Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1456/15.4T8OLH-L.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO SUPLEMENTAR
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Em sede de remuneração variável, ao editar a norma do n.º 7 do artigo 23.º do Estatutos dos Administradores Judiciais, o legislador não teve intenção de abandonar o princípio já vigente na legislação anterior em que a majoração da remuneração variável dependia igualmente do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
2 – No cálculo da majoração importa equacionar o valor disponível para pagamento após operações previstas no artigo 23.º, nºs 4, alínea b), 6 e 7 e, bem assim, a interligação entre créditos admitidos e satisfeitos.
3 – O cálculo da majoração implica assim duas operações sucessivas: a primeira, tendo em vista apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, obtém-se dividindo o valor da liquidação disponível para distribuição, calculado nos termos prescritos no n.º 6, pelo montante dos créditos reconhecidos; de seguida, a percentagem obtida, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é aplicada ao mesmo valor da liquidação, sendo sobre o resultado desta segunda operação que vai incidir a percentagem de 5%.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1458/15.4T8OLH-L.E1
Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – J...
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Nos presentes autos de insolvência de “C... Lda.”, a credora reclamante “P... Unipessoal, Lda.ª” e o Administrador de Insolvência vieram interpor recurso do despacho que fixou a remuneração variável, este último de natureza subordinada.
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Em 21/03/2022, na proposta de alteração do mapa do rateio apresentado pelo administrador de insolvência constava que a remuneração se cifrava em € 32.810,13, acrescido de IVA no valor de € 7.546,33, perfazendo portanto o montante total de € 40.356,46.
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De acordo com a aludida proposta de rateio apresentada pelo Administrador de Insolvência, a sociedade “P... Unipessoal, Lda.” teria a receber, a título de créditos privilegiados, a quantia de € 100.123,51 e a título de crédito comum, a quantia de € 18.971,08, num total de € 119.094,59.
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A sociedade “P... Unipessoal, Lda.” teria ainda a depositar na conta da massa a quantia de € 9.080,06.
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A 06/04/2022, a sociedade “P... Unipessoal, Lda.” requereu que se realizasse o acerto de contas, recebendo a quantia de € 110.014,53 (€ 119.094,59 - € 9.080,06 = € 110.014,53).
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Por despacho de 20/06/2022, o administrador de insolvência foi convidado a apresentar o cálculo da sua remuneração variável ao abrigo do artigo 23.º da Lei n.º 9/2022, de 11/01.
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Por requerimento de 08/07/2022, o administrador de insolvência apresentou uma nota de honorários de € 166.824,51 (cento e sessenta e seis mil, oitocentos e vinte e quatro euros e cinquenta e um cêntimos).
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O Ministério Público pronunciou-se favoravelmente à referida proposta.
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Por despacho de 06/09/2022, o Tribunal a quo decidiu: «Vai deferida a remuneração variável nos termos calculados pelo Sr. AA».
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Na sequência de intervenção processual da sociedade “P... Unipessoal, Lda.”, em 24/10/2022, o administrador de insolvência manifestou a sua disponibilidade para prescindir da majoração, desde que fosse mantida a remuneração de € 100.000,00, acrescida de IVA à taxa legal.
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Em 24/11/2022, a remuneração variável do administrador de insolvência foi fixada em € 100.000,00, acrescida de IVA, num total € 123.000,00.
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Em 12/12/2022 foi apresentada nova proposta de rateio final.
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Em função da remuneração arbitrada, a sociedade “P... Unipessoal, Lda.” receberá agora a quantia de € 8.233,99, a título de crédito privilegiado, e não perceberá nenhuma verba a título de crédito comum.
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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e nas suas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«A. Nos presentes autos foi proferido pelo tribunal a quo Despacho que fixou a remuneração variável do Sr. Administrador de Insolvência em € 100.000,00, acrescido de IVA, num total € 123.000,00 de acordo com as recentes alterações introduzidas na Lei n.º 22/2012 pelo artigo 5.º da Lei n.º 9/2022, de aplicação imediata aos processos em curso (artigo 10.º/1, da aludida lei).
