Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
468/06.1GFSTB.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: JOGOS DE FORTUNA OU AZAR
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
As máquinas com a designação «DISTRIBUIDORA DE PASTILHAS» e «DECORATIVE MARBLES» desenvolvem jogos que se integram na categoria de jogos de fortuna e azar, já que respeitam a jogo em máquinas, que pagam prémios em dinheiro (embora não directamente) e que apresentam como resultados pontuações que dependem exclusivamente da sorte.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo nº468/06.1GFSTB do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal foi proferida sentença que condenou o arguido AF pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo do art. 108º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 02.12, na pena de 70 dias de prisão, substituídos por igual período de multa, ou seja, 70 dias de multa, e na pena de multa de 80 dias, ambas à razão diária de € 5 (cinco euros); em cúmulo, na pena única de 150 dias de multa à razão diária de € 5 (cinco euros), num montante total de € 750 (setecentos e cinquenta euros), a que correspondem 100 dias de prisão subsidiária. Foi ainda o arguido absolvido da prática de um crime de exploração ilícita de jogo, do art. 108º, nº 1, do mesmo Decreto-Lei.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo da forma seguinte:

“a) O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, nos dois planos de impugnação da decisão de facto possíveis, a saber no plano do art." 412.° do CPP e no plano do art,º 410.°, n.º 2, também, do CPP, sendo que se verificam igualmente, os vícios desta última disposição legal, vícios estes resultante do texto da sentença recorrida;

b) A prova dos pontos 2.1.1, 2.1.3, 2.16., 2.1.7, e 2.1.8 da decisão de facto configuram uma nulidade da decisão recorrida, pois é incompatível, pelo titular do inquérito e do julgador do tribunal "a quo", a utilização da perícia para efeitos de caracterização da máquina e do jogo e depois a utilização das regras de experiência comum para a decisão de facto relativa ao conhecimento, por parte do recorrente, no que concerne ao preenchimento do elemento subjectivo do tipo do crime, mais concretamente do conhecimento do carácter ilícito do jogo, por parte do recorrente.

c) Devem-se renovar os meios de prova consubstanciados nos depoimentos das testemunhas GNR JO e BR, porque às questões sobre que documentos visualizaram para afirmarem que o estabelecimento estava em nome do recorrente, não souberam responder, que documentos visualizaram, e efectivamente o estabelecimento em causa não estava, nem está em nome do recorrente, porque este não o explorou, nem o explora e não é o recorrente que tinha que fazer essa prova negativa, mas sim o MP e a acusação e com as testemunhas ouvidas em julgamento, tal prova não resultou como efectivada (factos 2.1. e 2.1.3), pelo que deveriam ter sido dados como não provados.

d) Do texto da sentença recorrida resultam, ainda, os vícios constantes das als. a) e b) do nº 2 do art. 410° do CPP;

e) A sentença recorrida violou o art. 108°, nºs 1 e 2 do DL 422/89; 127.° do CPP e art. 374° do CPP.

1) Foram igualmente violados os princípios da presunção de inocência da recorrente, in dúbio pro reo e igualdade de armas entre recorrente e Ministério Público, e bem assim o nº 2 do art. 6° da Declaração Universal dos Direitos do Homem transposta para o ordenamento jurídico Português pelo art. 32º da CRP, pois sem prova cabal e que a tal decisão conduza, decide-se condenar o recorrente pela prática do crime de que vem acusado, não se dando, inclusiva e expressamente como provado que o mesmo tivesse conhecimento do alegado carácter ilícito do objecto apreendido (e que o recorrente e bem assim outras Decisões Judiciais entendem não ter essa qualificação, entenda-se esta a qualificação de ilícito criminal).

g) A sentença recorrida é a própria a afirmar de forma expressa que não existiu prova cabal para a decisão de facto constante dos factos provados 2.16, 2.17 e 2.18.

h) A sentença recorrida erra quanto à qualificação do jogo em causa, já que qualifica tal jogo como de fortuna ou azar, quando na realidade tal jogo deve ser qualificado como modalidade afim de fortuna ou azar, e neste sentido douto acórdão do stj de fixação de jurisprudência Nº 04/2010 de 08/03 e bem assim os Doutos Ac.s do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 26/10/1994, in www.dgsí.pt; do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 14/07/1999, in www.dgsi.pt. numa modalidade de jogo afim de fortuna ou azar exactamente igual à dos presentes autos, sendo este Douto Aresto muito esclarecedor acerca desta matéria; Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, nos Recursos n.os 7974/98, da 3.a Secção, de 11710/2000, Rec. 4140/97, 3.a Secção, de 12/11/1997, Rec. 442/96, 3.a Secção, de 29/10/1997 e de entre muitos outros 9689/04, da 3ª Secção, de 16/02/2005 e com maior expressividade e clareza o mais recente acórdão do tribunal da relação de Coimbra de 02/02/2011, e a decisão sumária proferida pelo tribunal da relação de Lisboa provinda da 3ª secção no âmbito dos autos 372/86phlrs.ll.

i) Como se consegue explicar a utilização das regras de experiência comum para a prova contra o recorrente do elemento subjectivo do tipo do crime no que respeita à qualificação da máquina e ao mesmo explicar-se a necessidade que o julgador tem da perícia para essa mesma qualificação?

