Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
456/12.9T2STC.E2
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
REQUISITOS
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
MÁ FÉ PROCESSUAL
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I - O direito de preferência previsto no 1380.º, n.º 1, do CC, é um direito legal de aquisição que depende da verificação dos seguintes requisitos: i) - ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) - que o preferente seja dono de prédio confinante com o alienado; iii) - que um dos prédios tenha área inferior à unidade de cultura; iv) - que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante”.
II - O artigo 204.º do CC não se refere ao prédio misto, encontrando-se este conceito definido no artigo 5.º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aplicando-se os princípios da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, em face da principal afectação do imóvel, nada impedindo o exercício do direito de preferência por se tratar de um prédio denominado “misto”.
III - Ainda que se encontrem demonstrados os requisitos positivos do direito de preferência, não pode o tribunal decretar a procedência da acção e, constitutivamente, a aquisição por banda dos AA. do direito de propriedade sobre o prédio objecto da acção, se a constituição do mesmo depende da prévia desanexação de uma parte de um prédio rústico com a área inferior à unidade mínima de cultura, ficando o restante prédio igualmente com área inferior àquela, implicando, por isso, o decretamento do direito de preferência sobre o prédio em causa, a violação de comando legal imperativo, o que constitui obstáculo intransponível à procedência da acção.
IV - O incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé, ainda que o desfecho da acção venha a ser favorável a essa parte.
V - Justifica-se a condenação dos Réus como litigantes de má fé, se os mesmos alteraram intencionalmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento a respeito do negócio celebrado, e tentaram obstar a que se conhecesse, por via do pagamento efectuado e sua data, qual o negócio que quiseram realmente efectuar, tudo fazendo com o fito de tentar obstar ou, pelo menos, dificultar de forma inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei lhes impõe, a descoberta da verdade material e a justa-composição do litígio.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 456/12.9T2STC.E2
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. BB e mulher, CC, instauraram em 25.05.2012 a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra DD e marido, EE, e FF, pedindo que seja(m):
1) Declarada «a nulidade da escritura de justificação que legitimam os 1º.s e 2º.s. R como proprietários por usucapião do prédio rústico denominado "Courela dos C…" ou “Fonte do C…”, com a área de 1,865 hectares, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …, secção …, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola”»;
2) Reconhecida «a aquisição pelos 1.º e 2.º ao 3.º RR., por compra, do prédio rústico denominado "Courela dos C…" ou “Fonte do C…”, com a área de 1,865 hectares, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …, secção …, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, descrito sob o n.º … da dita freguesia de Melides na Conservatória de Grândola, pelo preço de € 35.000,00 (Trinta e Cinco Mil Euros), tendo efectuado despesas inerentes à aquisição de € 314,58»;
3) Declarados «os AA como legais preferentes no contrato de compra e venda referido em 2) e, por via disso ser reconhecido aos mesmos o direito de haverem para si, pelo preço e despesas referidos e outras que possam existir e que desconhecem - depositando o seu preço logo que conhecido -, o prédio Descrito sob o n.º … referente à freguesia de Melides descrito na Conservatória de Grândola, subrogando-se assim na posição de compradores na referida compra e venda e consequentemente declarados proprietários do dito prédio».
Em fundamento do peticionado, alegaram, em suma, que:
- Está inscrita a favor dos AA. a propriedade do prédio rústico denominado “Fonte dos C…”, composto por cultura arvense, com 1.214 hectares, sito na freguesia de Melides, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº …/…;
- Tal prédio confronta a norte com o prédio rústico denominado “Courela dos C…”, ou “Fonte do C…”, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …, secção …, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o nº …, pertencente ao R. FF;
- Em 13.01.2012 o A. teve conhecimento de que o R. FF vendeu aos RR. DD e marido uma parcela do dito prédio, pelo preço de 35.000,00€;
- Os RR. DD e marido não tinham, nem têm, qualquer prédio confinante com aquele que adquiriram, não tendo sido feita aos AA. qualquer comunicação da alienação;
- A fim de se inteirar do negócio celebrado, o A. obteve, em 09.02.2012, certidão da escritura relativa ao prédio alienado;
- De tal escritura resulta que a aquisição de uma parcela do prédio rústico denominado “Courela dos C…”, ou “Fonte do C…”, resultou de processo de justificação notarial mediante o qual os RR. DD e marido declararam ter adquirido tal prédio por usucapião, o que deu origem à descrição … da Conservatória do Registo Predial de Grândola, freguesia de Melides;
- Porém, tal processo de justificação notarial é fraudulento, pois que o imóvel em causa esteve sempre, até à data da venda, na posse do R. FF;
- O acto da justificação notarial foi simulado, tendo os três RR. dissimulado uma compra e venda com o intuito de afastar os titulares do direito de preferência dos prédios confinantes;
- Por conseguinte, sendo nulo, por simulação, o negócio simulado, o negócio dissimulado (a compra e venda, que efectivamente os RR. quiseram celebrar) é válido, por ter sido respeitada a forma (escritura pública) exigida por lei;
- Não tendo aos AA. sido comunicado o projecto de venda, e sendo estes titulares de direito de preferência na alienação, por serem proprietários de prédio confinante com o alienado, tendo ambos área inferior à unidade de cultura e a mesma aptidão agrícola, nos termos previstos no artigo 1380.º do Código Civil[3], devem ser declarados preferentes e colocados na posição de compradores, mediante o depósito do preço da alienação.

A fls. 45 (01.06.2012) mostra-se comprovado o depósito, pelos AA., da quantia de 35.314,58€, correspondente ao preço alegadamente pago pelos RR. compradores (35.000,00€, segundo a petição inicial), e às despesas suportadas com a aquisição da propriedade (a restante quantia).

