Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
845/22.0T8EVR.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: FALTA DE INTERESSE EM AGIR
INOFICIOSIDADE
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Verificado o interesse do autor em recorrer aos tribunais com o objetivo de obter tutela jurídica, daqui não decorre, sem mais, o respetivo interesse processual no âmbito da pretensão que deduziu na ação;
II – Se a eventual procedência da pretensão deduzida não altera a situação do autor, que não retira qualquer vantagem da tutela pretendida, a ação mostra-se inútil, pelo que não assiste ao demandante o interesse em agir.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 845/22.0T8EVR.E1
Juízo Central Cível e Criminal ...
Tribunal Judicial da Comarca ...


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra AA, BB e CC, pedindo se declare nula a doação pela 1.ª ré aos 2.º e 3.º réus dos imóveis que identifica e a respetiva escritura outorgada em 19-11-2021, se ordene o cancelamento do registo da doação, bem como de quaisquer registos posteriormente efetuados sobre os mesmos bens.
Alega, em síntese, que, em processo de inventário intentado por óbito de seus pais, no qual são interessados o apelante, a ora 1.ª ré e DD, suas irmãs, foram relacionados os prédios mistos denominados Herdade ... e Herdade ..., imóveis doados pelo inventariado em 01-10-2012 às duas irmãs do apelante; acrescenta que o processo de inventário se encontra suspenso, a aguardar decisão, a proferir nos autos que identifica, relativa a inoficiosidade da referida doação; mais sustenta que a 1.ª ré doou aos 2.º e 3.ºs réus, seus filhos, o seu direito sobre os referidos imóveis, visando evitar a redução da doação efetuada pelo inventariado e a consequente restituição à herança do direito doado, com o propósito de prejudicar o apelante, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citados, os réus contestaram, tendo a 1.ª ré apresentado contestação autónoma e os 2.º e 3.º réus contestação conjunta, todos pugnando no sentido da improcedência da ação.
Por despacho de 13-03-2023, o autor foi convidado a esclarecer determinados pontos da factualidade alegada e foi concedido contraditório quanto à eventual verificação de falta de interesse em agir.
O 1.º autor apresentou articulado aperfeiçoado, no qual esclareceu, além do mais, que os dois indicados imóveis não foram relacionados no inventário, tendo o apelante reclamado a falta da respetiva relacionação, e que não requereu a redução por inoficiosidade da doação desses imóveis pelo inventariado, o que afirma poder vir a requerer em função da decisão que vier a ser proferida nos autos que identifica; mais exerceu contraditório quanto à questão suscitada.
Os 2.º e 3.º réus exerceram contraditório quanto à questão suscitada.
Foi realizada audiência prévia, na qual se efetuou tentativa de conciliação e se comunicou que o estado do processo permite a prolação de decisão final, concedendo-se às partes um prazo para se pronunciarem, conforme consta da respetiva ata.
Por despacho de 27-08-2023, foi fixado o valor à causa e proferido despacho saneador, no qual se considerou verificada a falta de interesse em agir por parte do autor, tendo-se decidido o seguinte:
Nestes termos, e pelo exposto, JULGA-SE VERIFICADA A EXCEÇÃO DILATÓRIA DE FALTA DE INTERESSE EM AGIR por parte do autor AA, absolvendo-se os Réus AA, BB, e CC da instância, nos termos do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e) e 576.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.
Custas da ação a cargo do Autor, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique e registe.
Após trânsito, comunique à Conservatória do Registo Predial para os devidos efeitos quanto ao registo da presente ação.
