Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1463/07-1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
MEDIDAS DE COACÇÃO
Data do Acordão: 06/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. – O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas a que se refere a al. c) do art. 204º CPP, deve resultar de circunstâncias concretas e particulares, verificadas e aferidas em concreto, não se confundindo com a convicção – seja ela mais ou menos justificada - de que, em abstracto, certo tipo de crimes –v.g. o tráfico de estupefacientes – justifica sempre ou pelo menos em regra a aplicação de uma medida de coacção, maxime, a prisão preventiva, dado o seu carácter especialmente perigoso ou odioso.
II. O perigo de perturbação da ordem pública, reporta-se ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, operando a medida de coacção adequada – maxime a prisão preventiva – apenas como meio de esconjurar o risco de lesão significativa de bens jurídicos de natureza penal, em resultado de alteração previsível da ordem ou tranquilidade públicas , e apenas pelo tempo estritamente necessário.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. A. …, arguido nos autos de Inquérito que, com o nº …, corre seus termos na delegação do MP junto do Tribunal Judicial da Comarca de …, veio interpor recurso do despacho do senhor Juiz Afecto à Instrução Criminal no Círculo Judicial de … que, na sequência de promoção do MP, lhe aplicou a medida de coacção de Prisão preventiva, depois de ouvi-lo em 1º Interrogatório Judicial, em 21 de Abril de 2007.
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2. O arguido termina a sua motivação de recurso, formulando as seguintes
conclusões, que aqui se transcrevem:
“1) A prisão preventiva não tem em vista uma punição antecipada;
2) A medida de prisão preventiva, mesmo nos casos do art. 209º do CPP, só é admissível quando se verificam os pressupostos do art. 204º do CPP;
3) o arguido sofre de problemas pulmonares graves, sendo a sua condição incompatível com a permanência num estabelecimento prisional, sendo que a prisão preventiva determina necessariamente um agravamento do seu estado de saúde;
4) Acresce ainda que o arguido é primário, nunca tendo sofrido condenação pela prática de qualquer crime;
5) O arguido colaborou prontamente com a descoberta da verdade, tendo assumido a sua responsabilidade e a sua adição a substâncias estupefacientes;
6) É jovem e tem duas filhas menores, uma de quatro anos e outra de apenas um ano e sete meses, que necessitam do seu acompanhamento;
7) A prisão preventiva tem, por força da Constituição – art. 27º e 28º – e do Código de Processo Penal – art. 202º – de ser aplicada quando outras medidas cautelares se mostrem insuficientes
8) Neste caso em concreto, mostra-se suficiente para assegurar os fins processuais a medida de coação de Obrigação de permanência na habitação prevista no art. 201º do CPP ou mesmo Obrigação de apresentações diárias no posto policial da área de residência prevista no art. 198º do CPP
9) Foram violados, pelo despacho que decretou ao ora arguido requerente a medida de coacção Prisão Preventiva, os art. 27º, 28º e 32º nº2 da CRP e os art. 193º, 202º e 204º do CPP.”

3. - Respondeu o MP em 1ª Instância, pugnando pela manutenção da decisão judicial recorrida.

4. Nesta Relação, o senhor Procurador-geral Adjunto, emitiu Parecer concluindo igualmente que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

5. Cumprido o disposto no art. 417.º n.º 2, do C. P. P., o arguido apresentou a sua resposta.
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II. Fundamentação
1. Questão a decidir
Nos termos do art. 191º do CPP, a limitação total ou parcial da liberdade das pessoas mediante a aplicação de alguma das medidas de coacção ou garantia patrimonial legalmente tipificadas, apenas pode ter lugar em função das exigências processuais de natureza cautelar a que se reporta o art. 204º do C.P.P., o que traduz, no essencial, o princípio da necessidade. Por outro lado, as medidas a aplicar devem ser adequadas às exigências cautelares concretamente verificadas e proporcionais à gravidade do crime e das sanções que, previsivelmente, venham a ser aplicadas (art. 193º CPP), devendo ser revogadas ou substituídas por outras menos graves (art. 212º CPP) sempre que se verificar serem desnecessárias, inadequadas ou desproporcionais.
