Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
515/17.1T8OLH-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
SUSTAÇÃO
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Na dicotomia entre a tutela jurisdicional dos direitos de crédito e do interesse à preservação do património na esfera jurídica do cidadão insolvente, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, a hierarquia dos valores a preservar aponta claramente para a opção de não sustação da fase de liquidação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 515/17.1T8OLH-A.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central de Comércio – J1
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
(…) requereu a sustação da fase de liquidação do seu património até que se encontrasse concluída a mesma operação no âmbito do Processo nº 980/17.7T8OLH do Juízo de Comércio de Olhão. Indeferida a referida pretensão, o requerido não se conformou com essa decisão e interpôs o competente recurso.
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A Assembleia de Credores determinou a liquidação do activo no âmbito destes autos.
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Ao serem notificadas do pedido de sustação da liquidação, a “Caixa Central – Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, CRL” e a “Caixa Geral de Depósitos, SA” deduziram oposição ao requerido.
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Na parte com interesse para o presente recurso, a decisão do Tribunal «a quo» tinha o seguinte conteúdo: «sem prejuízo da sindicância do Juiz, nos termos do art. 78º do CIRE, a assembleia de credores é o órgão soberano da insolvência. As suas deliberações prevalecem sobre as de todos os demais órgãos (cfr. arts. 52º a 80º do CIRE).
Tendo em consideração o exposto, o pedido do Insolvente carece em absoluto de fundamento legal, uma vez que a assembleia – em contrário do pretendido pelo Insolvente – já deliberou a liquidação. Não se vislumbra, em nome de um qualquer interesse comum dos credores, a existência de alguma forte razão que permita afastar tal deliberação. Além do referido, não foi cumprido o ritualismo do artº. 78º citado.
Com este fundamento, indefiro o requerimento».
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O insolvente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões:
«A. Por despacho veio o Tribunal a quo decidir pelo indeferimento da sustação da liquidação do património do aqui Insolvente até que se encontre concluída a liquidação no âmbito do Processo nº 980/17.7T8OLH, pela inexistência de fundamento legal.
B. O Recorrente não se conforma com o que foi decidido pelo Tribunal a quo e, com o devido respeito pela opinião do Ilustre Julgador a quo, entendeu e andou mal quando interpretou erradamente o pretendido pelo Insolvente.
C. Para efeitos desta decisão e apreciação da mesma terá que ser considerado que, o Insolvente foi declarado insolvente nos presentes autos, após a não aprovação do Plano de Recuperação no âmbito do Processo Especial de Revitalização em que o Insolvente foi parte e que atendendo as responsabilidades assumidas na qualidade de avalista de uma sociedade do Grupo de empresas em que se integra – "(…) Sociedade Agrícola, SA" –, o aqui Insolvente veio a ser declarado insolvente por efeito "dominó".
D. Foi apresentado relatório elaborado pelo Administrador de Insolvência, nos termos do art. 155º do C.I.R.E., onde se apresentam expostas as razões da situação de insolvência.
E. Pelos mesmos motivos que o aqui Insolvente, encontram-se igualmente em situação de insolvência as empresas "(…) – Casa Agrícola, SA" (no âmbito do Processo nº 980/17.7T8OLH), a empresa "(…) SGPS, SA" (no âmbito do Processo nº 1408/17.8T8OLH) e a sociedade "(…) – Sociedade Imobiliária, SA" que foi igualmente declarada insolvente no âmbito do Processo nº 441/17.4T8OLH.
F. Considerando os motivos e fundamentos desta situação de insolvência, e que são transversais a todos os processos supra identificados, e porque relacionados entre si, nos presentes autos, em sede de Assembleia de Credores foi deliberada pelos Credores a liquidação do património do aqui Insolvente.
G. Interessa referir que foi pelo aqui Insolvente … (Administrador das empresas Insolventes) em 1990 foi iniciado o desenvolvimento do projeto do empreendimento, tendo construído uma parte significativa das obras e que para conclusão das obras seriam necessários o montante aproximadamente de € 30.000.000,00 (trinta milhões de euros), sendo este montante fundado num Estado de Viabilidade Económica Financeira com data de Julho de 2008 e metade do financiamento seria garantido mediante com o recurso a fundos próprios e a outra metade – no valor aproximado de € 15.000.000,00 (quinze milhões de euros) – seria obtido mediante financiamento bancário.
