto”. Mas alertou, então, aquele Professor: “Acreditar que é num juízo posterior, baseado numa análise parcelar e documental ou mediata de prova produzida noutro local, que se pode precatar as deficiências do juízo de primeira instância, é aspecto que suscita fundadas dúvidas – pois a uma decisão injusta apenas se segue outra que não garante melhor justiça. Se quer atalhar as más decisões de primeira instância, é nesta fase, e não posteriormente, que se deve operar correctivamente.(…) É questionável se uma eventual injustiça de decisão de primeira instância pode ser prevenida por um juízo (ou dois) efectuados por um tribunal que não tem acesso pleno à matéria de facto”.

Assim, no caso, não tendo estes dois recorrentes procedido à especificação das concretas provas, como se impunha nos termos referidos, pretendendo, tão só e sem mais, a substituição da convicção do juiz de julgamento pela sua, ficando-se por considerações genéricas sobre o erro de julgamento, dificilmente poderia o recurso da matéria de facto proceder por esta via, ou nesta parte.

Demonstram-no claramente toda a sua motivação e as conclusões, onde, sem especificação das concretas provas por referência aos concretos factos, se discorre, por exemplo, que “todas as provas apontam no sentido de que…”, ou que “não são verdadeiros os pontos … cujo teor contraria a abundante prova produzida nos autos”.

No entanto, repete-se, não deixará de se apreciar a decisão de facto por via dos eventuais vícios de texto, bem como de retirar do recurso (de facto) interposto pelo co-arguido B. as legais consequências (também de facto), se for caso disso.

Deste modo, sempre de acordo com o modelo de recurso da matéria de facto do Código de Processo Penal e dentro do mandato assim definido (como restrito à detecção do erro de facto nos moldes expostos), passa a conhecer-se então das razões do recurso do recorrente B..

Impugna este a matéria de facto fixada na sentença, na parte concernente aos factos provados nos nºs 8, 9 e 10, em relação à velocidade de circulação do comboio tripulado pelo recorrente e ao procedimento de circulação com o sistema de CONVEL desligado.

Dissemos que o faz cumprindo minimamente os ónus de especificação. Na verdade, apesar de alguma falta de clareza é ainda perceptível a sua pretensão nesta parte.

Insurge-se também contra a consignação nos factos provados dos pontos 14, 15, 16, 21, 22, 23 e 24, alegando tratar-se de matéria conclusiva.

Começando pelos “concretos pontos de facto” indicados, impugnam-se os consignados em 8. – “O comboio n.º 4415 partiu dentro do horário e o maquinista e arguido B. não pediu a alteração da carta do comboio para que fosse diminuída a velocidade, conduziu à velocidade de cerca de 120 km/hora e não desligou o sistema de CONVEL, sistema de controlo de velocidade do comboio”; em 9. – “O maquinista do comboio n.º 4415 e arguido B. sabia que de acordo com as normas regulamentares em vigor da C P. com o freio da My da UTE 2116 isolado teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio, bem como deveria circular com o sistema de CONVEL desligado”; e em 10.- “Ao km 88 da linha do Norte, entre as estações de Mato de Miranda e Vale Figueira, o comboio n.º 4415 seguia a uma velocidade de cerca de 120 km/hora, não inferior a 110 km/hora cruzou-se com o comboio n.º 832, o qual procedia do Porto com destino a Lisboa”.

Impugna-os na parte da velocidade de circulação do comboio e do dever de circular com o sistema de CONVEL desligado. E como concretas provas procede à transcrição de 50 páginas de declarações de arguido, esclarecimentos de peritos e depoimentos de testemunhas, pretendendo que o tribunal reavalie toda esta prova, agora segundo a sua linha de raciocínio.
Mas o questionamento de que se trata aqui, como dissemos, não é o de novo julgamento, mas o de saber se estas provas permitem a detecção do erro de facto no julgamento já efectuado em 1ª instância.

E a resposta será negativa.

