Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2450/10.5TVLSB.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
O despacho proferido a indeferir liminarmente o incidente de habilitação, entendendo que o mesmo, tendo sido requerido depois de ter sido proferido o acórdão pelo qual se julgou definitivamente a ação, altura em que estavam já findos os termos desta, era manifestamente intempestivo, uma vez transitado em julgado, faz caso julgado formal, impedindo que posteriormente venha o tribunal a proferir novo despacho de sentido contrário.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

B… e C…, intentaram ação declarativa de condenação contra Banco D…, SA e Outra, peticionando destes o pagamento de uma indemnização de € 45 000,00, alegando ter o réu Banco violado os deveres de verificação de regularidade de endosso referente a um cheque cruzado, vindo a ação a ser julgada, com condenação do Banco a indemnizar os autores na quantia de € 45 000,00, acrescidos dos juros de mora, decisão esta, imposta pelo STJ, a qual transitou em julgado em 16/04/2015.
Em 18/06/2015, após o processo ter baixado do STJ à 1ª instância foi proferido o seguinte despacho:
“Para efeito da alteração da posição processual do ex Banco D…, SA aqui réu, dê conhecimento ao E…, SA do teor do acórdão decisório porquanto passará a figurar nessa qualidade processual.”
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Irresignado, com esta decisão, veio o E… S.A. interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
1.ª Existem razões de ordem processual e de ordem substancial, que impõem a revogação do douto despacho recorrido.
Do ponto de vista processual
2.ª O presente recurso tem por objeto o douto despacho de 18 de Junho de 2015, com a Ref.ª 67966211, do seguinte teor: “Para efeito da alteração da posição processual do ex Banco D…, S.A. aqui réu, dê conhecimento ao E…, SA do teor do acórdão decisório porquanto passará a figurar nessa qualidade processual”.
3.ª Por via deste despacho, o Tribunal recorrido investiu o Recorrente E…, S.A. na posição processual de Réu nos presentes autos, com a inerente consequência de sobre o mesmo passarem a recair as obrigações decorrentes da douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
4.ª Perante as decisões proferidas nos autos principais e no Apenso A do incidente de habilitação, o douto despacho recorrido, ao decidir, como decidiu, acabou por, na prática, julgar habilitado o E…, S.A., colocando-o na posição processual até então ocupada nos autos pelo Réu Banco D…, S.A., contrariando o que, em sentido contrário, já havia sido decidido pelo STJ.
5.ª O douto despacho recorrido é manifestamente ilegal.
6.ª Em primeiro lugar, porque quando o Meritíssimo Juiz “a quo” proferiu tal despacho, o processo estava definitivamente findo, tendo já então transitado todas as decisões no mesmo proferidas. O poder jurisdicional do Juiz estava totalmente esgotado, extinto, face ao que dispõe o artigo 613.º do CPC.
E, por isso, o Meritíssimo Juiz “a quo” decidiu, sem estar munido dos poderes para o efeito, o que acarreta a nulidade da decisão proferida.
7.ª Tendo o STJ indeferido o incidente de habilitação, por via do qual o Banco D… pretendia ver o Recorrente investido na posição processual de Réu, até então por aquele ocupada, decisão que já havia transitado em julgado na data em que foi proferido o douto despacho recorrido, este, mesmo que o seu autor tivesse poderes para o proferir, violaria, de qualquer modo, a situação efetivamente existente de caso julgado formal, previsto no artigo 620.º do CPC.
Do ponto de vista substancial
8.ª O Banco Recorrente foi constituído por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 3 de Agosto de 2014, nos termos do n.º 5 do artigo 145º-G do Regime Legal das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, como uma nova sociedade, habilitada a desenvolver a atividade bancária, completamente autónoma e independente do Banco D…, S.A. (vide ata daquela reunião constante do doc. 1).
9.ª Não foram transferidos para o E…, S.A. toda a atividade, nem todos os ativos, passivos, responsabilidades e contingências do Banco, mas apenas um conjunto concreto de ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais deste.
10.ª O perímetro concreto daquela transferência foi vertido no Anexo 2 à primeira daquelas deliberações do Conselho de Administração de Portugal, na versão consolidada que lhe foi dada pela deliberação do mesmo Conselho de 11 de Agosto de 2014 (constante do doc. 2).
11.ª O corpo do n.º 1 desse anexo estabelece uma regra básica daquela transferência: a de que são transferidos do Banco D… para o Banco Recorrente, “os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco D…, registados na contabilidade” (sublinhado nosso). De onde, “a contrario sensu”, só pode concluir-se que os ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais, que não constam da contabilidade, não são transferidos.
12.ª Dessa regra geral enunciada no corpo do n.º 1 do Anexo 2 acima referido, e do disposto no corpo da alínea (b) também desse n.º 1, a transferência das responsabilidades do Banco D… para o E…, é restringida às “responsabilidades perante terceiros, que constituam passivos”.
E que estivessem registados na contabilidade, à data de 3 de Agosto de 2014.
13.ª O mesmo n.º 1 do referido anexo não comporta a transferência de contingências, decorrentes da atividade desenvolvida pelo Banco D… as quais ficaram neste banco, não tendo sido objeto de transferência para o Recorrente E….
14.ª Assim, após a última deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 11 de Agosto de 2014, que estabeleceu a versão consolidada do Anexo 2 à sua deliberação de 3 de Agosto de 2014, que define o perímetro dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do Banco D…, que foram transferidos para o E…, S.A., resulta:
(i) que as responsabilidades do Banco D… perante terceiros que constituem passivos (à data de 3 de Agosto de 2014), registados na contabilidade, foram todas transferidas para o E…, S.A., com exceção das que constam da enumeração dos passivos excluídos.
(ii) que as responsabilidades do Banco D… perante terceiros que não constituem passivos (à data de 3 de Agosto de 2014) não foram transferidas para o E…, S.A., fosse qual fosse a sua origem.
(iii) que todas as contingências não foram transferidas para o E…, S.A., fosse qual fosse a sua origem.
15.ª Nos presentes autos, o direito invocado pelos Autores não constituía, à data de 3 de Agosto de 2014, qualquer passivo do Banco D…, registado na contabilidade deste.
Até porque o Banco D… havia sido absolvido na 1.ª e 2.ª instâncias e a decisão condenatória do STJ só foi proferida em 29 de Janeiro de 2015, em data, por isso, muito posterior a 3 de Agosto de 2014.
16.ª Nos factos em causa nos autos, não esteve envolvido o Recorrente E…, que só foi criado em 3 de Agosto de 2014 e, nesta data, não se estava na presente ação em presença de responsabilidades do Banco D… que constituíssem então, na esfera jurídica deste, passivos constituídos e consolidados. Mas perante a contingência de que o tribunal pudesse (ou não) atribuir qualquer responsabilidade ao Banco D… em virtude da alegação feita pelos Autores, de que aquele pagara mal o cheque a que os autos se reportam.
17.ª Mas mesmo que se entenda que em 3 de Agosto de 2014, e por referência aos presentes autos, se estava perante responsabilidades do Banco D… e não perante contingências, o que se admite por mera questão de raciocínio, sempre estaríamos em presença de responsabilidades que não constituíam passivos consolidados na esfera jurídica do Banco D…, à referida data de 3 de Agosto de 2014, registados na sua contabilidade.
18.ª Porque em 3 de Agosto de 2014 se estava nos presentes autos perante uma mera contingência, do Banco D… ou, quando muito, perante uma responsabilidade daquele que não constituía passivo constituído e consolidado na sua esfera jurídica, registado na respetiva contabilidade, não houve, face às deliberações do Conselho de Administração do Banco e Portugal, de 3 e 11 de Agosto de 2014, qualquer transferência de eventual responsabilidade do Banco D… pelos factos a que os autos se reportam, para o Recorrente E….
19.ª Não existe, por isso, qualquer fundamento legal, que permita que o E… passe a ocupar nos autos a posição processual que ali é detida pelo Banco D….
20.ª O douto despacho é nulo e ilegal, tendo violado, no mínimo, o disposto nos artigos 613.º, 620.º e 356.º todos do CPC., pelo que deve ser revogado