Inconformado, o autor interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«a) O presente recurso vem interposto do, aliás, mui douto despacho saneador–sentença [Ref.33147200] de fls. , dos autos; e
b) Circunscreve-se à matéria de direito;
c) Nos presente autos, o ora Recorrente pretendeu ver declarada nula a(s) doação(ões) (cfr. escritura de 19/11/2021) celebrada entre a 1ª Ré e os seus filhos (2º e 3º R.R.);
d) Ordenando-se, consequentemente, o cancelamento do registo respectivo;
e) Refira-se – a propósito – que o Recorrente e a Recorrida são ambos interessados no Processo de Inventário, instaurada no Cartório Notarial ... – Dra. EE [Proc. n.º....15, ao abrigo do RJPI (Lei 23/2013, de 05/03)];
f) Sendo que, aquele processo de inventário foi requerido por óbito dos pais dos interessados, com cumulação de inventários;
g) Razão, aliás, porque se torna necessário conhecer os bens que compõem a herança (de cada um dos progenitores) e, qual a sua natureza;
h) Bem como, assim, quais os bens que se transmitiram ao cônjuge (tendo em vista a sua quota legitima); bem como o valor dos mesmos;
Acontece, porém, que
i) Por despacho da Senhora Notária, esta “determino(u) a suspensão deste processo, remetendo os interessados para os meios comuns” (ao abrigo do disposto nos artigos 36.º, n.º 1 e 17.º, n.º 2, do citado diploma) [dando origem ao Proc. n.º 77/17....];
j) Sendo certo que, este processo [n.º 77/17....] encontra-se pendente de recurso;
k) Por sua vez, o (anterior) regime jurídico do processo de inventário foi revogado (artigo 10.º da Lei n.º 117/2019, de 13/09);
l) Sendo aplicável o (novo) regime do Processo de Inventário (artigo 1082.º e seguintes do Código de Processo Civil, aditado pela supra referida Lei n.º 117/2019);
m) Pelo que, no caso em apreço “qualquer herdeiro legitimário pode requerer … até à abertura das licitações … a redução das doações … que considere viciadas por inoficiosidade” (Código de Processo Civil, artigo 1118.º);
Todavia,
n) Com a (suposta) doação dos autos, a R., ora Recorrida, apenas pretende, assim, evitar a reposição (em substância) da parte que possa afetar a legítima;
o) Com o devido respeito – e, salvo melhor opinião –, é evidente que a ocorrida doação (dos autos), teve como único objetivo defraudar o A., em benefício dos donatários;
p) Preterindo, assim, o exercício de um direito potestativo do A., ora Recorrente;
q) Pelo que, sem mais considerações, é, pois, - a nosso ver – por demais evidente que a situação fáctica decorrente da doação “sub judice” traduz uma situação, porventura, lesiva dos direitos do Recorrente. Aliás,
r) Na nossa modesta opinião, decidindo como decidiu, o douto despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 30.º (Código de Processo Civil e artigo 1118.º do mesmo diploma legal.
s) Com efeito, a acção “sub judice” configura uma acção constitutiva e como tal, instrumentalmente adequada ao exercício dos direitos potestativos do A.;
t) Pelo que é, pois, assim, manifesta a utilidade da lide;
u) Assim, atento o exposto, deve, pois, revogar-se o douto despacho recorrido; e, consequentemente;
v) Julgar-se, a final, procedente o recurso com todas as consequências legais.»
Os 2.º e 3.º réus apresentaram contra-alegações, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar a questão da verificação de falta de interesse em agir.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Constam do relatório supra os elementos relevantes para a apreciação das questões suscitadas na apelação.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posta em causa na apelação a parte do despacho saneador em que se absolveu os réus da instância, com fundamento em falta de interesse em agir por parte do autor, que foi condenado nas custas.
A falta de interesse em agir, suscitada oficiosamente, foi considerada verificada com fundamento no seguinte:
(…) afigura-se evidente que o autor carece do aludido interesse em agir.
Com efeito, o autor sustenta a sua causa de pedir na existência de uma ação a correr termos onde é discutida e apreciada a pretensa inoficiosidade de uma doação feita em vida por parte de inventariado relativamente a cuja herança é interessado, sendo as cointeressadas no processo de inventário as donatárias. Mais aduz que os bens doados fazem parte do acervo hereditário, tratando-se de bens a partilhar. Por isso, refere que a doação que veio a ocorrer em 2021 tem como fim prejudicá-lo no exercício dos seus direitos no processo de inventário, subtraindo-se o bem à partilha e ofendendo-se a sua legítima.