B. No decurso da liquidação referente aos presentes autos, as decisões do Credor Reclamante aqui Recorrente (nomeadamente financeiras), relativas à venda / adjudicação dos bens, acerca dos quais detinha garantia real, foram determinadas por pressupostos (legais) referentes aos encargos e despesas processuais (designadamente no que respeita à Remuneração do Senhor Administrador de Insolvência), previamente estabelecidos, as quais ao abrigo do Despacho do qual ora se recorre saíram totalmente goradas.
C. Se atentarmos na proposta de alteração do mapa do rateio apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência em 21-03-2022, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 182.º CIRE, o qual foi notificado ao ora Recorrente em 23.03.2022, constatamos que a Remuneração Variável do Sr. Administrador cifrava-se em € 32.810,13, acrescido de IVA no valor de € 7.546,33, perfazendo portanto o montante total de € 40.356,46.
D. De acordo com a aludida proposta de rateio apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência, o ora Recorrente teria a receber, a título de créditos privilegiados a quantia de € 100.123,51 e a título de crédito comum, a quantia de € 18.971,08 num total de € 119.094,59 constando da aludida proposta de rateio que o ora Recorrente teria ainda a depositar na conta da massa a quantia de € 9.080,06.
E. No seguimento da aludida proposta de rateio, o ora Recorrente, por requerimento junto aos presentes autos em 06.04.2022, a que foi atribuída a refª: ...97, discordando da advertência efectuada pelo do Sr. Administrador naquela proposta de rateio, de que teria de efectuar o depósito € 9.080,06, na conta da massa insolvente, requereu que o Sr. Administrador de Insolvência realizasse um acerto de contas, retirando do valor total a receber pelo ora Credor no referido rateio a importância que este deveria depositar na conta da massa insolvente ou seja (€ 119.094,59-€ 9.080,060=110.014,53) o que perfaz a quantia para pagamento de € 110.014,53. Pedido esse, que o Sr. Administrador de Insolvência consentiu, conforme Requerimento a que foi atribuída a refª : ...84 de 07.04.2022.
F. Por conseguinte, o ora Recorrente estimava receber nestes autos em sede de rateio a quantia de € 110.014,53.
G. Contudo, por força do Despacho proferido pelo Tribunal a quo do qual ora se recorre a remuneração variável do Sr. Administrador de Insolvência foi fixada em € 100.000,00, acrescido de IVA, ascendendo tal remuneração a € 123.000,00.
H. Quer isto dizer, que no que concerne à remuneração variável, do Sr. Administrador de Insolvência, assistimos, a um aumento de despesas em mais de € 82.643,54, comparativamente à proposta de rateio apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência em 21.03.2022, portanto, há menos de 9 meses.
I. Como é de convir, tal alteração terá naturalmente impacto no crédito que o ora Recorrente estimava receber.
J. De acordo com a nova proposta de rateio apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência e junta aos autos em 12.12.2022, elaborada em conformidade com o Despacho que fixou a remuneração variável do Sr. Administrador de Insolvência em € 100.000,00 acrescido de IVA, portanto € 123.000,00, o ora Recorrente terá a receber ao invés de € 110.014,53, conforme proposta anteriormente apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência em 21.03.2022, apenas e tão-só, a quantia de € 8.233,99, a título de crédito privilegiado, não vindo sequer a receber qualquer valor a título de crédito comum, contrariamente à proposta de rateio anteriormente apresentada em 21.03.2022, onde esperava receber € 18.971,08.
K. A presente situação coloca em causa a segurança jurídica, que sindicou a tomada de decisões do credor hipotecário, aqui Recorrente.
L. O qual agora é surpreendido com um encargo manifestamente excessivo em relação ao valor anteriormente previsto.
M. O valor fixado pelo tribunal a quo a título de remuneração variável afigura-se manifestamente excessivo e desajustado, quer por força dos serviços prestados, quer por força da complexidade dos autos ou quer ainda por força dos resultados obtidos e que tenham dependido diretamente da atuação do Sr. Administrador de Insolvência.
N. E a mais disso, sempre se diga que nem o Sr. Administrador de Insolvência aquando do mapa do rateio apresentado em Março deste ano, havia sequer estimado receber € 100.000,00 de remuneração variável, antes pelo contrário.