Com efeito, quanto à velocidade de circulação do comboio, necessariamente imprimida pelo recorrente pois era o maquinista, a prova resultou logo das declarações confessórias do próprio arguido. A fundamentação da sentença é (agora) neste ponto tão clara, que bastaria confirmar aqui se o tribunal de julgamento, que se apoia nessa confissão, ouviu efectivamente bem.

Ora, o arguido não só nunca negou frontalmente este facto, perante o tribunal, em julgamento, como afirmou textualmente “eu fiz a marcha com o comboio a 120”.

Esta velocidade, expressamente admitida por quem se encontrava em melhores condições de a esclarecer, vem ainda ao encontro dos resultados obtidos por via da prova pericial, que no exame crítico da prova correctamente também se examina e não vamos aqui reproduzir.

No entanto, perante uma confissão de arguido, uma ausência de questionamento desse valor pelo próprio arguido nas suas declarações prestadas em julgamento, a que acresce o (mesmo) resultado a que se chega tendo em conta o horário de partida e a hora de chegada ao destino da composição em causa, como também se dá agora nota no exame crítico, revela-se totalmente inútil, neste contexto e face às novas explicações da sentença reformulada, a discussão sobre a aplicabilidade ou não do Decreto-Lei nº 291/90 ao material ferroviário.

Quanto à circulação do comboio com o sistema de CONVEL desligado que, de acordo com a factualidade provada, seria o procedimento devido nas concretas circunstâncias em causa, essa prova resultou também das perícias e esclarecimentos de peritos que se identificam no exame crítico.

Esses esclarecimentos foram no sentido de que existindo “um comboio a circular com deficiências, com limitações no seu sistema de travagem, não pode funcionar com o sistema de travagem automático” (transcrição a fls. 2657 das declarações de JD). Ainda quanto à velocidade devida, de 80 Km com acompanhante e de 100 Km sem acompanhante, o senhor perito esclareceu “… como (o comboio) tem deficiências no sistema de travagem, o maquinista precisa de apoio para a condução do comboio. Do ponto de vista de segurança isso, para mim, faz sentido”.

No ponto 9 considerou-se como provado que “… o arguido B. sabia que de acordo com as normas regulamentares em vigor da C P. com o freio da My da UTE 2116 isolado teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio, bem como deveria circular com o sistema de CONVEL desligado.”

O recorrente não impugna verdadeiramente este facto, embora, na 43º conclusão do seu recurso, lhe proponha outra redacção: “De acordo com as normas regulamentares em vigor à época na CP, que viriam a ser posteriormente alteradas, o isolamento do freio da MY deveria, numa linha equipada com este sistema, determinar o desligamento do sistema Convel que, por sua vez, implicava que a circulação se fizesse a uma velocidade máxima de 80 Km/h sem estar o maquinista acompanhado por um agente de apoio e a uma velocidade máxima de 100 Km/h quando acompanhado por esse agente”.

A prova do facto descrito em 9 resultou de prova pericial. Na instrução da perícia foi relevante a informação pedida à CP, sobre regulamentos internos que disciplinariam a presente situação, designadamente sobre a “instrução complementar de segurança nº 104/93”. A CP veio a prestar todos os esclarecimentos, pedidos pelo tribunal por iniciativa dos senhores peritos, e necessários à elaboração dos seus relatórios. Embora a instrução complementar de segurança nº 104/93, a se, não se encontre junta ao processo, não há dúvida fundada de que não correspondesse ao teor das informações e esclarecimentos prestados sobre ela pela CP, nem o próprio arguido a põe em causa eficazmente, conforme resulta da redacção do ponto 9., que propõe.

Assim, inexiste fundamento para a pretendida alteração: a prova do facto 9., na parte relativa aos factos objectivos, decorre das perícias e esclarecimentos dos peritos, e na parte relativa ao “saber” do arguido, deriva como consequência racional e lógica dos factos anteriores – pois se o arguido era o maquinista ao serviço da CP, não desconheceria os regulamentos internos e instruções de segurança emanados pela sua entidade empregadora para a circulação de comboios.

