Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
236/14.7TALLE-B.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
PERDA
CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – O estatuto do assistente é dinâmico e reversível, pelo que o despacho que admite determinada pessoa a intervir nos autos em tal qualidade apenas faz caso julgado rebus sic stantibus.
II – Por isso, perdeu a qualidade de assistente a seguradora que (nessa qualidade) se havia constituído num processo crime e que, entretanto, transmitiu a sua carteira de seguros para outra seguradora, e daí o crédito resultante dos prejuízos causados pela conduta imputada aos arguidos no referido processo crime, por virtude de um seguro, foi transmitido para essa outra seguradora.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 236/14.7TALLE-B.E1
[1392]

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos em referência, o Ministério Público acusou os arguidos, BB e CC, pela prática de factos consubstanciadores da co-autoria, em concurso real, de um crime de falsificação de documento, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 256.º n.º 1 alínea a) e 255.º alínea a), do Código Penal (CP) e de um crime de burla, este p. e p. nos termos do disposto nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 1, do CP.

2 – A DD, SA e a EE, SA, admitidas a intervir nos autos como assistentes, formularam acusação contra os mesmos arguidos, imputando-lhes a prática dos mesmos referidos crimes.

3 – Por requerimento de 21 de Outubro de 2016, a FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, juntou certidão referente à transmissão para a FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA do negócio desenvolvido pela DD, SA, «incluindo a transferência da totalidade da carteira de seguros do Ramo Não Vida, dos créditos e das responsabilidades emergentes de processos judiciais e arbitrais e, nomeadamente, o referente aos presentes autos (cfr. Anexo I da referida escritura pública), bem como dos activos e de outras posições contratuais».

4 – Na sessão da audiência de julgamento lavada a 4 de Julho de 2017, a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido proferiu despacho nos seguintes termos:
«Conforme resulta de f1s. 475 e seguintes, os créditos relativos aos presentes autos, bem como, a posição contratual da DD passam para a, também, aqui assistente e demandante EE - Companhia de Seguros, SA, que alterou a sua denominação para a FFl - Companhia de Seguros, SA.
Assim, sendo a burla um crime contra o património e a falsificação um crime contra a fé pública ou verdade intrínseca dos documentos, a pessoa ofendida com a conduta do agente é o titular dos interesses patrimoniais violados, foi visada pela conduta do agente e, em consequência da mesma sofreu danos.
Assim, tendo a sociedade DD cedido o seu crédito resultante dos danos causados pela alegada conduta dos arguidos, perdeu, aqui, a sua qualidade de assistente, nos presentes autos.
No que respeita ao pedido de indemnização civil formulado pela DD, deverá a assistente e demandante FFs, em face da transmissão de créditos, que comunicou ao processo a f1s. 475 e seguintes, requerer o que tiver por conveniente, concedendo-se, então, o prazo de 10 dias para o efeitos.
Assim sendo e, uma vez que não se encontra ainda estabilizada a instância civil, está inviabilizada a realização da audiência de julgamento, no dia de hoje, procedendo-se ao seu adiamento e designando-se, em sua substituição, o próximo dia 22 de novembro, pelas 10.00 horas».

5 – A FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, «actual denominação da EE, COMPANHIA DE SEGUROS, SA», pediu a aclaração daquele despacho, vindo a Mm.ª Juiz a decidir que nada se impõe esclarecer.

