Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
103/19.8YREVR
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRESTAÇÃO DE GARANTIA PELO ESTADO DE EMISSÃO DO MDE
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: MDE
Decisão: AUTORIZADA A ENTREGA
Sumário:
I - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não se resume à mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito, outras medidas existem, em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista julgamento.

II - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento.

III - O pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES, EM AUDIÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO

O MP junto deste Tribunal veio, nos termos dos Artsº 1 nº1, 2 nsº1 e 2 al. e) e 4, 15 nsº1 e 2, 16 nº1 e 18 nº2, todos da Lei nº 65/2003, de 23/08, promover a execução, na modalidade de entrega para procedimento criminal, do mandado de detenção europeu, emitido pelas autoridades judiciárias da República da Áustria – Ministério Público de Innsbruck – contra o cidadão de nacionalidade alemã, JS nascido em 08/09/82, natural de Pinswang, Áustria, filho de…, residente em…, Santa Clara a Velha, Odemira.

O requerimento mostra-se instruído com os elementos necessários a que alude o Artº 16 da Lei 63/03, de 23/08.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o condenado foi ouvido pessoalmente sobre o pedido de entrega, de harmonia com o estatuído no Artº 18 nº2 da citada Lei, tendo manifestado a sua oposição ao mesmo, não renunciando à regra da especialidade.

Nos termos do Artº 21 da dita Lei, pelo Ilustre Defensor foi apresentada oposição escrita, em que solicita a recusa da execução do Mandado de Detenção Europeu (MDE), por o Estado emitente não ter dado a garantia prevista na al. b) do nº1 do Artº 13 da citada Lei 65/03.

Notificado desta oposição, o MP requereu que se solicitasse à entidade emitente a informação se iria diligenciar pela concessão da garantia a que se refere o nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06.

Assim se tendo procedido, pelas autoridades austríacas foi concedida a garantia reportada ao Artº 29 nº3, parágrafo 3 da EU-JZG (Lei Federal relativa à cooperação judiciária em matéria penal com os Estados-Membros da União), pela qual, vieram “garantir às autoridades portuguesas que, após ter efectuado a audiência, o arguido JS, nascido em 08-09-1982, será devolvido para Portugal para cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferidas pelo Tribunal austríaco.”

Tendo sido dado conhecimento deste facto ao arguido, pelo mesmo foi referido que entendia não se encontrar devidamente prestada a garantia preconizada no nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, e na al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03.

Também o MP entendeu que a garantia concedida pelas autoridades austríacas não satisfaz a condição colocada para a execução do presente MDE, tendo solicitado que aquelas fossem questionadas se haviam equacionado a possibilidade de conceder a garantia aludida no nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI e optaram por prestar a garantia do Artº 29 nº3, parágrafo 3 da EU-JZG, e se ainda era possível conceder a primeira das garantias referidas.

Solicitados tais esclarecimentos às autoridades austríacas, por estas foi reafirmado que asseguravam a garantia concedida nos termos do Artº 29 nº3, parágrafo 3 da EU-JZG, e que já tinham comunicado aos presentes autos.

Produzida a prova arrolada pelo arguido, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A - Dos autos

O presente mandado de detenção europeu, emitido pelas autoridades austríacas, reporta-se à entrega do arguido, para procedimento criminal, no âmbito do Processo nº 20 St 80/19x emitido pelo Ministério de Público de Innsbruck, na medida em que aquele é suspeito da autoria, entre 2014 e o final de 2017, de factos susceptíveis de integrarem, à luz da lei austríaca, quatro crimes de tráfico de droga (Suchtgifthandel), previstos e punidos pelos $ 28 a Abs 1 zweiter, dritter und funfter fall und Abs 4 Z 3 SMG (Lei de Estupefacientes) com pena máxima de 15 anos de prisão.

Tais, factos, apesar de puníveis pelo ordenamento jurídico português, enquadram a previsão normativa do Artº 2 nº2 al. e) da Lei 65/2003 de 23/08, pela qual se dispensa o controlo da dupla incriminação.

O procedimento criminal não se encontra prescrito e os factos em causa não são objecto de procedimento criminal em Portugal.

O requerido manifestou a sua oposição à pretendida entrega, defendendo que a circunstância de o Estado emitente não ter dado a garantia prevista na al. b) do nº1 do Artº 13 da citada Lei 65/03 deve obstar à execução do presente MDE.

O arguido tem nacionalidade alemã e vive em Portugal desde os 3 anos de idade, tendo autorização de residência permanente válida até 09/12/2027, aqui trabalhando e tendo toda a sua família, como mãe, mulher, irmã, irmão, respectivos cônjuges e sobrinhos.

