Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
509/18.0T8ELV-F.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: MASSA INSOLVENTE
SEPARAÇÃO DE BENS
PRAZO
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A procedência da acção intentada pelo ex-cônjuge, por apenso ao processo de insolvência, ao abrigo do artigo 146.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, implica apenas o mero reconhecimento da natureza comum dos bens em causa, atingidos pela diligência realizada no processo de insolvência e o consequente direito à separação de bens, não dispensando a ex-cônjuge da posterior concretização da partilha no processo adequado (inventário), sendo que, comprovando-se a instauração do processo de inventário, com vista à separação de bens, impõe-se a suspensão da liquidação dos imóveis apreendidos.
- E, concretizada que esteja a partilha dos bens do casal no processo de inventário, só então deverá prosseguir a liquidação no processo de insolvência, com a venda dos imóveis, no caso do quinhão do insolvente ser preenchido com essas verbas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 509/18.0T8ELV-F.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

AA veio intentar contra BB, a sua Massa Insolvente (representada pelo Administrador de Insolvência) e todos os Credores da Massa Insolvente (identificados nos autos principais), a presente acção para separação e restituição da sua meação em dois bens imóveis apreendidos da massa insolvente (devidamente identificados no processo), pedindo, a final, que seja decretada a aludida separação e ordenada a sua restituição e, em consequência, que se não proceda à liquidação dos bens enquanto não houver decisão judicial transitada em julgado, o que fez ao abrigo do disposto nos artigos 143.º, 146.º e 160.º, n.º 1, todos do C.I.R.E.
Alegou, em resumo, que foi casada, no regime da comunhão de adquiridos, com o insolvente entre 30-07-1977 e 16-12-2019, não tendo sido declarada insolvente no âmbito dos autos principais, nos quais vieram, todavia, a ser apreendidos todos os bens comuns do extinto casal, designadamente os melhor identificados no artigo 1º da petição inicial, circunstância que lesa o seu direito de propriedade sobre tais imóveis, designadamente o seu direito à meação.
Regularmente citados os RR., nem o insolvente, nem os credores da insolvência contestaram a presente acção.
No entanto, a Ré Massa Insolvente de BB veio contestar, alegando, em suma, que a Autora, tendo sido notificada pelo Administrador de Insolvência para requerer a separação de bens ou demonstrar que já havia sido requerida, nada demonstrou quanto a tal requerimento, sendo que a presente acção, desacompanhada do comprovativo da instauração do competente processo de inventário para partilha do património comum do extinto casal, não é meio processualmente idóneo para proceder à pretendida separação, pugnando, a final, pela improcedência da presente acção. Mais alegou que, não obstante a Autora não assumir a qualidade de insolvente, todas as dívidas reconhecidas no âmbito do processo de insolvência são também da sua responsabilidade, seja porque contraídas no exercício de actividade comercial durante a constância do seu matrimónio com o insolvente, seja porque por elas é solidariamente responsável por via contratual, pelo que, respondendo pelas dívidas comuns do casal o seu património comum, a apreensão deve manter-se.
Facultado à Autora o exercício do contraditório quanto à matéria de cariz exceptivo alegada na contestação da Ré Massa Insolvente, veio esta apresentar resposta, sustentando, no essencial, que a presente acção configura meio processual idóneo para requerer a separação de bens, sendo a tese inversa entendimento de uma franja minoritária da jurisprudência e da qual a dita Ré faz uma interpretação incorrecta e, bem assim, que as dívidas à Fazenda Nacional e ISS, I.P., ao contrário do alegado, não são comuns, mas exclusivas do insolvente, sendo que a dívida à Caixa Geral de Depósitos, S.A., ainda que da sua responsabilidade, não pode ser ressarcida no âmbito dos presentes autos, nos quais apenas se «executam» as responsabilidades do insolvente.