j) Como se explica que a Jurisprudência vacile do modo que vacila, no que toca à análise do tema jogos de fortuna ou azar e modalidades afins de fortuna ou azar e suas diferenças e depois se condene um cidadão primário e sem antecedentes criminais no que a este tipo de crime, utilizando-se as regras de experiência comum e as presunções de prova contra o recorrente, em processo penal, violando-se claramente o principio do in dúbio por reo, da presunção de inocência, porque a sentença recorrida refere que não há prova cabal para a prova do elemento subjectivo e ainda existe a violação clara do n." 2 do art. 6.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do art. 32º da CRP, porque o recorrente é claramente desconsiderado como cidadão com direitos, quando se vê perante uma condenação como a dos presentes autos.

Pelo exposto, deverá a sentença recorrida se revogada e ser substituída por outra que absolva o recorrente da prática do crimes pela qual foi condenado, portanto ser de direito e de justiça.”

Na sua resposta ao recurso, o M.P. pronunciou-se no sentido da improcedência, concluindo por seu turno:

“1. A valoração da prova pericial, para caracterização das máquinas de jogo e seu funcionamento, e o recurso às regras da experiência comum, para a prova do elemento subjectivo, para além de não ser incompatível, porque se refere a factualidade distinta, não constitui qualquer nulidade (as quais se encontram expressamente previstas nos artigos 379º, n.º 1, 119º e 120º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

2. No texto da decisão recorrida, conjugado com as regras da experiência comum, não se verifica qualquer dos vícios referidos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.

3. O recurso, na parte em que impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, não deverá ser conhecido, uma vez que não cumpre o ónus de especificação previsto no artigo 412º, n 3 e 4, do Código de Processo Penal.

4. Sem prejuízo, entende-se que o tribunal a quo apreciou correctamente o conjunto da prova produzida, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, e traduziu a ponderação assim efectuada de forma clara e coerente na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, cumprindo integralmente a regra de valoração da prova prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal e dever de fundamentação consagrado no artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

5. Da análise dessa fundamentação não resulta a existência de qualquer dúvida insanável quanto à consideração de determinado facto como provado ou não provado, pelo que não há lugar há intervenção do princípio do in dubio pro reo e, como tal, a decisão recorrida não violou a garantia constitucional prevista no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

6. A jurisprudência uniformizada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2010, de 8/3 não é aplicável ao caso dos presentes autos, uma vez que se reporta a situação factual distinta.

7. O jogo desenvolvido pelas máquinas apreendidas nos autos, como bem entendeu a sentença recorrida, deve ser considerado jogo de fortuna ou azar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º e 4º, n 1, alínea g), do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12, pois tratam-se de máquinas que apresentam como resultado pontuação exclusivamente dependente da sorte.

8. Mostrando-se preenchidos os restantes elementos objectivos e subjectivo, em face da matéria de facto provada, a conduta do arguido integra a prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punível pelo disposto no artigo 108º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro.

9. Por todo o exposto, conclui-se que a decisão sob recurso não violou as normas preceituadas nos artigos 127º e 374º do Código de Processo Penal, artigo 108º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2/12 e artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. “

Neste Tribunal, o Senhor Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer, opinando também pela improcedência do recurso, sendo aliás de rejeitar o recurso da matéria de facto.

Colhidos os Vistos, teve lugar a Conferência.

2. Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No dia 24 de Maio de 2006, pelas 11H30, o arguido expunha, para utilização do público, no estabelecimento comercial denominado «Café ----», sito na Rua----, no Pinhal Novo, da qual era responsável duas máquinas de jogo.

2. Submetido o referido material a exame, veio a apurar-se que estas máquinas têm as seguintes características e funcionam modo seguinte modo: «I-Máquina com a designação «DECORATIVE MARBLES», sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou série (e que se encontrava desmontada). – Características exteriores:

Móvel portátil, de cor amarela e laranja e estrutura metálica em madeira, tendo na parte frontal um painel em vidro acrílico.

Na parte superior é possível visualizar a designação de «DECORATIVE MARBLES» e na parte lateral direita encontramos o mecanismo de introdução e de eventual rejeição de moedas (moedeiro) de €0,50, € 1 e €2. Ao centro do painel situa-se um mostrador circular divido em oito pontos, os quais, observados no sentido dos ponteiros do relógio, são identificados pelos seguintes números: (…) O mostrador circular é constituído por vários led´s (pequenas lâmpadas) equidistantes, que após a introdução de 50 cêntimos (mínimo para se poder dar início à jogada), se processado por computador iluminam sequencialmente, executando, no mesmo sentido, um movimento giratório. Tal como descrição feita anteriormente, o mostrador circular apresenta oito led´s identificados, e os restantes não têm qualquer identificação.