2. Regularmente citados, os Réus contestaram, defendendo a improcedência da acção, e invocando, em apertada síntese:
- O R. FF, que o prédio dos AA. não é confinante com o prédio em litígio, mas com um caminho municipal, pelo que não são aqueles titulares de qualquer direito de preferência; por outro lado, não teve o R. consciência da diferença entre a realização de uma escritura de justificação ou de compra e venda, dado que pretendeu vender aos RR. DD e marido o prédio em causa, tendo recebido o valor da transacção; no prédio em causa existe, pelo menos desde 1965, uma casa reconstruída por GG, casado com HH, que veio a ser doada, pelos sucessores destes, em 2008, à Ré DD, e que esta, desde os anos 80, tem a posse de tal casa e de uma pequena horta; tal casa confina, pelos quatro lados, com o prédio objecto dos autos, o qual tem servido de logradouro da referida casa, e que, ao longo dos anos, os RR. DD e marido lhe foram fazendo entregas de dinheiro por conta do preço ajustado, tendo ainda procedido à vedação do prédio; por fim, alega que os AA. litigam de má fé, devendo ser condenados em conformidade.
- Os RR. DD e EE, que a petição inicial é inepta, devendo, em consequência, ser absolvidos da instância; por outro lado, alegam que, à data da compra e venda verbal do prédio, que negociaram com o R. FF, e que vieram a formalizar mediante a outorga da escritura de justificação, eram proprietários do prédio urbano aí existente, inscrito na matriz sob o art. 525º, e em relação ao qual a parcela de terreno constitui espaço circundante; mais aduzem que, desde o ano de 1985 tomaram posse da parcela de terreno objecto da escritura de justificação, pelo que inexistiu qualquer simulação na sua outorga; alegam ainda que o prédio de que os AA. são proprietários não é confinante com o prédio objecto dos autos, e que este nunca se destinou a uso agrícola, por constituir uma parte componente do prédio urbano que possuem. Em reconvenção, e para o caso de procedência dos pedidos dos AA., requerem a condenação destes no pagamento da quantia de 110.000,00€, correspondente às despesas que suportaram com melhoramentos feitos no prédio, defendendo ainda a litigância de má fé daqueles, e a sua condenação em conformidade.

3. Os autores apresentaram réplica, rejeitando a litigância de má fé que lhes é assacada pelos RR., e contestaram a reconvenção deduzida, defendendo a sua improcedência.

4. Findos os articulados foi designada audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador, no qual, entre o mais, se decidiu pela improcedência da alegada ineptidão da petição inicial, e se procedeu à identificação da matéria de facto assente e da que constituiria a base instrutória.

5. Realizada a audiência final foi proferida sentença, que, em suma, julgou a acção procedente, e improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos Réus, condenando-os em multa e indemnização a favor dos Autores, por litigância de má-fé.

6. Inconformados, os Réus DD e EE, apelaram, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 23 de Novembro de 2017, que faz fls. 533 a 560 dos autos, acordado em «anular oficiosamente a decisão recorrida quanto à matéria de facto, para esclarecimento/alteração da matéria de facto constante dos pontos 6., 7., 15. a 19.; e ainda para serem efectuadas as diligências que foram consideradas pertinentes para a resposta à matéria indicada - matéria de facto considerada não provada, que o Recorrente transcreveu nas conclusões V e W, e da considerada provada nos pontos 8 e 22 -, mormente, a referida diligência pericial e o processo da DGT, ficando por ora prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no presente recurso».

7. Realizadas as diligências em causa, e produzidas alegações pelas partes, foi proferida sentença[4], com o seguinte dispositivo:
«1. Julgo procedente, por provada, a presente acção intentada por BB e mulher, CC, e, em consequência:
1.1. Declaro nula, por simulação, a escritura de justificação notarial outorgada no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva em 8 de Abril de 2011, exarada a folhas 25 e seguintes do livro de notas para escrituras diversas n.º 12 – A, daquele Cartório, mediante a qual DD e marido EE se declararam donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio rústico, com a área de um vírgula oitocentos e setenta e cinco hectares, composto de terra de cultura arvense e pinhal, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …, Secção …, a que foi atribuído o valor de mil euros, a desanexar do prédio rústico, denominado Courela dos C… ou Fonte C…, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o número …, da dita freguesia;
1.2. Declaro a validade de um contrato de compra e venda como negócio dissimulado na referida escritura, mediante o qual o Réu FF vendeu aos Réus DD e EE, pelo preço de € 34.000,00 (trinta e quatro mil euros), a área de 1,8380 hectares do prédio rústico sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …, Secção …, a desanexar do prédio rústico, denominado Courela dos C… ou Fonte C…, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o número …, da dita freguesia, com as seguintes confrontações: a norte com remanescente do artigo cadastral … da secção … (parcelas 1, 2 e parte da 3), a sul com caminho e BBl (artigo … da secção …), a nascente com caminho público e a poente com os artigos cadastrais … e … da secção …;
1.3. Reconheço aos Autores, BB e mulher, CC, o direito de preferência na compra do prédio rústico referido em 1.2, adquirido pelos Réus DD e EE, em 8 de Abril de 2011, pelo preço de € 34.000 (trinta e quatro mil euros), e, consequentemente, declaro estes substituídos pelos Autores na titularidade do respectivo direito de propriedade, ordenando o cancelamento das inscrições prediais a favor dos referidos Réus e a correcção da descrição predial nos termos definidos em 1.2;
1.4. Adjudico aos Réus DD e EE a importância de € 34.000,00 (trinta e quatro mil euros), a sair do depósito obrigatório de fls. 45.;
2. Julgo totalmente improcedente, por não provado, o pedido reconvencional deduzido pelos Réus DD e EE e, em consequência, do mesmo absolvo os Autores, BB e mulher, CC;
3. Julgo verificada a litigância de má fé dos Réus, e, em consequência:
3.1. Condeno o Réu FF no pagamento de multa correspondente a 10 (dez) unidades de conta;
3.2. Condeno os Réus DD e EE, cada um, no pagamento de multa correspondente a 15 (quinze) unidades de conta;
3.3. Condeno os Réus FF, DD e EE, solidariamente, a pagar aos Autores, BB e mulher, CC, a título de indemnização, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a que acrescerão juros de mora a contar da data da presente sentença e até integral pagamento;
4. Julgo não verificada a litigância de má fé dos Autores;
5. Determino a restituição, aos Autores, da quantia de € 1.100,00 (mil e cem euros), a sair do depósito de fls. 45.
Custas pelos Réus – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC».