Por entender que o processo continha todos os elementos para a conhecer do mérito da causa foi proferido pela M.ma Juiz “a quo” o respectivo saneador-sentença, nos temos do art.595º nº1 alínea b) do C.P.C., no qual veio a julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, não reconheceu o direito da A. à separação da sua meação nos bens apreendidos para a massa insolvente, melhor identificados no respetivo auto de apreensão e cuja liquidação deverá, por isso, prosseguir os seus termos ulteriores.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões (devidamente sintetizadas nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil):
I. O direito à separação e restituição de bens apreendidos para a massa insolvente pode ser reconhecido, e exercido a todo o tempo, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, contra os credores e o devedor, como expressamente prevê o artigo 146.°, nºs 1 e 2, do CIRE.
II. O meio previsto nos artigos 146.° a 148.° do CIRE permite (ainda que esgotadas as possibilidades de reclamação) fazer valer os direitos à separação da massa insolvente da meação nos bens comuns.
III. Desde que exercido de acordo com o estabelecido no artigo 146.° do CIRE, e previamente à liquidação, o direito à separação ou restituição de bens não preclude, pelo que se pode, a todo o tempo, fazer uso do direito à separação ou restituição de bens.
IV. O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido por meio da propositura de ação contra a massa insolvente, contra os credores e o devedor, nos termos do artigo 146.° do CIRE, através de ação declarativa, por apenso aos autos de insolvência, sob a forma de processo comum, não havendo obrigatoriedade de propor inventário, nem estando prevista qualquer exceção no referido preceito por conta do processo de inventário.
V. Houve uma correta utilização da forma de processo nos presentes autos, pelo que não andou bem o tribunal a quo ao decidir pelo erro na forma de processo e, em consequência, nenhuma nulidade se infere de todo o processado.
VI. A propositura da ação para verificação ulterior do direito à separação e restituição de bens suspende a liquidação dos bens enquanto não houver sentença transitada em julgado.
VII. A existência de dívidas comuns do ex-casal garantidas pelo património comum não impede a determinação da separação da meação da recorrente nos bens comuns, encontrando-se um dos créditos hipotecários reclamados no presente processo de insolvência e no processo de execução instaurado contra a recorrente e o outro crédito hipotecário encontra-se em situação regular de cumprimento pela recorrente.
VIII. A existência de património comum garante de dívidas comuns do ex-casal não impede a suspensão da liquidação dos mesmos bens face à propositura da ação nos termos do artigo 146.° do CIRE.
IX. As dívidas restantes são da responsabilidade exclusiva do ex-cônjuge da Recorrente pelo que não pode a Recorrente, que não é, de todo, parte da ação de insolvência, ver a sua meação dos bens comuns ser integrada na massa insolvente.
X. Não há assim qualquer impedimento ao exercício do direito à separação ou restituição da meação dos bens comuns por parte da Recorrente através da presente ação declarativa, sob a forma de processo comum de verificação ulterior do direito à separação e restituição de bens.
XI. Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso de apelação merecer provimento e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que satisfaça a pretensão jurídica da Recorrente, tudo com as devidas e necessárias consequências legais.
Pelo Ministério Público, em representação do credor Estado (Autoridade Tributária), foram apresentadas contra alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se a propositura da acção prevista no artigo 146.º do CIRE, instaurada pela aqui A., é tempestiva e o meio processual próprio para a verificação ulterior do direito à separação e restituição de bens (concretamente de dois imóveis apreendidos para a massa insolvente), com a consequente suspensão da liquidação desses mesmos bens enquanto não for proferida a respectiva sentença transitada em julgado.