Ao centro do mostrador circular existe uma janela digital através da qual são visualizados os pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas e, no lado direito, encontra-se uma nova janela digital, que informa os créditos existentes, provenientes de introdução de moedas, mas não se encontrava em funcionamento. Cada 50 cêntimos proporciona 50 créditos. Quando no final do movimento giratório, um dos led´s identificados ficar iluminado, todo o mostrador se ilumina, dando indicação ao jogador que tem uma jogada premiada. Na parte lateral esquerda da máquina, encontram-se dois pontos metálicos, que permitem fazer o reset aos pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas. Na parte frontal da máquina, encontra-se um botão de cor encarnada, que permite ao jogador utilizar os pontos acumulados. Por um ponto ganho, o jogador terá direito a mais duas jogadas, ou seja, em cada jogada aposta €0,50.

II – Funcionamento: Após a introdução de uma moeda, automaticamente os led´s de que é constituído o mostrador, se iluminam sequencialmente, executando, no mesmo sentido, um movimento giratório. Esse movimento termina, no momento em que apenas um dos led´s fica iluminado. Nesta altura, duas situações podem acontecer: 1-O led iluminado corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador terá direito aos pontos correspondentes, que oscilam entre 1 e 200, estes são creditados e visualizados através da janela identificada na figura 3. 2-O led iluminado não se encontra identificado por qualquer número, pelo que o jogador não terá direito a qualquer prémio, restando-lhe a hipótese de tentar novamente a sua sorte, introduzindo nova moeda.(…)

De acordo com a experiência, os pontos obtidos são posteriormente convertidos em dinheiro, à razão de €1 por cada ponto.»

-Máquina com a designação «DISTRIBUIDORA DE PASTILHAS», sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou série (e um cabo e respectivo transformador para ligação à electricidade – Características exteriores: Móvel tipo portátil, de estrutura metálica e em madeira, tendo na parte frontal um painel em vidro acrílico.

No canto superior é possível visualizar a designação de «DISTRIBUIDORA DE PASTILHAS» e canto superior direito encontramos o mecanismo de introdução de moedas de €0,50, € 1 e €2. Ao centro do painel situa-se um mostrador circular divido em oito pontos, os quais, observados no sentido dos ponteiros do relógio, são identificados pelas seguintes legendas:

• 1 Pastilha; • 50 Pastilhas • 2 Pastilhas • 100 Pastilhas • 5 Pastilhas • 20 Pastilhas • 200 Pastilhas • 10 Pastilhas

O mostrador circular é constituído por vários led´s (pequenas lâmpadas) equidistantes, que após a introdução de 50 cêntimos (mínimo para se poder dar início à jogada), se iluminam sequencialmente, executando, no mesmo sentido, um movimento giratório. Tal como descrição feita anteriormente, o mostrador circular apresenta oito led´s identificados, e os restantes não têm qualquer identificação. Ao meio do mostrador circular existe uma janela digital através da qual são visualizados os pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas. Quando no final do movimento giratório, um dos led´s identificados ficar iluminado, todo o mostrador se ilumina, dando indicação ao jogador que tem uma jogada premiada. Na parte de trás da máquina, localiza-se um botão preto, para fazer o reset aos pontos existentes.

Na parte lateral direita da máquina, encontra-se um botão de cor encarnada, que permite ao jogador utilizar os pontos acumulados. Por um ponto ganho, o jogador terá direito a mais duas jogadas, ou seja, em cada jogada aposta-se €0,50.

II – Funcionamento: Após a introdução de uma moeda, automaticamente os led´s de que é constituído o mostrador, se iluminam sequencialmente, executando, no mesmo sentido, um movimento giratório. Esse movimento termina, no momento em que apenas um dos led´s fica iluminado. Nesta altura, duas situações podem acontecer: -O led iluminado corresponde a um dos oito legendados e, neste caso, o jogador terá direito aos pontos correspondentes, que oscilam entre 1 e 200, estes são creditados e visualizados através da janela identificada na figura 13. -O led iluminado não se encontra identificado por qualquer legenda, pelo que o jogador não terá direito a qualquer prémio, restando-lhe a hipótese de tentar novamente a sua sorte, introduzindo nova moeda.(…) De acordo com a experiência, os pontos obtidos são posteriormente convertidos em dinheiro, à razão de €1 por cada ponto.»

3. O referido material, que ali fora colocado por pessoa não concretamente identificada, com o consentimento do arguido, a fim de ser explorado por este e arrecadados os proventos económicos decorrentes de tal exploração.

4. Os mencionados jogos conduzem a resultados que não dependem da perícia ou destreza do jogador, antes dependem única e exclusivamente da sorte deste, consistindo na atribuição aleatória de prémios pecuniários mediante a simples aplicação de dinheiro na expectativa de ser premiado com um valor superior ao aplicado.

5. O arguido não possuía licença de exploração das referidas máquinas de jogo.

6. O arguido conhecia as características dos mencionados jogos, bem sabendo que era proibida a exploração dos mesmos naquele estabelecimento comercial, por saber que a sua exploração só é permitida em certas condições e zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas.

7. Agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de alcançar uma vantagem patrimonial que sabia não lhe ser legítima.

8. Era, também, do seu conhecimento que a conduta empreendida era proibida por lei.

9.O arguido não tem antecedentes criminais”.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95) as questões a apreciar são as seguintes:

- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto
- Vícios do artigo 410º, nº 2;
- Violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo
- Nulidade da sentença;
- Erro na aplicação do direito.

