Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1244/13.0TBVNO-E.E1
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE OU CESSIONÁRIO
INCERTOS
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - A habilitação de cessionário, tanto no regime anterior – art.º 376º do CPC – como no actual – art.º 356º, nº 1, do NCPC –, pressupunha sempre a existência de um documento – um título de aquisição ou cessão ou um termo lavrado no processo, donde resultasse a identificação do cedente e do cessionário.
2 - Não é, por isso, admissível equacionar, ainda que em abstracto, a possibilidade legal de se promover uma habilitação de cessionário contra incertos.
Decisão Texto Integral: Proc.º N.º 1244/13.0TBVNO-E.E1
Apelação (1ª Secção)
Recorrente: (…).
Recorridos: (…) e (…).
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Relatório[1]

Veio (…), residente no n.º 14, Rue des (…), (…), em França, requerer a habilitação de adquirente contra incertos, alegando, em síntese, que, os requeridos tinham, à data de 11.03.2014, o valor de 254.771€ em saldos ou aplicações bancários e “desfizeram-se” desses valores antes do dia 11.04.2014, ou seja, depois de terem sido notificados da declaração de executoriedade em Portugal da sentença condenatória francesa e já depois de ter sido decretado o arresto.
Requer que o Tribunal proceda à realização de diligências tendentes a aferir dos destinatários da referida quantia, para contra eles prosseguir a presente instância.
Notificados para pronunciarem-se, os requeridos invocaram a excepção de ilegitimidade activa e impugnaram a factualidade alegada pela requerente, afirmando não ter ocorrido qualquer transmissão de bens ou valores durante a pendência da acção».
De seguida a sr.ª Juíza, apreciando, proferiu o seguinte despacho:
«Como excepção ao princípio da estabilidade da instância (artigo 260.º do Código de Processo Civil), elenca o artigo 262.º do mesmo Código as circunstâncias em que é possível a modificação subjectiva: a) em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio; b) em virtude dos incidentes de intervenção de terceiros.
No caso vertente, a requerente alega que os requeridos cederam, desconhecendo a que título, a terceiros, cuja identidade também desconhece, determinada quantia pecuniária existente em conta bancária cujo saldo foi objecto de arresto, em momento anterior ao trânsito em julgado da referida decisão de arresto, pelo que estamos perante uma das situações previstas na aludida alínea a).
Assim, e nos termos do disposto no artigo 263.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo. A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária (n.º 2). Por último, dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção.
A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio encontra-se regulada no artigo 356.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e pode ser requerida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário ou pela parte contrária (n.º 2 do mesmo artigo).
Assim, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 356.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, lavrado no processo o termo de cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título de aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar, impugnando, designadamente, a validade do acto ou alegando que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, após o que, após resposta da requerente e produzidas as provas necessárias, será proferida decisão.
Por outro lado, não havendo contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
Ora, não se mostram respeitados os requisitos previstos no artigo 356.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, desde logo por não ter sido o incidente dirigido contra pessoa concreta nem apresentado qualquer título de aquisição dos valores em causa.
Com efeito, tal como se depreende das disposições legais supra citadas, a habilitação do adquirente ou cessionário terá obrigatoriamente, e sempre, por base um documento ou título escrito do qual constem os termos do negócio da cessão/transmissão do direito em litígio, bem como é determinante a definição da identidade dos sujeitos passivos da transmissão.
Termos em que se indefere liminarmente o incidente de habilitação deduzido.
Custas a cargo da requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.
Registe e notifique».
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Inconformada veio a requerente, interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

«I – As técnicas cada vez mais sofisticadas de dissipação de bens, permitidas pelas tecnologias e informalidade hodiernamente disponíveis, bem como o inerente animus dos operadores de mercado, impõem que o intérprete das normas relativas, in casu, à habilitação do adquirente para que contra ele prossiga o arresto das contas bancárias doutamente decretado, não se quede por uma insuficiência ou insegurança na prova, a fim de prevenir a injustiça que a impossibilidade de prova, nos termos em que o exige a decisão recorrida, propicia, injustiça que aliás perpetuará, por via da dita decisão.
