Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
671/08.0PBVFX.E1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
REJEIÇÃO
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FACTOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 04/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário:
1. Não tendo sido admitida a instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, por omissão de narração dos factos pertinentes, fica prejudicado o conhecimento da invocada nulidade, por insuficiência do inquérito – que deve ter lugar na decisão instrutória.
2. O requerimento de abertura de instrução, formulado pelo assistente, deve ser estruturado como uma acusação e, designadamente, conter a narração dos factos ocorridos, com delimitação das respectivas circunstâncias, nos termos previstos nos artigos 287.º n.º 2 e 283.º n.os 3 alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, sob pena de não poder ser atendido.
3. Não há lugar ao convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº671/08.0PBVFAX do Tribunal Judicial de Setúbal, o assistente A veio interpor recurso do despacho de fls.90 a 92, que rejeitou o requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal da mesma, apresentando as seguintes conclusões (transcritas):

1.Existe insuficiência EXISTE UMA EVIDENTE E INDUBITÁVEL NULIDADE DOS DESPACHO RECORRIDO, por omissão de pronúncia – quanto à “insuficiência de inquérito” e respectivas consequências legais, abordadas no requerimento de abertura de instrução – do que foi apresentado ao Tribunal recorrido e que o mesmo se absteve de decidir. Cfr. Artigo 379º/1 d) do CPP.
2.Verificando-se nulidade do despacho, nos precisos termos do normativo a que respeita o artigo 379º/1 d) do CPP.
3.O Tribunal recorrido, este faz uma “interpretação” errada sobre as necessidades impostas pelo normativo a que respeita o artigo 283º/3 b) do CPP e, por outro lado, minimiza a importância dos factos que se encontram no requerimento de instrução de fls.
4.E porque a rejeição do requerimento de abertura de instrução se fundamenta na suposta inexistência de narração dos factos necessários à instrução, podemos, desde já, concluir – perante o supra exposto – que existe uma evidente e inquestionável errada interpretação dos normativos em referência (artigo 283º/3 b) do CPP e art. 287º/2 do mesmo diploma), por parte do Mmº. JIC.
5.Verificando-se, desta feita, violação dos normativos a que respeitam os arts. 286º, 287º e 283º do CPP.
6.Devendo proferir-se douto acórdão que decidisse no sentido de mandar prosseguir os autos de instrução, com a admissão do requerimento de abertura de instrução in focu.
Acresce,
7.Salvo o merecido respeito por opinião diversa, no presente caso – e uma vez que não existe total omissão dos factos alegados no requerimento de abertura de instrução em análise – a considerar-se a insuficiência da matéria factual, caberia ao Mmº. JIC proceder ao convite ao aperfeiçoamento a que se refere o normativo 123º/2 do CPP.
Pelo que,
8.Ao não proceder ao convite de aperfeiçoamento, nos precisos termos do supra exposto, o JIC violou o normativo a que respeita a norma constante no artigo 123º/2 do CPP.
9.A ser assim – isto é, a considerar-se insuficiente a factualidade constante no requerimento de abertura de instrução (o que aqui se refere no mero plano das hipóteses) – deverá o Tribunal superior mandar revogar o despacho de rejeição por outro convide ao referido aperfeiçoamento.

A Magistrada do Ministério Público na 1ªinstância respondeu ao recurso, no sentido de ser negado provimento ao mesmo e mantida a decisão recorrida [fls.114 a 123].

Nesta Relação, aquando da vista a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso [fls.130 a 134].
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

O DESPACHO RECORRIDO
O teor do despacho recorrido é o seguinte:

