Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1914/16.1T9TMR.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 03/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Tendo o arguido requerido a substituição da pena de multa por prestação de trabalho, tida por inviável, face à detenção do arguido à ordem de outro processo, não pode o tribunal converter, de imediato, a pena de multa em prisão subsidiária, sem assegurar ao arguido o devido contraditório e dar-lhe a possibilidade de efetuar o pagamento no prazo previsto no n.º4 do artigo 490.º do CPP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


RELATÓRIO

No âmbito do processo em referência, foi proferida decisão determinando a conversão da pena de 150 dias de multa aplicada ao arguido JC em 100 dias de prisão.

Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu, tendo terminado a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“- Com data de 10 de Maio de 2018, já transitado em julgado, foi proferido nestes autos o Acórdão que condenou o arguido como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº. 86º. nº. 1 d) da Lei nº. 5/2006, de 23/02, alterada pela Lei 12/2011, de 27/04, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,00 €, num total de 750,00 €;

- O arguido a fls. 191 e ss. Requereu a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto nos artºs. 490º. nº. 1 do C.P.P. e 58º. do C.P.;

- Conforme informação prestada pela DGRSP a fls. 210, aquela mostrou-se inviável, em virtude de o arguido ter, entretanto, sido preso preventivamente à ordem de outro processo;

- Dispõe o artº. 490º. nº. 4 do C.P.P. que “Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação da decisão”;

- Acontece, porém que a decisão de não substituição da multa por dias de prisão não foi, sequer, notificada ao arguido nem à defensora nomeada, impossibilitando desde logo que o mesmo ou pagasse, se pudesse fazê-lo, no prazo normal, ou tomasse a posição processual adequada, qual fosse a de justificar a falta de pagamento, o que configura a nulidade insanável do artº. 119º. c) do C.P.P.;

- E o artº. 491º. nº. 1 do C.P.P.: “Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial”;

- Que nem sequer foi interposta pelo Digmo. Representante do Ministério Público, porque aquele entendeu, face aos elementos constantes dos autos, consoante se pode ler no Douto Despacho recorrido, mais concretamente no terceiro parágrafo: “Também não é possível a cobrança coerciva da multa, mediante acção executiva, uma vez que conforme informação de fls. 215 o mesmo não tem bens nem rendimentos”;

- Ou seja, o Tribunal a quo entendeu e presumiu (o que é proibido em Direito Penal, se bem nos lembramos, pelo menos contra o arguido) que lhe era lícito tirar todas as conclusões sem nunca notificar o arguido fosse do que fosse, logo sem o ouvir e sem lhe dar a oportunidade de se defender, no legítimo exercício do contraditório;

- E, lançando mão do disposto no artº. 49º. do C.P., tout court, determinou assim a conversão da pena de multa na pena de cem dias de prisão, ouvido que foi – obviamente – o M.P., nos termos do disposto no artº. 491º. nº. 3 do C.P.P.,

- Esqueceu o Tribunal ora recorrido que, de facto, o artº. 43º. nº. 1 do C.P. manda substituir sempre a pena de prisão aplicada não superior a um ano por pena de multa, ou outra não privativa da liberdade, excepto se a execução da prisão fôr exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de novos crimes;

- E no nº. 2 prevê-se efectivamente que se a multa não fôr paga o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença, mas que se aplica o disposto no artº. 49º. nº. 3 do C.P.,

- Ou seja, mesmo nesse momento o condenado pode provar ainda que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável (como no caso dos autos, que para nós é evidente), e pode a execução da pena de prisão ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conteúdo não económico ou financeiro;

- E só em caso de incumprimento se faz cumprir, então, a prisão subsidiária.

- Além disso, dispõe o artº. 59º. nº. 6 do C.P. que se o condenado não puder prestar o trabalho por causa que lhe não seja imputável, o Tribunal, conforme o que se revelar mais adequado às finalidades da punição, ou (alínea a ) ) substitui a pena de prisão fixada na sentença por multa até 240 dias, aplicando-se o disposto no artº. 43º. nº. 3 e 49º. nº. 3 (provando que a razão do não cumprimento lhe não é imputável deverão ser-lhe impostas regras de conduta),

- Ou (alínea b) ) suspende a execução da pena de prisão por um período que fixa entre um e três anos, subordinando-a, nos termos dos artºs. 51º. e 52º., ao cumprimento de deveres ou regras de conduta adequados.