8. Novamente inconformados, os Réus DD e EE, apelaram, terminando as alegações com prolixas conclusões - que, por isso, não se reproduzem, e se sintetizam nas questões que se identificarão na delimitação do objecto do recurso -, concluindo que «deve a sentença recorrida ser substituída por outra em que se julgue a ação totalmente improcedente porque não provada, absolvendo-se os ora Apelantes dos pedidos com todas as legais consequências daí decorrentes, e, nomeadamente, com a não condenação dos mesmos como litigantes de má-fé e no pagamento de qualquer indemnização aos Autores».

9. Os Autores contra-alegaram, salientando o incumprimento pelos Recorrentes do disposto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC[5], e pugnando pela improcedência da apelação.

10. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as questões colocadas pelos Recorrentes que importa apreciar no presente recurso, atenta a sua ordem lógica, consistem em saber se:
- deve ser reapreciada e alterada a matéria de facto, nos termos pretendidos pelos Recorrentes;
- existe ou não o direito de preferência dos AA. na aquisição do mencionado prédio;
- os Réus devem ou não ser condenados como litigantes de má fé.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos[6]:
1. A aquisição do direito de propriedade, por compra, sobre o prédio misto denominado Fonte dos C…, situado em Melides, descrito com a área de 12140 metros quadrados, como sendo composto de cultura arvense e edifício de rés-do-chão com a área coberta de 75 metros quadrados e como confrontando a norte com caminho municipal, a sul com FF, a nascente com Jogo da Bola e a poente com Fonte dos C…, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …3 da Secção …L e na matriz predial urbana sob o artigo …-P e descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …11 da freguesia de Melides, está inscrita a favor dos AA.;
2. Na matriz rústica este prédio consta como tendo duas parcelas, uma destinada a dependência agrícola com a área de 0,010800 hectares e outra destinada a pinhal com a área de 1,203200 hectares;
3. A aquisição do direito de propriedade por usucapião sobre o prédio misto denominado Courela dos C… ou Fonte do C…, situado em Melides, descrito com a área total e descoberta de 1,875 hectares, como sendo composto de cultura arvense, pinhal e prédio urbano com a superfície coberta de 36,75 metros quadrados, servindo de habitação e como confrontando a norte com Gaudêncio M…, a sul com caminho e BB, a nascente com caminho público e a poente com Luís C…, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …2 da Secção …L [parte] e na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24 da freguesia de Melides, está inscrita a favor dos réus DD e EE;
4. Na matriz rústica, o prédio inscrito sob o artigo …2 da secção L consta como tendo as seguintes parcelas:
Parcela 1: Cultura arvense com a área de 0,672500 hectares;
Parcela 2: Dependência agrícola com a área de 0,002500 hectares;
Parcela 3: Pinhal com a área de 1,425000 hectares;
Parcela 4: Vinha com a área de 0,450000 hectares; e
Parcela 5: Cultura arvense com a área de 0,125000 hectares.
5. Está certificado pela notária Elisa Maria das Neves Saraiva que por escritura outorgada em 8 de Abril de 2011, exarada a folhas 25 e seguintes do livro de notas para escrituras diversas n.º 12 – A do seu Cartório, DD e marido, EE, outorgaram escritura de justificação notarial, declarando-se donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio rústico, com a área de um vírgula oitocentos e setenta e cinco hectares, composto de terra de cultura arvense e pinhal, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo …2, Secção L, a que foi atribuído o valor de mil euros, a desanexar do prédio rústico, denominado Courela dos C… ou Fonte C…, sito na freguesia de Melides, concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o número …, da dita freguesia, tendo sido paga a quantia de € 174,45 a título de honorários e a quantia de € 40,13 a título de IVA, num total de € 214,58;
6. O terceiro réu declarou vender à primeira ré e ao segundo réu, que declararam comprar, a parte rústica do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º ….24, da freguesia de Melides;
7. Essa parte rústica tem a área de 1,8380 ha e as seguintes confrontações: a norte com remanescente do artigo cadastral …2 da secção L (parcelas 1, 2 e parte da 3), a sul com caminho e BB (artigo …3 da secção L), a nascente com caminho público e a poente com os artigos cadastrais …6 e …4 da secção …[7];
8. O réu FF não fez qualquer comunicação aos autores da intenção de venda da referida parte rústica do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides;
9. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …11 confronta a norte com o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, ambos da freguesia de Melides;
10. Os réus DD e EE não tinham nenhum prédio confinante com o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides;
11. A venda referida teve lugar no mês de Abril de 2011 e foi feita pelo preço de € 34.000;
12. Os réus acordaram que os primeiros dois réus outorgariam uma escritura de justificação notarial da posse relativa à parte rústica ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, em substituição da compra e venda deste prédio, para evitar a possibilidade dos autores exercerem a preferência na compra e venda;
13. Pelo menos até Abril de 2011, o réu FF sempre procedeu a desmatações periódicas, limpeza do arvoredo, desbastes e cortes de pinheiros, gradagens e sementeiras da época, colhendo os frutos no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º…24, da freguesia de Melides, sem intervenção de terceiros e na convicção de que era seu dono;
14. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …11 da freguesia de Melides, tem a área de 1.214 hectares;
15. O prédio rústico a que se reporta a descrição da Conservatória do Registo Predial de Grândola com o n.º …24, da freguesia de Melides, tem a área de 1.8380 hectares, a qual é constituída por parte da parcela 3 e pelas parcelas 4 e 5 da matriz rústica do artigo …2 da secção L;
16. Desde 1951 que se encontra implantado no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, uma casa de habitação que havia pertencido a GG e que foi por este remodelada em 1965;
17. Na década de 1980 os RR. DD e EE passaram a frequentar a referida casa de habitação, que constitui o artigo 525;
18. Em 1970, GG procedeu à abertura de um furo de captação de água no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, cuja assistência foi assegurada desde a década de 80 pelos dois primeiros réus e que foi regularizado por estes;
19. Com a água deste furo, os dois primeiros réus abastecem a casa de habitação referida e procedem à rega das árvores de fruto e da horta existentes no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides;
20. Os dois primeiros réus procederam à manutenção e remodelação da casa de habitação;
21. Na parte norte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …11 da freguesia de Melides existe um caminho que é utilizado para trânsito a pé, em veículo automóvel e máquinas agrícolas por quem quer que se desloque de e para os vários prédios rústicos situados ao longo do mesmo, nomeadamente trabalhadores agrícolas, caçadores, prestadores de serviços e transeuntes, de noite e de dia, sem qualquer oposição, à vista de todos, sem interrupção ou violência e na convicção de não causarem prejuízo a ninguém;
22. Ao longo desse caminho não existem portas, portões, cancelas, gradeamentos ou vedações fixas, e o mesmo está aberto ao trânsito de qualquer pessoa sem qualquer autorização prévia, sendo a sua manutenção feita periodicamente pela Junta de Freguesia de Melides;
23. Os dois primeiros réus implantaram uma vedação em rede no perímetro do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, concretamente, excluindo dessa vedação uma porção correspondente a parte da parcela 4 e à parcela 5 do artigo cadastral …2 da secção L;
24. Os primeiros dois réus construíram uma casa do furo e instalaram uma estação de electro – bombas no furo já existente;
25. Efectuaram a instalação de uma rede de água desde o furo até à casa de habitação e de uma rede de água para rega da horta e das árvores de fruto;