H. Em 25 de Junho de 2009 foi celebrado o Contrato de abertura de crédito (com hipoteca, penhores, promessa de penhores e pacto de preenchimento de livranças) entre, por um lado, o Sindicato bancário e, por outro lado, (…), a (…) – Casa Agrícola, S.A., a (…) – SGPS, S.A. e a (…) – Sociedade Imobiliária, S.A (Grupo … e todas as empresas declaradas insolventes).
I. No âmbito do referido Contrato, foi disponibilizada uma linha de crédito no montante total até € 15.000.000,00 (quinze milhões de euros), destinado à finalização do supra referido empreendimento turístico e foi o mesmo contrato garantido pela constituição de uma teia de garantias – prestadas por diferentes garantes e destinadas a assegurar a posição jurídica do sindicato bancário, i) Hipoteca sobre o empreendimento em construção, tendo sido registado em € 22.552.500,00 (vinte dois milhões, quinhentos e cinquenta e dois mil e quinhentos euros) o capital máximo assegurado; ii) Penhor sobre as ações representativas do capital social da “(…) – Casa Agrícola, SA”, no valor global de € 4.835.300,00 (quatro milhões, oitocentos e trinta e cinco mil e trezentos euros); iii) Promessa de penhor das acções representativas do capital social da “(…) – Casa Agrícola, SA”; iv) Livrança em branco, com pacto de preenchimento relativo ao montante e valor que em concreto couber apurar e v) Aval da livrança subscrito por dois sujeitos: (…), aqui Insolvente e a sociedade “(…), SGPS, SA”.
J. Desde logo, o financiamento bancário foi garantido, como se disse, mediante a constituição de uma hipoteca sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o número (…)/20.040.622 da freguesia de Guia – imóvel apreendido a favor da massa insolvente da “(…) – Sociedade Agrícola, SA” no âmbito do Processo nº 980/17.7T80LH e que foi avaliado para efeitos de venda no processo de insolvência no valor de € 20.320.000,00 (vinte milhões e trezentos e vinte mil euros).
K. Portanto, ficou, nos termos do Contrato, garantido o capital emprestado, os Juros e eventuais despesas e com a constituição da hipoteca em questão (pelo menos) ficou garantido um montante de cerca de € 22.500.000,00 (vinte e dois milhões e quinhentos mil euros) para um crédito de € 15.000.000,00 (quinze milhos de euros) e agora com uma avaliação para efeitos de venda pelo valor de € 20.320.000,00 (vinte milhões trezentos e mil euros).
L. E, além da hipoteca constituída, tal como referido anteriormente foram ainda dados em garantia o penhor de acções da “(…) – Casa Agrícola, SA”, penhores esses constituídos por diferentes entidades que atingiram quase o valor de € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) e além de todas estas garantias identificadas, certo é que no mesmo Contrato de Financiamento foram prestadas outras garantias, como a livrança em branco e o pacto de preenchimento que através da subscrição da livrança, as Instituições Bancárias poderiam preencher a livrança e apresentarem-na a pagamento.
M. E por fim, o aval prestado na livrança em branco, tratando-se de nova garantia prestada por dois avalistas: (…), o aqui Recorrente e a sociedade “(…) – SGPS, SA”. N. Em todos os casos, claramente que a relação entre o crédito garantido (€ 15.000.000,00) e as garantias oferecidas, não existem dúvidas quanto ao excesso de garantias prestadas no âmbito do Contrato de Financiamento celebrado, quer no processo de insolvência, quer noutro contexto qualquer e claramente que se verifica uma situação de sobre garantia, verificando-se, sem qualquer dúvida a violação da íntima relação (que supostamente havia de ser cumprida) entre o princípio da proporcionalidade e o princípio do equilíbrio e que claramente se mostra sustentado com o parecer que foi junto aos autos no Requerimento com referência via citius 5571211.