- Atendendo ao que no Douto Acórdão se disse àcerca da personalidade do arguido e da ténue necessidade de prevenção especial, nomeadamente para o Tribunal fundamentar porque é que ía optar por uma pena não privativa da liberdade (negrito e itálico nossos ):

“O arguido tem antecedentes criminais, é certo, mas por crimes relativamente pouco graves, já praticados há vários anos, concretamente, o último dos crimes por que foi condenado remonta a 2010, sem que haja notícia de que tenha praticado outros ilícitos. O arguido tem em seu benefício a sua modestíssima condição económica, bem assim a circunstância de ser uma pessoa com grandes dificuldades cognitivas e iletrada, o que dificulta, e muito, a sua inserção no mercado de trabalho.

No entanto, anota-se o seu sentido de responsabilidade e empenhamento no cumprimento integral do trabalho a favor da comunidade que, em dois processos lhe foi aplicado em substituição de penas de multa, a sua boa imagem social, as suas características de personalidade, sendo considerado uma pessoa educada, humilde e afável. Daí que resultem atenuadas as necessidades de prevenção especial. Importa, pois, concluir que se trata de um cidadão que, se devidamente ajudado, poderá inserir-se no mercado de trabalho e no meio social que o rodeia e preparado para se conformar com os valores jurídico-penais e conduzir a sua vida em conformidade com o Direito. Sopesados todos estes factores, afigura-se adequada a opção pela pena de multa, em harmonia com o princípio consagrado no art. 70º do C.P. Com efeito, atentas as circunstâncias em que o crime foi praticado, as condições pessoais do arguido, é de concluir que aquela pena não detentiva é suficiente para que interiorize o carácter ilícito e censurável da sua conduta e passe no futuro a não adoptar comportamentos desconformes com a ordem jurídica. Assim, fazendo apelo ao conjunto das circunstâncias agravantes e atenuantes já apontadas e ao carácter punitivo que deve estar ínsito à pena de multa, devendo, por isso, sempre implicar “alguma dose de sacrifício”, atentas as finalidades de prevenção geral e especial que lhe subjazem (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado e Legislação Avulsa, 13.ª ed, 1999, Almedina, Coimbra, pág. 199), afigura-se adequado graduar a pena em 150 dias de multa. Em relação ao quantitativo diário desta pena, reputa-se proporcionado o de € 5,00, considerando as condições de vida do arguido, num total de € 750,00.”

- Acontece que, entre o momento em que o Douto Acórdão e o Douto Despacho foram proferidos, nada se alterou nem na personalidade nem nas condições de vida do arguido, a não ser que o mesmo foi preso preventivamente à ordem de outro processo.

- Ora, até ao trânsito em julgado de uma decisão condenatória, o arguido tem o direito constitucionalmente previsto de ser julgado inocente e tratado como tal (mormente pelos Tribunais, diremos nós ),

- Não pode portanto ser por isso prejudicado na execução de outra pena, noutro processo; - E nem sequer o Tribunal a quo fundamentou a aparentemente verificada necessidade de prisão efectiva com a eventual alteração de alguma condição pessoal do arguido descrita no Acórdão; apenas constatou, com uma simplicidade atroz – com todo o respeito o dizemos, embora -, que estando preso preventivamente o arguido não tem condições para trabalhar na cadeia a favor da comunidade, e que, como também não tem bens, melhor será deixá-lo lá ficar mais cem dias, e nem o ouvir.