26. Construíram uma fossa séptica e construíram e pavimentaram a entrada do prédio.
E foram considerados não provados os seguintes factos[8]:
A) - Os Réus DD e EE tenham pago ao Réu FF, pela compra do prédio supra identificado, o preço de € 35.000,00;
B) - O réu FF, ao assinar a declaração de folhas 29, tenha tomando consciência do seu conteúdo;
C) - O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, constitua um espaço circundante ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …5 utilizado para cultivo de produtos agrícolas destinados exclusivamente ao consumo do agregado familiar dos dois primeiros réus e a fins recreativos e de lazer, nunca tendo sido utilizado para exploração agrícola;
D) - Em 1987, os primeiros dois réus negociaram a aquisição desta casa de habitação com HH, tia da primeira ré e viúva de GG, tendo formalizado este negócio com os herdeiros de GG e HH que eram Hélder O… e Nazaré O…;
E) - Desde 1988 que os dois primeiros réus passaram a utilizar a parcela de terreno que constitui o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, onde passaram a cultivar uma pequena horta, procedendo à sua limpeza e à plantação de árvores de fruto, videiras, oliveiras, pessegueiros, macieiras, limoeiros, laranjeiras, nogueiras e diospireiros;
F) - Desde 1988 que os dois primeiros réus agem sobre o terreno e a casa de habitação na convicção de que são seus donos, suportando todas as despesas de manutenção e cultura e recolhendo os respectivos frutos, sem violência, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, designadamente do terceiro réu;
G) - O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, confronta a sul apenas com caminho público que se inicia na Estrada Nacional que liga Melides a Santiago do Cacém e termina na Estrada Municipal que liga Melides à Lagoa de Santo André;
H) - A fossa séptica referida em 25. tenha a área de 3 metros quadrados;
I) - As obras supra referidas em 23. a 25. tenham trazido ao prédio uma valorização de € 110.000,00.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Da impugnação da matéria de facto
(…).
Pelo exposto, na parcial procedência da pretendida reapreciação de facto, altera-se a matéria de facto ora identificada como alínea C), excluindo-se dos factos não provados, e passando a constar do elenco dos factos provados, nos seguintes termos:
Desde a sua aquisição pelos RR., o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º 2939/20110524, da freguesia de Melides, em redor do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 525, é utilizado numa pequena parte para cultivo de produtos agrícolas destinados exclusivamente ao consumo do agregado familiar dos dois primeiros réus, e para fins recreativos e de lazer, não tendo sido utilizado para exploração agrícola.
Passemos, pois, à apreciação da segunda questão.
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III.2.2. – Do direito de preferência
Os Apelantes aceitaram a declaração de nulidade da escritura de justificação notarial, por simulação das declarações negociais que lhe estiveram subjacentes, conforme decorre da não impugnação do ponto 1.1. da sentença recorrida, e porque os favorece, nada obstaram à declaração de validade do negócio de compra e venda, que havia sido pedida pelos Autores como pressuposto da possibilidade do exercício do direito de preferência.
O objecto do recurso tal como vem desenhado, encontra-se, pois, limitado, na parte que ora importa, à procedência do direito de preferência invocado pelos autores, relativamente à aquisição da parte rústica do prédio objecto da presente acção.
Ora, a possibilidade do exercício do direito de preferência ou prelação através da acção de preferência prevista no artigo 1410.º do CC, pressupõe a violação da obrigação de preferência, pela consumação da alienação sem satisfação do dever de comunicação previsto no artigo 416.º do CC.
Na verdade, conforme decorre do n.º 1 deste preceito legal, querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
Conjugando os dois preceitos em apreço, podemos surpreender duas fases distintas no desenvolvimento da relação de preferência[9].
Na primeira fase - que se inicia no momento em que o obrigado à preferência decide realizar o negócio de alienação e se desenvolve até à respectiva realização -, o preferente goza de um direito creditório à notificação do negócio projectado, do direito potestativo de declarar preferir, e finalmente do direito creditório de exigir que consigo seja realizado o negócio. Portanto, esta fase integra direitos de crédito e potestativos tendentes a assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição por via negocial do direito e está tutelada no artigo 416.º do CC.
Na segunda fase - que se verifica quando o obrigado à preferência, estando decidido o negócio, omite avisar o preferente -, a lei atribui-lhe o direito potestativo de, através da acção de preferência, se substituir ou subrogar ao adquirente no contrato que este celebre com o obrigado à prelação, direito este que não incide sobre o bem, mas, como se referiu, sobre o contrato, e se mostra prevenido no citado artigo 1410.º.