1.1. Os princípios de Justiça efectiva, de celeridade e de economia processual, inerentes à moderna ideia do Direito, inclusive processual, mostram-se violados quando o tribunal a quo exige “um documento ou título escrito do qual constem os termos do negócio da cessão/transmissão do direito em litígio” bem como “a definição da identidade dos sujeitos passivos da transmissão”.
1.2. Mostram-se violados os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 9.º, 202.º, nº 1 e 20.º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa, os art.s 6.º, 7.º e 411.º do CPC, os quais impunham a realização de diligências processuais requeridas pela recorrente, e, em consequência, a total procedência do incidente de habilitação do adquirente.
II – Os princípios que se contêm no art. 342º do C. Civil integram o critério da normalidade e apelam, na sua aplicação, à sensibilidade do intérprete, o qual não poderá deixar de ter em conta o caso sub judice e a posição relativa das partes, bem como a inerente dificuldade, ou, quiçá, impossibilidade de prova directa de determinados factos, na consideração do direito como um conjunto de normas coesas pelos valores ético-jurídicos a que referem.
2.1. Mostram-se incorrectamente interpretadas as normas que se contêm no n.º 1, al. a), do art. 356.º do CPC e no n.º 1 do art. 342º do CC, pois constam dos autos elementos que provam, à saciedade, que os recorridos transmitiram todos os créditos bancários, num montante superior à 250.00,00 Eur..
2.2. Mostra-se incorrectamente interpretada a norma que se contém no n.º 1 do art. 263.º do CPC, cuja correcta interpretação impunha considerar-se que houve transmissão (de créditos bancários) por parte dos requeridos em benefício de terceiros durante ou após o ano de 2012, mas, por isso, sempre durante a pendência da acção, iniciada em França através de uma providência cautelar antecipatória de peritagem em 2010 e que cuja petição inicial foi notificada aos recorridos em 10/08/2010.
III – O valor último e a ratio da legitimidade que o Povo hodiernamente confere aos Tribunais, ao poder judicial, nos termos do n.º 1 do art. 3.º e do n.º 1 do art. 202.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, é a realização da Justiça efectiva, real, através de uma decisão justa no resultado, Justiça essa que se pretende defensora dos interesses de todos, mas também dos interesses e da confiança da sociedade, de todos os intervenientes na acção da Justiça e nos Tribunais em geral.
3.1. O Tribunal não pode ficar indiferente ao teor da oposição ao incidente apresentada pelos recorridos, assim como à postura dos recorridos em todos os actos processuais, antes devendo dar-lhe a importância e o valor que merecem. Pois, não só no recurso contra o despacho que declarou executória em Portugal a decisão condenatória francesa, como na oposição ao arresto (apenso B), os recorridos invocaram a incompetência dos tribunais portugueses, alegando, mas sem qualquer fundamentação ou prova (!), que não tinham a sua residência em Portugal. O que sabiam ser falso, levando a Meritíssimo julgadora a quo a condenar os recorridos como litigantes de má-fé – cfr. Douto despacho de 08/07/2014, 3ª pág., último parágrafo, 7ª pág., 1º parágrafo, in fine, 9ª a 11ª págs.; e art.s 7.º, n.º 2, e 8.º do CPC.
3.2. Mostra-se violado o n.º 3 do art. 9.º do CC, em cujos termos uma decisão injusta no resultado não pode ser entendida como vontade da lei.
Termos em que deve julgar-se o presente recurso procedente, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento do arresto das contas bancárias contra os adquirentes que beneficiaram da transmissão de créditos/saldos bancários provenientes dos recorridos…»
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Não houve resposta.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil ).