Da Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto

Pretende o arguido impugnar a matéria de facto, em conformidade com o que a lei lhe possibilita (art. 428º do CPP). Para tanto, deve proceder de acordo com o disposto no art. 412º, nº3 do CPP e com obediência às formalidades nele exigidas.

Estabelece este normativo que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas, fazendo-se, essa especificação, por referência ao consignado na acta devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Esta actual redacção resulta da Reforma de 2007 (Lei nº 48/2007 de 29/08), que, mantendo o modelo do recurso da matéria de facto introduzido em 1998 e partindo das mesmas regras para a impugnação em matéria de facto – ónus de especificação dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, ónus de especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, ónus de especificação das provas que devem ser renovadas – passou a exigir a especificação dos concretos pontos de factos e das concretas provas.

Por “ponto de facto” deve entender-se, na definição Damião da Cunha, “toda e qualquer estatuição em matéria de facto e direito, contida no dispositivo da sentença, que possa ser considerada e examinada de forma autónoma” ("A Estrutura dos Recursos na Proposta de Revisão do CPP", in RPCC, ano 8, Fasc. 2º).

O incumprimento do comando legal, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, obsta ao conhecimento do recurso da matéria de facto.

Propondo-se discutir o acerto da factualidade dada como provada na decisão recorrida, o recorrente não deu correcto e integral cumprimento às exigências enunciadas: não especificou as provas, abstendo-se do cumprimento do ónus de indicação concreta das passagens em que funda a impugnação (art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Daí que o Sr. Procurador-geral Adjunto neste tribunal se tenha pronunciado no sentido da rejeição do recurso da matéria de facto.

Não pretendendo, no entanto, restringir intoleravelmente o direito ao recurso, e uma vez que é ainda perceptível o que o recorrente pretende, não se decide pela rejeição imediata (arts. 420º, al. b) e 414º, nº2 do CPP), optando-se por aceitar que satisfaz as exigências legais mínimas de impugnação.

Considera o recorrente encontrarem-se incorrectamente julgados, impondo uma decisão diversa, os factos nºs 1., 3., 7. e 8., supra transcritos, ou seja, os factos relativos à imputação objectiva da conduta à pessoa do arguido e os factos relativos ao dolo.

Vejamos, então, se tais factos se encontram devidamente justificados pelo tribunal (formal e substancialmente), de acordo com as provas produzidas em audiência.

Recordemos o exame crítico da prova, destacando apenas o essencial que ora interessa:

“(…)A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento em conjugação com as regras de experiencia, nomeadamente:

-No depoimento da testemunha JO, militar da GNR, o qual relatou de forma clara o modo como decorreu a acção de fiscalização no referido estabelecimento, relatando o local onde se encontravam as maquinas apreendidas e como se chegou à conclusão que as mesmas eram jogos de fortuna e azar, esclarecendo que as mesmas estavam ligadas à corrente e prontas a ser usadas, tendo também sido apreendido o dinheiro que se encontrava no interior das mesmas. Por fim referiu que através dos documentos mostrados pelo arguido em sede de fiscalização ficou convencido que era o mesmo quem explorava o local.

-No depoimento da testemunha BR, militar da GNR, o qual de forma convicta relatou os factos, referindo o modo como foi feita a fiscalização das maquinas, especificando o local onde as mesmas se encontravam, esclarecendo que as mesmas estavam ligadas à corrente e prontas a ser utilizadas, tendo também sido apreendido o dinheiro que se encontrava no interior das mesmas. Por fim referiu de forma expressa que o arguido se identificou como o proprietário daquele estabelecimento, referindo também que explorava o mesmo, motivo porque foi levantado o respectivo expediente contra o mesmo.

-Exames periciais realizados pela Inspecção-Geral de Jogos.

-Auto de apreensão

(…) Efectivamente resultou da prova testemunhas produzida em sede de audiência de julgamento que foram apreendidas várias máquinas de jogo que se encontravam no estabelecimento que era explorado pelo arguido. Sendo que resultou claro que foi o arguido que se assumiu como tal”.

O recorrente fundamenta a sua discordância argumentando, em síntese, que as testemunhas da acusação, guardas da GNR, não souberam indicar os documentos que visualizaram para afirmar que o estabelecimento estava em nome do arguido, o que é falso, e que inexiste prova do elemento subjectivo do crime.

Ora, como resulta dos factos provados e se vê do exame crítico da prova, em momento nenhum se diz, na sentença, que o estabelecimento “estava em nome do arguido”. O que se considerou assente foi que “o arguido expunha, para utilização do público, no estabelecimento comercial denominado Café ---, do qual era responsável, duas máquinas de jogo” (facto 1.). E as testemunhas de acusação explicaram como concluíram ser ele a pessoa que expunha, no estabelecimento do qual era responsável, duas máquinas de jogo para utilização do público. Particularmente através do depoimento da testemunha BR – segundo o qual a qual o arguido se identificou perante si como a pessoa que explorava o estabelecimento – concluiu o tribunal pela resposta de “provado” quanto ao facto agora impugnado. E tudo conforme se objectiva no exame crítico da prova (embora se trate de questão não suscitada em recurso – e por isso não a aprofundamos - sobre a validade e legalidade desta prova, ver Carlos Adérito Teixeira, Depoimento Indirecto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração Versus Proibição de Prova; Rev. do Cej, 2005, nº2, pp 127-161, especialmente ponto 2.4. “Relato de OPC sobre afirmações proferidas pelo arguido”).

