Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4922/17.1T8STB-A.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
AVALISTA
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. Compete aos oponentes/avalistas, no âmbito das relações imediatas, o ónus da prova quanto à existência de pacto de preenchimento de livrança e respetivo abuso de preenchimento, por se tratar de um facto impeditivo do direito de crédito invocado pelo exequente, nos termos do n.º2 do art.º 342.º do C. Civil.
2. A livrança dada à execução, avalizada pelos recorrentes, tem natureza de título executivo, sendo exigível e exequível a obrigação cambiária dela emergente, face à literalidade e abstração da obrigação cambiária, pois perante a garantia prestada pelo aval os embargantes assumiram a responsabilidade direta do pagamento da quantia titulada na livrança nos mesmos termos que a sociedade avalizada.
3. No caso de ação cambiária não se torna necessário que a exequente alegue a relação subjacente no requerimento executivo. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório.
Os executados M…, P… e R… vieram, por apenso à execução que lhes move a Caixa Geral de Depósitos, S.A., deduzir a presente oposição à execução, alegando que a exequente não juntou qualquer comprovativo da operação de crédito inerente à livrança dada à execução, não faz prova da existência da dívida, não esclarece o objeto do crédito e nada refere quanto à forma de interpelação dos executados, razão pela qual o requerimento executivo é inepto por falta de alegação da causa de pedir; e não juntou aos autos qualquer pacto de preenchimento da livrança, nem demonstra quais os montantes que, alegadamente, se encontravam em dívida, motivo pelo qual não é possível aferir se o valor constante da livrança corresponde de facto ao alegado valor em dívida, encontrando-se verificada a exceção do preenchimento abusivo.
E com base em tais fundamentos pediram a sua absolvição da instância.
A exequente apresentou requerimento no qual juntou aos autos a “proposta de desconto” referente à livrança dada à execução.
Foi proferido despacho em que se decidiu que o requerimento da exequente se consubstanciava numa verdadeira contestação, mas que a mesma se tinha por não escrita por ter sido apresentada fora do prazo.
Os embargantes pronunciaram-se sobre o documento junto pela exequente para fazerem notar que o mesmo está rubricado e assinado apenas por dois intervenientes, não por quatro, ao que a exequente contrapôs que as assinaturas em causa pertencem aos representantes legais da proponente do desconto, ou seja, da sociedade subscritora da livrança.
Saneado o processo, foi proferida a competente sentença que julgou totalmente improcedente a oposição.
Desta sentença vieram os opoentes/executados interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A) Não podem o Recorrentes concordar com esta fundamentação, na medida em que o pedido e de causa de pedir são totalmente diferentes da função do título executivo, isto é, cada um tem uma função própria e, embora possam coincidir em determinados aspectos, não são a mesma coisa.
B) Qualquer outra obrigação que não possua título executivo terá que recorrer a uma acção declarativa, para ali obter uma sentença favorável, para, querendo, posteriormente recorrer à acção executiva, sendo o primeiro requisito de procedibilidade.
C) A fundamentação e interpretação do tribunal a quo sobre a alínea e) do n.º 1 do artigo 724.º do Código de Processo Civil não tem cabimento, conquanto que a obrigação (aval) é abstracta e não foi fundamentada nem alegada no requerimento executivo.
D) Não é de aceitar a interpretação de que o título executivo encerra em si toda a causa de pedir e o pedido, devendo, assim, proceder a excepção dilatória invocada na oposição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 e 2 do artigo 186.º e alínea b) do artigo 577.º, todos do Código de Processo Civil e, consequentemente, deve a sentença recorrida ser revogada nesta parte.
E) Da fundamentação do preenchimento abusivo da livrança, o tribunal a quo justifica a sua decisão, tendo por base o carácter literal e abstracto da obrigação cartular e que os mesmos não poderiam ser contestados pelos avalistas, solução que não merece
acolhimento.
F) A evolução dos títulos de crédito tomou dimensões perversas, ou seja, a circulabilidade do título de crédito caiu em desuso, bastando, para tal, conferir a nossa jurisprudência.
G) Na grande maioria dos títulos de créditos, verifica apenas a intervenção da seguintes pessoas: Banco, Entidade Beneficiária e Administradores e/ou cônjuges.
H) É uma exigência no modus operandis dos bancos que apenas concedam financiamento a entidades, cujos administradores e respectivos cônjuges sejam avalistas, sendo que esta relação (Banco e Avalistas) é tão ou mais importante que a relação principal (Banco e Entidade Financiada.
