Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
18/13.3TBVNO.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO
DOAÇÃO
LEGITIMIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Na ação anulatória de um contrato por erro, dolo ou coação, a relação controvertida não é apenas a relação contratual que se pretende extinguir. Antes dela, o objeto do litígio abrange, em primeira linha, o direito potestativo de anulação conferido por lei, com base no vício do consentimento, ao contraente enganado ou coacto, só este tendo por conseguinte (e não também o outro contraente) legitimidade para requerer, como autor, a anulação do negócio jurídico.
II - A herdeira legitimária não tem, em vida do doador, mais que meras expectativas de suceder àquele, pelo que não tem legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental do doador, já que a anulabilidade foi instituída para proteção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.
III - Para conseguir a anulação de uma declaração negocial com base no art. 257º do Código Civil, é necessário provar:
a) Que o autor da declaração, no momento em que a fez, se encontrava, ou por anomalia psíquica (cfr. art. 150º), ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do ato que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação declarativa, com processo ordinário, contra BB - Agência Imobiliária, S.A., CC, DD, EE, FF, GG e HH, pedindo que:
a) seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de doação outorgada em 04.01.2012 no 1º Cartório Notarial de Competência Especializada de Leiria, tendo por objeto o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº …, da freguesia de Fátima, em que foram doadores II e DD, e donatária a sociedade BB - Agência Imobiliária, S.A., ou se assim se não entender seja a mesma anulada;
b) seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição do dito prédio a favor da donatária.
Alegou, em síntese, que a autora e os 2º, 4º, 5º, 6º e 7º réus são filhos dos doadores DD (3º réu) e de II, esta falecida em 22.07.2012, sendo que em 05.11.1986, os réus CC, DD e a falecida II constituíram a 1ª ré sociedade BB - Agência Imobiliária, Lda., com capital social de 6.000.000$00, dividido em três quotas iguais de 2.000.000$00, pertencente a cada um dos sócios, sociedade que foi transformada em sociedade anónima em 04.01.2012 e da qual é administrador único o réu CC.
Mais alegou que na última data referida (04.02.2012), os seus pais, já divorciados, doaram à ré sociedade o aludido prédio, mas nessa data os mesmos não dispunham de discernimento para a doação, nem tiveram consciência do ato que realizaram, em virtude de doença incapacitante.
Os réus contestaram, excecionando a ilegitimidade dos réus EE (4ª ré), FF (5º réu), GG (6ª ré) e HH (7ªa ré), por não terem qualquer interesse direto em contradizer, já que não tiveram qualquer intervenção na doação do prédio em causa, e impugnaram os factos alegados pela autora, afirmando que os pais, apesar de padecerem de doenças, dispunham de capacidade de decisão, sendo que a doação realizada foi feita com o objetivo de proceder à conclusão da construção de um prédio, em relação ao qual existia pendente, há cerca de 30 anos, um litígio judicial entre os proprietários e o Município de Ourém, em cujo processo judicial foi feita uma transação que permitiu aos primeiros proceder ao licenciamento e retoma das obras em curso no prédio, tendo os doadores, considerando as repercussões fiscais que a construção do prédio acarretaria, se fosse construído em seu nome individual, optado por fazê-lo através da 1ª ré, concluindo que a doação foi feita com plena consciência do ato, das motivações, bem como das suas repercussões, acrescentando que apesar da doação feita, o património do dissolvido casal mantém-se o mesmo, e o prédio permanece no seio familiar, pois as ações da sociedade pertencem a toda a família.
Os réus deduziram reconvenção pedindo que a autora seja condenada a pagar à ré sociedade: i) a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de 1.794,54; ii) uma indemnização pelos danos patrimoniais futuros no montante de € 21.286,61; iii) uma indemnização pelos restantes danos patrimoniais que a mesma venha a sofrer até ao trânsito em julgado da sentença; iv) os juros vincendos sobre as ditas quantias, à taxa legal, desde a data da notificação da contestação/reconvenção até integral pagamento.