Relativamente aos factos apelidados de conclusivos, cuja retirada da matéria de facto provada se pretende – “14.- Como consequência directa e necessária da actuação dos arguidos…, PM sofreu as lesões; 15.- Da factualidade supra descrita resultou, em concreto, perigo para a vida de PM e consequências permanentes …; 16.- O arguido B., ao ser-lhe dito pelo arguido C., que o freio da MY 2116 havia sido isolado, devia inteirar-se dos motivos porque tal ocorrera em ordem a …; 21.- Os arguidos B., C. e D., pelas funções que exerciam, sabiam que os comboios circulam a grandes velocidades, que se cruzam nas linhas, e qual o estado em que circulava o comboio n.º 4415 e, embora não tendo previsto que a aludida rosca se poderia soltar por força da velocidade, se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, podiam e deviam prevê-lo; 22.- Os arguidos B., C. e D., ao actuar da forma acima descrita, omitindo o dever de se informarem da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado agiram de forma voluntária; 23.- Não previram sequer a possibilidade da rosca se poder soltar embora se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado o pudessem e devessem prever, e não representaram também que a mesma causasse a PM as lesões supra referenciadas; 24.- Os arguidos B. C. e D. actuaram com imprudência ao não se terem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, e designadamente o arguido B. ao não conduzir o comboio n.º 4415 a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; o arguido C. ao não ordenar ao maquinista que circulasse a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; e o arguido D. ao não ter procedido à reparação devida do referido tubo cilíndrico da UTE 2116, antes optando por amarrá-lo com um arame de aço” – eles são efectivamente, em boa parte, conclusivos.

Mas são-no, no sentido de se retirarem como consequência lógica de outros factos, esses também considerados como provados, de constituírem uma consequência racional e coerente daqueles. E a uma (outra) dúvida sobre se se tratará aqui, afinal, ainda de “factos” ou já, antes, de uma leitura para-jurídica de outros factos, responde Castanheira Neves com a afirmação do “insolúvel círculo lógico” entre questão de facto e questão de direito.

É redundante a afirmação da importância da precisão do “facto da ordem do ser”, da “realidade que se avalia” (Kelsen Teoria Pura do Direito, 2008, p. 19), bem como da preocupação do julgador em “completar” e/ou “encurtar” “o relato originário até a situação de facto conter só os elementos do acontecimento real, mas também todos eles, que têm relevância para a apreciação jurídica” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 1969, p. 286).

Mas há que aceitar que «o “puro facto”e o “puro direito” não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar ao facto; pelo que, quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria de direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto» (António Castanheira Neves, “A Distinção entre a Questão-de-facto e a Questão-de-direito e a Competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de «Revista»”, in Digesta, 1995, pp. 483-530).

Daí que se observe com normalidade a dificuldade em traçar, nalguns casos, a exacta fronteira da matéria de facto a subsumir juridicamente.

No contexto, não é merecedora de reparo a decisão de “provado” relativamente aos reputados factos conclusivos.

Por tudo, é ainda de concluir que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas avaliadas é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem a prova; que o tribunal justificou adequadamente as opções que fez relativamente à escolha e graduação dos contributos probatórios, com apelo à lógica e à experiência comum, sempre no respeito do princípio do in dúbio, tudo amplamente explicado no acórdão. Pelo que se finaliza com um juízo de não detecção do erro de facto.

De igual modo o erro notório de facto não é detectável na sentença, agora também em relação aos arguidos D. e C, os quais, verdadeiramente, pretendem é discutir a causalidade da sua actuação na produção do acidente, problemática a abordar no ponto seguinte.

(a.3.) e (b.3) Do erro de direito
Os três recorrentes pugnam pela absolvição no pedido cível (única questão sobrante que cabe resolver).

Fazem-no, no entanto, como mera decorrência do recurso em matéria penal. Por seu turno, a impugnação em matéria penal apresenta-se também fortemente alicerçada na derivação do provimento do recurso da matéria de facto.