I) Deve admitir-se que os títulos de crédito são apenas um recurso à obtenção de título executivo do que aderir as todas as funcionalidades dos títulos de crédito.
J) Não se verifica in casu as características e as funcionalidades do título de crédito.
K) Posto está que a presente relação é imediata, quer seja entre a Recorrida e a Entidade Financiada quer entre a Recorrida e os Recorrentes.
L) Sem se verificar uma das duas relações acima descritas, o financiamento não existiria nem tão-pouco estaríamos aqui a discutir a sua exigibilidade.
M) As duas relações (obrigado principal e avalistas) fundem-se numa só e não constituem duas relações distintas como prescreve o tribunal a quo.
N) Será então lícito aos Recorrentes discutirem o preenchimento abusivo da livrança, na medida em que o mesmo não foi feito com o seu consentimento nem de acordo com as suas instruções.
O) Estamos perante uma mera convenção, sem a força de título executivo nem título de crédito, ou seja, é um mero contrato que encerra obrigações e deveres entre as partes.
P) Os Recorrentes não renunciaram ao benefício da excussão prévia.
Q) A Recorrida não provou todos os requisitos para demandar os obrigados subsidiários, nomeadamente a inexistência de património do obrigado principal que possa fazer face à dívida exequenda.
R) A Recorrida não junta ao processo qualquer Pacto de Preenchimento associado à referida Livrança nem demonstra quais os montantes que, alegadamente, se encontravam em dívida no âmbito do referido contrato, pelo que não existe qualquer base no presente processo que permita aferir se o valor constante da Livrança, corresponde de facto ao alegado valor em dívida ou a qualquer outro aposto à mercê da vontade da Recorrida.
S) Não explicita em que se traduz a inoponibilidade da excepção de preenchimento abusivo, sendo esta relativa a obrigações cambiárias, há-de qualificar-se como excepção pessoal, fundada nas relações imediatas do seu subscritor com o portador imediato.
T) O preenchimento abusivo - tem a natureza de excepção peremptória, por constituir na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico pretendido pelo Recorrida.
U) Deverá proceder a excepção de preenchimento abusivo da Livrança dada em Execução, por violação do Pacto de Preenchimento, uma vez que os Executados não têm como apurar se os valores se mostram conformes com o Pacto de Preenchimento, excepção que se constitui como uma excepção peremptória por constituir na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico pretendido pela Exequente, revogando-se a sentença recorrida.
Assim, nestes termos e nos demais de direito que V. Exa., doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, revogar a sentença recorrida.
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Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Se o documento dado à execução constitui título executivo.
c) Se ocorreu abuso de preenchimento da livrança e, na afirmativa, qual a consequência jurídica.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
1.1. A matéria de facto considerada pela 1.ª instância, que não vem questionada e que se mantém, é a seguinte:
1. A execução baseia-se em livrança, no verso da qual os embargantes apuseram as suas assinaturas, surgindo as mesmas encimadas pelas expressões “Dou o meu aval ao subscritor”, “Dou para o meu aval ao subscritor” ou “para o meu aval ao subscritor”.
2. Na livrança em questão figura como subscritora a sociedade H…, SA.
3. A referida livrança foi emitida pela importância de € 20.000,00, preenchida com as datas de 2014.06.04 e 2014.08.04 como sendo as datas de emissão e de vencimento, respetivamente, e contém a menção “financiamento à tesouraria – reforma de livrança de € 30.000,00”.
4. No dia 24.06.2014 foi assinado, quer pelos representantes legais da sociedade H…, SA, quer pelos representantes da exequente, um documento denominado “Proposta para Desconto de Letras/Financiamento por Livrança”, com a menção de que se tratava de uma proposta para financiamento por livrança no montante de € 20.000,00.
5. No requerimento executivo o banco exequente alegou além do mais o seguinte:
“1- A exequente é portadora duma livrança, com a ref.ª interna n.º PT 00350689600520796, subscrita por H…, S.A. e avalizada pelos executados, no valor de €20.000,00 e com data de vencimento de 2014/08/04. ( Doc. 1, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido).
2- Não procederam os executados ao pagamento integral desses valor, apesar do vencimento.
3- A empresa subscritora foi declarada insolvente a 2014/10/30, por sentença proferida no âmbito do processo n.º 652/14.4TYLSB, que corre termos no Juiz 2, do Juízo de Comércio de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (Doc. 2, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido).”
6. O original da livrança foi junto aos autos de execução através de requerimento apresentado espontaneamente pela exequente em 07.07.2017, antes de ter sido proferido o despacho liminar.