No que respeita aos requisitos ou pressupostos específicos previstos na lei para cada uma das medidas de coacção, o art. 202º do CPP faz depender a aplicação da Prisão preventiva da existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena superior a três anos e, ainda, da inadequação ou insuficiência das restantes medidas de coacção legalmente previstas, com o que claramente atribui carácter subsidiário à prisão preventiva, conforme é pacificamente entendido, carácter este que é igualmente afirmado no art. 193º nº2 do CPP.
No caso presente, o recorrente não fundamenta o recurso na inexistência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos ou das necessidades cautelares consideradas no despacho que aplicou a Prisão preventiva, isto é, perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública, mas antes na adequação e suficiência da Obrigação de Permanência na Habitação ( OPH) prevista no art. 201º do CPP ou mesmo Obrigação de apresentação periódica, (OAP) no posto policial da área de residência prevista no art. 198º do CPP para fazer face àquelas necessidades cautelares.
A questão a decidir no presente recurso é, pois, essencialmente, a da suficiência e adequação destas medidas de coacção para fazer face às necessidades cautelares em causa, pois a concluir-se assim tal implicará a revogação do despacho recorrido que aplicou ao arguido Prisão preventiva, cujo carácter subsidiário é claramente afirmado na lei de processo.

2. Vejamos então.
2.1. - O despacho recorrido fundamenta a aplicação da Prisão preventiva ao arguido, A. …, na existência de perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública: “ Os arguidos não têm rendimentos certos e apesar de não terem antecedentes criminais relacionados com o crime em apreço, encontrando-se inseridos em realidades familiares frágeis, verifica-se a nosso ver, pela situação financeira precária enunciada a existência de perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública.
Impõe-se, pois, pelo alarme social inerente ao crime em apreço e atendendo às consequências tão nefastas para a sociedade da prática do mesmo, a aplicação por que adequada e proporcional à situação em apreço da medida de coacção de prisão preventiva.”
2.2. - O arguido recorrente fundamenta a invocada suficiência e adequação das medidas de OPH ou OAP e consequente revogação da prisão preventiva, sobretudo nas circunstâncias de:
- sofrer de problemas pulmonares graves, sendo a sua condição incompatível com a permanência num estabelecimento prisional, sendo que a prisão preventiva determina necessariamente um agravamento do seu estado de saúde;
- ser primário, nunca tendo sofrido condenação pela prática de qualquer crime;
- ter colaborado prontamente com a descoberta da verdade, tendo assumido a sua responsabilidade e a sua adição a substâncias estupefacientes;
- ser jovem e tem duas filhas menores, uma de quatro anos e outra de apenas um ano e sete meses, que necessitam do seu acompanhamento.
2.3. Vejamos.
2.3.1. – Quanto à eventual relevância dos fundamentos invocados pelo arguido, impõe-se a seguinte apreciação:
a) Quanto aos problemas de saúde alegadamente provocados pela estadia no Estabeleciemnto prisional, não são susceptíveis de fundamentar a revogação do despacho recorrido, mas apenas – em abstracto - a suspensão da execução da medida nos termos do art. 211º do CPP; in casu, porém, não se mostram minimamente preenchidos os respectivos pressupostos, desde logo porque o arguido se limita a invocar a doença, sem esboçar sequer a prova da mesma.