Ora, compulsando a argumentação oferecida e cotejando-a com os documentos que constam dos autos e com a reformulação de tal argumentação que vem formulada na petição inicial aperfeiçoada constata-se, contudo, que: a) os bens em causa foram doados em vida pelo inventariado e não fazem parte do acervo hereditário; e que b) não existe qualquer incidente de inoficiosidade da liberalidade a ser discutido em Tribunal.
Os autos de inventário foram suspensos a fim de serem apreciadas questões diversas de qualquer redução de doação por inoficiosidade, não se podendo evidentemente o Tribunal bastar com a alegação de uma eventual discussão que venha a ter lugar (ou não) de futuro.
O autor alega que a procedência da ação que ditou a suspensão dos autos de inventário poderá ditar que os bens sejam restituídos à herança, motivo que levou a 1ª ré a doá-los ao 2º e 3º réus, pretendendo por essa via evitar a reposição, em substância, da parte que afetar a legítima do autor.
Bom é de se ver, no entanto, que o pedido nessa ação não tem qualquer correspondência com o alegado, visando-se determinar os bens da herança e a sua avaliação e a avaliação dos bens doados com vista a aferir acerca da sua inoficiosidade. Tal afasta-se em absoluto do que é alegado na petição inicial para sustentar a causa de pedir e pedido que é feito, não se vislumbrando como a doação ocorrida pode lesar um qualquer direito do autor a uma eventual discussão a ter lugar, ou não, futuramente sobre a inoficiosidade da precedente doação. E não se vislumbra sequer como pode o autor alegar que a procedência da ação ditará a restituição dos bens à partilha, tratando-se de alegação que nada tem a ver com o objeto da ação e tratando-se os bens em causa de bens doados em vida pelo inventariado por conta da sua quota disponível que não fazem parte do acervo hereditário a partilhar cujo valor global é desconhecido não havendo, pois, como sequer especular sobre o valor da legítima do autor alegadamente ofendida.
Note-se que a hipotética redução por inoficiosidade poderá nem sequer vir a ter lugar, encontrando-se dependente do valor dos bens doados, mas não só, estando em causa também determinar a globalidade do valor do acervo hereditário por forma a determinar qual a legítima do autor. Por outro lado, existe ainda outro ponderável que diz respeito à alegada reposição em substância do bem a qual poderá nem sequer ter lugar, dependendo se estando do valor da redução e da natureza divisível ou indivisível do bem doado – cfr. artigo 1119.º do CPC.
A situação fáctica trazida aos autos pelo autor traduz uma situação que objetivamente não é carecida de tutela jurisdicional, lançando o autor mão da presente ação para tentar acautelar um eventual prejuízo futuro na sua esfera jurídica cuja ocorrência é impossível em face dos elementos constantes dos autos de prever.
Inexiste, em face da petição inicial patenteada, a apresentação de qualquer direito carecido de tutela judiciária.
A utilidade da lide está intrinsecamente ligada ao pressuposto processual do interesse em agir, exigindo-se que quem recorre aos tribunais pretenda com a prolação da sentença extrair daí um efeito útil para a sua esfera jurídica, capaz de, objetivamente, lhe conferir a vantagem que almeja.
A necessidade e a adequação da demanda judicial são requisitos de verificação do interesse em agir. Além do mais, “o próprio thema decidendum haverá de espelhar um litígio contemporâneo, não uma mera querela de opiniões e sensibilidades pessoais nem muito menos ancorar-se numa simples previsão de uma altercação, à qual se vise antecipadamente dar solução” – Daniel Bessa de Melo – Revista Julgar online, dezembro de 2021, pág. 23.
(…)
A procedência do pedido do autor teria como consequência a declaração de nulidade (cfr. artigo 240.º, n.º 2, conjugado com o artigo 289.º, n.º 1, ambos do Código Civil), logo, “a restituição de tudo o que tiver sido prestado”, in casu, a restituição da propriedade dos imóveis à esfera jurídica da 1.ª Ré.
A propósito do conceito de interessado para efeitos da nulidade por simulação, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.01.2021, disponível no mesmo sítio: “É terceiro interessado quem não ocupar a posição de simulador (quer originariamente quer por sucessão mortis causa) e que, sem intervenção no conluio simulatório, seja investido na titularidade de direitos transmitidos por negócio inválido, suscetíveis de serem afetados pela declaração de nulidade do negócio simulado.”