O. E é claramente no âmbito da violação do princípio da proporcionalidade e o princípio do equilíbrio e no âmbito da situação de sobre garantia que os Credores, de forma abusiva que os Credores avançaram com a liquidação de todo o património existente.
P. Os Credores, e por se encontrarem sobre garantidos, assumem ter "legitimidade" para "destruir" todo o património, quer da Devedora Principal, quer das sociedade avalistas e do avalista singular que é aqui Insolvente, isto quando se encontram (Credores) mais que garantidos com o imóvel que se encontra a ser objeto de liquidação no âmbito do Processo nº 980/17.7T80LH, e que claramente apresenta um valor patrimonial superior ao valor dos créditos reclamados nos presentes autos.
Q. Ora, não obstante a posição dos Credores em sede de Assembleia de Credores, certo é que existem motivos e fundamentos para seja apreciada e decidida a sustação da liquidação nos presentes autos, atendendo a que, e considerando os créditos reclamados e reconhecidos, e sendo os mesmos créditos (em todos os processos de insolvência), o valor dos mesmos encontra-se garantido pela liquidação do património da sociedade “(…) – Casa Agrícola, SA”.
R. Não obstante a decisão – ou deliberação em sede de Assembleia de Credores, o Insolvente fundamentou o seu pedido de sustação da liquidação dos presentes autos e para tanto alegou e fundamentou, não só a existência de património (mais do que suficiente para liquidação de todo o passivo), como alegou e demonstrou a situação de sobre garantia dos Credores que, por todos os motivos leva à verificação da violação do princípio da proporcionalidade e o princípio de equilíbrio quanto aos bens a liquidar.
S. O Tribunal a quo andou mal na decisão proferida, isto porque se limitou a justificar a decisão com a falta de apresentação de plano de insolvência/recuperação e com a deliberação de liquidação pelos Credores em sede de Assembleia de Credores, sem que tenha apreciado a questão suscitada pelo Insolvente – princípio da proporcionalidade e o princípio de equilíbrio quanto aos bens a liquidar e consequente sustação da liquidação patrimonial.
T. O Tribunal a quo, e ao contrário do que foi entendido não fica limitado nos seus poderes de decisão, pelo que não poderia não ter apreciado a questão da sobre garantia e consequentemente a violação do princípio da proporcionalidade e o princípio de equilíbrio quanto aos bens a liquidar (todo o património no âmbito de todos os processos de insolvência do Grupo e avalistas), sendo mais que fundamento para a sustação da liquidação do património da Insolvente.
U. O Tribunal decidiu pelo "caminho mais fácil" sem que tenha considerado todos os efeitos negativos de uma insolvência, quer insolvência coletiva, quer singular, isto considerando que, com a venda do património da empresa “(…) – Sociedade Agrícola, SA”, o valor da venda do bem será mais que suficiente para a liquidação de todo o passivo do Insolvente e aqui Recorrente, sem que tenha e/ou se verifique a necessidade de liquidar todo o património das partes.
V. O Tribunal a quo limitou-se a remeter a decisão para o suposto poder decisório que os Credores detêm no âmbito do processo de insolvência, sem que tenha ponderado todo o impacto negativo de destruição na teia empresarial do nosso país.
W. Não faz sentido, aceitar a liquidação do património e uma empresa e/ou mesmo património de uma pessoa singular só porque foram assumidas garantias, e quando pelo mesmo passivo os Credores irão ser ressarcidos do valor dos seus créditos no âmbito de outro processo,
X. E caso o Tribunal a quo tivesse dúvidas na tomada decisão no limite poderia sempre agendar nova Assembleia de Credores – órgão soberano, com vista à discussão da questão, o que no caso em concreto não se verificou.
Y. Além daqueles fundamentos, serão sempre de considerar os poderes de decisão do Tribunal a quo para apreciar qualquer questão e fundamentos apontados pela Insolvente.
Z. Se é certo que no Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, que aprovou o C.I.R.E., se enfatiza a desjudicialização do processo como corolário da "supremacia dos credores no processo de insolvência" e da larga autonomia de que gozam no concernente à liquidação ou à recuperação da insolvente como meio de assegurar o pagamento dos seus créditos, também no ponto 11) se refere que – "A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma-se expressamente, no artigo 11º do diploma, a vigência no processo de insolvência do princípio do inquisitório, que permite ao juiz fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes".