“O assistente A requereu a abertura de instrução nos termos constantes de fls. 73 não se conformando com o despacho de arquivamento de fls. 47.
Estabelece o art. 286.°, n.° 1, do CPP que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
De acordo com o art.287.°o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente, o disposto nas alíneas b) e c) do n.° 3 do art. 283.° do CPP.
Na alínea a) do n.° 3 do art. 283.° prevê-se a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada», enquanto na alínea c) do mesmo preceito, se estabelece «a indicação das disposições legais aplicáveis».
Na ausência de acusação pelo Ministério Público, o requerimento de abertura de instrução do assistente, deverá, assim, configurar uma verdadeira acusação alternativa, que delimitará o objecto da instrução, atenta a estrutura acusatória do processo penal, que vinculará tematicamente o tribunal - cf. acordão uniformizador de jurisprudência, STJ n.° 7/ 2005, D.R. 1 S-A, 4-11-2005.
Impõe-se que o requerimento de abertura de instrução contenha a descrição completa e factual de quanto o assistente imputa ao arguido, indicando, ainda, as normas jurídicas violadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo penal, e tendo em vista assegurar o eficaz funcionamento do princípio do acusatório - arts. 283.°, n.° 3, 284.°, n.° 2 e 287.°, n.° 2, in fine, do CPP.
A tal descrição factual e de direito obriga, ainda, o princípio da estabilidade do objecto do processo. Com efeito, é com a acusação ou com a pronúncia que se fixa o objecto do processo, admitindo-se apenas alterações excepcionais — arts. 303.°, 358.° e 359.° do CPP.
Ora, considerando que houve despacho de arquivamento do Ministério Público, inexistem quaisquer factos que possam constituir o objecto do processo, a menos que o assistente os descreva no requerimento de abertura de instrução.
A omissão ou imperfeição da factualidade contida no requerimento de abertura de instrução do assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público e, bem assim, a omissão da indicação das disposições legais aplicáveis, acarreta a nulidade do referido requerimento, que é de conhecimento oficioso, e integra o conceito de inadmissibilidade legal da instrução previsto no n.° 3 do art. 287.° do CPP, por se traduzir em ausência do objecto da instrução e na sua inexequibilidade - cf. acórdão do TRE de 31-1-2006, proc.2481/05-1, www.dgsi.pt, assim sumariado:
«1- Considerando a jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ de 12 de Maio de 2005, proferido nos autos de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência com o n° 430/04, é de concluir que a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução, por não conter as menções impostas por lei (art.° 28 7°, n. 2, do CPP), tem como fundamento a inadmissibilidade legal da mesma instrução.
2- A falta de tais menções não deve ser entendida restritamente como integrando a falta de condições de procedibilidade ou de perseguíbilidade criminal, mas deve ser equacionada com a função da instrução e a necessidade legal de fixação do objecto do processo na acusação; é que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve exercer as funções de uma acusação».
Na ausência de suporte fáctico e jurídico do requerimento de abertura de instrução, o juiz de instrução fica sem saber quais os factos que o requerente gostaria de ver indiciados e por que crimes deve o arguido ser pronunciado, o que inviabiliza a prolação de despacho de pronúncia, que a ser proferido seria sempre nulo, face ao disposto no art. 309.° do CPP, e, logo, inútil - cf. acórdão do TRE de 10-5-2005, proc. n.° 14/05-1, www.dgsi.pt, que conclui:
«1 — O Juiz de instrução não pode pronunciar o arguido por factos substancialmente diversos dos constantes da acusação ou do requerimento de abertura de instrução e, por isso, se não tiverem sido descritos os factos no requerimento de abertura de instrução, esta não tem objecto sendo, consequentemente, inexistente.
II — Tendo o juiz de instrução proferido despacho de não pronúncia nas referidas circunstâncias, proferiu um despacho após uma instrução legalmente inadmissível e sustentada num requerimento nulo.
III — O recurso interposto deste despacho deve, assim, ser rejeitado nos termos do art.° 42 0°, n°1, do CPP, por manifestamente improcedente».
É, ainda, tal requerimento de abertura de instrução insusceptível de convite a aperfeiçoamento, de acordo com a jurisprudência fixada nesse sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 297.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» - cf. acórdão uniformizador de jurisprudência, STJ n.° 7/2005.
No caso em apreço, percorrido o requerimento para abertura de instrução, verifica-se que o mesmo não descreve as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que serviriam para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena, limitando-se a invocar as razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento proferido nos autos.
«Não constitui uma verdadeira acusação alternativa, um requerimento de abertura de instrução, formulado pelo assistente, quando perante os crimes imputados, se limita a estabelecer um raciocínio de valoração probatória assente em presunção de correlação lógica, no sentido de o arguido ser o autor desses crimes, mas não preenche materialmente a alegada conduta incriminatória, as ilicitudes e culpa tipificadas. Não é a referência ou indicação das provas que valoradas segundo o assistente no sentido da incriminação do arguido, que fundamenta processualmente o requerimento de abertura de instrução como uma acusação, pois que este deve obedecer aos termos conjugados dos artigos 28 70, n. 2, e 283°, n. 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal» - cf. acórdão do TRE de 17-5-2006, proc. 543/06-1, www.dgsi.pt.
Verifica-se que o assistente não procedeu à narração dos factos que deverão servir para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena, nos termos do art. 283.°, n.° 3, alínea b) e 287.°, n.° 2, do CPP, impondo-se a rejeição do requerimento.
Termos em que, ao abrigo do art. 287.°, n.° 3, do CPP, rejeito o requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal da mesma.
O assistente beneficia de isenção de custas — art. 517.°, ai. b), do CPP, na redacção anterior ao D.L. n.° 34/2008, de 26 de Fevereiro.
Notifique.
Oportunamente, arquive os autos.”