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2. O Direito.
1. Do título executivo.
Nos termos do art.º 10.º/5 do C. P. Civil (anterior 45.º/1), é o título que determina o “fim e os limites da ação executiva”, e como fim possível, o seu n. º6 indica o “pagamento de quantia certa”, a “entrega de coisa certa” ou a “prestação de facto, “quer positivo, quer negativo” – Eurico Lopes Cardoso, in “Manual da Ação Executiva”, pág. 31.
Como ensinava José Alberto dos Reis, in “Processo de Execução”, Vol. I. 3.ª Edição, pág. 147, a propósito dos requisitos substanciais do título executivo, “O segundo requisito não está expressamente previsto na lei, mas é uma exigência da própria natureza e função do título executivo. O título executivo pressupõe necessariamente a afirmação de um direito em benefício de uma pessoa e a constituição de uma obrigação a cargo de outra.”
O título, nas palavras de Lebre de Freitas, in “A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6.ª Edição, pág. 43, “constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da ação executiva, isto é, o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade, ativa e passiva”.
Como refere Rui Pinto, in “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 142/143, “deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos”.
Neste sentido se escreveu no Acórdão do STJ de 15/3/2007, Proc. N.º 07B683 (Salvador da Costa): “A relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança tida por suficiente da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva.
O fundamento substantivo da ação executiva é, pois, a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração. Ele constitui, para fins executivos, condição da ação executiva e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas (…)”.
O art.º 703.º do C. P. Civil (anterior art.º 46.º, n. º1), fixa taxativamente as várias espécies de títulos executivos, nomeadamente “os títulos de crédito, ainda que mero quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento” – alínea c).
A propósito da natureza executiva dos documentos particulares, realçou Abrantes Geraldes [1]: «A apresentação de um documento a que a lei reconhece exequibilidade deixa em segundo plano a substância da relação de crédito, erigindo como fator determinante aquilo que é formalmente revelado pela simples análise do título. Por isso, para efeitos de ação executiva, mais importante do que a efetividade do crédito é a sua formalização num documento legalmente idóneo. A mera existência de um direito de crédito será irrelevante para efeitos da ação executiva se não se encontrar consubstanciado num documento que, de acordo com a lei, seja dotado de exequibilidade.
O título executivo é, assim, condição necessária da ação executiva, já que sem título não pode ser instaurada ação executiva; se for instaurada, deve ser indeferida liminarmente; se o não for, pode ser objeto de oposição à execução.
Mas, por outro lado, o título executivo é também condição suficiente da ação executiva, uma vez que a sua apresentação faz presumir as características e os sujeitos da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de se encontrar assegurada, com apreciável grau de probabilidade, a existência e o conteúdo da obrigação. Assim, a análise do título deve demonstrar, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da ação executiva”. 2. Quanto à livrança assinada em branco pelos avalistas, estabelece o art.º 10.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças - L.U.L.L (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem outra denominação de origem) que “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”
Para haver uma letra em branco, a assinatura que dela constar deve ter sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária ( Prof. José G. Pinto Coelho, in “Lições de Direito Comercial, 2.º Volume, As Letras”, Fasc. II, pág. 28 e segs).
E mais refere, a pág. 38, “é manifesto que, se o título foi preenchido por aquele a quem o subscritor o entregou , e com inobservância das cláusulas acordadas, a este pode o subscritor opor as exceções baseadas no abusivo preenchimento, ou nessa observância.
Quando se fala, pois, de acordos de preenchimento, tanto se considera os acordos expressos ou diretos como os tácitos ou indiretos. Pode mesmo dizer-se que, em regra, o acordo será tácito, definindo-se o seu conteúdo pelos próprios termos da relação fundamental, subjacente”.
O contrato de preenchimento mais não é do que o acordar os termos da relação cambiária, a fixação do seu montante, o tempo de vencimento, e a estipulação dos juros, além de outros elementos, o que o avalista só pode questionar se, ao subscrevê-lo, tiver condicionado a esses termos a prestação da sua garantia – cf. Ac. do S. T. J., de 22/2/2011, relatado pelo Exm.º Conselheiro Sebastião Póvoas, Proc. n.º 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1.
No contrato de preenchimento, as partes estabelecem os termos em que a letra de câmbio deve ser completada, nomeadamente o seu montante, a data de vencimento e juros devidos, visto que, como sucede, em regra, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra apurada ou vencida. Vencida e não cumprida a obrigação causal é preenchida a letra, a qual deverá ser paga na data do vencimento. Mas sendo a letra entregue em branco ao beneficiário e com as assinaturas dos seus subscritores (sacador, sacado, avalista) para em momento posterior a preencher, fica com a obrigação de o fazer nos precisos termos acordados, ou seja, estabelecer a quantia efetivamente em dívida e o respetivo prazo de pagamento.