No entanto, apesar da total improcedência do recurso da matéria de facto, mantêm-se em aberto algumas questões jurídicas que exigem conhecimento. Não pode considerar-se que a confirmação da condenação cível decorra automaticamente e sem mais da simples improcedência do recurso da matéria de facto.

No que respeita ao recorrente B., a comprovação da violação de deveres de informação e regras de procedimento na condução do comboio não resolve em definitivo as questões que coloca no seu recurso. Defende este arguido que “não há nexo causal entre o não desligar o Convel e circular a velocidade normal e o resultado”, que “não era previsível para um homem médio tal resultado, sendo este imprevisível mesmo para quem dominasse a totalidade do nexo causal” e que “não ficou provado que o resultado se teria evitado caso o recorrente tivesse actuado de forma diversa”.

Também os recorrentes D. e C. controvertem a causalidade, defendendo que esta se estabelece em relação à velocidade imprimida na condução pelo co-arguido maquinista, arguem a imprevisibilidade do resultado e a inexigibilidade de um comportamento diverso ao adoptado por ambos.

Tratando-se embora de sindicância da sentença na parte cível, tendo esta condenação assentado na responsabilidade extra-contratual (decorrente da prática de facto penalmente ilícito), cumpre verificar da susceptibilidade dos factos provados realizarem o tipo de crime. Pois da resposta afirmativa, e uma vez esgotadas as questões colocadas em recurso, derivará a confirmação da condenação.

De acordo com a definição do objecto dos recursos, está questionada (pelos três recorrentes) a imputação objectiva, verdadeiro “problema de fronteiras da responsabilidade penal” (Fernanda palma, Direito Penal, Parte Geral, 2013, p. 96).

Os demandados contestam a relevância da contribuição individual de cada um para o resultado (problema da causalidade cumulativa) e o recorrente B. apela ainda ao comportamento lícito alternativo (embora não o nomeando).

A sentença condenou os três arguidos como autores de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência (do artigo 148°, n.º 1, e n.º 3, com referência ao artigo 144°, alíneas a), b), c), e d) do Código Penal)

Os elementos objectivos do tipo negligente nos crimes materiais ou de resultado consistem na violação de um dever objectivo de cuidado, na produção de um resultado típico e na imputação objectiva desse mesmo resultado típico.

A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal).

Na formulação de Roxin, à causalidade e previsibilidade (que revelam que foi criado um risco) deve acrescer a criação de um risco proibido e a concretização desse risco proibido no resultado.
Os factos relativos às condutas que importam agora realçar (para além de todos os restantes supra transcritos) são os seguintes:

“ 9.- O maquinista do comboio n.º 4415 e arguido B. sabia que de acordo com as normas regulamentares em vigor da C P. ... teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio, bem como deveria circular com o sistema de CONVEL desligado.

10.- Ao km 88 da linha do Norte, entre as estações de Mato de Miranda e Vale Figueira, o comboio n.º 4415 seguia a uma velocidade de cerca de 120 km/hora, não inferior a 110 km/hora cruzou-se com o comboio n.º 832, o qual procedia do Porto com destino a Lisboa.

11.- Ao cruzarem-se, do comboio n.º 4415 soltou-se a rosca que fazia parte do tubo cilíndrico do sistema de freio (regulador SAB) que vinha amarrado com um arame de aço, com um peso aproximado de 3,9 kg..

12.- A qual embateu na carruagem n.º 22-40.032-4 do comboio n.º 832 partindo o vidro da janela, sendo projectada para o seu interior, vindo a atingir a face de PM ….

16.- O arguido B., ao ser-lhe dito pelo arguido C., que o freio da MY 2116 havia sido isolado, devia inteirar-se dos motivos porque tal ocorrera em ordem a informar-se do estado do freio, (regulador SAB), danificado e tomar os cuidados necessários ao estado dessa peça, o que não fez e sabia que, por força das normas regulamentares em vigor na C. P. conduzindo um comboio com o freio da My isolado deveria fazê-lo a uma velocidade não superior a 100 km/hora, desde que acompanhado por um elemento de apoio na cabine ou até 80 km/hora se sozinho e, bem assim, que deveria circular com o sistema de CONVEL desligado.