Mais pediram a condenação da ré no pagamento aos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º réus da quantia de € 1,500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a data da referida notificação até integral pagamento.
A fundamentar o pedido reconvencional alegaram os réus, resumidamente, que a autora, com o seu comportamento, tem vindo a inviabilizar as vendas das frações do edifício que a sociedade ré se encontra a construir, pintando expressões atentatórias da credibilidade e bom nome da mesma, levando os potenciais compradores a desistirem de comprar tais frações, impedindo-a dos necessários encaixes financeiros destinados a amortizar o crédito concedido para a construção, tudo no valor peticionado.
Houve réplica, concluindo a autora pela improcedência da exceção de ilegitimidade e demais matéria de exceção invocada, bem como do pedido reconvencional.
A autora apresentou articulado superveniente, requerendo que seja também considerada no pedido a nulidade da escritura de doação outorgada em 06.01.2012, no 1º Cartório Notarial de Competência Especializada de Leiria, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº …, da freguesia de Fátima.
Foi formulado convite para que a autora corrigisse a petição inicial apresentada, bem como o articulado superveniente, sob ponderação de que a factualidade alegada era insuficiente para caraterizar os possíveis vícios da vontade dos doadores.
Aceitando esse convite, veio a autora apresentar o articulado de fls. 277-281, concluindo como na petição inicial, tendo os réus respondido e concluído como na contestação/reconvenção.
Foi proferido despacho que julgou verificada a exceção da ilegitimidade da autora e absolveu os réus da instância.
Inconformada, apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra ordenado que os autos voltassem à 1ª instância para prolação de despacho sobre a arguida de omissão de pronúncia da decisão proferida.
Baixados os autos à 1ª instância, foi julgada verificada a nulidade invocada nas conclusões do recurso e, conhecendo-se da exceção de ilegitimidade passiva arguida pelos réus, julgou-se a mesma verificada por preterição de litisconsórcio necessário, absolvendo-se os 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º réus da instância, convidando-se a autora a suprir aquela exceção, fazendo intervir nos autos, como autores, todos os herdeiros de II.
Na sequência do despacho de fls. 662-664, ficou a instância estabilizada quanto às partes, nela figurando como autora e intervenientes, AA, CC, EE, FF, GG e HH, e como réus BB - Agência Imobiliária, S.A., e DD.
Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que não admitiu a reconvenção, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«a) Conforme consta dos autos, as partes foram notificadas em 25/10/2013 para apresentarem as provas, em conformidade com o disposto no artº 5/4 da Lei 41/2013;
b) Admitida a junção aos autos em 02/01/2014 de certidão judicial que contém relatórios médicos que contrariam outro relatório médico junto em 08/11/2013, é legitimo requerer, na audiência prévia, face a tal divergência, a realização de perícia;
c) O despacho que indeferiu tal perícia não constitui caso julgado formal (artº 593/3 CPC) por tal perícia se não inserir na al. a) do nº 1 do artº 595 CPC;
d) O despacho que indefere a perícia requerida e não contém fundamentação de direito é nulo, por violar o artº 154/1 CPC e 615/1-b), CPC e 205 da Constituição;
e) E contraria o disposto no artº 598 CPC.
f) Deve ser dado como provado que o doador DD sofria de doença que lhe causava perda de noção da realidade e delírios;
g) Deve ser dado como provado que o doador DD deixou de ter plena consciência das suas actividades e a plenitude das suas faculdades ao ponto de ter esbanjado uma fortuna de vários de milhões de euros
h) Deve ser dado como provado que o doador DD não teve consciência do alcance da escritura de doação e não quis doar.