Antes de nos pronunciarmos sobre a questão supra referida importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo”, a qual, de imediato, passamos a transcrever:
1. Em 20-07-1977, BB e AA contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial.
2. Na constância do seu matrimónio, em 26-05-1978, BB e AA constituíram a sociedade comercial denominada «A..., Lda.», pessoa colectiva com o NIPC ..., com o capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros) e com o objecto social o exercício do comércio de electrodomésticos, acessórios, montagens e reparações, de que BB era gerente e titular de uma quota com o valor nominal de € 3.335,53 (três mil, trezentos e trinta e cinco euros e cinquenta e três euros) e AA titular de uma quota com o valor nominal de € 1.664,47 (mil, seiscentos e sessenta e quatro euros, quarenta e sete cêntimos).
3. Na constância do seu matrimónio, em 21-03-1990, BB e AA adquiriam do Município de ... e mediante recurso a financiamento bancário junto da Caixa Geral de Depósitos, S.A., o prédio urbano composto por ... com ..., ... e ... andar, destinada a habitação, e ..., sito na ... – Bairro ..., Lote ..., da União de Freguesias de ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...9 e inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo ...1.
4. Na constância do seu matrimónio, em 22-12-2000, BB e AA adquiriam a fracção autónoma designada pela letra ... do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., e Rua ..., ..., da freguesia ..., composto por um estabelecimento comercial na cave, com entrada privativa pela Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ....
5. Em 05-03-2018, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade «A..., Lda.».
6. Por sentença proferida, em 04-07-2019, nos autos de insolvência a que a presente acção corre por apenso, BB e AA foram declarados insolventes.
7. Na sequência de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 24-10-2019 e transitado em julgado em 12-11-2019, foi a sentença referida em 6. anulada e determinada a remessa dos autos à 1.ª instância com vista ao apuramento de factos essenciais à decisão da causa.
8. Por decisão proferida em 16-12-2019 (e transitada em julgado na mesma data), nos autos de divórcio por mútuo consentimento que correram os seus termos na Conservatória do Registo Civil de ... sob processo n.º 42181/..., foi o casamento contraído entre BB e AA declarado dissolvido e decretado o seu divórcio.
9. Por sentença proferida, em 12-03-2020, em cumprimento da decisão do Tribunal da Relação ... referida em 7, BB e AA foram declarados insolventes, tendo a referida decisão transitado em julgado quanto a BB em 03-04-2020.
10. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 10-09-2020 e transitado em julgado em 24-11-2020, foi revogada a sentença referida em 9 no que respeita a AA.
11. Em 30-03-2021, o Sr. Administrador de Insolvência nomeado nos autos de insolvência de BB apreendeu para a massa insolvente os prédios urbanos melhor identificados em 3 e 4.
12. Por carta registada com AR datada e expedida em 30-03-2021 e recepcionada em 01-04-2021, o Sr. Administrador de Insolvência nomeado nos autos de insolvência de BB comunicou a AA a apreensão dos bens comuns do (extinto) casal para a massa insolvente, notificando-a, ao abrigo do disposto no artigo 740.º, n.º 1, do C.P.C., para, na qualidade de cônjuge e querendo, requerer a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já houvesse sido requerida, no prazo de 20 (vinte) dias a contar da assinatura do aviso de recepção, sob pena de a liquidação prosseguir sobre a totalidade dos bens apreendidos.
13. Notificada do auto de apreensão referido em 11, em 20-04-2021, AA veio informar nos autos se que se havia divorciado, em 16-12-2019, de BB, dando conta de que oportunamente informaria os autos quanto ao resultado da partilha do património comum do ex-casal.
14. Para tanto notificado, em 29-07-2021, o Sr. Administrador de Insolvência nomeado nos autos de insolvência de BB veio juntar aos autos autor de apreensão rectificado em função do divórcio do casal.