O. Tendo fixado a sua remuneração variável em € 32.810,13 acrescida de IVA no valor de € 7.546,33.
P. O objetivo do processo de insolvência é evitar que os devedores fiquem para sempre com dívidas que não conseguiriam pagar, assim como o objectivo subjacente à venda dos bens do devedor é justamente o pagamento das dívidas, e não, o pagamento de valores que não se estimavam sequer receber nem no início do processo de Insolvência, nem em Março deste ano, como se atesta pelo mapa do rateio apresentado em 21.03.2022 pelo Sr. Administrador de Insolvência,
Q. O Despacho do qual ora se recorre, afigura-se como uma afronta ao princípio da segurança jurídica e da legítima expectativa das partes, em particular, do ora Recorrente que estimava receber um valor e que agora, por força do supra referido Despacho irá receber menos € 101.780,54.
R. O despacho do tribunal a quo viola, pois, o princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do estado de direito democrático previsto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, sendo nessa medida inconstitucional.
S. Face ao supra exposto, requer-se a V. Exas. que a remuneração variável do Sr. Administrador seja fixada em € 32.810,13, acrescido de IVA no valor de € 7.546,33, num total de € 40.356,46 conforme mapa do rateio anteriormente apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência em 23.03.2022.
Nestes termos e nos mais de direito, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente procedente por provada, e, consequentemente ser o Despacho de que ora se recorre substituído por outro que fixe a remuneração variável do Sr. Administrador de Insolvência em € 32.810,13, acrescido de IVA no valor de € 7.546,33, num total de € 40.356,46, de acordo com a proposta anterior de rateio apresentada em 21.03.2022 e notificada às partes em 23.03.2022 só assim se fazendo a tão a costumada Justiça!».
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O administrador de insolvência apresentou recurso subordinado e nas suas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«A) O Douto Despacho de 24.11.2022, referência ...13, ora recorrido, é absolutamente nulo por inexistente, não podendo assim produzir qualquer efeito na ordem jurídica.
B) Dirime-se, “in casu”, a remuneração variável devida ao Recorrente pelo exercício das suas funções de administrador judicial, na presente lide.
C) Por Douto Despacho de 20.06.2022, referência ...58, o Recorrente foi convidado a apresentar o cálculo da sua remuneração variável ao abrigo do artigo 23.º da Lei n.º 9/2022, de 11.01.
D) O que foi efetuado por requerimento de 08.07.2022, no qual junta os cálculos respetivos, daí decorrendo uma remuneração variável total, IVA incluído, de €: 166.824,51 (cento e sessenta e seis mil e oitocentos e vinte e quatro euros e cinquenta e um cêntimos).
E) Estes cálculos e subsequente valor foram aceites pela Douta Promoção de 30.07.2022, referência ...61 e pelo Douto Despacho de 06.09.2022, referência ...40, no qual é expressamente consignado “Vai deferida a remuneração variável nos termos calculados pelo Sr. AA.”
F) O predito Despacho de 06.09.2022, não tendo sido sujeita a qualquer recurso, transitou em julgado, com todas as consequências legais daí decorrentes, no passado dia 26.09.2022.
G) Sucede que o Douto Despacho ora recorrido de 24.11.2022 altera total e indevidamente os termos do proferido a 06.09.2022.
H) O Tribunal a quo, ao modificar, ele próprio, no mesmo processo, os termos de um anterior Despacho por si proferido e transitado em julgado violou, de forma flagrante e ostensiva, o princípio da extinção do poder jurisdicional ínsito no artigo 613.º, nºs 1 e 3, do CPC, razão pela qual o Despacho ora recorrido é inexistente, tendo como efeito imediato e inelutável, o facto de não poder produzir qualquer efeito jurídico.
I) Em virtude do exposto e conforme supra mencionado, o valor da remuneração variável do Recorrente já é definitiva desde o passado dia 26 de Setembro de 2022.
J) Nesta esteira invoca-se o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.2010 relativo ao processo 4670/2000.S1, pesquisável em www.dgsi.pt que dispõe que “A nível jurisprudencial e sobre o conceito de sentença inexistente (…) no dizer do Prof. Alberto dos Reis, é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença».
K) A decisão “inexistente, não só não produz efeitos, tal como a decisão nula (quod nullum est nullum producit effectum), como apenas constitui um «estado de facto com a aparência de sentença» na expressiva asserção de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 114). Deste modo, o que não tem existência jurídica não pode violar o transitado em julgado, nem pode ser anulado”.