Fica assim destituído de sentido o pedido de renovação de prova – reaudição das duas testemunhas de acusação para que esclareçam “que documentos visualizaram para afirmarem que o estabelecimento estava em nome do recorrente”, já que este facto – “o estabelecimento estava em nome do recorrente” – não fundamenta a condenação (nem poderá justificar uma absolvição).

Passando à prova dos restantes factos impugnados, particularmente os integrantes do tipo subjectivo – “o referido material fora ali colocado com o consentimento do arguido; o arguido conhecia as características dos mencionados jogos, bem sabendo que era proibida a exploração dos mesmos naquele estabelecimento comercial, por saber que a sua exploração só é permitida em certas condições e zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas; agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de alcançar uma vantagem patrimonial que sabia não lhe ser legítima” – lê-se na motivação da sentença: “(…) Quanto ao elemento subjectivo o Tribunal também entende que o arguido agiu de forma livre e consciente, e isto não obstante não ter sido produzida prova directa nesse sentido. (…) Isto porque, como é sabido, os factos que interessam ao julgamento da causa são de ordinário ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais. (…) Assim, e não obstante não ter sido produzida nenhuma prova directa quanto à intenção do arguido, e sendo essa factualidade insusceptível de apreensão directa, se não for admitida pelo próprio (através da confissão) por pertencer à vida interior do agente, mesmo assim, é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, donde o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, avaliados e apreciados, segundo o princípio da normalidade, fundando-se a convicção do julgador em presunções naturais ligadas ao princípio da normalidade e a regras de experiência comum. Tudo isto conjugado e examinado globalmente segundo as regras normais da experiência e da lógica, é de concluir, com a certeza relativa a que atrás aludimos, pela intenção do arguido. (…) Isto porque resulta claro das regras da experiência que o arguido não ignorava, a natureza e características, de tais jogos, atenta não só a profissão que desenvolve, como o facto de estar sobejamente difundido e ser conhecido no meio comercial a ilicitude de tais jogos, tendo agido de forma a obter proveitos que não lhe eram devidos.”

Os factos integrantes do tipo subjectivo – que se desdobra, muito sinteticamente, nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional do dolo, correspondentes ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto – raramente se provam directamente.

Na ausência de confissão/admissão destes factos – e dificilmente se concebendo outra prova que incida directamente sobre eles – resta ao julgador a apreciação de prova indirecta, aquela que lhe permite, sempre com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao facto probando. E são muito frequentes os casos em que a prova é indirecta, precisamente no que respeita ao elemento subjectivo do crime. Daí a grande importância dessa prova no processo penal.

Terá aqui o julgador de retirar dos factos externos as necessárias ilações, de forma a poder ou não concluir que o agente se comportou internamente da forma como o revelou externamente. A convicção obter-se-á através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas, ou seja, num juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando.

Ora, é precisamente este percurso de raciocínio que a sentença espelha, sendo lícito retirar as mesmas conclusões a que o tribunal de julgamento chegou.

Da leitura dos factos externos – o arguido mantinha em funcionamento e com oferta ao público as duas máquinas de jogo, no estabelecimento comercial que ele próprio explorava –, que se encontram revelados por provas directas, e de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, é possível retirar que o recorrente tudo soube e quis. Faz, pois, sentido concluir que actuou internamente da forma como o revelou externamente.

Podemos, assim, assentar que existe total conformidade entre o que foi dito em julgamento e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas produzidas é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que faz relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios, atribuindo-lhes conteúdo positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação do princípio do in dúbio.

Tudo isto se afirma, no entanto, com as limitações decorrentes da ausência de imediação.

Como bem se refere no Ac. TRL de10/10/2007 (Des. Carlos Almeida) “o que limita os poderes do tribunal de 2ª instância no recurso quanto à matéria de facto não é o princípio da livre apreciação da prova mas sim a ausência de imediação e de oralidade; por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal de 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância. Só pode alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [alínea b) do n.º 3 do artigo 412º]

Em reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão quanto aos «pontos de facto» ora sindicados a pedido do recorrente, conclui-se pela não detecção de erro de facto, por não imporem as provas decisão diversa da recorrida.

Dos vícios do artigo 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP

Invoca o recorrente os vícios da insuficiência da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação. Fá-lo a despropósito.

Procura-se justificar o primeiro, se bem o entendemos, com a circunstância de se terem considerado indevidamente provados os factos do tipo subjectivo.

Verifica-se tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. É uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69).

Ora, a sentença contém todos os factos necessários para a decisão da causa, de acordo com a estatuição legal definidora da amplitude do objecto da prova – o art. 124º do CPP. Apuraram-se todos os factos juridicamente relevantes e num quadro de ponderação de todas as soluções jurídicas possíveis.