15. No âmbito dos autos de insolvência de BB foram relacionados e reconhecidos pelo Sr. Administrador de Insolvência nomeado os seguintes créditos:
- Fazenda Nacional: € 21,59 (vinte e um euros e cinquenta e nove cêntimos), respeitante a custas devidas no âmbito de processo de reversão contra BB, na qualidade de gerente da sociedade «A..., Lda.»;
- Instituto da Segurança Social, I.P.: € 120.366,41 (cento e vinte mil, trezentos e sessenta e seis euros e quarenta e um cêntimos) respeitante a contribuições e quotizações devidas Segurança Social e devidas no âmbito do respectivo processo de reversão contra BB, na qualidade de gerente da sociedade «A..., Lda.»;
- Caixa Geral de Depósitos, S.A. (CGD, S.A.): € 129.079,38 (cento e vinte e nove mil e setenta e nove euros e trinta e oitos cêntimos), respeitante a quantias reclamadas no âmbito da celebração de 4 (quatro) contratos de mútuo, a saber:
A) Contrato de mútuo com hipoteca celebrado, em 29-12-2006, mediante o qual a credora CGD, SA. disponibilizou a BB e AA uma quantia de € 58.000,00 (cinquenta e oito mil euros) e que estes, por sua vez, se obrigaram a reembolsar em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, nas condições do referido título, constituindo a favor da primeira, para garantia das obrigações decorrentes do referido contrato de mútuo e até um montante de capital máximo assegurado de € 168.885,60 (cento e sessenta e oito mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e sessenta cêntimos), hipoteca voluntária sobre o prédio referido em 3, a qual foi definitivamente registada em 30-11-2006;
B) Contrato de mútuo celebrado, em 26-11-2008, entre a credora CGD, S.A. e a sociedade A..., Lda., mediante o qual aquela se obrigou a disponibilizar a esta uma quantia de € 46.500,00 (quarenta e seis mil e quinhentos euros) e esta, por sua vez, a reembolsar a quantia mutuada em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, nas condições do referido título, tendo-se BB e AA constituído como fiadores solidários e principais pagadores de todas as quantias que fossem ou viessem a ser devidas à CGD, S.A. no âmbito do referido contrato (incluindo capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas ou outros encargos), dando antecipadamente o seu acordo para a prorrogação e/ou moratórias ajustadas com o cliente e renunciando ao benefício da excussão prévia, e ainda constituído, para garantia do cumprimento das referidas obrigações até um montante de capital máximo assegurado de € 75.175,00 (setenta e cinco mil e cento e setenta e cinco euros), hipoteca voluntária a favor da CGD. S.A. sobre o prédio referido em 4, a qual foi definitivamente registada em 02-12-2008;
C) Contrato de mútuo celebrado, em 28-10-2005, entre a credora CGD, S.A. e CC, mediante o qual aquela se obrigou a disponibilizar-lhe uma quantia de € 70.000,00 (setenta mil euros) e que este, por sua vez, se obrigou a reembolsar em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, nas condições do referido título, constituindo a seu favor hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra «...», correspondente ao ... andar esquerdo, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.º ..., freguesia de ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...34... e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...33, tendo-se BB e AA responsabilizado como fiadores e principais pagadores por tudo o quanto viesse a ser devido à CGD, S.A. em consequência do referido empréstimo, dando o seu acordo para quaisquer modificações da taxa de juro, alteração de prazos e/ou moratórias acordadas com o cliente;
D) Contrato de mútuo celebrado, em 28-10-2005, entre a credora CGD, S.A. e CC, mediante o qual aquela se obrigou a disponibilizar-lhe uma quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) e que este, por sua vez, se obrigou a reembolsar em prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, nas condições do referido título, constituindo a seu favor hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra «...», correspondente ao ..., do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., n.º ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...33, tendo-se BB e AA responsabilizado como fiadores e principais pagadores por tudo o quanto viesse a ser devido à CGD, S.A. em consequência do referido empréstimo, dando o seu acordo para quaisquer modificações da taxa de juro, alteração de prazos e/ou moratórias acordadas com o cliente.