APRECIAÇÃO
De harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 412º do CPP, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas.
No caso destes autos, são as seguintes as questões a conhecer:
- nulidade do despacho por omissão de pronuncia – art.379º nº1 al.c) do CPP.
- o requerimento para abertura da instrução contém ou não a narração dos factos fundamentadores da aplicação de uma pena.
- necessidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução.

1-Nulidade do despacho recorrido por omissão de pronuncia.
Invoca o recorrente que o despacho de fls.90 a 92 é nulo nos termos do art.379º nº1 al.c) do CPP uma vez que não se pronunciou sobre a suscitada questão da insuficiência do inquérito, a qual acarreta a nulidade prevista no art.120º nº2 al.d) do CPP.
Analisada a decisão recorrida constata-se, com efeito, que a mesma não aprecia a questão da insuficiência do inquérito, suscitada no requerimento de abertura da instrução.
Porém, a Mma. Juiza não se pronunciou no despacho recorrido nem lhe cabia aí fazê-lo, dado que este despacho não admitiu a abertura da instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal por não serem narrados os factos delimitadores do objecto do processo, sendo que a nulidade suscitada nesse requerimento só devia ser apreciada no debate instrutório uma vez admitida a instrução, ou seja, a invocada nulidade por insuficiência de inquérito apenas devia ser conhecida em momento posterior à admissão da abertura da instrução.
O art.308º nº3 do CPP estabelece que no despacho referido no nº1 – referindo-se ao despacho de pronuncia ou não pronuncia – o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
As nulidades a que se refere esta disposição legal são as suscitadas no requerimento de abertura de instrução ou então as que poderão ter decorrido no decurso da instrução, pois a lei não faz qualquer distinção entre as nulidades arguidas no requerimento de abertura de instrução e as que eventualmente possam ter sido cometidas no decurso da instrução.
Como refere Maia Gonçalves no Código de Processo Penal, 9.ª edição, pág. 562, em anotação ao artigo 308.º, as questões prévias que o juiz deve apreciar em primeiro lugar, como se preceitua no n.º 3, são todas aquelas que obstem ao conhecimento do mérito, ou seja que obstem a que o juiz pronuncie ou não pronuncie o arguido.
O momento próprio para decidir das nulidades ou questões incidentais será, assim, a decisão instrutória.
Uma vez que não foi admitida a instrução, bem andou a Mma.Juiza em não apreciar a invocada nulidade.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2-O requerimento para abertura da instrução contém ou não a narração dos factos fundamentadores da aplicação de uma pena.
O artigo 286º nº1 do CPP dispõe que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
E o art.287º nº2 do CPP estabelece que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº3 do artigo 283º. (…)»
Sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, o respectivo requerimento, por força da parte final do citado art.287º nº2, é ainda aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 2, alíneas b) e c), ambos do CPP, o que significa que tem de conter, sob pena de nulidade:
- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- a indicação das disposições legais aplicáveis.
Daí que a falta das exigências previstas na 2ª parte do artigo 287º, torna nulo o requerimento para abertura da instrução (artigos 287º, n.º 2 segunda parte, 283º, n.º 3, alíneas b) e c) e 118º, n.º1).
Estabelecendo o nº2 do art. 287º do C. P. Penal que ao requerimento do assistente é aplicável o disposto no artigo 283º, nº3, als. b) e c) e sendo esta norma aplicável ao requerimento de abertura de instrução, este deve conter uma verdadeira acusação.
A propósito do requerimento do assistente para abertura de instrução, refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Tomo III, Editorial Verbo 2009, pág.138, que tal requerimento «tem de conformar uma verdadeira acusação».
Esta exigência decorre da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo art. 32ºnº5 da CRP, impondo que o objecto do processo seja fixado com rigor em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução.
Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido nos arts.303 nº3 e 309 nº1, ambos do CPP, que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução e os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no nº1 desse art.303º.
O entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência, salientando-se, entre muitos, Ac.R.Évora de 3/12/2009, in www.dgsi.pt/jtre, Ac.R.P. de 20/1/2010, in www.dgsi.pt/jtrp, Ac.STJ de 25/10/2006 e 12/3/2009, in www.dgsi.pt/jstj, .
De salientar ainda que o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, Processo n.º 807/2003 – 2.ª secção, publicado no DR n.º 150, Série II, de 28-06-2004, não julgou inconstitucional a norma do art.283 nº3 alíneas b) e c) do CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.
Apreciemos o requerimento para abertura da instrução no caso em apreço, que se passa a transcrever na parte referente à matéria de facto:

“20-Num resumo da matéria factual que deu origem aos autos de inquérito em referência, o Digníssimo Magistrado do Ministério consignou que os autos se iniciaram com a queixa de A contra um indivíduo de nome C, pelos factos ocorridos:
a) No dia 23-05-2008, pelas 13:30 horas, no estabelecimento denominado F sito em Palmela. Factualidade que, nas palavras do escritas do referido despacho de arquivamento, “constituiu em insultos e numa ameaça: vou-te rasgar a cara com uma garrafa”;
b) No dia 16-05-2008, pelas 17:00horas, o referido denunciado referiu ao ofendido “já dei cabo de um se for preciso dou cabo de ti também”.
c) Quanto aos aditamentos de fls. 6 e 8, ficou expresso no referido despacho de arquivamento que “os factos de 27-05-2008 ocorreram no prédio onde o ofendido reside (…) e as mensagens SMS ameaçadoras (de fls. 8) terão sido enviadas durante o mês de Maio para o telemóvel do denunciado”.
21-Mais tendo resultado dos sobreditos autos, que José Silveira da Silva manifestou o seu desejo de requerer procedimento criminal contra todos os visados no presente procedimento criminal.
22-Tendo a testemunha T referido que os referidos D e E (e um outro que não se recorda o nome) terem ofendido verbalmente A, “chamando-lhe filho da puta e reivindicando o dinheiro que a empresa lhes devia” e que aquele D afirmou que “lhe fazia uma espera “.
23-Perante os mencionados factos, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público concluiu que “Essa factualidade seria susceptível de integrar, em abstracto, o crime de ameaças p. e p. pelo n°. 1 do artigo 153° do Código Penal, com a agravação prevista pela alínea a) do n° 1 do artigo 155° (...)“
-SIC
No entanto,
24-Refere-se no mencionado despacho de arquivamento, que “o material probatório carreado para o inquérito em resultado das diligências de investigação levadas a cabo não permite concluir, com uma certeza indiciária, pela verificação do aludido ilícito “. — SIC — [Sublinhado nosso!]
25-Mais se tendo exposto, como fundamento ao referido despacho de arquivamento, da alegada “(..) formulação genérica e abstracta de expressões objectivamente ameaçadoras (...)“ e que, dessa feita, “( - ) não pode considerar-se que tais expressões sejam adequadas a produzir um dos resultados descritos na norma incriminadora (...)”.
26-Tendo sido naquele pressuposto que foi proferido despacho de arquivamento.
27-Salvo o devido respeito e tendo em conta o que resulta dos autos em referência, não pode aceitar-se a orientação adoptada do mencionado despacho de arquivamento.
Desde logo,
28-Contrariamente ao que se menciona no sobredito despacho de arquivamento, o denunciante tomou, e toma a sério, as expressões ameaçadoras que lhe foram dirigidas pelos denunciados.
29-E disso se registou nos supra citados autos de inquérito, conforme resulta de fls. 3 verso e de fls. 7.
Na verdade,
30- A refere, quanto aos factos ilícitos dos dias 23.05.2008 e 16.05.2009, que lhe têm “(…) provocado medo e receio, pela sua integridade física e que os mesmos lhe perturbam a sua paz e sossego “, mais referindo que receia que o dito C concretize tal ameaça.
31-Quanto à factualidade a que respeita o aditamento efectuado a fls. 7 e 8, referiu, ainda, A: “(…) situação esta que tem provocado medo e receio pela sua integridade física e que as mesmas lhe perturbam a paz e sossego.”
32-Daqui resultando uma clara adequação entre as expressões de carácter ameaçador e um dos resultados típicos do crime de ameaças, no caso, o “medo ou inquietação” ou a “prejudicar a sua liberdade de determinação”.
33-Expressões ameaçadoras que se revelaram reais e, in concretum, se apresentaram como intimidadoras para a integridade física do denunciante que, assim, viu limitada a respectiva liberdade pessoal.
34-Perante tal constatação, o fundamento invocado no arquivamento dos autos de inquérito, deixa de ter qualquer sustentabilidade.
Igualmente,
35-Contrariando o despacho aqui visado, não pode deixar de referir-se da existência de indícios bastantes para que se procedesse a uma investigação mais completa e, em consequência, se deduzisse acusação contra todos os denunciados.
Vejamos porquê
36-Constituem “indícios suficientes” os elementos que, logicamente relacionados e conjugados, formam um conjunto persuasivo, na pessoa que os examina, sobre a existência de facto punível, de quem foi o seu autor e da sua punibilidade.