Como refere Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, 5.ª Edição, pág. 82, “O contrato de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede de pagamento, a estipulação de juros, etc.”
O mesmo é dizer que a relação cambiária tem sempre subjacente uma relação fundamental ou causal, embora dela se autonomize.
E a questão coloca-se quando o beneficiário da letra viola esse acordo de preenchimento, pois estando a letra no âmbito das relações imediatas pode o aceitante defender-se contra o sacador invocando o preenchimento abusivo, ficando a cargo do aceitante o ónus de provar esse abusivo preenchimento.
É que nas relações imediatas não funciona as características da obrigação cambiária – literalidade e abstração.
E a mesma regra vale para o avalista, isto é, pode invocar, perante o sacador, o abusivo preenchimento da letra, desde que tenha tido intervenção no acordo de preenchimento.
O regime supra enunciado é aplicável às livranças, por força da remissão contida no art.º 77.º.
3. Feitas estas breves considerações sobre o regime legal aplicável, é tempo de descer ao objeto do recurso.
Como é sabido e consabido, a ação executiva visa a reparação efetiva do direito violado, que no caso concreto é justamente a satisfação do direito de crédito da exequente, o capital mutuado em dívida e respetivos juros e moratórios, titulado pela livrança dada à execução e cuja natureza de título executivo decorre do citado art.º 703.º, n.º1, alínea c), do C. P. Civil, na sua versão aplicável.
Com efeito, está assente que a execução baseia-se numa livrança, em que figura como subscritora a sociedade H…, S.A., foi emitida pela importância de € 20.000,00, foi preenchida com as datas de 2014.06.04 e 2014.08.04 como sendo as datas de emissão e de vencimento, respetivamente, e contém a menção “financiamento à tesouraria – reforma de livrança de € 30.000,00”, no verso da qual os embargantes apuseram as suas assinaturas, surgindo as mesmas encimadas pelas expressões “Dou o meu aval ao subscritor”, “Dou para o meu aval ao subscritor” ou “para o meu aval ao subscritor”, cujo valor não foi pago na data do seu vencimento.
E mais se apurou que no dia 24.06.2014 foi assinado, quer pelos representantes legais da sociedade H…, SA, quer pelos representantes da exequente, um documento denominado “Proposta para Desconto de Letras/Financiamento por Livrança”, com a menção de que se tratava de uma proposta para financiamento por livrança no montante de € 20.000,00.
Assim, sendo este o documento dado à execução, será em função dele que deve ser apurado se constitui, ou não, título executivo, relativamente aos embargantes/executados.
E a resposta só pode ser afirmativa, pois a obrigação cambiária nasceu com o preenchimento e subscrição da livrança.
E não se invoque ter havido abuso de preenchimento da livrança em causa ou violação do pacto de preenchimento.
Desde logo porque não estamos em presença de uma livrança em branco subscrita pelos embargantes, na qualidade de avalistas, já que decorre da factualidade assente que a livrança foi devidamente preenchida e foi nessa circunstância que foi dado o aval com a assinatura dos avalistas, ora recorrentes.
Depois, como tem sido entendido pela jurisprudência e foi decidido por este Coletivo [2], porque compete ao oponente/avalista, no âmbito das relações imediatas, o ónus da prova quanto ao preenchimento abusivo da livrança, por se tratar de um facto impeditivo do direito de crédito invocado pelo exequente, nos termos do n.º2 do art.º 342.º do C. Civil.
Neste sentido seguiu o Acórdão do STJ, de 28/9/2017 (Tomé Gomes), in dgsi.pt: “Já no domínio das relações imediatas, é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, nomeadamente a violação do pacto de preenchimento, recaindo sobre ele o respetivo ónus de prova, nos termos conjugados dos arts. 342.º, n.º 2, e 378.º do CC e artigos 10.º e 17.º da LULL a contrario sensu”.
Ora, os recorrentes não demonstraram, como lhes competia, que a letra foi por si avalizada em branco e os termos acordados quanto ao pacto de preenchimento e consequente violação desse acordo.
E como se realçou no Acórdão de 25/05/2017 (Fonseca Ramos), in dgsi.pt: “A certeza, a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art. 10.º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim, se mostra revestido de força executiva”.