16. Sob processo n.º 475/17...., do Juiz ..., do Juízo Local Cível ..., corre termos, sob a forma de processo sumário, execução instaurada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. contra AA, por via da qual aquela primeira reclama da segunda, na qualidade de fiadora da sociedade «A..., Lda.», uma quantia exequenda de € 30.878,90 (trinta mil e oitocentos e setenta e oito euros e noventa cêntimos) decorrente da falta de pagamento das prestações acordadas no âmbito do contrato de mútuo referido em 15, B), a partir de 06-05-2012.

Apreciando, de imediato, a questão recursiva suscitada pela A., ora apelante – saber se a propositura da acção prevista no artigo 146.º do CIRE, instaurada pela aqui A., é tempestiva e o meio processual próprio para a verificação ulterior do direito à separação e restituição de bens (concretamente de dois imóveis apreendidos para a massa insolvente), com a consequente suspensão da liquidação desses mesmos bens enquanto não for proferida a respectiva sentença transitada em julgado – importa dizer a tal respeito que, em caso similar ao dos presentes autos, já se veio a pronunciar o Ac. da R.P. de 14/7/2020, disponível in www.dgsi.pt, adiantando-se, desde já, que concordamos inteiramente com as razões e fundamentos aí expendidos, os quais, de imediato, passamos a transcrever:
- (…) A restituição e separação de bens encontra-se regulada pelos artigos 141.º e segs. do CIRE, sendo que “nestes casos, o terceiro tem uma pretensão de natureza real, a separar da massa de bens” e não sendo admissível a oposição à apreensão de bens para a massa insolvente por embargos de terceiro (artigo 342.º, n.º 2, do CPC), consagrou-se a restituição e separação de bens, meio específico de oposição, que se processa em termos semelhantes à verificação de créditos.
Uma das situações em que é admitida a restituição e separação de bens da massa insolvente, referida no n.º 1 do artigo 141.º, é o direito de separação por parte do cônjuge do insolvente (não tendo havido declaração de insolvência de ambos os cônjuges), dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns.
A referida restituição e separação de bens tem de ser solicitada no prazo fixado na sentença declaratória da insolvência para a reclamação de créditos. Passado esse prazo, a restituição e separação de bens continua a ser possível, mas tem de ser requerida em ação autónoma, regulada nos artigos 146.º e segs.
E, tendo havido apreensão de bens já depois de esgotado o prazo fixado para as reclamações de créditos, que é, também, por força do n.º 1 do artigo 141.º, o prazo para a reclamação e verificação do direito à restituição e separação de bens, o artigo 144.º, permite o exercício do direito por parte do seu titular no período de cinco dias contados da sua apreensão, em procedimento apenso ao processo principal e que segue os termos dos autos de reclamação de créditos, tal como na reclamação do artigo 141.º, sendo que, como vimos, nem mesmo decorrido este prazo fica precludida a possibilidade de reclamar a restituição ou separação, tendo, então, de ser feita nos termos do artigo 146.º, obedecendo aos formalismos aí estabelecidos.
Assim, findo o prazo das reclamações é possível aquilo a que se chama “verificação ulterior de créditos e de outros direitos”, como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência.
E, na verdade, o direito à separação ou restituição de bens pode, ainda, ser exercido posteriormente em ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor (artigo 146.º, n.º 1), sem que se exija qualquer superveniência desse direito em relação ao prazo normal das reclamações, podendo tal ação, que segue a forma de processo comum e que corre por apenso ao processo de insolvência (artigo 148.º), ser proposta a todo o tempo (1ª parte do n.º 2 do artigo 146.º).
A ação, de caráter urgente (artigo 9.º), interposta nos termos deste artigo e, por isso, fora do prazo geral do artigo 141.º, com o ajustamento decorrente do artigo 144.º, não constitui fase do processo de insolvência, revestindo a natureza de uma ação autónoma em que o reclamante é Autor e em que são Réus a massa insolvente, os credores e o devedor, correndo por apenso ao processo de insolvência (artigo 148.º) por respeitar a interesses relativos à massa insolvente.