i) Deve ser dado como provado que a doadora II carecia de ajuda e do acompanhamento de terceira pessoa para controlar o nível dos diabetes
j) Deve ser dado como provado que a doadora II não tinha discernimento para a prática do negócio por ter momentos de cegueira, não ouvir nem entendia,
l) Deve ser dado como provado que a doadora II não quis doar;
m) Os herdeiros legitimários têm legitimidade para impugnar doações feitas pelos pais, mesmo em vida destes, desde que para preservar o seu direito à legítima;
n) Sendo do conhecimento do Notário a alteração do pacto social e as limitações decorrentes dessa alteração, deveria ter feito cumprir o Cod. Sociedades Comerciais, e não tendo feito incorre em nulidade ao celebrar a escritura referida nos autos;
o) O Administrador da donatária, CC, com quem dos doadores viviam há cinco anos, ao omitir ao Sr. Notário o estado de saúde dos doadores, que ele conhecia, age em manifesta má-fé e completa reserva mental, com a consequente nulidade;
p) A douta sentença interpretou e aplicou incorrectamente os artºs 287, 257 e 546 do C. C.; os artºs 67/1, 70/1 e 71 do Cod. Notariado; os artºs 154/1, 599, 615/1-b) e 607/4, do CPC;
q) Os referidos preceitos devem ser interpretados e aplicados nos termos que se deixam expressos nas alegações.
E, em consequência, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção, como é de Justiça.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Antes de admitir o recurso, a Mm.ª Juíza a quo proferiu despacho no qual concluiu pela extemporaneidade da invocação da nulidade do despacho que indeferiu a realização de perícia médico-legal.
Pelo relator foi proferido o despacho de fls. 838, no qual manifestou a intenção de não conhecer do recurso na parte em que a recorrente veio arguir a nulidade do mencionado despacho, atenta a sua manifesta intempestividade.
Ouvidas as partes, apenas os réus/recorridos se vieram pronunciar, manifestando a sua concordância com o referido entendimento.
Foi então proferido novo despacho pelo relator, no qual se decidiu que o conhecimento do recurso de apelação interposto pela autora seria circunscrito às questões emergentes da sentença proferida nos autos.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II – ÂMBITO DO RECURSO
Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635º, nº 3 a 5 e 639º, n.º 1, do CPC[1].
Assim, das conclusões da recorrente retira-se que as questões a decidir são as seguintes:
- se a sentença é nula;
- se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
- se assiste à autora legitimidade para pedir a declaração de nulidade das doações feitas pelo réu, seu pai, em vida deste;
- se os atos notarias de celebração das escrituras de doação enfermam de nulidade.

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - II foi casada com DD e deixou como herdeiros legitimários os filhos:
a) AA;
b) CC;
c) GG;
d) FF;
e) EE; e
f) HH [art. 4º da petição inicial].
2 - O divórcio entre II e DD foi decretado em 30.04.1998 [art. 10º da petição inicial].
3 - DD passou a viver ora na Estrada da …, que é a residência da filha GG, ora na Rua da …, que é a residência do filho CC e agora, há cerca de 5 anos que vive apenas na residência deste [art. 16º da petição inicial].
4 - II outorgou em 19.08.2009 testamento a favor de CC [art. 2º da petição inicial].
5 - Em 02/02/2010, II e DD, por escritura de fls. 13, do U 108, da Notária Alexandra Heleno Ferreira, partilharam o prédio urbano em construção, composto de cave, rés-do-chão, primeiro, segundo, terceiro e quarto andares, com a superfície coberta de mil e trinta e um metros quadrados e logradouro com a área de duzentos e sessenta metros quadrados, sito na Rua …, Cova da Iria, freguesia de Fátima, concelho de Ourém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o número …, sobre o qual não incide qualquer registo de transmissão em vigor, inscrito na matriz sob o artigo …, pendente de alteração matricial, com o valor patrimonial de € 73.658,03, a que atribuíram o valor de um milhão de euros [art. 19º da petição inicial].
6 - Nessa partilha foi adjudicada a cada outorgante metade indivisa [art. 20º da petição inicial].