Acresce que, como vem sendo entendido pela jurisprudência, “A lei cambiária não impõe ao portador do título que antes de acionar o avalista do subscritor lhe dê informação acerca da situação de incumprimento que legitima o preenchimento do título que o próprio autorizou” – cf. Acórdão de 25/05/2017 (Fonseca Ramos), in dgsi.pt.
Subscrevemos, pois, o que se exarou na sentença e que se transcreve:
“Referem ainda os embargantes que a exequente não juntou aos autos qualquer pacto de preenchimento da livrança nem demonstra quais os montantes que, alegadamente, se encontravam em dívida, motivo pelo qual não é possível aferir se o valor constante da livrança corresponde de facto ao alegado valor em dívida; que se encontra verificada a exceção do preenchimento abusivo (a exequente não demonstra que resolveu o contrato subjacente à emissão da livrança em branco), e que, por essa razão, impugnam o valor constante do título.
Cremos que também não lhes assiste razão.
Desde logo, deve notar-se que era aos embargantes que competia alegar e provar que a livrança não foi preenchida no momento em que foi assinada e entregue, e que o preenchimento da mesma se traduziu na violação do acordo de preenchimento.
Com efeito, é pacífico o entendimento de que o avalista apenas pode invocar a exceção do preenchimento abusivo quando seja parte no acordo de preenchimento, e desde que o título não tenha entrado em circulação – cf. acórdão da RL, de 14.03.14, em que se sustentou que o “avalista, desde que a livrança se encontre na “posse” do tomador inicial e tenha subscrito o pacto de preenchimento, pode opor a este as excepções do preenchimento abusivo daquela e da sua invalidade, por omissão da data de emissão, competindo-lhe o ónus da alegação e da prova dos factos integradores de tais excepções peremptórias” (sumário; proc. 22350/04.7YYLSB-A.L1-6, www.dgsi.pt).
Mas decisivo será referir que os autos revelam que não estamos sequer perante uma livrança em branco, ou seja, uma livrança a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75º da LULL, destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, e sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, isto, é, de um acordo ou pacto de preenchimento.
Deste modo, não tendo a livrança ajuizada sido assinada e entregue em branco à exequente, cai por terra toda a argumentação expendida pelos embargantes”.
Assim sendo, o título de crédito dado à execução (livrança, avalizada pelos recorrentes) tem natureza de título executivo, sendo exigível e exequível a obrigação cambiária dele emergente, face à literalidade e abstração da obrigação cambiária, pois perante a garantia prestada pelo aval os embargantes assumiram a responsabilidade direta do pagamento da quantia titulada na livrança nos mesmos termos que a sociedade avalizada.
4. Dizem ainda os recorrentes que não se pode aceitar “a interpretação de que o título executivo encerra em si toda a causa de pedir e o pedido, devendo, assim, proceder a excepção dilatória invocada na oposição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 e 2 do artigo 186.º e alínea b) do artigo 577.º, todos do Código de Processo Civil”.
Sobre esta questão, acompanha-se o que se escreveu na sentença recorrida:
Começam os embargantes por alegar que a exequente não junta qualquer comprovativo da operação de crédito inerente à livrança dada à execução, não faz prova da existência da dívida, não esclarece o objeto do crédito e nada refere quanto à forma de interpelação dos executados, o que determinaria a ineptidão do requerimento executivo por falta de alegação da causa de pedir.
Pensamos que não lhes assiste razão.
Na verdade, e salvo o devido respeito, além de o título conter a indicação do financiamento a que se refere, olvidam os embargantes que estamos perante uma ação cambiária, não sendo portanto necessário que a exequente alegue a relação subjacente no requerimento executivo (neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 12.04.2018, proc. 133/14.6TBBCL-A.G1, in www.dgsi.pt). Só seria de exigir à exequente a alegação da relação subjacente se o título fosse dado à execução como quirógrafo da obrigação, nos termos do art. 703º, n.º 1, c), do CPC, disposição que consagrou na letra da lei o que vinha sendo reiteradamente decidido pelos tribunais superiores”.
Resumindo, a sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, fez adequada aplicação do direito aos factos apurados, não merecendo qualquer censura.
Improcede, pois, a apelação.
Vencidos no recurso, suportarão os recorrentes as respetivas custas – Art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos recorrentes.
Évora, 2020/01/16
Tomé Ramião (relator)
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
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[1] ) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2007, proc. 5194/2007-7, in www.dgsi.pt
[2] ) Em Acórdão de 22/02/2018, proc. N.º 53/14.4T8ENT-A.E1.