Ora,
37-Para além do que consta da participação criminal e respectivos aditamentos, resulta o seguinte material probatório:
a) A fls. 16 (auto de inquirição de A), o mesmo referiu que as injurias e as ameaças que denunciou, duram há cerca de dois meses e meio, e que, resumidamente, consistiam nas seguintes expressões injuriosas e ameaçadoras: “que era um cabrão, um filho da puta que lhe rasgava a boca toda com uma garrafa de vidro cortada (...)“e, ainda, “(...) que lhe ia fazer uma cilada”.
Ao que acresce o facto dos denunciados andarem em grupo de 4 ou 5 elementos, fazendo esperas à porta do trabalho da esposa do denunciante, para além das mensagens ameaçadoras efectuadas por telemóvel.
Por outro lado,
b) A fls. 18 (Inquirição da testemunha), o mesmo referiu recordar-se que os citados terão ofendido o denunciante “(…) chamando-lhe filho da puta e reivindicando o dinheiro que a empresa lhes devia” mais tendo esclarecido que o identificado D, dirigindo-se ao denunciante, exclamou que “lhe fazia uma espera (..) “.
38-Matéria probatória de onde se retira que, quer o denunciante quer a sua família, vivem um clima de terror e de medo, sem que possam estar nos respectivos locais de trabalho em paz e em plena liberdade de seus movimentos.
39-Sendo que, para além das injurias e das ameaças proferidas pessoalmente e por telemóvel, os denunciados mostram-se presentes — sempre em grupo de 4 ou 5 — num carro, como que mostrando das reais intenções de lesar a integridade física de José Silveira da Silva.
40-A e família — na pessoa de sua esposa — que, perante tal realidade, vivem um clima de terror, renovado em cada presença dos denunciados.
41-Factualidade que se enquadra na afirmação proferida pelos denunciados contra o denunciante quando referiu que “lhe fazia uma espera”, na intenção de ofender a integridade física do ora requerente.
42-Perante a sobredita matéria probatória, apresenta-se evidente da existência de fortes sinais indicativos, suficientes para fazer nascer a convicção de que os denunciados/arguidos venham a ser condenados, caso tais indícios se mantenham.
Nestes termos,
43-Salvo o devido respeito por entendimento diverso, in casu não existem dúvidas sobre o facto das expressões proferidas pelos denunciados contra o denunciante — e tendo em conta o enquadramento fáctico que resultam destes autos —, serem puníveis pela legislação penal aplicável. Cfr. Arts. 181° e 153° do Código Penal Assim,
44-Porque da fase de inquérito existem indícios bastantes e suficientes para se acusar os denunciados, o despacho de arquivamento de fls. fica desprovido de qualquer base legal que lhe sirva de suporte.
45-E, assim sendo, devem os aqui denunciados ser pronunciados pelos crimes de injúrias e de ameaças, previstos e punidos nas normas constantes nos artigos 181° e 153° do Código Penal, nos precisos termos das denúncias registadas contra os mesmos.”
Após a leitura do requerimento de abertura de instrução, conclui-se que o assistente não fez a narração dos factos ocorridos, delimitando de forma coerente as circunstâncias, nomeadamente, de lugar, em que teriam ocorrido, traduzindo-se antes aquele requerimento num acervo das razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento, para o que são mencionadas algumas expressões soltas, descontextualizadas, imputadas aos denunciados, mas sem uma descrição dos factos devidamente estruturada.
O ponto 20 do requerimento de abertura da instrução é uma mera transcrição do despacho de arquivamento e se atentarmos na al.c) de tal ponto, verifica-se que não são narrados os factos do dia 27/5/2008 nem o teor das sms, desconhecendo-se o que foi escrito e quando ocorreram, sendo que é insuficiente fazer referência a peças processuais (participação, aditamentos). Os pontos 22, 28, 30, 31 a 42 referem-se tão-só aos motivos pelos quais o assistente não se conforma com o despacho de arquivamento, mas não se traduzem na descrição, com clareza, dos factos que imputa aos denunciados.
No caso em apreço, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não contendo a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena, não se apresentando estruturado como uma acusação, não deu cumprimento às exigências previstas pelo art.287º nº2 ex vi art.283º nº3 al.b) e c), ambos do CPP.