BDo Direito

Ao abrigo do estatuído no Artº 21 nº2 da Lei 65/2003 de 23/08, a oposição do requerido ao mandado de detenção europeu apenas pode ter como fundamento o erro na identidade do detido, ou a existência de uma causa de recusa de execução do mandado em causa.

Esta segunda hipótese é a invocada pelo requerente, porquanto, em seu entender, as autoridades austríacas não asseguraram nos autos a concessão da garantia aludida no nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI e a que também se reporta a al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08.

Na verdade, esta norma, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo estado membro de emissão em casos especiais” dispõe:

1 – A execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias.
(…)
b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro da execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.”

Ora, após as várias diligências efectuadas por este Tribunal, pelas autoridades austríacas foi reassegurada a prestação da referida garantia, também consagrada no nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, e que também consta do Artº 29 nº3, parágrafo 3 da EU-JZG (Lei Federal relativa à cooperação judiciária em matéria penal com os Estados-Membros da União), no sentido de o arguido ser devolvido a Portugal após ter sido efectuada a audiência do processo em causa pelo tribunal austríaco.

Defende o arguido, que a garantia assegurada pelo Estado da Áustria é algo diferente daquela a que se reporta o nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI e a al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08, pois desta, no seu entendimento, decorre que o arguido deva ser de imediato devolvido a Portugal, assim que for ouvido, pois o presente MDE funda-se na mera existência de um processo crime contra e tem como objecto, tão-somente, a entrega para procedimento criminal, pelo que se justifica, por inteiro, a concessão da aludida garantia, ou seja, que o arguido volte a Portugal, assim que seja ouvido no âmbito desse procedimento criminal a decorrer perante o Ministério Público austríaco.

Nesse sentido, aliás, o arguido, já após a inquirição das testemunhas por si arroladas, juntou um requerimento aos autos em que solicita que se dê conhecimento às Justiças da Áustria que consente na sua transferência temporária desde que seja devolvido ao Estado de execução (Portugal) logo que ouvido.

Com o devido respeito por opinião contrária, não se sufraga esta tese.

O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que supõe o requerido, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito, outras medidas existem, em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista julgamento.

O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento.

Daí que, nestes casos, se aplique, por inteiro, a obrigatoriedade da prestação, por parte do Estado-Membro requerente, da garantia prevista no nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e que foi vertida no nosso ordenamento jurídico na al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08, no sentido de a pessoa procurada ser devolvida ao seu país de origem ou de residência, para cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade, caso venha a ser condenada no julgamento relativo ao procedimento criminal que gera o MDE.

É certo que se desconhece, em concreto, o estado do inquérito em causa, ainda que, tanto quanto se saiba, não foi proferida qualquer acusação contra o arguido.

Mas o pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia. (Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, essa foi, precisamente, a garantia assegurada pelas autoridades austríacas, no sentido de devolver o arguido a Portugal - país onde reside desde os 3 anos de idade, tendo autorização de residência permanente válida até 09/12/2027, aqui trabalhando e tendo toda a sua família - assim que for ouvido, em audiência de julgamento, com vista ao cumprimento da eventual pena da medida de segurança em que venha a ser condenado.

Nessa medida, a garantia prestada pelo Estado emitente do mandado, preenche o conteúdo material da garantia preconizada pelo nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08.

Assim sendo, não resta outra decisão que não seja autorizar a execução do presente MDE, por a justiça austríaca ter dado cumprimento ao disposto na al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/2003 de 23/08 e nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI e em conformidade com o estatuído nos Artsº Artº 3, 6 nº1 al. b), 15 nº1, 16 nº1 e 31 nº1, todos da citada Lei 65/03 de 23/08.

3. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se, ao abrigo do disposto nos Artsº 3, 6 nº1 al. b), 15 nº1, 16 nº1 e 31 nº1, todos da Lei 65/2003, autorizar a entrega do cidadão de nacionalidade alemã, JS, às autoridades austríacas, Ministério Público de Innsbruck, para procedimento criminal no Processo nº 20 St 80/19x.

Sem tributação.
Notifique-se.

Oportunamente, remetam-se certidões da presente decisão, com nota de trânsito em julgado, à Procuradoria-Geral da República e à Embaixada da Áustria em Portugal.

Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 18 de Fevereiro de 2020

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(Renato Barroso)

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(Maria de Fátima Bernardes)

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(Fernando Pina)