Ter duas filhas menores também não é circunstância relevante para a decisão em causa.
b) Ser o arguido jovem (24 anos) e primário pode ser relevante, na medida em que tais circunstâncias, por via de prognose relativa à escolha e medida da pena a aplicar, possam apontar para a aplicação de pena não privativa da liberdade, pois o art. 193º nº 1 do CPP impõe que as medidas de coacção a aplicar em concreto sejam proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
No caso concreto, porém, a gravidade dos factos fortemente indiciados até ao presente, não permite um juízo de prognose no sentido da aplicação de pena não privativa da liberdade, atenta, sobretudo, a forma como se indicia que o arguido levava a cabo a compra e venda de produtos estupefacientes, ou seja, envolvendo um número crescente de vendedores e compradores, não exercendo actividade lícita com regularidade e apresentando-se com alguma preponderância face aos restantes envolvidos.
c) – Relativamente à sua afirmação de que colaborou prontamente com a descoberta da verdade, tendo assumido a sua responsabilidade e a sua adição a substâncias estupefacientes, não tem a mesma correspondência com a realidade espelhada nos autos, pelo que nada mais há a considerar a tal respeito.
2.3.2. – Vejamos agora da suficiência e adequação de outras medidas de coacção, invocadas pelo arguido.
Começamos por apreciar as necessidades cautelares invocadas no despacho recorrido, à luz das quais devemos, em concreto, aferir da necessidade, adequação e suficiência das medidas de coacção aplicáveis.
a) Relativamente à perturbação da tranquilidade pública, escreve-se no despacho recorrido:
“Impõe-se, pois, pelo alarme social inerente ao crime em apreço e atendendo às consequências tão nefastas para a sociedade da prática do mesmo, a aplicação por que adequada e proporcional à situação em apreço da medida de coacção de prisão preventiva.”
Ora, se bem compreendemos o sentido e alcance do pressuposto ou requisito geral acolhido na primeira parte da al. c) do art. 204º do CPP, o perigo de perturbação da ordem pública de que aí se fala, sempre deve resultar de circunstâncias concretas e particulares, verificadas e aferidas em concreto, não se confundindo com a convicção – seja ela mais ou menos justificada - de que, em abstracto, certo tipo de crimes –v.g. o tráfico de estupefacientes – justifica sempre ou pelo menos em regra a aplicação de uma medida de coacção, maxime, a prisão preventiva, dado o seu carácter especialmente perigoso ou odioso.
Esse entendimento teve já expressão positiva no processo penal português, quer na vigência do CPP de 1929 - v.g. o Dec-lei 477/82 de 22 de Dezembro, que estabelecia a categoria dos crimes incaucionáveis -, quer já no domínio do CPP de 1987, cujo art. 209º consagrava o dever de especial fundamentação para a não aplicação da prisão preventiva nos crimes puníveis com prisão de máximo superior a 8 anos, para além de outros especialmente elencados, entre os quais se contava o tráfico de estupefacientes. [1]
Todavia, esta última norma foi revogada pela Lei 59/98 de 25 de Agosto e não lhe sucedeu qualquer outra semelhante, sendo certo que a excepcionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva, acolhida no art. 28º da CRP, impõem interpretação e aplicação da citada al. c) do art. 204º do CPP que não represente a repristinação do regime legal há muito revogado.
O perigo de perturbação da ordem pública, que só com muita dificuldade pode considerar-se entre as exigências processuais de natureza cautelar, de que o art. 191º do CPP faz depender as medidas de coacção, reporta-se ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, operando a medida de coacção adequada – maxime a prisão preventiva – apenas como meio de esconjurar o risco de lesão significativa de bens jurídicos de natureza penal em resultado de alteração previsível, e apenas pelo tempo estritamente necessário.
Afigura-se-nos que o ordenamento jurídico português actual não contempla entre os fundamentos das medidas de coacção e, em especial da Prisão preventiva, a ideia de alarme social, com o sentido amplo e abstracto que detinha à época dos crimes incaucionáveis, e que, conforme refere Roxin, citado por João Castro e Sousa, faz lembrar , “… o famoso motivo de prisão do direito nacional-socialista o alarme social ( Erregung in der of fentlichkeit) que permitia a prisão de uma pessoa pelo simples facto da sua conduta causar alarme, agitação ou intranquilidade na sociedade.” [2]
Mais próximo do sentido e alcance a reconhecer àquela al. c), parece-nos encontrar-se a actual redacção do art. 144º do Código de Processo Penal francês, alterado em Setembro de 2002 pela chamada Lei da Presunção de Inocência, cujo nº3 tem a seguinte redacção: “ La detention provisoire ne peut être ordonnée que si elle constitue l´unique moyen (…)
3. – De mettre fin à um trouble exceptionel et persistant à l´ordre public provoqué par la gravité de l´infraction, les circonstances de sa commission ou l´importance du préjudice qu´elle a causé.”