As conclusões de recurso delimitam assim o seu objecto em termos de o Tribunal superior não poder conhecer de questões que aí não constem. Porém existem ainda outras limitações objectivas ao objecto do recurso, que são anteriores a este e que o condicionam. Desde logo:
- A decisão recorrida
- Os casos julgados formados no processo.
Quanto à primeira limitação, é entendimento unânime na jurisprudência que o objecto do recurso é a decisão, ou seja, os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova. Neste sentido pode ler-se no acórdão do S.T.J. de 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719: "vem este Supremo Tribunal decidindo de há muito, constituindo jurisprudência assente e indiscutida, que os recursos visam modificar decisões e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo lícito invocar nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido – sublinhado nosso – (cfr. entre outros, acórdãos de 16.5.72, 13.3.73, 5.2.74, 29.10.74, 7.1.75, 25.11.75 e de 12.6.91, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 217, pág. 103; 225, pág. 202; 234, pág. 267; 240, pág. 223; 243, pág. 194, 251, pág. 122 e n.º 408, pág. 521, respectivamente)".
Na doutrina é também este o entendimento, conforme se constata da lição de Castro Mendes, "Recursos", 1980, pág. 27 e, de Armindo Ribeiro Mendes, "Recursos em Processo Civil", 1992, págs.140 e 175.
O STJ reafirmou este entendimento ao decidir que «os recursos visam o reestudo, por um tribunal superior, de questões já vistas e resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas».
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Analisadas as conclusões de recurso e apesar de todos os “desabafos” e considerações delas constantes, verifica-se que a questão o objecto do recurso se circunscreve a saber se a decisão recorrida é ou não legal.
E a resposta é obviamente afirmativa. Com efeito, apesar da compreensível indignação da recorrente por não conseguir obter a cobrança do que lhe é devido, a verdade é que não pode imputar esse insucesso aos Tribunais ou à Justiça portuguesa, mas sim a todo um sistema legal que permite, com muita facilidade, aos devedores ocultarem os seus bens e assim se eximirem ao cumprimento das suas responsabilidades e dificulta aos credores a reversão daquela situação…! O despacho recorrido é legal e fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no art.º 356º do CPC. Na verdade a habilitação de cessionário, tanto no regime anterior – art.º 376º do CPC – como no actual – art.º 356º nº 1 do NCPC – pressupunha sempre a existência de um documento – um título de aquisição ou cessão ou um termo lavrado no processo, donde resultasse a identificação do cedente e do cessionário[4][5]. Não sendo por isso admissível equacionar, ainda que em abstracto, a possibilidade legal de se promover uma habilitação de cessionário contra incertos, como pretende a ora recorrente.
Salvo o devido respeito pela estratégia delineada ao promover o presente incidente e salvaguardando a hipótese de não termos atingido o seu alcance, parece-nos que, mesmo que se viessem a conhecer os beneficiários das alegadas “transferências” de fundos ou depósitos, os mesmos nunca poderiam ser habilitados nestes autos para contra eles se promoverem medidas executivas, porquanto nada foi apreendido ou penhorado e inexistindo «coisa litigiosa» inexiste a possibilidade de a transmitir…!!!
Isto porém, não significa, como deixa transparecer a recorrente nas sua alegações, que não haja forma legal de responsabilizar os beneficiários daquelas transferências, se ilícitas. Meios processuais existem. Este é que não é seguramente o adequado!
Concluindo

Pelo exposto, acorda-se na improcedência da apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Évora, em 26 de Março de 2015
Bernardo Domingos
Silva Rato
Assunção Raimundo

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[1] Transcrito da sentença.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2, 2ª parte, do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs..
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] Como se refere no Ac. da Rel. do Porto de 25/1/1993, in BMJ , 323º, 443, nos termos do artº 376º do Cod. Proc. Civil, a habilitação do adquirente ou cessionário terá obrigatoriamente, e sempre, por base um documento ou título escrito do qual constem os termos do negócio da cessão do direito em litígio.
[5] No mesmo sentido, veja-se Ac. da RL de 31/10/07, proc. nº 5923/2007-4, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.