No caso dos autos, os autores invocaram e provaram que o Réu não lhes fez qualquer comunicação da venda da parte rústica do prédio objecto dos autos, donde decorre que esta acção, cuja principal causa de pedir é a transmissão da propriedade da coisa[10], permite, em caso de procedência, que o autor se substitua ao adquirente no contrato celebrado, desde que por via do depósito previsto no dito artigo 1410.º, garanta ao adquirente o recebimento do preço pago, depósito que também se mostra comprovado.
Ora, conforme decorre dos artigos 63.º e 68.º do petitório inicial os autores basearam o seu pedido no disposto nos artigos 1380.º e 1409.º do CC.
Dispõe o artigo 1380.º, n.º 1, do CC, que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
Trata-se de um direito legal de aquisição que depende da verificação dos seguintes requisitos: i) - ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) - que o preferente seja dono de prédio confinante com o alienado; iii) - que um dos prédios tenha área inferior à unidade de cultura; iv) - que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante”[11].
O ónus da prova destes requisitos incumbe, como é evidente, aos autores ora Recorridos que se arrogam titulares do direito de preferência, isto por estarmos perante factos constitutivos desse invocado direito – artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Como é bom de ver, o objectivo da lei ao favorecer o emparcelamento é o de permitir a unificação de terrenos que confinam entre si, a fim de formar prédios com uma maior dimensão que permitam uma maior rentabilidade e produtividade da actividade rural, inserindo-se numa série de disposições legais (artigos 1376.º e seguintes) que visam lutar contra a excessiva fragmentação da propriedade rústica.
No caso que nos ocupa encontra-se demonstrado documentalmente que o prédio dos autores está registado como sendo um prédio misto, com a área total de 12140 m2 e o prédio adquirido pelos primeiro e segunda réus é igualmente um prédio misto, com a área total de 1,875m2, cuja parte rústica - única em causa na presente acção -, tem a área de 1,8380ha, e cuja área de construção foi calculada pelo Senhor Perito como tendo 37m2, sendo os indicados prédios contíguos confinando, respectivamente, na parte norte e sul um do outro.
Como ambos os prédios estão descritos na Conservatória do Registo Predial como prédios mistos, em primeiro lugar, cumpre referir que conforme decorre do disposto no artigo 204.º do CC, a lei civil não conhece o conceito de prédio misto.
Este conceito encontra-se definido no artigo 5.º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis do qual resulta que sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal, mas, se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.
Conforme afirmou o Supremo Tribunal de Justiça[12], «Na definição fiscal do conceito consagra-se, a nosso ver, um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável o prédio é considerado misto.
Temos, assim, que o prédio misto é um tertium genus, já que os prédios, devem sempre que possível, ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.
A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.
MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Parte Geral”-Tomo II – págs. 121 e segs., debruçando-se sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, refere que a doutrina portuguesa mais recente aponta quatro teorias: “Teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social”.
Depois de escrever ser de sua autoria uma proposta de distinção, “segundo a qual os prédios são rústicos ou urbanos consoante, na comunidade jurídica, sejam havidos por terrenos ou por construções” – “Direitos Reais”, 274 – e analisar aquelas teorias, escreve – págs. 123 e 124: “Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício, com o logradouro.
Vamos avançar a partir da fórmula do artigo 204º do Código Civil, na linha da teoria da afectação económica.
Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especialidade dos critérios fiscais…, bem como o tipo de descrição predial…; além disso, a lei não admite, aqui, o qualificativo de “prédio misto”…
Temos, depois, os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos: um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por um edifício é, seguramente, urbano.
E como a construção é obra humana, podemos concluir que o proprietário pode, por essa via e dentro da lei, transformar o prédio e logo determinar a sua natureza rústica ou urbano.
Finalmente e ainda em pano de fundo: por defeito, os prédios são rústicos.
Não sendo possível qualificá-los como um edifício (ainda que com logradouro), impõe-se a rusticidade”.
O critério da afectação económica como ponto de partida para a qualificação dos prédios, foi seguido no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.1.1991, in BMJ 403, 416:
“I – Os prédios mistos são uma verificação de facto que não jurídica porque a lei civil não autonomiza tal categoria.
II – O prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação.
III – Não se pode dizer que um prédio tenha deixado de ser um prédio rústico porque não perdeu a sua destinação autónoma para fins agrícolas com a construção de uma habitação que constitui não uma alteração da destinação económica do prédio mas antes a conjugação dos interesses habitacionais dos proprietários com os interesses económicos da exploração agrícola do prédio”.
Importa, ainda, porque no prédio considerado misto existe um logradouro, conceito que a lei não define, afirmar que este Supremo Tribunal, em Acórdão de 25.03.1993, CJ-STJ, I, considerou:
“I – A parcela de terreno, contígua a casa de habitação, tanto pode ser considerada como terreno rústico, como logradouro da casa.
II – Na ausência de definição legal, por logradouro pode entender-se o terreno contíguo a prédio urbano que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele, constituindo um e outro uma unidade”.
“Um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial” – Ac. deste Tribunal de 6.7.1993, in BMJ, 429-761 Mais desenvolvidamente pode ler-se no citado Acórdão – “Quanto à expressão “logradouro”, civilisticamente, ela tem assento no nº2 do artigo 204° do Código Civil; aí se diz que se entende por “prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”. Daqui decorre que o logradouro sendo, basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício. Logradouro é uma palavra, semanticamente, decorrente de “lograr”, isto é, “gozar, fruir, desfrutar” (Dicionário Enciclopédico, Koogan Larousse, I, pág. 516); é, na circunstância, essencialmente, “fruir”. Portanto, logradouro, é o que pode ser logrado ou fruído por alguém; ou seja e fazendo apelo ao seu cariz complementar, em princípio por quem fruir o edifício correspondente”» - fim de citação.
Aplicando estes princípios da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, importa atentar quanto ao caso em apreço, que os autores apenas se referem ao prédio rústico, sendo essa evidentemente a sua afectação principal até pela manifesta diferença entre as áreas urbanas e rústica das quais resulta ser esta a principal afectação do imóvel, donde nada impede a preferência por se tratar de um prédio denominado “misto”.