7 - Após a alteração matricial, o Serviço de Finanças atribuiu ao prédio o valor patrimonial de € 1.458.350,00 [art. 21º da petição inicial].
8 - À data da partilha II e DD residiam em casa do filho CC, na Rua da … [art. 24º da petição inicial].
9 - Por Título de Doação outorgado em 04.01.2012, no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Leiria, em que intervieram DD e II, como doadores, e BB - Agência Imobiliária, S.A., representada pelo administrador único CC, como donatária, foi doado pelos primeiros à segunda, o prédio urbano, prédio em construção, composto de cave, rés-do-chão, primeiro, segundo, terceiro e quarto andares, com logradouro, destinado a comércio e habitação, sito na Rua …, Cova da Iria, freguesia de Fátima, concelho de Ourém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o número …, da freguesia de Fátima, com aquisição a favor dos doadores registada pela apresentação …, de 05.02.2010, a que atribuíram o valor de € 1.458.350,00 [art. 31º da petição inicial].
10 - Por Título de Doação outorgado em 06.01.2012, no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Leiria, em que intervieram DD e II, como doadores, e BB - Agência Imobiliária, S.A., representada pelo administrador único CC, como donatária, foi doado pelos primeiros à segunda, o prédio rústico sito em …, Cova da Iria, freguesia de Fátima, concelho de Ourém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o número …, da freguesia de Fátima, com aquisição a favor dos doadores no estado de casados entre si, registada pela apresentação …, de 17.02.1998, a que atribuíram o valor de € 12,64, igual ao valor patrimonial [art. 11º do articulado superveniente].
11 - No dia 22.07.2012 faleceu II no estado de divorciada de DD [art. 1º da petição inicial].
12 - A favor da falecida II mostram-se inscritos na Conservatória do Registo Predial os seguintes imóveis:
a) Lote n° 5, sito em …, …, Fátima, descrito sob o n° … (fls. 89-90), e inscrito sob o artigo matricial nº …, com o valor tributário de € 186.940,00 (fls. 132);
b) O direito sobre o prédio urbano descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 91), e inscrito sob o artigo matricial nº … com o valor tributário de € 1.374,80 (fls. 130);
c) O direito sobre o prédio rústico descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 93), e inscrito sob os artigos matriciais nºs. …, …, … e …, com o valor tributário de € 8,38, € 10,15, € 14,48, € 12,62, respetivamente (fls. 126-129);
d) O direito sobre o prédio rústico descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 95), inscrito sob o artigo matricial nº …, com o valor tributário de € 71,13 (fls. 125);
e) O direito sobre o prédio rústico descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 97), e inscrito sob os artigos matriciais nºs …, …, …, …, …, …, …, e …, com o valor tributário de € 12,74, € 19,05, € 59,26, € 2,85, € 2,47 € 0,87 e € 0,87, respetivamente (fls. 112-124);
f) O direito sobre o prédio rústico descrito sob o nº … da freguesia de Fátima (fls. 100), e inscrito sob o artigo matricial nº …, com o valor tributário de € 35,38 (fls. 108);
g) O prédio descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 101), e inscrito sob o artigo matricial nº …, com o valor tributário correspondente de € 28,21 (fls. 107);
h) O prédio descrito sob o nº …, da freguesia de Fátima (fls. 103), e inscrito sob o artigo matricial nº … com o valor tributário correspondente de € 21,53 (fls. 106) [art. 47º da petição inicial].
13 - A doadora II sofria de diabetes Melitus Tipo 2, que se agravou a partir de meados do ano 2010 [resposta ao art. 11° da petição inicial].
14 - A diabetes que sofria tinha associadas complicações no âmbito da retinopatia, nefropatia, neurologia, macroangiologia, obstrução arterial periférica [art. 4° do requerimento de aperfeiçoamento de fls. 277-281 (parte)].