6 – A FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, interpôs recurso do despacho acima transcrito.
Formula o pedido nos seguintes termos:
«deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare que a FF mantém nos presentes autos a qualidade de Assistente por direito próprio, como ofendida "ab initio", para além da qualidade de Assistente que mantém como adquirente da carteira de seguros da "DD"».
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«Por douto Despacho proferido na audiência de julgamento do dia 04-07-2017 relativamente ao requerimento de fls. 475 e seguintes dos autos, foi "determinada a perda de qualidade de Assistente por parte da requerente em face da cedência da posição contratual e requerer o que tiver por conveniente quanto ao PIC formulado".
2 - A ora Recorrente não se conforma com o supra referido Despacho, porquanto a EE (depois denominada FF) sempre foi desde o início a visada pelo crime em causa neste processo, e, como tal, ofendida por direito próprio, independentemente de qualquer transmissão da carteira de seguros da "DD", facto que o tribunal "a quo" parece ter olvidado,
3 - Dado que os arguidos visavam determinar "ab initio" a "DD, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A", a pagar valores de danos, despesas e indemnizações a que esta não estava obrigada, como seguradora de um dos veículos alegadamente intervenientes no invocado acidente, motivo pelo qual o referido Despacho, ao declarar a perda da qualidade de Assistente por parte da FF incorreu em erro notório, que aqui expressamente se invoca.
4 - Pelo que, vem a ora Recorrente apresentar recurso de tal Despacho, o qual é de Direito, por entender que o mesmo violou a norma constante no artigo 68.°, n.º 1, al. a), do C.P.P.
5 -Efectivamente, embora tivesse ocorrido a transmissão da carteira de seguros da DD para a EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (depois FF), a denúncia nos presentes autos foi apresentada desde logo numa altura e momento em que aquela transmissão ainda não se tinha verificado.
6- A participação do alegado acidente de fls ... dos autos surge com a intervenção de duas Seguradoras, a saber EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (depois FF), como seguradora do veículo "…" e Seguro …, (depois DD), como seguradora do veículo "…".
7 - Os arguidos participaram o alegado acidente, como tendo ocorrido entre aquelas duas viaturas e com a intervenção e por culpa do veículo "…", seguro na EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., sendo que, com a elaboração do documento constituído/designado por "Declaração Amigável de Acidente Automóvel", os arguidos visavam determinar "ab initio" a "EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A" a pagar valores de danos, despesas e indemnizações a que esta não estava obrigada, como seguradora do veículo ….
8 - Pelo que, "ab initio", a EE (actualmente denominada FF, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.) é efectivamente a ofendida no presente processo por direito próprio!
9 - Foram ambas aquelas seguradoras que regularizam o sinistro, ao abrigo da Convenção IDS - Indemnização Direta ao Segurado: a EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., como seguradora devedora e a … (depois DD), como seguradora credora.
10 - A lesada DD, porque era a Seguradora Credora, foi quem realizou a peritagem, averiguação dos factos e indemnizou directamente o seu segurado, sendo que se seguiria o reembolso junto da seguradora credora EE, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A
11 - Porém, porque se apurou a verdade dos factos, ou seja, que o acidente participado não havia ocorrido, a regularização do processo de sinistro não seguiu o seu curso normal, o que fez com que não viesse tal reembolso a ocorrer, e a ofendida EE não reembolsou a DD dos danos.
12 - No entanto, tal facto não retira que a "FF" (anteriormente denominada EE), face aos factos aqui em apreço e face inclusivamente à acusação pública, seja ofendida nos presentes autos e, dada a configuração do PIC, demandante e, por isso, esta teve intervenção desde o início do processo, independentemente da DD e de qualquer transmissão de carteira, crédito e responsabilidades neste processo judicial.
13 - E, bem assim, apresentaram igualmente pedido de indemnização civil e acusação particular, os quais vieram igualmente a ser admitidos, bem como, cada uma de per si, requereram a sua constituição como Assistentes, o que veio a ser deferido.
14 - A FF (anteriormente denominada EE) surge também como demandante no PIC, e como Seguradora devedora da indemnização IDS, nos termos já referidos supra.