AA. Neste sentido não se admite que o Tribunal a quo, malgrado a latitude que, numa primeira abordagem, parece emergir do art. 78º e 80º, ambos do C.I.R.E., conferindo à Assembleia de Credores o "poder" de decidir todos os aspetos da situação patrimonial da empresa, mesmo sem fundamento, seria levar longe de mais esse auto-controlo dos Credores menorizando o papel do julgador nas mãos de quem a lei coloca o dever de controle da legalidade, sobretudo, como no caso em concreto, em liquidar uma empresa viável, pela existência de créditos que irão ser liquidados no âmbito de um outro processo de insolvência, o que tem drásticas consequências.
BB. O Julgador não poderá abster-se de verificar a conformidade substancial e formal de qualquer matéria.
CC. A natureza peculiar do processo insolvencial não afasta os princípios fundamentais do processo civil: poder dispositivo, de gestão processual e de cooperação, sendo de particular relevo no processo de insolvência o princípio do inquisitório.
DD. De considerar o disposto no art. 11º do C.I.R.E. que estatui: "No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes".
EE. Neste sentido, e não obstante as deliberações em sede de Assembleia de Credores, as mesmas não exclui que o Julgador possa decidir de forma diferente e a ponderar todas as questões suscitadas pelas partes, e não exclui a possibilidade do Julgador convidar as partes ou o Administrador de Insolvência a prestar informações reputadas pertinentes e a ponderar temas suscitados no processo de insolvência, o que seria de esperar no caso em concreto mas, que não se verificou.
FF. Por outro lado, não se trata de factos não alegados (os pertinentes a um correto enquadramento legal da sustação da liquidação), mas antes a falta de apreciação e de ponderação quanto à questão alegada, para que a decisão fosse consonante com a realidade material – o princípio da materialidade subjacente – como exigência da decisão justa, que é um imperativo dos Tribunais como órgãos de soberania, que, dentro dos limites legais, devem proferir decisões em que a forma não avulte sobre a substância, comprometendo a efetiva segurança das pretensões que lhes compete apreciar.
GG. Importa, assim, considerar que a decisão recorrida, considerando que, no caso, o Julgador apenas remeteu a decisão para disposições gerais e para os poderes das decisões da Assembleia de Credores, sem que tenha efetivamente ponderado e apreciados os fundamentos suscitados pelo Insolvente para a sustação da liquidação do património, isto mesmo o Julgador tendo poderes para tal ponderação e decisão, não pode manter-se sob pena de dar guarida a uma decisão que julgou em desconformidade com o direito.
HH. Ao decidir conforme a Sentença recorrida o Tribunal a quo violou o princípio do dispositivo, previsto no art. 11º do C.I.R.E., além de todos os outros princípios fundamentais do processo civil: poder dispositivo, de gestão processual e de cooperação, devendo os mesmos serem interpretados no sentido do Julgador não se abster de verificar e apreciar a conformidade substancial e da legalidade das questões suscitadas no sentido de ser decidida a sustação da liquidação patrimonial do Insolvente.
Nestes termos e, nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exªs, deverão V. Exªs julgar procedente a presente apelação e revogar o teor da douta decisão.
Que seja proferida nova decisão no sentido da apreciação e declaração da sustação da liquidação do património do insolvente até que se encontre concluída a liquidação no âmbito do processo nº 980/17.7T8OLH.
Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada Justiça!».
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as conclusões das alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da possibilidade de sustar a presente liquidação.
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III – Factos com interesse para a decisão da causa:

Da leitura dos articulados e do relatório do Administrador de Insolvência previsto no artigo 155º do CIRE é possível fixar a seguinte factualidade:
1 – O insolvente vive com a sua companheira e tem um filho menor a seu cargo.