E foram considerados não provados os seguintes factos:
Da petição inicial:
- A doadora II carecia da ajuda e do acompanhamento permanente de terceira pessoa para controlar o nível dos diabetes [12º].
- A doadora II não tinha discernimento para a prática do negócio por ter momentos de cegueira, não ouvia nem entendia [34º].
Do requerimento de aperfeiçoamento junto a fls. 277-281:
- Tinha momentos confusos, hipersónia e estupor [2º].
- Que lhe motivava a falta de lucidez [4º (parte)]
- Fruto da doença que sofria, II não teve consciência do alcance da escritura de doação [22º (parte)]
E não quis doar [23º (parte)].
- O doador DD sofria de doença que lhe causava perda de noção da realidade e delírios [9º].
- Deixou de ter plena consciência das suas actividades e a plenitude das suas faculdades ao ponto de ter esbanjado uma fortuna de vários milhões de euros [13º].
- Tendo passado a necessitar do acompanhamento de terceira pessoa [31º]
- Fruto da doença que sofria, DD não teve consciência do alcance da escritura de doação [22º (parte)].
- E não quis doar [23º (parte)].

O DIREITO
Da nulidade da sentença
Diz a recorrente que a sentença recorrida enferma de nulidade, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, na medida em que, contrariamente ao que consta da sentença, foram alegados factos que demonstram a situação da ré sociedade aquando das doações, nomeadamente que no mesmo dia das respetivas escrituras o notário elaborou escritura de alteração do pacto social daquela ré, sabendo por isso das “limitações à intervenção do Administrador Único”.
A sentença, como ato jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do art. 615º do CPC.
De acordo com a alínea c) do nº 1 deste preceito, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Fundamento esse, de nulidade da sentença, que bem se compreende, pois que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a mesma, como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário. Pelo que constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que na mesma resulta enunciada.
Nada disto, porém, se passa com a sentença recorrida, visto os fundamentos de facto na mesma invocados suportarem a decisão proferida.
Diz a recorrente que relativamente à atuação da 1ª ré (BB), entendeu o Tribunal a quo que do ponto de vista externo «tudo terá sido cumprido e do ponto de vista interno nada foi alegado», o que é refutado pela recorrente que diz que «tudo isto foi alegado na p.i., não sendo verdade, pois, que nada foi alegado».
Poderíamos estar, eventualmente, perante um erro de julgamento da matéria de facto, por não terem sido considerados eventuais factos essenciais alegados pela autora/recorrente. Só que, de forma algo incoerente, na impugnação da matéria de facto, como veremos de seguida, a recorrente nada diz quanto à não inclusão desses factos na matéria de facto e o seu relevo para a decisão da causa, nomeadamente a alteração do pacto social da 1ª ré, documentada a fls. 75 e seguintes dos autos.
Seja como for, inexiste qualquer contradição entre os fundamentos de facto e a decisão geradora da nulidade da sentença recorrida.

Da impugnação da matéria de facto
(…).
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Mm.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Da legitimidade da autora
Na sentença recorrida, depois de se subsumir a situação dos autos ao regime da incapacidade acidental consagrada no art. 257º do Código Civil, entendeu-se, citando a propósito o acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2013[2], que o disposto no art. 286º do mesmo Código não confere aos herdeiros legitimários, legitimidade para pedirem a declaração de nulidade das doações feitas pelos pais, enquanto vivos forem, o que é o caso do réu DD.
No sumário do citado acórdão da Relação de Lisboa pode ler-se:
«1. Na acção de anulação de um negócio jurídico por virtude de incapacidade, erro, dolo ou coacção, só terá legitimidade como Autor o titular do direito de anulação (a pessoa a quem a incapacidade se refere, seu representante ou sucessor; o enganado ou o coagido.
2. A herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, mais que meras expectativas de suceder ao vendedor, pelo que não têm legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental da doadora, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.