15 - Ou seja, a FF (anteriormente denominada EE) deve permanecer na qualidade de Assistente, por ser ofendida "ab initio" nos presentes autos e, por isso, de direito próprio, sendo, nesta parte (enquanto ofendida), completamente alheia à mencionada transmissão da carteira de seguros já mencionada, não interferindo a mesma (transmissão), por isso, na sua posição inicial de ofendida.
16 - Pelo que, a cedência da carteira da "DD" para a FF não origina a perda de qualidade de Assistente desta última, ao contrário do declarado no Despacho recorrido.
17 - O Despacho recorrido, ao declarar a perda da qualidade de Assistente da aqui Recorrente ocorreu em erro notório, fazendo uma incorrecta aplicação da lei, violando a norma constante no artigo 68.°, n.º 1, al. a), do C.P.P.
18 - E, dúvidas não há que a FF é efectivamente, desde o início, titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com o(s) crime(s) aqui em causa!
19 - Pelo que, nos termos do artigo 68.°, n.º 1, al. a), do C.P.P, a aqui Recorrente, sendo efectivamente ofendida por direito próprio nos autos, por ser titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação "sub judice", pode constituir-se Assistente - como o fez - e, como tal mantém-se nessa qualidade nos presentes autos, não a perdendo pelo facto de se ter verificado a transmissão da carteira de seguros da "DD" para a FF!
20 - Sem prescindir, sempre se diga que a FF deve também manter-se Assistente como receptora da carteira de seguros da "DD" e sobretudo dos créditos e responsabilidade nestes autos, porquanto, a operação em causa, transmissão de uma carteira de seguros, implica que a Companhia de Seguros adquirente (neste caso, a FF) assuma, todos os direitos e obrigações decorrentes desses contratos que compõem essa mesma carteira, ocupando, consequentemente, a posição que a "DD" detinha legitimamente nos presentes autos, com todos os direitos e deveres inerentes à mesma, nomeadamente, no que à qualidade de Assistente diz respeito e tudo quanto esta integra e a define.
21 - Ou seja, com a transmissão da carteira de seguros, a adquirente FF - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., ora Recorrente, ficou investida na titularidade de todos os direitos e obrigações decorrentes dos contratos celebrados pela transmitente, nos termos gerais dos artigos 879°, alínea a) e 939°, do Código Civil, "ex vi" do artigo 4.°, do Código de Processo Penal.
22 - Sendo a transmissão oponível aos tomadores de seguros, segurados e a quaisquer outras pessoas titulares de direitos ou obrigações emergentes dos correspondentes contratos de seguro, incluindo, portanto, os sujeitos processuais no presente processo, a partir da respectiva autorização, nos termos do artigo 182°, n." 1, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Resseguradora, aprovado pela Lei n. ° 147/2015, de 09 de Setembro.
23 - Adquiriu, por isso, quanto à aludida transmissão a ora Recorrente nessa medida legitimidade para intervir no presente processo, como sujeito processual, na posição que ocupava nos autos a "DD", nomeadamente como Assistente, uma vez que esta legitimidade emerge de direitos e obrigações decorrentes de contrato de seguro celebrado com a transmitente, e englobado na carteira transmitida à aqui Recorrente.
24 - Pelo que, a Recorrente, ao adquirir a carteira de seguros da "DD", encontrando-se esta legitimamente constituída Assistente nos presentes autos e, fruto da referida transmissão e sobretudo dos créditos e responsabilidade nestes autos, assume, todos os direitos e obrigações decorrentes desses contratos que compõem essa mesma carteira, porquanto e, nos termos dos normativos supra transcritos, mantém por isso igualmente a qualidade de Assistente originariamente atribuída à transmitente nos presentes autos.
25 - Ou seja: A FF mantém no presente processo (e assim deverá permanecer) a qualidade de Assistente: por um lado, como ofendida "por direito próprio", ou seja, como titular dos interesses especialmente protegidos com a incriminação em causa nos autos, pelo que, o Despacho recorrido, ao declarar a perda da qualidade de Assistente da FF (anteriormente EE), violou o disposto no artigo 68.°, n.º 1, al. a), do C.P.P,
26 - E, por outro lado, como sujeito processual titular da carteira de seguros da "DD", fruto da transmissão operada da referida carteira para a aqui Recorrente, assim se devendo igualmente manter, sob pena de violação dos artigos 879°, alínea a) e 939°, do Código Civil, "ex vi" do artigo 4.°, do C.P.P e artigo 182°, n.º 1, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Resseguradora, aprovado pela Lei n." 147/2015, de 09 de Setembro.»