2 – O insolvente é empresário, assumindo funções de administrador em diversas empresas, entre as quais “(…) – Casa Agrícola, SA”, “(…) – S.G.P.S., SA”, “(…), SAI (…)”, “SAI (…) Parque – Investimentos Imobiliários, SA”, “(…) – Casa Agrícola, Lda.”, “(…), Lda.” e “BPSA 2 – Promoção, Desenvolvimento e Investimento Imobiliário, SA”.
3 – Algumas das referidas sociedades encontram-se em situação económica difícil, tendo sido declarada a insolvência das sociedades “(…) – Casa Agrícola, SA”, “(…), SA” e “(…) – S.G.P.S., SAI” por sentenças proferidas respectivamente a 14/08/2017, 19/10/2017 e 27/12/2017.
4 – Decorrente da situação económica difícil e insolvência das sociedades que administrava, do incumprimento por parte daquelas para com os seus credores e do facto do devedor ter assumido diversas responsabilidades e prestado garantias a favor das ditas sociedades, este encontra-se em situação económica difícil e incapaz de cumprir pontualmente as suas obrigações.
5 – Em 21 de Abril de 2017, o ora devedor apresentou-se a processo especial de revitalização.
6 – O processo negocial encerrou sem a aprovação do plano de recuperação e a 13 de Novembro de 2017 o (…) foi declarado insolvente.
7 – O insolvente exerce funções de Administrador na sociedade “(…) Parque, SA” e aufere um vencimento mensal líquido no valor de € 765,00 (setecentos e sessenta e cinco euros).
8 – O ora insolvente apresenta um passivo que ascende à quantia de € 23.107.859,49 (vinte e três milhões, cento e sete mil, oitocentos e cinquenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos), conforme Lista Provisória de Credores, elaborada nos termos do artigo 154º do CIRE.
9 – Os rendimentos auferidos pelo devedor não são suficientes para fazer face a todas as suas despesas mensais e dívidas que contra si impendem.
10 – O insolvente não tem registado a seu favor qualquer bem imóvel.
11 – O insolvente foi dono de uma fracção autónoma designada pela letra "T", sito em Rua Ilha dos (…), nº 38, Santa Maria dos Olivais, Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…)/Santa Maria dos Olivais e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 461º da freguesia de Parque das Nações.
12 – Por escritura pública outorgada em 09/04/2015, o insolvente efectuou a doação do referido bem imóvel à sua filha, (…).
13 – Sob o aludido bem imóvel encontra-se registada uma Acção Pauliana em que a Autora é a “Caixa Geral de Depósitos, SA”, a que corresponde o processo registado sob o nº (…)/17.1T8LSB que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa (Juiz 3), solicitando que seja declarado que a transmissão efectuada não produz efeitos em relação à Autora, podendo esta exercer os seus direitos de execução sobre supradito bem imóvel, até a satisfação integral do seu crédito.
14 – O insolvente é herdeiro na herança aberta por óbito de seu pai, (…), sendo o acervo da herança composto por um prédio urbano[1].
15 – O insolvente não é proprietário de qualquer veículo, mas teve registado em seu nome os veículos de matrículas 17-(…)-36, 77-(…)-81 e 51-(…)-84 até 14/01/2015, 07/07/2014 e 19/12/2014, respectivamente.
16 – O insolvente é detentor de uma quota no valor nominal de € 10.000,00 (dez mil euros), na sociedade “(…) – Casa Agrícola, Lda.”.
17 – O insolvente é Administrador das sociedades “(…) Sociedade Imobiliária, SA”, “(…) Parque – Investimentos Imobiliários, SA”, “(…)-2 – Promoção e Desenvolvimento de Investimentos Imobiliários, SA” e “(…) – Hotéis, SA”.
18 – As sociedades “(…) – Sociedade de Construções, Lda.”, “(…) – Sociedade de Fomento Imobiliário, Lda.”, “(…) – Sociedade de Exploração Hoteleira, Lda.” e “(…) – Sociedade Imobiliária, Lda.”, nas quais o insolvente figurou como Administrador têm a sua matrícula cancelada.
19 – O insolvente é ainda detentor de 522.500 acções tituladas ao portador, e respectivos direitos de voto, com o valor nominal de € 1,00 (um euro) cada uma, representativas do capital social da sociedade “(…) – Casa Agrícola, SA”.