3. Se for decretada a interdição é possível vir a invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pela (futura) interdita num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida, mas a iniciativa caberá, então, à pessoa que, sendo nomeada tutora, passa a representar o incapaz».
É sabido que a anulabilidade está sujeita ao regime do nº 1 do artigo 287º do Código Civil, nos termos do qual só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece.
Ora, «[n]a acção anulatória de um contrato por erro, dolo ou coacção, a relação controvertida não é apenas a relação contratual que se pretende extinguir. Antes dela, o objecto do litígio abrange, em primeira linha, o direito potestativo de anulação conferido por lei, com base no vício do consentimento, ao contraente enganado ou coacto, só este tendo por conseguinte (e não também o outro contraente) legitimidade para requerer, como autor, a anulação do negócio jurídico.»[3].
Conclui-se, assim, que a anulabilidade apenas pode ser invocada por determinadas pessoas e não por qualquer interessado.
A autora não integra o elenco de pessoas com legitimidade para suscitar a invalidade do negócio celebrado pelos doadores, com fundamento em alegada incapacidade acidental, pois que, ainda que seja herdeira legitimária não tem, em vida dos doadores, mais que uma expectativa do direito, não podendo impedir aqueles de dispor dos seus bens como melhor lhe aprouver.
E, ademais, não se mostra sequer decretada a interdição do doador, pelo que não merece censura a análise da questão feita na sentença recorrida.
Porém, uma vez chegados a esta fase do processo, o que importa considerar é o facto de a autora não ter logrado provar que o pai, ora réu – nem a sua falecida mãe -, se encontrasse acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração negocial emitida aquando da realização das escrituras públicas de doação.
Para conseguir a anulação de uma declaração negocial com base no art. 257º do Código Civil, é necessário provar:
«a) Que o autor da declaração, no momento em que a fez, se encontrava, ou por anomalia psíquica (cfr. art. 150º), ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário».[4]
Ora, atenta a factualidade apurada, logo se vê que nenhuma prova foi feita pela autora de que os seus pais, a falecida II e o réu DD, não tivessem capacidade de entender ou não estivessem no uso livre da sua vontade quando outorgaram as escrituras de doação celebradas em 04.01.2012 e 06.01.2012 a que se alude nos pontos 9 e 10 do elenco dos factos provados.

Da nulidade dos atos notarias
Diz a recorrente que sendo do conhecimento do notário a alteração do pacto social da ré sociedade e as alterações daí decorrentes, deveria o notário ter «feito cumprir o Cod. Sociedades Comerciais, e não o tendo feito incorre em nulidade ao celebrar a escritura referida nos autos» [conclusão n)].
Lido o corpo das alegações, infere-se que é entendimento da recorrente que o notário devia ter dado cumprimento ao art. 29º do CSC.
Este artigo dispõe, no seu nº 1, que a aquisição de bens por uma sociedade anónima ou em comandita por ações deve ser previamente aprovada por deliberação da assembleia geral desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Seja efetuada, diretamente ou por interposta pessoa, a um fundador da sociedade ou a pessoa que desta se torne sócio no período referido na alínea c);
b) O contravalor dos bens adquiridos à mesma pessoa durante o período referido na alínea c) exceda 2% ou 10% do capital social, consoante este foi igual ou superior a € 50.000,00;
c) O contrato de que provém a aquisição seja concluído antes da celebração do contrato de sociedade, simultaneamente com este ou nos dois anos seguintes à escritura do contrato de sociedade ou de aumento de capital.
O n.º 2 estipula que o disposto se não aplica a aquisições feitas em bolsa ... ou compreendidas no objeto da sociedade.
No n.º 4 dispõese que os contratos devem ser reduzidos a escrito, sob pena de nulidade.
O n.º 5 comina com a ineficácia as aquisições de bens previstas no n.º 1 quando os respetivos contratos não forem aprovados pela assembleia geral.