17.- O arguido C., na qualidade de inspector de tracção e como superior hierárquico, sabia que deveria ter ordenado expressamente ao maquinista do comboio n.º 4415 que desligasse o sistema de CONVEL e que circulasse a uma velocidade reduzida.

18.- O arguido D. devia informar-se do estado e composição interior do freio, (regulador SAB), danificado do interior da peça tubo cilíndrico desse (regulador SAB) a fim de tomar os cuidados necessários ao estado dessa peça, o que não fez.

21.- Os arguidos B., C. e D., pelas funções que exerciam, sabiam que os comboios circulam a grandes velocidades, que se cruzam nas linhas, e qual o estado em que circulava o comboio n.º 4415 e, embora não tendo previsto que a aludida rosca se poderia soltar por força da velocidade, se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, podiam e deviam prevê-lo.

22.- Os arguidos B., C. e D., ao actuar da forma acima descrita, omitindo o dever de se informarem da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado agiram de forma voluntária.

23.- Não previram sequer a possibilidade da rosca se poder soltar embora se se tivessem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado o pudessem e devessem prever, e não representaram também que a mesma causasse a PM as lesões supra referenciadas.

24.- Os arguidos B. C. e D. actuaram com imprudência ao não se terem inteirado, como deviam, da composição do interior da peça tubo cilíndrico (regulador SAB) avariado, e designadamente o arguido B. ao não conduzir o comboio n.º 4415 a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; o arguido C. ao não ordenar ao maquinista que circulasse a uma velocidade reduzida e com o sistema de CONVEL desligado; e o arguido D. ao não ter procedido à reparação devida do referido tubo cilíndrico da UTE 2116, antes optando por amarrá-lo com um arame de aço.”

Como já se notou no acórdão anterior proferido neste TRE, e como teria sido desejável, o facto “relação da velocidade com o desprendimento da peça e a sua projecção” não aparece expressamente consignado (na sentença) junto dos factos narrados no “grupo dos factos do tipo objectivo do crime”.

Considerou-se ser no entanto ainda possível retirá-lo do conjunto de todos os factos, nos quais se incluem aqueles que integram o tipo subjectivo (negligente). Pois dizer-se, entre outros, que “o arguido B. (…) embora não tendo previsto que a aludida rosca se poderia soltar por força da velocidade, se se tivesse inteirado (…) podia e devia prevê-lo” seria implicitamente considerar que a rosca se soltou e projectou da forma provada, na decorrência da velocidade imprimida na condução do comboio, pelo arguido.

Nesse contexto global de enunciação dos factos integrantes da negligência, considerou-se então ainda viável a sentença, como cumpridora da descrição do facto total, necessário ao preenchimento do tipo negligente. Por essa razão se decidiu não ocorrer vício do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal e não se ordenou a repetição do julgamento. Toda esta avaliação é automática e necessariamente transponível para o acórdão presente.

Acrescenta-se, no entanto, novo reparo, desta feita à articulação do facto provado “teria que circular a uma velocidade máxima de 80 km/hora sem estar acompanhado por um agente de apoio na cabine e a uma velocidade máxima de 100 km/hora quando acompanhado por um agente de apoio” sem que se tenha procedido à concretização de qual, afinal, a velocidade máxima permitida no contexto em causa (80 Km/h ou 100 Km/h ?).

Assim se procedeu, sendo certo que tal concretização relevaria para a decisão e que era perfeitamente demonstrável em julgamento (de acordo com as provas transcritas nos recursos, o maquinista circularia desacompanhado de um “agente de apoio”). Trata-se de circunstância que não pode ser agora aditada ou esclarecida, nem relevar para nenhum efeito (tanto mais que influiria contra o arguido).