A mudança na ordem jurídica existente pretendida pelo autor não é de todo apta a satisfazer o pretenso direito de que se arroga detentor, não lhe advindo qualquer utilidade pela procedência da ação, não se operando qualquer efeito na sua esfera jurídica.
Como causa de pedir, aventa o autor que a doação objeto dos presentes autos “teve por único objetivo defraudar e prejudicar o A., na tentativa “peregrina” de “subtrair” à partilha, parte [ ½ (metade)] do citado imóvel. doação de combinação entre si (mãe e filhos) com o único e exclusivo propósito de prejudicar o A.”; que os imóveis sobre os quais pretende que recaia a declaração de nulidade do negócio jurídico se encontram relacionados no processo de inventário que indica; e que o mesmo se encontra suspenso a aguardar decisão por inoficiosidade.
Escrutinada a petição inicial que teve de ser alvo de esclarecimentos e de determinação de junção de documentos aos autos e, após, escrutinados os documentos que sustentam a mesma e, após, a nova petição inicial aperfeiçoada apresentada, constata-se que os fundamentos apresentados não tem qualquer correspondência com a realidade, não se encontrando os bens relacionados nos autos de inventário, e não se encontrando pendente qualquer “decisão” de inoficiosidade a qual se veio a apurar o próprio autor não sabe ainda se irá suscitar e em que termos e com que consequências.
Tanto basta, pois, para concluir que o pretenso direito que se pretende exercer não existe, do mesmo modo inexistindo um qualquer direito carecido de tutela jurisdicional. Se, de facto, estivesse em curso uma ação ou incidente de inoficiosidade poderia tal liberalidade ser reduzida, em tanto quanto fosse necessário para que a legítima fosse preenchida – 2168.º e 2169.º do Código Civil, e não mais. Mas não é disso que tratam presentemente quaisquer dos autos aludidos.
O interesse em agir é um pressuposto processual que se traduz na necessidade efetiva de recorrer à tutela jurisdicional e cuja falta constitui uma exceção dilatória inominada que conduz à absolvição da instância dos Réus (artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 1 e 2 e 578.º do Código de Processo Civil).
Decorre deste excerto que a 1.ª instância considerou verificada a falta de interesse em agir por se ter entendido, por um lado, que os bens imóveis em causa, tendo sido doados em vida pelo inventariado, não fazem parte do acervo hereditário e, por outro lado, que não foi suscitada em Tribunal a questão da inoficiosidade desta doação, matéria que não se encontra a ser discutida no processo de inventário, nem na ação declarativa invocada pelo autor, de cuja procedência não decorrerá a restituição dos bens à herança, tendo-se concluído que a situação fáctica exposta pelo autor não se mostra objetivamente carecida de tutela jurisdicional. Mais se considerou que, da procedência da pretensão deduzida na presente ação, não advém qualquer utilidade para o autor, dado não operar qualquer efeito na sua esfera jurídica.
Discordando deste entendimento, o autor defende que lhe assiste interesse em agir, sustentando que pode vir a requerer no processo de inventário, até à abertura das licitações, a redução da doação por inoficiosidade e que a 1.ª ré pretendeu, com a doação efetuada aos 2.º e 3.ºs réus, evitar tal redução e a consequente restituição dos bens ao património hereditário; afirmando que a presente ação se mostra instrumentalmente adequada ao exercício dos seus direitos potestativos, o autor conclui que é manifesta a utilidade da lide.
Vejamos se lhe assiste razão.
É sabido que, apesar de o Código de Processo Civil não fazer referência expressa ao interesse em agir ou interesse processual, o mesmo reporta-se à necessidade de tutela jurisdicional.
Explicitando a noção geral de interesse processual, afirma Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, nova edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, págs. 79-80) o seguinte: “Consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.”
Esclarecendo a figura em apreciação, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, págs. 179-180) afirmam: “O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. (…) O autor tem interesse processual quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais.” Acrescentam os autores (ob. cit., págs. 180-181) o seguinte: “Relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. (…) O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situação. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso”.