20 – A mencionada sociedade foi declarada insolvente e as acções não são vendáveis.
21 – Foi detectada a existência da Conta D.O. nº 0003.36471050020 (titulada pelo insolvente) que apresenta um saldo bancário no valor de € 62,02, domiciliada no “Banco Santander Totta, SA”, e conta D.O. nº (…), (titulada pelo insolvente), domiciliada no “Banco Comercial Português, SA”, que apresenta um saldo bancário no valor de € 17,32. Atendendo ao diminuto valor dos saldos que as referidas contas apresentam as quantias em causa não foram apreendidas a favor da massa insolvente.
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IV – Fundamentação:
O recorrente pretende que o Tribunal da Relação profira nova decisão no sentido da apreciação e declaração da sustação da liquidação do património do insolvente até que se encontre concluída a referida operação no âmbito do processo nº 980/17.7T8OLH.
O recurso ancora-se no princípio do dispositivo sediado no artigo 11º[2] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e na valorização dos poderes de gestão processual e de cooperação, os quais, na perspectiva do insolvente, devem serem interpretados no sentido do Julgador não se abster de verificar e apreciar a conformidade substancial e da legalidade das questões suscitadas no âmbito do processo.
Consensualmente é aceite que um dos poderes fundamentais da assembleia de credores é o de decidir o destino da empresa ou do singular insolvente, deliberando, seja sobre o seu encerramento ou a sua manutenção em actividade e a eventual atribuição ao administrador da insolvência do encargo de elaborar um plano de insolvência, seja sobre a liquidação integral do património ou a sua recuperação[3] [4] [5] [6].
Como sublinham Carvalho Fernandes e João Labareda «cabe dizer que à assembleia assiste, como primeiro e mais significativo poder, o de optar pelo meio que, em definitivo, intentará a concreta realização dos interesses dos credores, que o processo de insolvência visa alcançar»[7]. Este papel decisivo da Assembleia de credores pode ser extraído do texto dos artigos 78º e 80º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A suspensão da liquidação e partilha do activo é uma medida de natureza excepcional que ocorre na oposição de embargos à sentença declaratória de embargos e também no recurso da decisão que mantenha a declaração de insolvência, como decorre da letra do artigo 8º, do nº 3 do artigo 40º e do nº 3 do artigo 42º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Esta constelação normativa deve ainda ser completada com a disciplina inscrita no número 3 do artigo 156º e no número 1 do artigo 158º do mesmo diploma. E desta leitura articulada resulta que, em termos hermenêuticos, está cometida à Assembleia de Credores o poder de determinar a suspensão da liquidação e partilha da massa para o caso de decidir encarregar o administrador de elaborar um plano de insolvência.
Estas disposições devem ainda ser conciliadas com a regra precipitada no artigo 206º e com os princípios básicos de urgência previstos para o direito da insolvência, pois, num referencial de normalidade social e processual, a suspensão envolve o risco considerável para a massa insolvente.
A suspensão da liquidação serve essencialmente para garantir a concretização do plano e não para salvaguardar interesses particulares. Esta operação de avaliação deve ser realizada de forma casuística e «não prescinde de uma valoração subjectiva da parte do juiz, conquanto ela deva sustentar-se em elementos objectivos»[8].
À míngua de outros parâmetros de referência, esses elementos objectivos devem retirar-se do relatório do administrador de insolvência previsto no artigo 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e noutros subsídios presentes nos autos. E, no actual enquadramento existencial, a análise dos elementos incluídos nesse documento afasta liminarmente a conveniência ou a bondade da solução de suspensão da fase de liquidação.
O inventário dos bens e dos direitos integrados na massa insolvente das sociedades insolventes e do aqui recorrente não torna viável um juízo de prognose póstuma favorável e que possa afectar positivamente o desfecho da presente insolvência no sentido de as verbas obtidas com a venda nos outros processos conexos serem suficientes para garantir a satisfação dos credores.