No entanto, também aqui se opta pela não declaração de vício da sentença (do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal – insuficiência da matéria de facto provada) pois, em qualquer das duas situações, o arguido sempre circularia a velocidade superior à devida e sempre teria violado o dever.

Cumpre, então, decidir da imputação objectiva.

Estamos em presença de um caso de causalidade cumulativa, em que “o evento típico é produto de múltiplas causas, sendo cada uma por si só insuficiente para produzir o resultado”, o que pode “paralisar a imputação” (Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Geral, 2013, p. 93).

Sobretudo nos casos de negligência releva um princípio da confiança, segundo o qual o agente que adopta um comportamento adequado pode confiar que os outros procederão de idêntico modo. Mas o princípio da confiança deixa de poder aplicar-se quando essa confiança, em face de circunstâncias do caso, reconhecíveis para o agente, se apresente como injustificada. O princípio da confiança cede relativamente a comportamentos ilícitos de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar.

Seguindo posições desenvolvidas por Roxin e Jacobs, a partir do momento em que o agente começa a actuar ilicitamente, em que viola o seu dever de cuidado há um relaxamento e um desprendimento de atitude que pode justificar a imputação.

E se é certo que, no caso, nenhum dos agentes (dos demandados) sabia ou previa o resultado, se se tivesse(m) inteirado e/ou não omitido a informação, como deviam, teriam podido saber e prever.

Transpondo assim para o caso, e cumprindo saber se o princípio da confiança poderia aqui ter conduzido ao afastamento da imputação objectiva – no pressuposto de que cada um dos arguidos confiaria em que o outro adequaria o seu comportamento à regra de conduta – a resposta é negativa. Os arguidos deixaram de poder invocar o princípio da confiança, de poder dizer que confiavam que o outro cumpriria a regra de conduta, a partir do momento em que ocorreu a violação do seu dever.

Na verdade, dos factos provados resulta que todos os arguidos violaram deveres objectivos de cuidado – o arguido B. deveria ter conduzido a uma velocidade inferior à que imprimiu ao comboio e ter desligado o sistema convel, bem como deveria ter obtido melhor informação; os arguidos C. e D. descuraram informação sobre a peça danificada, modos de procedimento em relação a essa mesma peça, bem como a informação devida ao maquinista.

Resulta igualmente que a essas violações se seguiu a produção de um resultado típico – a projecção da peça metálica com a sequente lesão grave da integridade física da vítima. Pode dizer-se, pois, que todos eles contribuíram para a produção do evento, ou seja, para a projecção da peça metálica e a consequente causação das ofensas no corpo e na saúde da vítima.
Mas a afirmação de que ocorre uma situação de causalidade cumulativa que não obsta à imputação implica ainda um juízo positivo sobre a repercussão da ilicitude no resultado. Ou seja, relevante para a imputação objectiva é ainda a demonstração (com uma elevada probabilidade) de que o cumprimento do dever não se apresentaria no caso como inútil.

A consideração do comportamento lícito alternativo pode evidenciar uma ausência de conexão de risco entre determinada conduta ilícita e o resultado. Assim sucede nos casos em que esse resultado se apresente como inevitável mesmo que o agente cumpra com o dever.

É aqui que se situa a argumentação do recorrente B., de que não estaria demonstrado que o acidente não tivesse ocorrido mesmo que conduzisse o comboio à velocidade legal.

Nesta situação hipotética – em que a projecção da peça com a força necessária à causação das lesões sempre ocorreria mesmo circulando o comboio à velocidade regulamentar – seria de afastar a conexão de risco entre a conduta ilícita do demandado e o resultado (através da consideração do comportamento lícito alternativo).

Sucede que não ficou demonstrado – não no sentido de certeza prático-jurídica, mas de instalação de uma dúvida razoável sobre essa circunstância – que o resultado fosse inevitável mesmo que algum dos demandados tivesse cumprido com o dever.

Não será de considerar o comportamento lícito alternativo invocado pelo recorrente B.. Não sendo processualmente exigível ao arguido (para a sua absolvição) a demonstração da verificação do resultado independentemente da actuação negligente, sob pena de violação do in dubio pro reo, também não pode impor-se à acusação a prova de que o resultado não ocorreria sem a violação do dever, sob pena de prova diabólica.