7 – O recurso foi admitido por despacho de 27 de Setembro de 2017.

8 – O Ministério Público, em 1.ª instância, respondeu ao recurso.
Defende a confirmação do julgado.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. A DD transmitiu a sua carteira de seguros para a FF, anteriormente denominada EE - Companhia de Seguros, S .A ..
2. O crédito resultante dos prejuízos causados pela conduta imputada aos arguidos foi transmitido para a FF - Companhia de Seguros,S.A ..
3. Esta passou a ser a titular "dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação".
4. A DD perdeu, assim, a sua qualidade de assistente.»

9 – Nesta instância, o Ministério Público apôs «visto».

10 – O objecto do recurso reporta a saber se a Mm.ª Juiz do Tribunal recorrido incorreu em erro de jure, por indevida interpretação do disposto no artigo 68.º n.º 1 alínea a), do CPP, do passo em que decidiu negar à DD acesso à qualidade de assistente.
II

11 – Por despacho de 25 de Fevereiro de 2015, foram admitidas a intervir nos autos, na qualidade de assistentes, a DD, SA e a EE, COMPANHIA DE SEGUROS, SA. (agora FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA).

12 – A assistente DD, SA, transmitiu sobrevenientemente para a FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA «a totalidade da carteira de seguros do Ramo Não Vida, dos créditos e das responsabilidades emergentes de processos judiciais e arbitrais e, nomeadamente, o referente aos presentes autos, bem como dos activos e de outras posições contratuais».

13 – O despacho recorrido determina que, na medida da transmissão de créditos da assistente DD, SA para a FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, aquela perdeu a qualidade de assistente.

14 – Se bem se lêem e interpretam o deciso e o recurso, haverá algum equivoco no alegado – porventura originado pelas sucessivas transmissões de créditos e pelas plúrimas sequentes comutações no título social das seguradoras, que os autos documentam.

15 – É que a decisão revidenda não retirou à FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, sucessora da EE, COMPANHIA DE SEGUROS, SA (nem a esta), a qualidade de assistente, apenas estabelecendo que, face à referenciada escritura, a DD, SA deixou de ter legitimidade para intervir nos autos como assistente.

16 – Ora, sendo o estatuto do assistente dinâmico e reversível, do passo em que o despacho que admite determinada pessoa a intervir nos autos em tal qualidade apenas faz caso julgado rebus sic stantibus, e na medida em que, no caso, a DD, SA perdeu, supervenientemente, legitimidade (no sentido de interesse em agir, aferido pela utilidade prática do processo) para intervir nos autos como assistente, a decisão revidenda não merece reparo ou censura.

17 – Por isso que não se vê que o despacho revidendo haja incorrido em qualquer violação ou indevida interpretação do disposto nos artigos 68.º n.º 1 alínea a), do Código de Processo Penal, sequer do disposto nos artigos 879.º alínea a) e 939.º, do Código Civil, e no artigo 182.º n.º 1, do Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Resseguradora.

18 – Termos em que o recurso não pode lograr provimento.

19 – Face ao decaimento no recurso, impõe-se a condenação da assistente recorrente em custas – artigo 515.º n.º 1 alínea b), do Código de Processo Penal, e artigo 8.º e tabela III, estes do Regulamento das Custas Processuais.
III

20 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento ao recurso interposto pela assistente, FF, COMPANHIA DE SEGUROS, SA; (b) condenar a mesma assistente na taxa de justiça que se fixa em 3 (três) unidades de conta.

Évora, 8 de Maio de 2018
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)