Por seu turno, a contradição insanável da fundamentação (e da fundamentação e da decisão) ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados.

É uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a decisão probatória e a decisão. Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 71).

Se o entendemos, procura-se situá-lo na interrogação “como se consegue explicar a utilização das regras de experiência comum para a prova contra o recorrente do elemento subjectivo do tipo do crime no que respeita à qualificação da máquina e ao mesmo explicar-se a necessidade que o julgador tem da perícia para essa mesma qualificação?”

A isto reagiu pertinentemente o MP na sua resposta ao recurso: “O recurso à prova pericial, por um lado, e a valoração do conjunto de toda a prova produzida conjugada com as regras da experiência comum, por outro, têm por objecto factualidade distinta.

Relativamente às características e modo de funcionamento da máquina, bem se compreende que o tribunal sustente a sua convicção na prova pericial já existente nos autos, cuja realização foi determinada pelo Ministério Público durante o inquérito de forma a apurar tais elementos com exactidão, já que não faz parte das competências, quer do titular do inquérito, quer do julgador, procederem por si mesmos ao exame dos objectos apreendidos.

No que se refere ao elemento subjectivo, impõe-se realçar a insusceptibilidade de apreensão directa da factualidade atinente à intenção do arguido, por pertencer à esfera da vida interior, a menos que por ele seja admitida através de confissão. Sendo certo que o arguido, nestes autos, não prestou declarações em audiência de discussão e julgamento. Deste modo, é legalmente legítimo o recurso às regras da experiência, na análise crítica de toda a prova produzida, de modo a formar a convicção do julgador quanto à motivação do arguido.”

Que mais acrescentar? Inexiste qualquer contradição, já que as provas incidem sobre núcleos de factualidade diferentes. A proceder a tese do recorrente, o crime dos autos teria de revestir a natureza de crime de mão própria, só praticável por inspectores de jogos.

Da violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo

O in dubio pro reo traduz-se, na valoração do non liqued, em questão de prova, sempre no sentido favorável ao arguido. Daí dizer-se que o ónus da prova não tem relevância no processo penal. Este princípio está contido no princípio de presunção de inocência do arguido, consagrado no art. 32º, nº2 da CRP, e um dos direitos fundamentais do cidadão também reconhecido internacionalmente (art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 6º, nº2 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e art. 14º, nº2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).

Protege as pessoas que são objecto de suspeita, garantindo que não serão julgadas culpadas enquanto não se demonstrarem os factos imputados, através de prova inequívoca. O encargo de destruir a presunção de inocência recai sobre o acusador, inexistindo um ónus do acusado sobre a prova da sua inocência.

Por seu turno, o princípio da livre apreciação das provas encontra-se no art.127 CPP: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente”.

De acordo com ele, o tribunal forma a sua convicção valorando os diferentes meios de prova sem obediência a critérios legais pré-fixados, mas de acordo com as regras da experiência. A convicção pessoal forma-se, assim, na prova livremente apreciada, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso, sem subordinação a critérios legais pré-fixados.

E na jurisprudência, tão antiga como actual, do STJ, “a livre apreciação não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com os critérios lógicos e objectivos; dessa forma determina uma convicção racional, logo também ela objectivável e motivável” (Ac.STJ-4.11.98).

O recorrente invoca a violação destes princípios a propósito da forma como o tribunal chegou à conclusão de “provado” relativamente aos factos provados que ora impugna, conforme apreciado supra. Ou seja, defende que o processo de formação da convicção do julgador se fez à margem destes princípios, tendo-se condenado sem prova.

Ora, a decisão sobre as questões anteriores prejudica a presente, no sentido em que a detecção de violação destes princípios teria, então, implicado obrigatoriamente consequências a nível do resultado de factualidade a que as provas permitiriam chegar.

A reavaliação do juízo do julgador sobre as provas, na livre apreciação expurgada de desvios ao in dúbio e à presunção de inocência, foi já feita. E nenhum desvio se detectou.

A prova da acusação fez-se, não porque o arguido não logrou provar a sua inocência, mas porque as provas foram a demonstração dos factos da acusação.

Da nulidade da sentença por deficiente fundamentação da matéria de facto:

Parece resultar da motivação do recurso que o recorrente argui esta nulidade como uma decorrência lógica da questão suscitada anteriormente, quase se limitando a afirmar que a sentença não contem uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

Na redacção do art. 374°, n°2 do CPP, a motivação dos factos da Sentença consistirá na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Impõe-se a "explicitação do processo de formação da convicção do tribunal" (Ac. T.C. n° 680/98 de 02/12), de forma a permitir uma compreensão "do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório" (Ac. STJ 99.05.12, rec.n°406/99 3aS.).

Exige-se ao tribunal que exteriorize na sentença, de forma clara e lógica, o percurso interior de formação da convicção, ou seja, de que forma chegou à resposta de provado e/ou de não provado relativamente a toda a base factual que constituiu o tema da prova.

A fundamentação da sentença é um imperativo constitucional (art. 205º, 1 CRP e 97º, 1 CPP) e cumpre várias finalidades: permite a sindicância da legalidade do acto decisório, serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, obriga o juiz a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, e é fonte de legitimação do próprio poder judicial.