Dito de outro modo, não era exigível ao arguido B. a demonstração de que a peça teria sempre atingido e lesionado a vítima, mesmo que conduzisse o comboio a 80 Km/h ou 100Km/h e com o convel desligado – o que, a defender-se, se apresentaria como violador de princípios processuais e constitucionais de prova que aproveitam ao arguido.

Contudo, para que lhe pudesse aproveitar, traduzindo-se em factos e relevado juridicamente, o comportamento lícito alternativo teria de se apresentar no processo, pelo menos como uma hipótese razoável.

O que não sucedeu.

Pelo contrário, não só ficou demonstrada a relação da velocidade (praticada na condução) com a projecção da peça com a força e no modo provados, como os esclarecimentos dos peritos em julgamento apontaram até no sentido de que a uma menor velocidade do comboio a força de projecção da peça seria necessariamente bastante inferior e muito dificilmente atingiria a vítima. Isto, mesmo para a condição (não demonstrada) de que, nesta hipótese de adequada condução, ainda pudesse ter ocorrido a libertação da peça metálica.

Contudo, deixa-se claro que este facto (de que uma condução conforme aos regulamentos de segurança teria evitado a lesão) não constando dos factos provados não pode ser aqui juridicamente tratado como se constasse. Referimo-nos agora às declarações dos peritos, não para aditar factos à sentença, mas para deixar bem claro que esta conjectura – de comportamento lícito alternativo – não se colocou como hipótese séria em julgamento e não pode relevar agora em recurso.

Ou seja, inexistiu qualquer dúvida razoável – e seria apenas disso que se trataria, como dissemos – sobre a possibilidade de ocorrência do resultado independentemente da(s) condutas violadora(s) do(s) devere(s) pelos arguidos.

E embora a problemática do comportamento lícito alternativo não possa ser arredada da discussão/decisão sobre a imputação objectiva, nada indica que, no caso concreto, ela se tivesse apresentado como uma hipótese capaz (sustentada nas provas) e devesse ter influído expressamente na decisão.

Pois que, repetimos, a prova apontaria até em sentido contrário, sendo dispensável, nestas circunstâncias, o aditamento de factos descritivos de todas as hipóteses de comportamento lícito alternativo, não sendo razoável impor ao Ministério Público que os articule na acusação, nem que os demonstre em julgamento, sob pena de exigência de uma alegação e prova diabólicas.

Não se trata aqui de (ilegal e inconstitucional) inversão ou repartição de ónus de prova em processo penal, mas tão só da constatação da inexistência de uma dúvida razoável que se tenha instalado quanto à eventual (in)utilidade do cumprimento do dever.

A imputação (objectiva) deixar-se-ia de fazer apenas na presença dessa dúvida fundada sobre a probabilidade razoável de que o cumprimento do dever por parte do arguido fosse no caso inútil para o resultado não ocorrer. A mera alegação deste facto em recurso não basta.

Identificada e reconhecida a conexão de risco entre as condutas ilícitas dos três demandados e o resultado, e afastada a consideração do comportamento lícito alternativo, conclui-se pela imputação objectiva do resultado ofensas à integridade física do demandante à conduta dos demandados.

Por todo o exposto, esgotadas as questões colocadas em recurso e tendo as condenações cíveis assentado na responsabilidade extra-contratual que é de assacar aos demandados, resta confirmar a sentença na parte em que conheceu dos pedidos cíveis.

5. Da decisão

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Declarar extinto por prescrição o procedimento criminal em relação aos três arguidos recorrentes, revogando-se a sentença na parte da condenação penal;

- Julgar, no restante, improcedentes os três recursos, confirmando-se a sentença na parte das condenações em matéria cível.

Sem custas.

Évora, 10.12.2013

Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves

Fernando Ribeiro Cardoso

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[1] - Sumariado pela relatora