Assente esta questão importa agora atentar que o DL n.º 384/88, de 25 de Outubro[13], veio estabelecer em novos moldes o regime jurídico do emparcelamento rural, modificando o regime da preferência legal relacionada com os minifúndios, ao estabelecer no respectivo artigo 18.º que os proprietários de terrenos confinantes, quando um deles tenha área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência, qualquer que seja a área do outro.
«Assim, a preferência continua a ser um direito recíproco, que se aplica não só à alienação de minifúndios como também à venda de prédios de área igual ou superior à unidade de cultura, e que aproveita ao mesmo tempo, quer aos donos de minifúndios, quer aos proprietários de prédios com área superior à unidade de cultura, desde que o prédio de um deles (seja o do titular da preferência seja o do obrigado à preferência) seja inferior à unidade de cultura.
O direito recíproco de preferir, estabelecido por este normativo, a favor dos donos dos prédios confinantes, existe, pois, desde que um dos terrenos confinantes tenha área inferior à unidade de cultura[14]».
Acresce ainda lembrar que, em face do Assento tirado no Supremo Tribunal de Justiça em 17-05-1986[15], «o direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º do Código Civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes».
Vejamos, portanto, qual é a área inferior à unidade de cultura aplicável à região.
A Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, define as áreas de cultura para as diversas regiões do país, fixando-a para a região a Sul do Tejo, onde os terremos em causa se situam, em 2,50 hectares para os terrenos de regadio destinados a cultura arvense, e em 0,50 hectares para os terrenos hortícolas.
Não estabelecendo a lei um critério delimitado relativamente ao que deve ser entendido por terrenos arvenses, hortícolas ou de sequeiro, tal classificação há-de encontrar-se, em concreto, na natureza e características físicas dos terrenos, na aptidão de que são dotados e na espécie de cultura a que normal e predominantemente são destinados e lhes convém para seu racional aproveitamento e eficiente exploração.
Assim, a cultura arvense, está associada à ideia de terra lavrada, tendo por objecto plantas herbáceas, anuais ou vivazes, de extensão relativa e geralmente rotativa, muitas vezes associada à alimentação dos animais, só excluindo em rigor as culturas arbustivas, arbóreas e florestais, enquanto a horticultura tem por objecto a cultura contínua e intensiva de legumes e hortaliças, destinadas à alimentação humana, e o sequeiro reporta-se a culturas como o trigo, a cevada e o centeio.
Ora, os autores não alegaram qual o tipo de cultura praticada em cada um dos terrenos, reportando-se apenas ao que consta nos documentos que juntaram.
Assim, da certidão da Conservatória do Registo Predial junta a fls. 24 e da caderneta predial rústica de fls. 26, consta que a parcela 1 do terreno dos autores tem pinhal numa área de 1,203200, enquanto do documento junto a fls. 27, conjugado com o relatório pericial, resulta que o terreno adquirido pelos Réus, na parte das parcelas 3, 4, e 5, que o constituem compõe-se de cultura arvense e vinha, resultando ainda evidente das fotografias acima referidas que o mesmo é também composto por pinhal.
Assim, em face do que consta na matéria assente deve, portanto, concluir-se que tanto o prédio pertencente aos AA. como o prédio vendido têm uma área inferior à unidade de cultura arvense fixada para a região em 2,5 hectares.
Deste modo, tendo ambos os terrenos uma área inferior à unidade de cultura, mostra-se verificado este requisito para exercício do direito de preferência, já que, como acima afirmado, o mesmo não depende da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes.
Acresce ainda que os autores alegaram, e provaram, que os adquirentes não são donos de qualquer prédio, confinante com o prédio vendido.
Portanto, urge concluir que os Autores demonstraram todos os requisitos “positivos” de que depende o exercício do seu invocado direito.
Porém, estabelece o artigo 1381.º do CC - que rege sobre casos em que não existe o direito de preferência -, que não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes, a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.
No caso em apreço, em face da alteração da matéria de facto, mostra-se provado que desde a sua aquisição pelos RR., o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o n.º …24, da freguesia de Melides, em redor do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …25, é utilizado numa pequena parte para cultivo de produtos agrícolas destinados exclusivamente ao consumo do agregado familiar dos dois primeiros réus, e para fins recreativos e de lazer, não tendo sido utilizado para exploração agrícola. Portanto, é inequívoco que o prédio assim constituído se destina a um fim que não é a cultura.
Aplicando, pois, ao caso vertente os princípios da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, importa atentar que no caso em apreço, quando os réus adquiriram o prédio em causa já ali se encontrava edificada uma casa de habitação que havia pertencido a GG e que foi por este remodelada em 1965, tendo ali procedido à abertura de um furo em 1970, sendo que desde a década de 80 os Réus DD e EE passaram a frequentar, como casa de férias, a referida casa que constitui o artigo matricial urbano …25, tendo procedido à regularização desse furo, com cuja água abastecem a casa de habitação referida e efectuam a rega das árvores de fruto e horta, mas não para aí desenvolverem qualquer tipo de exploração económica agrícola, tendo ainda curado da manutenção e remodelação da casa de habitação, sempre seria de questionar se o direito de preferência se encontraria afastado pela aplicação da excepção constante na referida alínea a) do artigo 1381.º
Não obstante, outra questão, e decisiva, sempre obstaria à procedência da acção, enquanto circunstância impeditiva da preferência que os AA. pretendem exercer.
Na realidade, não pode este tribunal, decretar a procedência da acção e, constitutivamente, a aquisição por banda dos AA. do direito de propriedade sobre o prédio ali descrito, pela simples mas evidente razão de que, a constituição do mesmo, nos moldes ali indicados, dependeria da desanexação da área de 1,8380hectares de um prédio rústico, o do artigo …2, secção L, que tem a área total correspondente à soma das suas parcelas acima indicadas, que perfazem, 2,675 hectares. Significa isto, que tal desanexação, que seria prévia à aquisição potestativa do direito a decretar pelo tribunal, corresponderia ao destaque de uma área inferior à unidade mínima de cultura, ficando o restante prédio igualmente com área inferior à da cultura, o que a lei proíbe expressamente, conforme decorre do disposto no artigo 1376.º e 1379.º, n.º 1, do CC.