L) Sendo certo que a sentença/despacho inexistente é “insusceptível de produzir efeitos”, é “um simples estado de facto com a aparência de sentença” e “tudo se passa como se nunca tivesse sido proferida”, parece bem evidente ao Recorrente de que o único Despacho que pode subsistir na ordem jurídica é o proferido a 06.09.2022 e não o ora recorrido.
M) O Despacho ora recorrido viola o disposto no artigo 613.º, nºs 1 e 3, do CPC.
Termos em que considerando o Douto Despacho ora recorrido como inexistente, determinando ser o proferido a 06.09.2022 o que se mantém na ordem jurídica estarão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a produzir a tão habitual e costumada Justiça!».
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Houve lugar a resposta do Ministério Público, que defendeu a manutenção da decisão recorrida.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da atribuição de remuneração variável do administrador de insolvência.
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III – Factos com interesse para a justa resolução do caso:
Os factos com interesse para a justa resolução do caso são os que constam do relatório inicial e, bem assim, os seguintes:
1 – O resultado da liquidação para efeito de cálculo da remuneração variável ascendia a € 2.341.381,60 [€ 2.369.320,23 – 31.279,22 (custas) – 128,48 (dívidas à AT) – 256,88 € (despesas de transferências) – 3.725,25 (remuneração fixas e despesas, incluída nas custas).
2 – O montante de créditos satisfeitos é de 1.983.143,26 €.
3 – O montante dos créditos reclamados e reconhecidos é de € 5.519.073,60.
4 – O grau de satisfação ascende a 36,04%.
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IV – Fundamentação:
No domínio do direito aplicado somos confrontados com duas hipóteses sobre a densificação da expressão grau de satisfação e a ponderação concreta dos critérios de cálculo e a questão controvertida assenta basicamente na interpretação do artigo 23.º[1] do Estatuto dos Administradores Judiciais (Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro), na componente do cálculo da remuneração variável, com referência ao disposto no n.º 1 do artigo 182.º[2] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
No âmbito do presente recurso, ainda que o valor reclamado possa parecer para alguns «irrealista para o nosso país», a missão deste Tribunal de Recurso não é fazer a censura da lei nem reduzir arbitrariamente o conteúdo de qualquer quantia devida por lei, desde que a aplicação da norma não contenda com comandos constitucionais, valores estruturantes do sistema jurídico ou princípios éticos fundamentais recepcionados pelo Direito.
É indiscutível que a alteração à forma de cálculo da remuneração variável visou estimular a actividade do administrador judicial, motivando-o a diligenciar pela obtenção da maior receita possível e premiando-o em função dos resultados de gestão e venda do património do insolvente.
O legislador tomou posição expressa sobre a aplicação das regras da presente lei aos processos em vigor[3], decidindo pela aplicação imediata da lei nova [4] [5] [6] e essa solução é aceite de forma consensual pela jurisprudência nacional.
Aquilo que se pergunta é se o resultado final da remuneração variável deve ser sopesado pela aleatoriedade do valor do volume de créditos admitidos, face à norma legal quando menciona que a mesma é majorada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos»?
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Sobre este assunto já se pronunciaram parte dos membros que compõem este colectivo de Juízes Desembargadores no acórdão proferido em 29/09/2022 e no mesmo sentido foram proferidos outros acórdãos[7] [8] [9] [10] [11] [12] [13] [14] [15].
Ressalta da leitura do n.º 4 do referido dispositivo que os administradores judiciais auferem uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
Para tanto, decorre do n.º 6 da referida norma, que se considera o resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com excepção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
Nesta equação releva de igual o modo a regra inscrita no n.º 7 do artigo 23.º que dita que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respectivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
Entendemos que o grau de satisfação corresponde à percentagem dos créditos que só será possível satisfazer por confronto com o valor dos créditos totais multiplicado tal percentagem pelo valor distribuído pelos credores e a esse resultado aplica-se a percentagem de 5% e que o legislador não teve intenção de abandonar o princípio já vigente na legislação anterior.
Aliás, na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] ficou consignado que: «no que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da actividade».
Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil).