Por seu turno, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 583) afirmam que “da função do processo civil, destinado a tutelar interesses protegidos pelo direito material, mediante a composição de conflitos de interesses dela carecidos, retira-se que os tribunais não devem ser sobrecarregados com ações inúteis, pelo que é exigível um interesse sério para o recurso a juízo, sendo nesta medida o interesse processual um pressuposto e constituindo a sua falta uma exceção dilatória inominada”.
Sobre a falta de interesse em agir, afirmam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 656-657) que constitui “exceção dilatória que decorre da violação do (inominado) pressuposto processual do interesse em agir, que consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão, podendo dizer-se que o autor só tem interesse em agir quando não dispõe de outros meios (extrajudiciais) que permitam realizar, com semelhantes garantias, aquela pretensão”.
Analisando a petição inicial, conjugada com o articulado aperfeiçoado posteriormente apresentado, verifica-se que o autor, invocando a qualidade de herdeiro legitimário da herança aberta por óbito de seus pais, baseia a ação na alegação da possibilidade de vir a requerer, no processo de inventário intentado para partilha daquela herança, a redução por inoficiosidade da doação pelo inventariado, à 1.ª ré e a outra irmã do apelante, dos bens imóveis que identifica; sustentando que a subsequente doação, pela 1.ª ré aos 2.º e 3.ºs réus, do seu direito sobre os aludidos imóveis, foi efetuada com o único objetivo de evitar a redução da anterior doação e a consequente restituição dos bens ao património hereditário, pretende o autor obter a anulação da doação efetuada pela 1.ª ré e da respetiva escritura outorgada em 19-11-2021, bem como o cancelamento da inscrição da doação no registo e de quaisquer registos posteriormente efetuados sobre os mesmos imóveis.
O direito invocado pelo autor nos presentes autos, e cuja tutela visa obter através da pretensão que deduz, consiste no direito a requerer a redução por inoficiosidade da doação pelo inventariado, à 1.ª ré e a outra irmã do apelante, dos bens imóveis que identifica, nos termos previstos no artigo 1118.º do Código de Processo Civil.
Regulando o requerimento de redução de legados ou doações inoficiosas no âmbito do processo de inventário, mediante a dedução de incidente de inoficiosidade, o aludido artigo 1118.º dispõe o seguinte: 1 - Qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade. 2 - No requerimento apresentado, o interessado fundamenta a sua pretensão e especifica os valores, quer dos bens da herança, quer dos doados ou legados, que justificam a redução pretendida e, de seguida, são ouvidos, quer os restantes herdeiros legitimários, quer o donatário ou legatário requerido. 3 - Para apreciação do incidente, pode proceder-se, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, à avaliação dos bens da herança e dos bens doados ou legados, se a mesma já não tiver sido realizada no processo. 4 - A decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte, ao património hereditário.
As consequências da inoficiosidade encontram-se previstas no artigo 1119.º do citado código, nos termos seguintes: 1 - Quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afetar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber. 2 - Sobre os bens restituídos à herança pode haver licitação, a que não é admitido o donatário ou legatário requerido. 3 - Quando se tratar de bem indivisível, o beneficiário da doação ou legado inoficioso deve restituir a totalidade do bem, quando a redução exceder metade do seu valor, abrindo-se licitação sobre ele entre os herdeiros legitimários e atribuindo-se ao requerido o valor pecuniário que tenha o direito de receber. 4 - Se, porém, a redução for inferior a metade do valor do bem, o legatário ou donatário requerido pode optar pela reposição em dinheiro do excesso.
O autor não exerceu o direito, de que se arroga titular, a requerer no processo de inventário a redução da doação efetuada pelo inventariado, nem invoca a inoficiosidade de tal doação ou qualquer elemento que baseie eventual pretensão de redução.
A inoficiosidade de doação efetuada pelo inventariado poderá configurar a existência de um litígio, no âmbito do qual não dispõe o herdeiro legitimário de meios extrajudiciais que lhe permitam obter a tutela da respetiva legítima, tornando indispensável o recurso a juízo.