Pelas mesmas razões, não pode proceder o segmento decisório antecedente - que declarou a validade do negócio de compra e venda de prédio a destacar -, porque o mesmo na economia da acção não tem autonomia relativamente ao pedido formulado pelos autores de exercício do direito de preferência na aquisição do prédio por banda dos Réus, pedido que, por via dos indicados preceitos legais, não pode proceder porque tal prédio não pode ser destacado do prédio mãe.
Conclui-se, pois, que verificando o tribunal que o decretamento do direito de preferência sobre o prédio em causa, implicaria, em rectas contas, a violação de comando legal imperativo, tal sempre constituiria obstáculo intransponível à procedência da acção.
Pelo exposto, ainda que por razões diversas das invocadas, procede nesta parte a apelação.
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III.2.3. - Da litigância de má fé
Insurgem-se os Recorrentes quanto à sua condenação como litigantes de má-fé, invocando, em suma, que não foi com base em factos inverídicos que pediram a improcedência da acção, e que a litigância de má-fé, exige de quem pleiteia a consciência de não ter razão.
Vejamos.
Dispõe o artigo 542.º, do CPC, para o que releva na apreciação da questão relativa à litigância de má fé, o seguinte:
“1. Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (…)

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”

Trata-se de norma que reproduz o que anteriormente constava no artigo 456.º do CPC, relativamente ao qual havia já abundante jurisprudência, com entendimento firmado e que continua a ter plena aplicação.
Efectivamente, a redacção do preceito nos termos em que actualmente se encontra, foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, visando consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Visou-se assim estender a possibilidade de condenação da parte como litigante de má fé, também aos casos de actuação com negligência grave, já que anteriormente se cingia apenas à respectiva actuação dolosa. “O elemento subjectivo é, pois, um pressuposto constitutivo da figura”[16]. Portanto, “com a reforma de 95/96 passou-se a sancionar a litigância temerária (sublinhado nosso) ao lado da litigância dolosa, como integrando o conceito de litigância de má fé.
As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento”[17].
De facto, quer o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, quer o direito de defesa por banda daquele contra o qual a pretensão é deduzida, assenta, dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correcção, devidos ao tribunal e à parte contrária, deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto. Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respectivo cumprimento, sancionar aqueles que adoptam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º do CPC, seguramente actuações censuráveis, a merecer reprovação pelos tribunais e que nem sequer estão dependentes do pedido das partes nesse sentido.
Acresce que, a litigância de má fé assenta sobre o comportamento processual das partes, apreciado com base na sua actuação na lide, globalmente considerada, daí que a decisão possa ser alicerçada quer nos factos alegados pelas partes quer ainda em quaisquer outros factos ou actuações que constem dos autos e que evidentemente são do conhecimento das partes podendo consequentemente estas pronunciar-se sobre tal, como ocorreu no caso em apreço e flui da decisão recorrida [18].
Podemos, pois, assentar que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de acção ou de defesa, a conduta das partes só deve ser censurada por via deste instituto quando tenham actuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 542.º do CPC. Por isso que, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as meras situações de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado.
Inversamente, as condutas que integram tais comportamentos censuráveis a título de dolo ou negligência grave, e de lide considerada temerária, são amiúde alvo de condenação pelos tribunais, confirmadas, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, extraindo-se dos vários exemplos de condenação o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé[19], sendo exemplo de situações consideradas como de correcta condenação por litigância de má fé pelo STJ aquelas em que: “o Autor, durante quase toda a lide, alterou a verdade acerca dos salários auferidos (…), é de considerar que o mesmo não foi apenas confuso e imprudente; foi temerário, actuando na «cobiça» da indemnização a qualquer título querida”[20].
Ora, extrai-se de todos estes mencionados exemplos o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé.
Assentes estes princípios e enquadrados pelos exemplos que antecedem, voltemos ao caso dos autos para decidir afirmando desde já que, independentemente do desfecho da acção, a defesa apresentada pelos RR. configura claramente uma actuação intencional e temerária da sua parte, com vista a dificultar o exercício do direito que sabiam poder assistir aos autores.
Louvamo-nos nesta parte no segmento mais relevante da fundamentação da Senhora Juíza, quando referiu que «os RR. DD e EE, ao repetirem, entre o mais, em sede de contestação, que adquiriram por usucapião o prédio objecto do litígio, tal como já o tinham feito na escritura de justificação notarial, vieram apresentar uma versão flagrantemente desconforme à verdade, como notoriamente se verificou em sede de audiência de julgamento quando, nos respectivos depoimentos de parte, confessaram expressamente tal factualidade, conforme resulta da acta da audiência e das assentadas dela constantes.
Por outro lado, tanto estes RR. como o Réu FF tentaram impedir que se conhecesse o valor do preço pelo qual transaccionaram o imóvel, não permitindo o acesso aos respectivos dados bancários, o que apenas foi possível através do incidente, processado por apenso, de levantamento do sigilo bancário. Vieram, porém, em sede de audiência, confessar expressamente o preço da transmissão, mas é notório que, quando o fizeram, não apagaram a má fé processual que já haviam consumado, pois que sabiam ter entorpecido de forma grave a acção da justiça.
Não podiam os RR. ignorar, pois, que as condutas processuais que empreenderam contrariam os deveres de boa fé e honestidade que devem pautar a conduta dos litigantes duma acção judicial».
Por isso que, à luz do preceito legal supra citado e dos ensinamentos retirados dos referidos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, a outra conclusão não se pode chegar do que àquela que levou a Senhora Juíza à condenação dos Réus como litigantes de má fé, ou seja, que os mesmos alteraram intencionalmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento a respeito do negócio celebrado, tanto mais que, pelo menos parcialmente os vieram a confessar em audiência, e tentaram obstar a que se conhecesse, por via do pagamento efectuado e sua data, qual o negócio que quiseram realmente efectuar, prosseguindo nessa senda ao persistir na defesa de que apenas quiseram adquirir a parte vedada do prédio, tudo fazendo com o fito de tentar obstar ou, pelo menos, dificultar de forma inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei lhes impõe, a descoberta da verdade material e a justa-composição do litígio.