Neste conspecto, caso a expressão não tivesse qualquer interesse para a justa solução do problema, na construção da regra o legislador teria de evitar qualquer referência ao “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”. E, se assim fosse, na redacção da norma seria bastante a alocução normativa: «o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado, […] em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles».
Com efeito, não é inócua a expressão nem a mesma pode ser tratada como um mero elemento decorativo da norma colocada em crise. E, assim, para que a mesma tenha algum efeito prático e consequências jurídicas, importa estabelecer alguma correlação entre o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e o montante dos créditos satisfeitos.
Neste enquadramento, é nosso entendimento que o resultado da liquidação corresponde ao montante apurado para a massa insolvente depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa (que inclui a remuneração fixa do administrador), com excepção da remuneração variável e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência, mas esse valor deve ser conexionado ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
Ou seja, tendo como valor máximo 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, no cálculo da majoração importa incluir o valor disponível para pagamento após operações previstas no artigo 23.º, nºs 4, alínea b), 6 e 7 e, bem assim, a percentagem dos créditos satisfeitos e admitidos.
O resultado da liquidação foi de € 2.341.381,60 após dedução do montante correspondente às despesas e dívida da massa elegíveis apontadas. A satisfação dos créditos corresponde a 36,04%, face ao montante dos créditos reconhecidos, que perfazem € 5.519.073,60 [36,04% (1.989.143,26 x 100/5.519.073,60)]. O limite máximo da remuneração variável não pode ultrapassar € 100.000,00 (cem mil euros) (n.º 10 do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26/02). Desta equação resulta, assim, um resultado de € 42.191,69 (2.341.381,60 x 0,3604 x 0,05), acrescida de IVA.
Deste modo, ao contrário daquilo que é invocado, o cálculo não seguiu a fórmula indicada no requerimento datado de 24/10/2022, quando, no artigo 1.º, se socorre da jurisprudência ali convocada.
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Quanto ao recurso subordinado importa dizer que o despacho não é inexistente e não ocorre qualquer violação do caso julgado.
Sobre o alcance e o efeito preclusivo do caso julgado podem ser consultados Alberto dos Reis[16], Manuel de Andrade[17], Antunes Varela[18], Teixeira de Sousa[19], Fernando Ferreira Pinto[20], José João Batista[21] e Remédio Marques[22], entre outros.
No diálogo entre a lei, a doutrina e a jurisprudência pode afirmar-se que este efeito da sentença consiste exactamente na insusceptibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer Tribunal, incluindo o Tribunal que a tenha proferido[23].
Todavia, sem querer abordar a questão da eventual litigância de má fé do liquidatário e do seu mandatário, não estamos perante um caso de impossibilidade de o Tribunal a quo se pronunciar de novo sobre a questão da remuneração, dado que essa hipótese é aberta pelo próprio administrador de insolvência.
Com efeito, em 24/10/2022, o administrador de insolvência manifestou a sua disponibilidade para prescindir de parte do montante anteriormente fixado, desde que fosse mantida a remuneração de € 100.000,00, acrescido de IVA à taxa legal. E o caso julgado apenas opera no mesmo quadro fáctico-jurídico e ele foi alterado com este posicionamento.
E a intervenção correctiva do julgador a quo surge nessa sequência, sendo que o administrador judicial não poderia ter direito a uma remuneração de valor superior a € 100.000,00, face ao teor do disposto no n.º 10 do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro.
Improcede assim o recurso subordinado.
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Nesta ordem de ideias, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto e improcedente o recurso subordinado, fixando-se a remuneração variável em € 42.191,69 (quarenta e dois mil, cento e noventa e um euros e sessenta e nove cêntimos), acrescida de IVA.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto e improcedente o recurso subordinado, fixando-se a remuneração variável em € 42.191,69 (quarenta e dois mil e cento e noventa e um euros e sessenta e nove cêntimos), acrescida de IVA.
Custas do recurso a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento, face ao disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 30/03/2023
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões


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[1] Artigo 23.º (Remuneração do administrador judicial nomeado por iniciativa do juiz):
1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2.000 (euro).
2 - Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3 - Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º.
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50.000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
9 - À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10.000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10 - A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000 (euro).
11 - No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.
