Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
210/22.0T8SLV.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
CORTIÇA
SINAL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Tendo as partes de um contrato de compra e venda de cortiça na árvore estipulado que a quantia entregue pelo comprador ao vendedor tinha o valor de “princípio de pagamento e sinalização do negócio”, deve entender-se que o primeiro constituiu sinal.
2 – Em face disso, o vendedor, por ter declarado ao comprador que não iria cumprir o contrato e, em seguida, vendido a cortiça a terceiro, tem a obrigação de pagar o dobro do valor do sinal ao comprador.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 210/22.0T8SLV.E1

Autor: (…), Unipessoal, Lda.

Réu: (…)

Pedido: Condenação da ré a pagar à autora a quantia de € 14.000,00, acrescida de juros moratórios à taxa legal em vigor.

Sentença: Julgou a acção improcedente.


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A autora interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Perante a cláusula contratual “O pagamento será efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (…), no valor de € 14.000,00 (catorze mil euros), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração”.

2. Onde, posteriormente, a inadimplente vendedora devolve a quantia entregue à apelante com a menção “devolução de sinalização …”

3. Outra conclusão não é possível retirar, fazendo apelo ao artigo 236.º e segs. do Código Civil, de que as partes expressamente quiseram atribuir à quantia entregue um carácter penitencial.

4. Esta é a única interpretação com o mínimo de correspondência no texto do contrato (cfr. artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil).

5. O sinal marca a medida da indemnização.

6. Donde, a apelante tem direito a receber igual quantia àquela que prestou, acrescida de juros moratórios.

7. O tribunal recorrido, ao assim não decidir, violou os artigos 236.º e 440.º do Código Civil.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

A) A Meritíssima Juiz a quo que proferiu a Sentença, fez uma correcta interpretação dos factos e uma correcta aplicação do Direito, não merecendo o mínimo reparo ou censura;

B) Não existe, na Sentença proferida, matéria de facto incorrectamente julgada, os fundamentos não estão em oposição com os factos provados, não houve omissão de pronúncia, nem alteração da matéria de facto;

C) Assim, não assiste qualquer razão à Autora, ora Apelante, quando pretende pôr em crise a douta Sentença, no que concerne á interpretação dada ao principio de pagamento efectuado pela Autora.

D) A quantia entregue com a assinatura do contrato não é suficiente para se concluir pela sua natureza jurídica de “sinal”;

E) A existência de sinal é na promessa de compra e venda (artigo 441.º do Código Civil) e não a um contrato de compra e venda, como o dos autos.

E) Não pode ser aplicada ao caso concreto, que o valor recebido a título de adiantamento, seja considerado como sinal.

F) Tanto mais que a própria Autora, aquando da transferência bancária do valor efectuado à Ré, intitulou a mesma de “adiantamento de compra de cortiça”.

G) Pelo que deve ser considerada improcedente a Apelação, e confirmado o Julgado, com custas pela Apelante.

O recurso foi admitido.


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Questão a decidir: Se a entrega, efectuada pela recorrente, da quantia de € 14.000,00 à recorrida, deve ser qualificada como constituição de sinal.

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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A autora dedica-se ao comércio por grosso de cortiça em bruto, comércio de lenha, silvicultura, prestação de serviços agrícolas, caça, produção de licores, comercialização de fruto, turismo no espaço rural, alojamento local e restaurante de tipo tradicional.

2. Em 16.04.2021, a autora e a ré assinaram escrito intitulado “contrato de compra e venda de cortiça”, figurando a autora como primeira e a ré como segunda outorgante respectivamente.

3. Do escrito referido em 2. resulta entre o mais que:


“CLAUSULA 1.ª

MERCADORIA



O primeiro Outorgante compra e o segundo Outorgante vende a sua cortiça amadia, na árvore referente a extração do ano 2021, na propriedade de (…), (…), (…), freguesia de Santa Clara a Velha e São Marcos da Serra, concelho de Silves e Odemira pelo valor de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros) valor total.

CLAUSULA 2.ª

PAGAMENTO



O pagamento será efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (…), no valor de € 14.000,00 (catorze mil euros), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração. Todos os pagamentos serão efectuado no ato da entrega da respectiva factura.”

4. Na sequência do acordo referido em 2. e 3., a autora, em 16 de Abril de 2021 transferiu para a referida conta bancária a quantia de € 14.000,00, colocando na referência do ordenante “adiantamento de compra de cortiça”.

5. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 16 de Abril de 2021 e anterior a 20 de Abril de 2021, a ré informou a autora de que não iria cumprir o supra descrito acordo, alegando ter pessoa que lhe oferecia valor mais elevado.

6. A ré acabou por vender a referida cortiça a terceira pessoa, a qual a acabou por extraí-la e vendê-la para a indústria transformadora.

7. Em 20 de Abril de 2021, a ré devolveu à autora a quantia de € 10.000,00, colocando no descritivo da transferência “devolução de sinalização para compra de cortiça (em 16/04/2021)”.

8. Em 21 de Abril de 2021, a ré devolveu à autora a quantia de € 4.000,00, colocando no descritivo da transferência “devolução de sinalização para compra de cortiça (em 16/04/2021)”.