No entanto, desta constatação, do interesse do autor em recorrer aos tribunais com o objetivo de obter tutela jurídica, caso considere a doação viciada por inoficiosidade, não decorre, sem mais, o respetivo interesse processual perante a pretensão deduzida na presente ação.
Efetivamente, apesar de invocar o direito a requerer a redução da doação efetuada pelo inventariado, o autor não fez valer esse direito no local próprio, isto é, no processo de inventário intentado por óbito de seus pais, nem o fez valer na presente ação, na qual deduziu pretensão que não configura meio de exercício ou de tutela do direito que invoca.
No que respeita à forma de tutela judiciária pretendida, esclarece José Lebre de Freitas (Introdução ao processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, pág. 28, nota 20) que “a natureza do direito ou do interesse material que se quer fazer valer condiciona a escolha: não pode, por exemplo, fazer-se valer o direito potestativo mediante uma acção de condenação, sem prejuízo de se poder cumular no mesmo processo pedidos correspondentes à acção constitutiva e à acção de condenação (a anulação dum contrato e a restituição da coisa entregue em cumprimento, por exemplo)”.
No caso presente, o autor não exerceu o direito a requerer a redução da doação efetuada pelo inventariado, nem alega que pretende exercê-lo, por considerar a doação viciada por inoficiosidade, antes visando obter a anulação de negócio de doação posteriormente celebrado, tendo por objeto o direito da 1.ª ré sobre os bens doados pelo inventariado, que afirma poder impedir o exercício daquele seu direito a requerer a redução da doação inoficiosa.
Como tal, ainda que viesse a ser considerada procedente a pretensão deduzida nos presentes autos, no sentido da anulação da doação e da respetiva escritura, bem como do cancelamento da inscrição no registo, não se vislumbra que o autor retirasse qualquer vantagem da tutela pretendida, considerando que não exerceu o direito que invoca, a requerer a redução da doação por inoficiosidade.
Nesta conformidade, face à constatação de que a eventual procedência da pretensão deduzida não altera a situação do autor, cumpre concluir que a ação se mostra inútil, pelo que não assiste ao apelante o interesse em agir, conforme decidiu a 1.ª instância.
Aqui chegados, vejamos se a decisão recorrida, ao absolver os réus rés da instância com fundamento na falta de interesse em agir, que qualificou como exceção dilatória inominada, negou ao recorrente o direito fundamental de acesso aos tribunais.
O direito de ação encontra consagração constitucional no artigo 20.º da CRP, preceito que a todos assegura o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Explica José Lebre de Freitas (Introdução…, cit., pág. 78) que “sendo a todos garantido o acesso aos tribunais, qualquer cidadão pode utilizar o meio que, no campo do processo civil, para tanto é disponibilizado: o de, em tribunal, propor acções para fazer valer os seus direitos, ou interesses não organizados em direito subjectivo mas tutelados pelo direito material”. Afirma o autor (ob. cit., págs. 27-28) que “o direito de acção, como vertente fundamental do direito à jurisdição (…), é o direito de recorrer aos tribunais pedindo a tutela dum interesse protegido pelo direito material; o tipo de pedido formulado pelo autor, condicionando a espécie de providência que o tribunal deverá emitir, constitui escolha da forma de tutela judiciária pretendida para a realização do interesse que se afirma juridicamente protegido pelas normas de direito material”.
Conforme decorre da análise efetuada, o autor, apesar de invocar a titularidade do direito a requerer no processo de inventário a redução da doação efetuada pelo inventariado, não exerce o direito potestativo que invoca, não deduzindo qualquer pretensão destinada à tutela judiciária desse direito.
Considerando que o autor, na ação que intentou, não fez valer o direito que invocou, verifica-se que a decisão recorrida, ao absolver os réus da instância com fundamento na falta de interesse em agir por parte do autor, não negou ao recorrente o direito de ação constitucionalmente consagrado.
Improcede, assim, a apelação deduzida pelo autor.


Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo autor, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

Évora, 25-01-2024
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Mário João Canelas Brás
(1.º Adjunto)
Vítor Sequinho dos Santos
(2.º Adjunto)