Em conclusão, não merece qualquer reparo o despacho do Mmo.Juiz a quo ao rejeitar a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal.
Como se refere no citado Ac.STJ de 12/3/2009, «a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.». Neste sentido, v. ainda Ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3 e Ac.STJ de 7-12-1005 – proc. 1008/05.
Em conclusão, soçobra também este fundamento do recurso.

3- Necessidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução.
Entende o recorrente que sempre a Mma.Juiz a quo, caso entendesse que a narração dos factos era insuficiente, deveria convidá-lo a aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução.
Mais uma vez não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência fixada no Ac. nº 7/2005 do STJ, DR, I-Série A, de 4/11/2005 «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º, nº 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Tal acórdão de fixação de jurisprudência veio a consagrar a posição já assumida pelo Tribunal Constitucional, entendendo-se que o convite ao aperfeiçoamento contendia com os princípios constitucionais das “garantias de defesa do arguido” e do “acusatório”, consagrados no art.32º nº1 e 5 da CRP [v., entre outros, Ac.TC nº27/2001, de 30/1/2001, nº358/2004, de 19/5/2004 e nº389/2005, de 14/7/2005, in www.tribunalconstitucional.pt].
Estando em causa, uma peça processual equiparável à acusação, um convite por parte do juiz para a sua reformulação, para além de exorbitar a “comprovação judicial” objecto da instrução – art.286º nº1 do CPP – e os correspondentes poderes do juiz, implicaria de alguma forma uma “orientação” judicial, mais adequada a um processo de cariz inquisitório, contrariando deste modo a estrutura acusatória enformadora do nosso processo penal e consagrada no art.32º da CRP.
Por outro lado, a apresentação do requerimento do assistente para abertura da instrução para além do prazo estabelecido no art.287º do CPP violaria as garantias de defesa do arguido, pois nos casos em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente contende com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
E nem se diga, como o recorrente, que o acórdão de fixação de jurisprudência não é aplicável ao caso em apreço, por não existir total omissão dos factos, verificando-se uma mera irregularidade, a suprir nos termos do art.123º nº2 do CPP.
Esta jurisprudência é aplicável aos casos em que o requerimento de abertura da instrução não faz a narrativa dos factos em termos de consubstanciar uma acusação e é isso que ocorre nos presentes autos, em que o referido requerimento de abertura da instrução se traduz num conjunto dos fundamentos de discordância relativamente ao despacho de arquivamento em vez de proceder à narração, ainda que sintética, dos factos, enquadrando-os de forma clara e coerente no espaço e no tempo.
Nos presentes autos, o vício de que enferma o requerimento para abertura da instrução é a nulidade e não mera irregularidade, como invoca o recorrente, pelo que não há que chamar à colação o disposto no art.123º nº2 do CPP
Improcedem, pois, todos os fundamentos do recurso.

DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora acordam em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Évora, 13 de Abril de 2010 – Maria Luísa Arantes (relatora) – Alberto João Borges (adjunto)