E a propositura da referida ação tem como efeito deixar de se proceder à liquidação dos bens enquanto não houver sentença transitada em julgado, salvo nos casos de anuência do interessado, venda antecipada efetuada nos termos do n.º 2 do artigo 158.º, ou se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade, a aceitar ser da sua conta a álea respectiva (artigo 160.º, n.º 1).
Ora, a autora propôs ação declarativa, nos termos do artigo 146.º, do CIRE, para verificação ulterior do direito à separação e restituição de bens.
E, de acordo com o disposto no n.º 1 deste artigo, findo o prazo das reclamações é possível reconhecer, ainda, o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor sendo que o n.º 2 estatui que tal direito pode ser exercido a todo o tempo. Deste modo, ainda que expirado esteja o prazo da reclamação, nos termos do artigo 146.º, n.º 1 e 2, do CIRE, poderá ainda fazê-lo em ação para tal instaurada, uma vez que, conforme n.º 2 deste preceito, o direito de separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo.
Na verdade, preveniu a lei a hipótese de a insolvência ser decretada apenas quanto a um dos cônjuges, acautelando a possibilidade de o outro cônjuge ir ao processo de insolvência reclamar que a sua meação nos bens comuns seja separada da massa insolvente, separação essa que também pode ser requerida pelo administrador da insolvência ou ordenada pelo juiz [artigo 141.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, do C.I.R.E.].
E mais adiante:
- (…) como bem sustenta a Apelante, a letra da primeira parte do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE é clara, simples e lapidar, podendo até ser entendida como uma forma de ação de reivindicação do direito de propriedade, prevista no artigo 1311.º do Código Civil, sendo que a expressão “a todo o tempo” só pode ter um limite temporal que é a liquidação.
Consagrando-se, na verdade, três momentos temporais para o exercício do direito à separação e restituição de bens e transparecendo a opção legislativa de simplificação processual do preâmbulo do diploma, agilizando-se a tramitação, bem como o exercício do direito, não pode retirar-se ao cônjuge do insolvente o direito que a lei lhe confere. Pode, assim, o mesmo exercer aquele direito através de ação a propor, a todo o tempo, contra a massa insolvente, os credores e o devedor, em verificação ulterior (artigo 146.º do CIRE), permitindo-se, como alega a apelante, “àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artigos supra indicados, defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e sua repercussão na fase de liquidação. Atentos os referidos normativos legais, percebe-se que foi intenção do legislador criar um meio expedito e simples para que o proprietário possa obter a entrega dos bens de que é proprietário ou sobre os quais detém um direito incompatível com a apreensão.
Efectivamente ao adequar a tramitação da reclamação e verificação de créditos à reclamação e verificação do direito de restituição dos bens apreendidos para a massa insolvente, da separação da massa dos bens próprios dos cônjuges e meação nos bens comuns sobre os quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, criou-se uma forma simplista e pretensamente célere de resolver as questões colocadas”, sendo que “as reclamações, bem como a separação ou restituição de bens, são feitas para serem atendidas no processo de insolvência”.
Assim, existindo a possibilidade, expressamente conferida pela lei, de reclamar a separação de bens a todo tempo (embora implicando a proposição de uma ação judicial contra a massa insolvente os credores e o devedor), não pode operar a exceção perentória de caducidade e, consequentemente, decidir-se pela absolvição dos Réus do pedido, pois que a lei consagrou, para ser exercida a todo o tempo, ainda, esta derradeira, e “ulterior”, possibilidade de exercício do direito de separação da meação do cônjuge do insolvente nos bens comuns do casal.
Destarte, nada impede a Autora de exercer o “direito à separação ou restituição de bens” pelo meio, previsto, de que lançou mão – a ação declarativa comum de verificação “ulterior” do direito de separação –, tendo a exceção invocada pela Ré Massa insolvente de improceder, estando a Autora em tempo de propor a concreta ação declarativa que instaurou, dado que o n.º 2 do artigo 146.º, consagra expressamente tal direito sem que lhe seja imposto qualquer limite quanto a prazo para ser exercido, estatuindo, até, que “O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo”.
Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, ocorrendo, na verdade, violação dos artigos 146.º e 148.º do CIRE, não podendo a decisão recorrida manter-se.

Deste modo, do teor do aresto supra transcrito resulta claro que, tendo sido declarada a insolvência de cônjuge divorciado e constatando o administrador da insolvência a existência de bens imóveis comuns do dissolvido casal deve aquele proceder à apreensão dos referidos imóveis que integram a comunhão conjugal e que respondem pelas dívidas comuns e não o direito à meação da ex-cônjuge não insolvente.
Por outro lado, a procedência da acção intentada pelo ex-cônjuge, por apenso ao processo de insolvência, ao abrigo do artigo 146.º, nºs 1 e 2, do CIRE, implica apenas o mero reconhecimento da natureza comum dos bens em causa, atingidos pela diligência realizada no processo de insolvência e o consequente direito à separação de bens, não dispensando a ex-cônjuge da posterior concretização da partilha no processo adequado (inventário), que não a aludida acção instaurada por apenso à insolvência, a qual não serve esse propósito.
E, comprovando-se a instauração do processo de inventário, com vista à separação de bens, impõe-se a suspensão da liquidação dos imóveis apreendidos.
De seguida, concretizada que esteja a partilha dos bens do casal no processo de inventário, só então deverá prosseguir a liquidação no processo de insolvência, com a venda dos imóveis, no caso do quinhão do insolvente ser preenchido com essas verbas.
Todavia, se porventura tais imóveis forem adjudicados à ex-cônjuge mulher (“in casu”, a A.), necessariamente fica inviabilizada, de todo, a venda dos referidos imóveis apreendidos no processo de insolvência.
Assim sendo, e voltando agora ao caso em apreço, forçoso é concluir que, nesta acção, pretende a A. obter a separação da massa e restituição do seu direito à meação sobre os imóveis apreendidos pelo administrador de insolvência.
Ora, sucede que, nos termos do disposto no artigo 146.º, nºs 1 e 2, do CIRE, estes autos têm por finalidade a reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, ou separação dos bens apreendidos para a massa indevidamente por pertencerem a terceiro, ou de que o insolvente não tenha a exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência, ou insuscetíveis de apreensão para a massa.
Por sua vez, os artigos 46.º, n.º 1 e 149.º do CIRE estipulam que a massa insolvente abrange todo o património do devedor, o qual deve ser objecto de apreensão pelo administrador de insolvência, mesmo que os bens que o integram tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos ou detidos, seja em que processo for (exceto os apreendidos em sede penal).
No caso dos presentes autos, constata-se que, em virtude do casamento celebrado entre a A. e o insolvente, no regime de comunhão de adquiridos, os prédios identificados nos pontos 3 e 4 dos factos provados foram adquiridos na constância do dito casamento e, por isso, tais prédios são bens comuns do casal – cfr. artigo 1724.º, alínea b), do Código Civil.
Mas, respeitando o processo principal apenas à declaração de insolvência de BB, entendemos, desde já, pelas razões e fundamentos acima expostas, que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, por via disso, a presente acção terá de ser julgada procedente – o que se decide – e, em consequência, decreta-se a separação da meação no património comum pertencente à ex-cônjuge, AA, aqui A., impondo-se a suspensão da liquidação dos imóveis apreendidos (cfr. pontos 3 e 4 dos factos provados) logo que seja comprovada nos autos a instauração do processo de inventário, liquidação essa que só deverá prosseguir quando estiver concretizada a partilha dos bens do dissolvido casal no referido processo de inventário e desde que o quinhão do insolvente seja preenchido com tais imóveis.

***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela A. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas pela R. Massa Insolvente de BB.
Évora, 15 de Setembro de 2022
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, págs. 286 e 299).