- Ocorreu assim violação do disposto nos artºs. 70º., 49º. nº. 3, 59º. nº. 6 b), 51º., 52º., do CP,

- Bem como do disposto no artº. 40º. nº. 1 do C.P., visto que a reintegração do arguido na sociedade, consoante se disse no Acórdão, não se conseguiria com a prisão daquele;

- Assim, tal como na falta de cumprimento das condições de suspensão da pena de prisão o condenado tem que ser ouvido – artº. 495º. nº. 2 do C .P.P., e na suspensão provisória, revogação, extinção, substituição, e modificação também – artº. 498º. nº. nº. 3, que remete para o anteriormente citado artº. 495º. nº. 2,.

- Não faria qualquer sentido que, na não substituição da multa criminal por trabalho a favor da comunidade e na não instauração de execução, o arguido não o fosse também, não se lhe dando a oportunidade que a lei expressamente prevê de justificar o porquê de não pagar a multa (nem lhe facultando prazo para o fazer voluntariamente), e enviando-o directamente para a cadeia.

- Seria absurdo, atrevemo-nos a dizer, que tal fosse permitido, consistindo numa evidente violação grosseira dos direitos, liberdades e garantias previstos constitucionalmente, bem como do principio do contraditório.

- Do mesmo modo, pode-se dizer sem exagero que o Despacho recorrido viola mesmo o disposto no artº. 29º. nº. 4 da Constituição da República Portuguesa ( CRP ), uma vez que se está posteriormente e por via artificial a aplicar ao arguido uma pena efectiva de prisão, sem direito a contraditório, quando no Acórdão o mesmo foi condenado a pena de multa por não se terem verificado os pressupostos que levariam a que lhe fosse aplicada prisão efectiva.

- Assim, temos que o Douto Despacho é nulo por inconstitucionalidade por violação do citado artº. 29º. nº. 4 da CRP,

- E é nulo porque não faz qualquer nova apreciação sobre a eventual utilidade de enviar o arguido para a cadeia, unicamente por não haver condições para que preste trabalho a favor da comunidade como requereu em tempo,

- E porque vem dizer que é inútil instaurar execução patrimonial contra o mesmo, daí retirando imediatamente como consequência a conversão da pena de multa em pena de multa não paga e logo em prisão,

- Em vez de aplicar ao arguido regras de conduta, por exemplo, como deveria a nosso ver, atendendo a que, faltando fundamentação que justifique a prisão efectiva quer no Acórdão condenatório (pelo contrário), quer no Despacho de que agora se recorre,

- Tal falta é cominada com a nulidade prevista no artº. 379º. c) do C.P.P, ex vi do artº. 380º. nº. 3 do C.P.P.

- Assim, nos termos do disposto no artº. 380º. nºs. 2 e 3 do C.P.P., o Despacho deve ser declarado nulo, revogado e substituído por outro em que se notifique o arguido da impossibilidade de substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade, e para se pronunciar querendo, ou

- Caso assim não se entenda e à cautela, por outro em que se apliquem ao arguido regras de conduta, nos termos supra-expostos, com todas as consequências legais.
Assim se fará a habitual
Justiça!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnando pela procedência do mesmo.

De igual modo, já neste tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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APRECIANDO

A única questão que importa resolver no presente recurso é a de se saber se antes de ser proferida a decisão recorrida ocorreu alguma omissão de notificação que invalide o processado deste então.

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A decisão recorrida é do seguinte teor:
“Por acórdão proferido, nestes autos, em 10 de Maio de 2018, já transitado em julgado, o arguido JC, como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º nº 1 al. d) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei 12/2011, de 27/04, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 750,00.

O arguido não efectuou o pagamento voluntário da multa, pediu a substituição da mesma por prestação de trabalho a favor da comunidade, a fls. 191 e seguintes, que se mostrou inviável, conforme informação prestada a fls. 210, pela DGRSP, em virtude de o arguido estar preso preventivamente à ordem de outro processo.

Também não é possível a cobrança coerciva da multa, mediante acção executiva, uma vez que conforme informação de fls. 215, o mesmo não tem bens nem rendimentos. Assim sendo e em face do disposto no art. 49º do CP, determino a conversão da pena de multa, na pena de cem dias de prisão.