[2] Artigo 182.º (Rateio final):
1 - Encerrada a liquidação da massa insolvente, é elaborada a conta pela secretaria do tribunal, no prazo de 10 dias, não sendo o encerramento da liquidação prejudicado pela circunstância de a atividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa.
2 - As sobras de liquidação, que nem sequer cubram as despesas do rateio, são atribuídas ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça.
3 - Após julgadas as contas e paga a conta de custas, no prazo de 10 dias, o administrador da insolvência apresenta no processo proposta de distribuição e de rateio final, acompanhada da respetiva documentação de suporte caso seja diferente daquela que já existe no processo, e procede à publicação da proposta na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, dispondo a comissão de credores, caso tenha sido nomeada, e os credores de 15 dias, contados desde a data da publicação, para se pronunciarem sobre a mesma.
4 - Decorrido o prazo de 15 dias previsto no número anterior, a secretaria aprecia a proposta de rateio final, elaborando para o efeito um termo nos autos, e conclui o processo ao juiz para, no prazo de 10 dias, decidir sobre as impugnações e validar a proposta.
[3] No texto da Lei n.º 9/2022 foi introduzida a seguinte regra de direito transitório:
Artigo 10.º (Regime transitório):
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor.
2 - O disposto nos artigos 17.º-C a 17.º-F, 17.º-I e 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com a redação introduzida pela presente lei, apenas se aplica aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor.
3 - Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.
4 - O disposto no número anterior não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração.»
[4] Manuel Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 979, págs. 41-42.
[5] Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL, Lisboa, 2022, pág. 74.
[6] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição (revista e actualizada), Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 47.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/09/2022, pesquisável em www.dgsi.pt, onde se afirma que: «Se o valor da remuneração correspondesse sempre a 5% dos créditos satisfeitos, tal significaria que a remuneração seria idêntica quer esses créditos correspondessem à globalidade dos créditos admitidos, quer correspondessem a uma parte ínfima deles; o grau de satisfação dos créditos seria, portanto, totalmente desconsiderado ao contrário do que expressamente se dispõe na norma em causa e contrariando aquele que – pelas razões apontadas – pensamos ter sido o pensamento do legislador».
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/10/2022, divulgado em www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/10/2022, também consultável em www.dgsi.pt, que conclui que: «no cálculo da majoração importa ter em conta a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos».
[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/11/2022, integrado na base de dados www.dgsi.pt.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/2022, incorporado em www.dgsi.pt, que igualmente se manifesta no sentido que: «no âmbito do processo de insolvência, em caso de liquidação da massa insolvente, o valor da majoração da remuneração variável do Administrador de Insolvência nomeado pelo juiz deve ser encontrado mediante a aplicação do elemento de cálculo legalmente previsto (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas por aplicação direta desses 5% sobre montante dos créditos satisfeitos».
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/01/2023, que também pode ser lido em www.dgsi.pt, defende igualmente que: «em caso de liquidação da massa insolvente, estabelece expressamente o n.º 7 do referido artigo 23.º que, para determinação da remuneração variável do Administrador de Insolvência nomeado pelo juiz, se deve atender ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».
[13] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/2022 (relatora: Márcia Portela), não publicado.
[14] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/12/2022, que está depositado em www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/03/2023, que pode ser lido em www.dgsi.pt, onde ficou consignado que «o cálculo da majoração implica assim duas operações sucessivas: a primeira, tendo em vista apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, obtém-se dividindo o valor da liquidação disponível para distribuição, calculado nos termos prescritos no n.º 6, pelo montante dos créditos reconhecidos; de seguida, a percentagem obtida, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é aplicada ao mesmo valor da liquidação, sendo sobre o resultado desta segunda operação que vai incidir a percentagem de 5%».
[16] Código de processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, págs. 156-157 e 173-180.
[17] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 303-335.
[18] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 701-733.
[19] O objecto da sentença e o caso julgado material, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, págs. 148 e seguintes.
[20] Lições de Direito Processual Civil, 2ª edição, Ecla Editora, Porto 1997, páginas 451-453.
[21] Processo Civil. Parte Geral e Processo Declarativo, vol. I, 8ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 470-475.
[22] Acção Declarativa à luz do Código Revisto (pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 432-437.
[23] Neste sentido pode ser consultado Remédio Marques, Acção Declarativa à luz do Código Revisto (pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 434.