Mas, dissemos já a propósito do recurso em matéria de facto, e tendo então entrado na própria revaloração da prova, que a decisão recorrida justificou suficiente e adequadamente a formação da convicção e a resposta de provado a toda a factualidade juridicamente relevante.

Constituiria uma verdadeira contradição nos fundamentos da nossa própria decisão de recurso o considerar-se, por um lado, que o tribunal a quo avaliou bem a prova e soube expressar devidamente essa valoração e, simultaneamente detectar-se a nulidade por deficiente fundamentação (explicação) da matéria de facto.

E na ausência de maior concretização impugnatória por parte do recorrente ficamo-nos pela afirmação – já sindicada – da não detecção de qualquer nulidade de sentença prevista no art. 379º do CPP.

Do erro na aplicação do direito:

Advoga o recorrente que a sentença erra quanto à classificação do jogo em causa como de fortuna ou azar, quando na realidade devia ter sido qualificado como modalidade afim de fortuna ou azar.

Defende ter sido esta a interpretação fixada no acórdão do STJ nº 04/2010, de 08/03, que pretende ver aplicado no caso.

Neste acórdão, o STJ fixou a seguinte jurisprudência: “constitui modalidade afim, e não jogo de fortuna ou azar, nos termos dos arts. 159º, nº 1, 161º, 162º e 163º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção do DL nº 10/95, de 19 de Janeiro, o jogo desenvolvido em máquina automática na qual o jogador introduz uma moeda e, rodando um manípulo, faz sair de forma aleatória uma cápsula contendo uma senha que dá direito a um prémio pecuniário, no caso de o número nela inscrito coincidir com algum dos números constantes de um cartaz exposto ao público”.

Vendo as duas situações em confronto, constata-se de imediato que as máquinas dos autos não são idênticas à referida no AFJ.

Com efeito, trata-se, ali, de máquinas “que funcionam como espécies de rifas ou tômbolas mecânicas, em que o que se arrisca assume dimensão pouco significativa e o impulso para o jogo tem de ser renovado em cada operação” (acórdão de fixação de jurisprudência), ou, como refere o MP, em que “a jogada se esgota com uma só aposta e o resultado pouco ou nada é influenciado pelo funcionamento da máquina que apenas facilita a extracção de uma cápsula à semelhança de uma tômbola mecânica”. Em suma, consiste esta máquina apenas num expositor contendo cápsulas premiadas (descrição detalhada em Conde Fernandes, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco, vol. II, p. 370).

Já aqui, o modo de funcionamento das máquinas apreendidas impulsiona ao jogo, através da utilização da pontuação acumulada, permitindo-se apostar os pontos ganhos em novas jogadas, tudo conforme factualidade descrita em 2. de factos provados.

Mau grado as semelhanças apontadas pelo recorrente, recorda-se que não há nada mais diferente do que o parecido. E reconhecida a diferença fenomenológica existente entre a situação tratada no Acórdão de fixação de jurisprudência e o caso sub Júdice, cumpre aferir da sua relevância normativa.

Está assim em causa saber se o jogo desenvolvido pelas máquinas dos autos se integra na categoria normativa de jogo de fortuna ou azar. Ou, por outras palavras, se as duas máquinas apreendidas ao arguido desenvolvem jogos de fortuna ou azar. Isto porque o crime da condenação – crime de exploração ilícita de jogo do art. 108º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89, de 02.12 – pune “quem, de qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados”.

Na definição do art. 1º da mesma Lei, “jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.”

Por seu turno, o seu art. 4º preceitua, sob a epígrafe “tipos de jogos de fortuna ou azar”: 1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:

a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;

b) Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta;

c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;

d) Jogo bancado: keno;

e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;

f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;

g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

Interessa-nos, aqui, a al. g).

Por seu turno, na definição do artigo 159º nº1, “modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”, acrescentando o nº 2 que “são abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos”.

A distinção entre jogo de fortuna ou azar e modalidade afim terá como consequência a diferente punição – a título de responsabilidade criminal ou como contra-ordenação.

O Acórdão de fixação de jurisprudência, em sede de “resenha histórica dos principais diplomas legais” procede à análise da evolução legislativa do jogo ilícito, destacando que com o Decreto-Lei n.º 422/89 “os jogos de fortuna ou azar passaram a ser definidos no art. 1.º como sendo aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”. Passou então a considerar-se existir “uma ruptura que veio desequilibrar os campos semânticos (ou, noutro plano, os elementos típicos) em que assentavam as noções de jogo de fortuna ou azar, por um lado, e de modalidades afins, por outro.

Sendo os primeiros definidos, no regime até então vigente, como aqueles cujos resultados dependiam exclusivamente da sorte, e os segundos como sendo aqueles cuja esperança de ganho residia essencialmente na sorte, era evidente que as duas modalidades passavam a ter, depois do Decreto-Lei n.º 422/89, uma zona em que havia sobreposição, visto que os jogos caracterizadamente de fortuna ou azar, podiam também, à semelhança das modalidades afins, não depender exclusivamente da sorte, mas fundamental ou essencialmente da sorte.”