Notifique e, oportunamente, após trânsito da presente decisão, solicite ao processo à ordem do qual o arguido se encontra preso, a emissão de mandados de desligamento daquele processo e de ligamento a estes autos, para cumprimento da pena de prisão agora convertida.

Notifique.”

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Importa considerar o seguinte:

- O arguido foi condenado em 150 dias de multa;

- Após, requereu a substituição da multa por dias de trabalho, ao abrigo do artº 490º, nº 1, do C.P.P.;

- Foi proferido despacho judicial deferindo promoção no sentido de se solicitar relatório à D.G.R.S.P. “para efeitos de avaliação de viabilidade quanto à requerida substituição da pena de multa por dias de trabalho”.

- A D.G.R.S.P. respondeu referindo que o arguido se encontrava em prisão preventiva no E.P. de Leiria e que este E.P., questionado para o efeito, referiu não ter meios e condições para o arguido aí cumprir os dias de trabalho.

- Perante isto o Ministério Público (na pessoa de Magistrada diferente da que respondeu ao recurso, pugnando pela procedência do mesmo), promoveu a conversão da multa em prisão, por se mostrar inviável a prestação de trabalho.

- Face a essa promoção, foi proferido o despacho recorrido, acima transcrito. Que determinou a conversão da multa na prisão subsidiária.

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A solução a dar ao presente recurso é de uma evidência total e só não se profere decisão sumária porque o artº 417º, nº 6, do C.P.P. o não permite, ao prever apenas, no que ao caso interessa, a rejeição do recurso, por manifesta improcedência (cfr. artº 420º, nº 1, al. a), do mesmo Código).

É óbvio que após a informação prestada pela D.G.R.S.P. não se podia de imediato converter a multa em prisão subsidiária.

Assim entendeu o recorrente, assim entendeu a Magistrada do Ministério Público que na 1ª instância respondeu ao recurso, assim entendeu o Magistrado do Ministério Público que emitiu parecer neste tribunal e assim entendemos nós. É pena é que não se tenha aproveitado a possibilidade prevista no artº 414º, nº 4, do C.P.P. para reverter a situação face aos “alertas” feitos no recurso e na resposta ao mesmo, assim se evitando cerca de 5 meses de tramitação processual.

Quando muito podia declarar-se não ser possível a substituição da multa por dias de trabalho e não ser viável a cobrança coerciva da mesma (face à informação de fls. 215 a qual, aliás, foi junta aos autos depois da promoção do Ministério Público em que se solicita a conversão da multa na prisão subsidiária). Mas nem isso se fez: referiu-se na fundamentação do despacho que era inviável a substituição e que não era possível a cobrança coerciva, mas daí “saltou-se” directamente para a conversão na prisão subsidiária.

O nº 4 do artº 490º do C.P.P. é claro. Está lá “preto no branco”: Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação da decisão”.

A necessidade absoluta de se proceder a essa notificação, prejudica a apreciação de qualquer outra questão suscitada no recurso, designadamente a aplicação do nº 3 do artº 49º do Cód. Penal.

Assim, o que há a fazer é determinar a revogação integral da decisão decorrida (uma vez que a única coisa que se declarou foi a conversão da multa na prisão subsidiária), a qual deverá ser substituída por outra que se pronuncie expressamente sobre o requerimento do arguido de fls. 192 e 193, eventualmente indeferindo-o face à informação prestada pela D.G.R.S.P. e que, se assim for, determine a notificação do arguido nos termos do nº 4 do artº 490º do C.P.P..

Perante a atitude que o arguido tomar perante essa notificação é que se deverá apreciar (se for caso disso, sendo certo que o mesmo até poderá pagar a multa) a eventual aplicação do nº 3 do artº 49º do Cód. Penal.

Atenta a simplicidade e evidência da questão, julga-se completamente desnecessário tecer quaisquer outras considerações.

DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro nos termos acima referidos: decisão sobre o requerimento de fls. 192 e 193 e, se for caso disso, determinação da notificação do arguido nos termos do nº 4 do artº 490º do C.P.P..

Sem tributação.

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Évora, 10 de Março de 2020

Nuno Maria Garcia

António Manuel Charneca Condesso