Ora, no caso sub judice não emerge dos autos situação diversa da verificada na generalidade dos casos de tráfico de estupefacientes de características idênticas, pelo que não se verifica, in casu, o pressuposto ou requisito geral previsto na al-c) do art. 204º do CPP.
b) Diferentemente, no que respeita ao perigo de continuação da actividade criminosa. O arguido tinha como única actividade conhecida o tráfico de estupefacientes, encontra-se inserido em realidade familiar frágil e a amplitude da actividade de venda que, até ao momento, resulta dos autos, fazem concluir pela seriedade do perigo de continuação da actividade de compra e venda de produto estupefaciente que a sua detenção interrompeu.
c). – Importa concluir agora, se só a prisão preventiva se mostra adequada a prevenir aquele perigo ou se outra medida de coacção, nomeadamente a OPH, é suficiente, como pretende o arguido.
Antecipando a conclusão, entendemos que embora o despacho recorrido não fundamente, expressis verbis, a inadequação ou insuficiência de outras medidas de coacção, maxime a OPH, conforme impõe a natureza subsidiária da Prisão preventiva positivamente afirmada nos arts 193º nº2 e 202º nº1, CPP, essa inadequação e insuficiência. resulta suficientemente dos autos.
Na verdade, conforme consta da enunciação criteriosa dos factos típicos fortemente indiciados, ausente do despacho judicial que aplicou a medida (não obstante o disposto no art. 194º CPP), mas feita pelo MP na sua resposta, desde Novembro de 2006 que o arguido tem vindo a dedicar-se à comercialização de haxixe e cocaína, a qual era feita preferencialmente no interior da sua residência, onde se deslocavam indivíduos que pretendiam adquirir tais produtos, mediante o pagamento de quantias monetárias elevadas, circunstância esta que, para além de outros elementos probatórios constantes dos autos, resulta do relatório de vigilância de fls 814.
Ora, a medida de Obrigação de Permanência na Habitação, ainda que mediante Vigilância Electrónica, não responde satisfatoriamente ao perigo de continuação da actividade criminosa a partir da sua residência, pois aquela medida de coacção visa sobretudo assegurar o confinamento do arguido ao espaço determinado e os termos da sua eventual mobilidade, pelo que, face ao quadro actualmente reflectivo nos autos, só a prisão preventiva pode desempenhar cabalmente aquela função.
Impõe-se, pois, manter a medida de coacção aplicada.
III. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, A. …, mantendo integralmente o despacho que lhe aplicou a medida de Prisão preventiva.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC - cfr art. 513º nºs 1 e 3 do CPP e 87º nºs 1 b) e 3.

Évora, 26 de Junho de 2007
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)
António João Latas
Maria Guilhermina Vaz Pereira Santos de Freitas
Carlos Jorge Viana Berguete Coelho




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[1] Conforme pode ler-se em anotação da época, ao art. 209º do CPP/87, “ São crimes de muita gravidade, aferida pelos valores que vioam e pelas penas que a lei comina, e que em regra, são motivo de grande alarme social, tudo denotando elevada perigosidade dos seus agentes”. – cfr Maia Gonçalves, CPP Anotado, 3ª ed-1990, p. 308.
[2] Cfr João castro e Sousa, Os meios de coacção no novo Código de Processo Penal in Jornadas de Direito processual penal-CEJ, Almedina-1995, p. 152(n. 10).