A distinção entre os dois conceitos deixou de se poder situar na relevância da sorte para o resultado.

E, como se enuncia nesse mesmo Acórdão e como o refere também o MP na sua resposta, diversos têm sido, desde então, os critérios de distinção entre jogo de fortuna ou azar e modalidade afim, adoptados pelos tribunais – a natureza do resultado, a natureza dos prémios, a temática e a natureza dos prémios, a espécie de operações oferecidas ao público, a perícia do jogador e a sorte (como critério adjuvante), uma distinção formal (na impossibilidade de definição de um critério material, os jogos de fortuna ou azar seriam aqueles cuja exploração é autorizada nos casinos ou locais referidos nos arts 6º a 8º, tese avançada no Ac. TRL de 26/10/05, Rel. Carlos Almeida) (sobre a temática, desenvolvidamente, Conde Fernandes, loc. cit. p. 349-374).

E no Acórdão de fixação de jurisprudência, não considerando aceitável nenhum dos critérios referidos supra, por “não oferecerem as características de completude e exaustividade” e por “não se basearem nos critérios relevantes que permitiriam distinguir os dois ilícitos” acabou por propugnar como critério legal de distinção o seguinte:

“A lei (art. 1º e 4º do D.L. nº 422/89 de 2/12, na redacção do D.L. nº 10/95 de 19/01), na definição de jogos de fortuna e azar combina uma fórmula generalizadora (art. 1º) com a técnica exemplificativa (art.4º). Por meio da primeira, define os jogos de fortuna e azar como sendo «aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte»; por meio da segunda, tipifica exemplificativamente esses jogos nas suas diversas alíneas (vários jogos bancados, concretamente determinados – alíneas a) a d); jogos não bancados, também concretamente determinados – alínea e) e jogos em máquinas (alíneas f) e g). No que respeita a estes últimos, mencionam-se os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» (alínea f) e «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» (alínea g). A caracterização dos jogos de fortuna ou azar é essencial para a distinção entre os tipos de ilícito criminal e as denominadas “modalidades afins”.
Ora, tendencialmente, os jogos de fortuna ou azar, de resultado contingente, por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, segundo a formulação genérica do art. 1.º, são os que estão especificados no art. 4.º, n.º 1.”.

E conclui-se, “por conseguinte, não obstante exemplificativa a especificação dos jogos de fortuna ou azar constante da lei, ela é tendencialmente completa e comporta uma certa rigidez, como é próprio de um tipo legal de crime, que é um tipo de garantia. Todas as modalidades de jogos que não correspondam às características descritas e especificadas nos referidos artigos 1.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 422/89, na redacção do Decreto-Lei n.º 10/95, embora os seus resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, revertem para as modalidades afins. No caso das máquinas de jogos, só são de considerar como jogos de fortuna ou azar: - os jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas; - os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.”

É certo que, no caso, este critério não nos obriga no sentido ínsito no art. 445º do CPP.

Embora do art. 445º não resulte a obrigatoriedade de acatamento da decisão, “os tribunais judiciais devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada” (nº3), impondo a lei um dever especial de fundamentação que ultrapassa o dever geral previsto no art. 97º, nº5 do CPP; para poder divergir, deve o juiz concretizar e explicar as razões da sua divergência, através de argumento(s) novo(s) e relevante(s). Na ausência deste(s), pode ainda fazê-lo quando for claro que o peso dos argumentos ponderados na fixação de jurisprudência se alterou significativamente; ou quando a própria composição do STJ se tenha alterado no sentido de já indicar claramente que a maioria dos Juízes Conselheiros se deixou de rever nessa jurisprudência (Ac. STJ de 27.02.2003, Rel. Simas Santos).

Nenhuma destas situações, de excepção, ocorre no caso presente. Mas o caso presente não é também aquele sobre o qual o Pleno se pronunciou, como já dissemos – as máquinas de jogo são diferentes - não se impondo por isso importar a fixação de jurisprudência para a nossa decisão.

Mas a fundamentação do Acórdão de fixação de jurisprudência interessa aqui.

E, seguindo-a, chegamos ao resultado oposto, que é o da conclusão de que a situação dos autos se integra na categoria de jogos de fortuna e azar já que respeita a jogo em máquinas, que pagam prémios em dinheiro (embora não directamente) e que apresentam como resultados pontuações que dependem exclusivamente da sorte.

Situação diferente da apreciada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência, repetimos, em que se tratava de máquina em que “o único dispositivo existente, consiste num mecanismo de fecho e abertura do contentor ou expositor, permitindo a extracção de uma cápsula mediante a colocação de uma moeda. Esse mecanismo “nenhuma influência tem com um jogo desenvolvido, pois em nada influi com um risco na retribuição de entrada, nem com uma multiplicação da retribuição” (Conde Fernandes, loc. cit. p. 371)

Divergindo as máquinas dos autos das que estão na origem do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2010 atenta a especificidade dos jogos desenvolvidos, não é aqui aplicável a jurisprudência fixada, mas a fundamentação desse acórdão permite-nos concluir pela confirmação da decisão recorrida.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em Julgar improcedente o recurso confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC.

Évora, 28.02.2012

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Casebre Latas)