O preceito citado insere-se entre as medidas que visam proteger o interesse dos sócios e de terceiros, quanto à realização integral do capital social. O referido preceito não tem razão de ser quando o aumento de capital se verifica por incorporação de reservas. Com efeito, neste caso, «além de não terem que dispor de qualquer quantia, os sócios conservam inalteradas as suas posições relativas, uma vez que – nos termos do artigo 92.º do CSC – o aumento da participação social de cada um será proporcional à parte de que já era titular»[5].
Refere ainda o mesmo autor[6]:
«O fim pretendido com o regime jurídico das entradas em espécie – no sentido de evitar a sobreavaliação dos bens in natura que constituem a entrada de um sócio – seria facilmente defraudado com a admissibilidade das chamadas ‘quaseentradas’. Na verdade, se se permitisse à sociedade, logo após a constituição, adquirir – com o dinheiro das entradas e pelo preço que entendesse – um bem a um sócio, isso equivaleria, para todos os efeitos, à realização de uma entrada em espécie por parte deste, deitando por terra todo o esforço legislativo feito quanto a este tipo de entradas no momento da constituição. Deste modo, para evitar que um sócio, pretendendo fugir ao regime imperativo e particularmente rigoroso das entradas em espécie, realizasse, no momento da constituição, uma entrada em dinheiro e, de seguida, vendesse à sociedade – pelo preço que então poderia discricionariamente estabelecer – o bem com que efectivamente pretendia entrar para a sociedade, a lei no artigo 29.º do CSC veio expressamente proibir a aquisição de bens a acionistas quando estejam reunidos certos requisitos».
Do que fica referido resulta que, para efeitos da situação prevista no artigo 29.º do CSC, não têm qualquer relevância as doações feitas à sociedade, pois não está em causa a realização de qualquer entrada em espécie por parte dos doadores/acionistas à sociedade, aquando da sua transformação em sociedade anónima, em 04.01.2012, e correspondente aumento do capital social para € 50.000,00, deliberado pela assembleia geral, o qual foi integralmente realizado em dinheiro (cfr. doc. de fls. 75 e ss.).
Ademais, contrariamente ao que diz a recorrente, as escrituras de doação não enfermam de nulidade, porquanto não se provou que os doadores sofressem de incapacidade ou inabilidade para a prática dos respetivos atos (cfr. art. 71º, nº 2, do Código do Notariado).
Improcede pois em toda a linha o presente recurso, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:
I – Na ação anulatória de um contrato por erro, dolo ou coação, a relação controvertida não é apenas a relação contratual que se pretende extinguir. Antes dela, o objeto do litígio abrange, em primeira linha, o direito potestativo de anulação conferido por lei, com base no vício do consentimento, ao contraente enganado ou coacto, só este tendo por conseguinte (e não também o outro contraente) legitimidade para requerer, como autor, a anulação do negócio jurídico.
II - A herdeira legitimária não tem, em vida do doador, mais que meras expectativas de suceder àquele, pelo que não tem legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental do doador, já que a anulabilidade foi instituída para proteção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.
III - Para conseguir a anulação de uma declaração negocial com base no art. 257º do Código Civil, é necessário provar:
a) Que o autor da declaração, no momento em que a fez, se encontrava, ou por anomalia psíquica (cfr. art. 150º), ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do ato que praticou ou o livre exercício da sua vontade;
b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 11 de Maio de 2017
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
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[1] Como se viu supra, o recurso encontra-se circunscrito às questões emergentes da sentença recorrida.
[2] Proc. 282/13.8TVLSB.L1-6, in www.dgsi.pt.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manuel de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, p. 137.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 239, citando o acórdão do STJ de 3 de maio de 1974, in BMJ, nº 237, pp. 176 e seguintes.
[5] Paulo de Tarso Domingues, Do Capital Social, Boletim da Faculdade de Direito n.º 33, p. 67.
[6] Ob. cit., p. 87 e seguintes.