9. Em 26 de Abril de 2021, o advogado da autora enviou carta à ré com o seguinte teor: “Informou-me a minha constituinte (…) – Unipessoal, Lda. que em 16 do corrente celebrou contrato escrito de compra e venda da cortiça a extrair neste ano nas propriedade denominadas "(…), (…), (…)", pelo valor global de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros), tendo aquela lhe pago, a titulo de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 14.000,00 (catorze mil euros). Mais me informou que V. Ex." entretanto terá afirmado perentoriamente não querer cumprir o referido contrato, optando, ao invés, por fazê-lo com outra pessoa que, alegadamente, lhe terá oferecimento mais alto valor. Face ao exposto, e tendo as partes expressamente convencionado que a quantia entregue como antecipação de pagamento, assume igualmente o carácter de sinal, e sem prejuízo da devolução da quantia recebida, é V. Ex.ª devedora da quantia de € 14.000,00 (catorze mil euros), cujo pagamento aqui se reclama no prazo de dez dias, findos os quais nos vemos forçados a recorrer às instâncias judiciais.”

10. A ré recusa-se a pagar a quantia pedida pela autora no escrito referido em 9.


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Em 16.04.2021, a recorrida vendeu, à recorrente, a cortiça existente em determinado prédio rústico, pelo preço de € 28.000,00. As partes estipularam que o pagamento do preço seria “efectuado da seguinte forma: para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado uma transferência bancária para o IBAN (…) no valor de € 14.000,00 (…), ficando o valor remanescente a liquidar no início da extração.” Nesse mesmo dia, a recorrente efectuou a referida transferência bancária.

Em dia situado entre 16.04.2021 e 20.04.2021, a recorrida declarou à recorrente que não iria cumprir o contrato, após o que vendeu a cortiça a terceiro.

Em 20.04.2021, a recorrida devolveu à recorrente a quantia de € 10.000,00. No dia seguinte, devolveu-lhe os restantes € 4.000,00.

A recorrente sustenta que a quantia de € 14.000,00 que entregou à recorrida tem a natureza, não só de pagamento antecipado de parte do preço, mas também de sinal, pelo que tem direito à sua restituição em dobro e não, como a recorrida fez, em singelo.

A recorrida sustenta que a entrega da quantia de € 14.000,00 não teve a natureza de constituição de sinal, pois “A existência de sinal é na promessa de compra e venda (artigo 441.º do Código Civil) e não a um contrato de compra e venda, como o dos autos”.

O artigo 440.º do Código Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas adiante referenciadas) estabelece que se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal.

O artigo 441.º estabelece que, no contrato-promessa de compra e venda, presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.

Da simples leitura destas normas resulta que a recorrida não tem razão quando afirma que “A existência de sinal é na promessa de compra e venda (…) e não a um contrato de compra e venda”. Também no contrato de compra e venda pode ser constituído sinal, nos termos do artigo 440.º.

A especificidade do contrato-promessa de compra e venda reside na presunção, consagrada no artigo 441.º, de que se presume ter carácter de sinal qualquer quantia que o promitente-comprador entregue ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço. Tratando-se de um contrato de compra e venda, tal presunção não é aplicável. Nesta hipótese, para que uma quantia que o comprador entregue ao vendedor tenha a natureza de sinal, isso terá de ficar estipulado.

Encontramo-nos, pois, perante um problema de interpretação do contrato celebrado entre recorrente e recorrida.

O n.º 1 do artigo 236.º dispõe que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Recorrente e recorrida estipularam, no contrato de compra e venda, que, “para princípio de pagamento e sinalização do negócio efectuado”, a primeira realizaria uma transferência bancária no valor de € 14.000,00.”

Um declaratário normal entenderia esta estipulação no sentido de atribuir uma dupla natureza à entrega de € 14.000,00: princípio de pagamento e “sinalização do negócio”. Sinalizar um negócio equivale, quer em linguagem técnico-jurídica, quer na própria linguagem corrente, a constituir um sinal, com o objectivo de dar consistência a um contrato que se celebra, de confirmar a seriedade das declarações que o integram, através de uma tutela acrescida dos direitos que dele resultam. Este acréscimo decorre da aplicação do regime que a lei associa à constituição de sinal, constante do n.º 2 do artigo 442.º: perda deste se quem o constituiu não cumprir o contrato e obrigação de restituir o sinal em dobro se a parte inadimplente for aquela que o recebeu.

É, pois, com o sentido descrito que a estipulação em análise deve ser interpretada. Não há outra possível. Sinalizar é constituir um sinal. E constituir um sinal implica receber, na relação contratual, o regime jurídico deste.

Esta conclusão não é abalada pela forma como a recorrente designou a transferência bancária que efectuou: “adiantamento de compra de cortiça”. A entrega da quantia de € 14.000,00 constituía, na realidade, um princípio de pagamento do preço. Contudo, esta natureza não excluía a de sinal.

Por seu turno, a designação que a recorrida atribuiu às transferências que efectuou – “devolução de sinalização para compra de cortiça” – apenas confirmaria, se necessário fosse, que ela teve plena consciência de que os € 14.000,00 que recebera tinham a natureza de sinal.

Decorre do exposto que a recorrente tem direito à restituição do sinal em dobro, nos termos do n.º 2 do artigo 442.º. Tendo já recebido o sinal em singelo, resta-lhe receber os € 14.000,00 peticionados.

A recorrente pede ainda a condenação da recorrida a pagar-lhe juros de mora, à taxa legal em vigor, contados desde a citação. Nos termos dos artigos 804.º, n.ºs 1 e 2, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2, a recorrente tem direito a receber tais juros.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado procedente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando-se a recorrida a pagar, à recorrente, a quantia de € 14.000,00 (catorze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Custas a cargo da recorrida.

Notifique.


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Sumário: (…)

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Évora, 11.01.2024

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Rui Machado e Moura (1.º adjunto)

Mário João Canelas Brás (2.º adjunto)