Para além disso, uma vez que a questão suscitada entrelaça a matéria das competências da assembleia de credores com os poderes de fiscalização e controlo das deliberações cometidas ao juiz, não se pode ignorar, neste último domínio, a posição doutrinal que assevera que a regra do inquisitório consagrada no artigo 11º só funciona quanto ao processo de insolvência, embargos e incidentes de qualificação. Na realidade, conforme realçam Carvalho Fernandes e João Labareda, os demais incidentes e os outros apensos encontram-se fora da esfera de protecção deste princípio «tendo em conta, por um lado a letra da lei e, por outro, a comparação com o regime fixado no artigo 9º, nº 1»[9].
Neste horizonte interpretativo, na medida em que a celeridade dos processos de insolvência é um factor absolutamente inderrogável para a perfectibilização das finalidades e dos objectivos do “direito falimentar”, constituindo uma preocupação constante do legislador. E, assim, fora das hipóteses legalmente catalogadas, a possibilidade de sustação é atípica e deve assentar em critérios objectivos e de racionalidade jurídica que não estão patenteados na situação em discussão.
Dito de outra forma, na dicotomia entre a tutela jurisdicional dos direitos de crédito e do interesse à preservação do património na esfera jurídica do cidadão insolvente, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, a hierarquia dos valores a preservar aponta claramente para a opção de não sustação da fase de liquidação.
Com efeito, esta medida de paralisação processual apenas deve ser prosseguida nas hipóteses inventariadas na lei aplicável e, fora desse caso, em cenários objectivamente avaliáveis que visem corrigir situações de clara injustiça e sempre sob a alçada do desígnio de favorecimento dos interesses da massa insolvente e dos interessados directos no pagamento dos seus créditos.
Por último, a invocação da existência de sobre garantia não encontra respaldo na matéria de facto indiciariamente apurada. Tal como conclui o Administrador Judicial, «o insolvente anuncia claramente a sua impotência em solver pontualmente a generalidade das suas obrigações, vivenciando uma situação de insolvência real e actual» e a quantificação patrimonial que faz dos bens objecto de garantia para a concessão de empréstimos (imóvel e valores mobiliários) é manifestamente desadequada face ao respectivo valor de mercado e à situação de insolvência experimentada pelas sociedades onde o aqui recorrente era detentor de participações sociais.
As decisões judiciais não se aferem apenas por uma norma legal, mas pelo contexto do direito. Neste, incluem-se leis, princípios e valores[10]. E neste contexto do direito, a solução encontrada pelo Tribunal «a quo» representa uma solução que se mostra conforme aos princípios de actuação do direito da insolvência e que realiza a justiça material que o caso reclama.
Assim sendo, decide-se manter a decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso apresentado.
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V – Sumário:
1. Na dicotomia entre a tutela jurisdicional dos direitos de crédito e do interesse à preservação do património na esfera jurídica do cidadão insolvente, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, a hierarquia dos valores a preservar aponta claramente para a opção de não sustação da fase de liquidação.
2. Esta medida de paralisação processual apenas deve ser prosseguida nas hipóteses inventariadas na lei aplicável e, fora desse caso, em cenários objectivamente avaliáveis que visem corrigir situações de clara injustiça e sempre sob a alçada do desígnio de favorecimento dos interesses da massa insolvente.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, tendo em atenção o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 28/02/2019

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

Maria Domingas Simões
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[1] Prédio urbano, destinado a habitação, composto por habitação com rés-do chão com cinco compartimentos, cozinha, duas casas de banho, vestíbulo, dois terraços, garagem e logradouro e primeiro andar com três compartimentos, cozinha, casa de banho e terraço, com área total de 270,00m2, sito em Lagoas, Albufeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…)/Albufeira e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) da freguesia de Albufeira E Olhos De água, com valor patrimonial urbano de € 106.680,00.
[2] Artigo 11.º (Princípio do inquisitório)
No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
[3] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 97-101.
[4] Catarina Serra, O Novo regime Português da Insolvência. Uma introdução, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 22-23.
[5] Maria do Rosário Epifânio, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 70-77.
[6] Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 121-126.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 383.
[8] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 754.
[9] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 120.
[10] António Barbas Homem, O Justo e o Injusto, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2001, pág. 139.