Ora, em síntese clara do sobredito louvamo-nos no juízo efectuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, onde se afirmou que “as partes, recorrendo a juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas aos deveres de cooperação, probidade e boa fé com o tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os tribunais.
A actuação processual do litigante de boa fé postula uma actuação verdadeira, correcta no tempo e modo processuais, não se compadecendo com subterfúgios e meias verdades, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias que, prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o tribunal à célere e correcta percepção da realidade.
Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável.
Também actua de má fé a parte que litiga com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, a que o tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo da realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio.
Se é certo que o direito de recorrer aos tribunais para aceder à justiça constitui um direito fundamental – art. 20.º da CRP – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art. 456.º do CPC”[21].
Desta sorte, aplicando-se de pleno o que vem de dizer-se ao caso em apreço, conclui-se que os Réus foram, e bem, condenados como litigantes de má-fé, em montante igualmente adequado, posto que, de acordo com o disposto no artigo 27.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, a multa deve ser fixada entre 2 e 100 unidades de conta, tendo sido fixada em 15 UC´s, e a indemnização calculada como sendo adequada a ressarcir os autores por tal facto, em 2.000,00€.
Nestes termos, improcede a pretensão dos Recorrentes quanto à revogação da respectiva condenação como litigantes de má-fé.

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III.3. Síntese conclusiva:
I - O direito de preferência previsto no 1380.º, n.º 1, do CC, é um direito legal de aquisição que depende da verificação dos seguintes requisitos: i) - ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; ii) - que o preferente seja dono de prédio confinante com o alienado; iii) - que um dos prédios tenha área inferior à unidade de cultura; iv) - que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante”.
II - O artigo 204.º do CC não se refere ao prédio misto, encontrando-se este conceito definido no artigo 5.º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aplicando-se os princípios da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, em face da principal afectação do imóvel, nada impedindo o exercício do direito de preferência por se tratar de um prédio denominado “misto”.
III - Ainda que se encontrem demonstrados os requisitos positivos do direito de preferência, não pode o tribunal decretar a procedência da acção e, constitutivamente, a aquisição por banda dos AA. do direito de propriedade sobre o prédio objecto da acção, se a constituição do mesmo depende da prévia desanexação de uma parte de um prédio rústico com a área inferior à unidade mínima de cultura, ficando o restante prédio igualmente com área inferior àquela, implicando, por isso, o decretamento do direito de preferência sobre o prédio em causa, a violação de comando legal imperativo, o que constitui obstáculo intransponível à procedência da acção.
IV - O incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé, ainda que o desfecho da acção venha a ser favorável a essa parte.
V - Justifica-se a condenação dos Réus como litigantes de má fé, se os mesmos alteraram intencionalmente a verdade de factos essenciais, que eram evidentemente do respectivo conhecimento a respeito do negócio celebrado, e tentaram obstar a que se conhecesse, por via do pagamento efectuado e sua data, qual o negócio que quiseram realmente efectuar, tudo fazendo com o fito de tentar obstar ou, pelo menos, dificultar de forma inaceitável em face da lisura e probidade processual que a lei lhes impõe, a descoberta da verdade material e a justa-composição do litígio.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, na parcial procedência da apelação, em revogar a sentença recorrida, absolvendo os Réus dos pedidos identificados em 1.2. a 1.4. da decisão, e confirmando a respectiva condenação como litigantes de má fé.
Vencidos, os AA./apelados suportam as custas devidas em primeira instância e as custas de parte dos recursos interpostos pelos RR./Apelantes, atento o princípio da causalidade, e de harmonia com o preceituado nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC, sem prejuízo da condenação dos RR. como litigantes de má-fé.
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Évora, 10 de Outubro de 2019
Albertina Pedroso [22]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

__________________________________________________
[1] Juízo Central Cível de Setúbal, Juiz 4.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CC.
[4] Na qual as alterações efectuadas à primeira foram destacadas “a negrito”, para maior facilidade de apreensão.
[5] Questão objecto de despacho liminar da ora Relatora.
[6] Correspondendo os sublinhados a negrito às alterações introduzidas no confronto com a primeira decisão.
[7] Para melhor esclarecimento, a este facto foi aditada pela primeira instância, a nota de rodapé 1, com o seguinte teor: «O facto agora dado como provado sob este ponto 7 foi aditado, o que implicou a renumeração dos factos que haviam sido dados como assentes, a partir do nº 7, na sentença de 11.02.2017».
[8] Aos quais agora se introduz correspondência por alíneas para facilitar a identificação da matéria de facto impugnada.
[9] Seguindo de perto HENRIQUE MESQUITA, in “Obrigações Reais e Ónus Reais”, pág. 225 e segs.
[10] Cfr., neste sentido, LACERDA BARATA in “Da Obrigação de Preferência”, pág. 152.
[11] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, págs. 270 e 271, consideram que o proprietário que se apresenta a preferir deve ser o dono do prédio com área inferior à unidade de cultura.
[12] Cfr. Acórdão do STJ, de 28-02-2008, processo n.º 08A075, disponível in www.dgsi.pt.
[13] Aplicável ao caso presente, uma vez que nem o novo Regime Jurídico da Estruturação Fundiária, introduzido pela Lei n.º 111/2015, de 27/8, nem a Portaria n.º 219/2016, de 9/8, se encontravam em vigor à data da instauração da presente acção, em 25.05.2012.
[14] Cfr. Acórdão do STJ de 04-10-2007, processo n.º 07B2739, disponível in www.dgsi.pt.
[15] Publicado no DR - 1.ª SERIE, Nº 113, de 17.05.1986, pág. 1169, hoje com o valor de Acórdão Uniformizador.
[16] Cfr. PEDRO DE ALBUQUERQUE, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina 2006, pág. 92.
[17] Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível no sítio www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, do qual constam ainda todos os sumários de acórdãos que se irão referir sem outra menção de fonte.
[18] Ac. STJ de 26-04-2012, Agravo n.º 81-E/1999.S1 - 7.ª Secção.
[19] Cfr. a título exemplificativo o Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção.
[20] Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção.
[21] Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção.
[22] Texto elaborado e revisto pela Relatora.