Os autores apresentaram alegações defendendo a manutenção do julgado.
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Apreciando e decidindo

Como se sabe o objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Nas suas alegações, os recorridos vieram levantar a questão da intempestividade do requerimento recursivo, questão que foi apreciada e decidida na 1ª instância por despacho de 24/09/2015, tendo-se concluído pela tempestividade do requerimento recurso, embora sujeito ao pagamento de multa inerente à prática do ato no 3º dia útil subsequente ao termo do prazo, pelo que tendo sido paga a multa e penalização correspondente e não tendo sido tal despacho alvo de impugnação, considera-se a questão solucionada, pelo que, em síntese, caberá apreciar da justeza do despacho impugnado, no qual se afirma a substituição do Banco D… pelo E…, como parte demandada na ação.
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Para apreciação da questão há que ter em conta o seguinte circunstancialismo factual:
- Nesta ação foi proferido acórdão, em 29/01/2015, pelo STJ que transitou em julgado em 16/04/2015.
- Em 18/02/2015, o réu Banco D… requereu no STJ a habilitação do E…, S.A., a fim de que este passasse a figurar nos autos na posição processual daquele em virtude da Resolução operada por deliberação do Banco de Portugal de 03/08/2014.
- Em 30/04/2015, no STJ, foi proferido despacho, transitado em julgado em 14/05/2015, a indeferir liminarmente o incidente de habilitação, entendendo que o mesmo, tendo sido requerido depois de ter sido proferido o acórdão pelo qual se julgou definitivamente a ação, altura em que estavam já findos os termos desta, era manifestamente intempestivo.
- Em 08/04/2015 (nesta data os autos ainda se encontravam no STJ) por requerimento dirigido ao Juiz da Comarca os autores invocando o disposto nos artº. 269º n.º 2 e 263º do CPC, bem como a Resolução do Banco D…, deliberada pelo Banco de Portugal em 03/08/2014, requereram que o réu Banco D… fosse “substituído” pelo E…, SA e fosse este notificado da nota de custas de parte que apresentaram.
- O processo baixou a título definitivo do STJ, dando entrada no Tribunal da Comarca de Santarém, Instância Local de Torres Novas, em 03/06/2015, tendo em 18/06/2015 sido proferido o despacho recorrido.

Conhecendo da questão
No despacho impugnado não são referidas quaisquer normas legais nem é feita referência a qualquer ato ou deliberação, donde emerja o fundamento que conduziu a que o E…, SA passasse a figurar na qualidade processual de réu, presumindo-se que terá sido a medida de resolução aplicada ao Banco D… pelo Banco de Portugal por virtude da deliberação de 03/08/2014.
Defende o recorrente que o Julgador a quo, com a prolação do despacho impugnado, julga-o habilitado para a causa em substituição do Banco D…, o que contraria decisão já anteriormente tomada no processo que tendo por base o mesmo fundamento – a resolução – não aceitou que se operasse a substituição em virtude de “estarem definitivamente findos os termos da presente ação”.
Como regra de ouro dir-se-ia sobre a mesma questão, no processo, não devem, existir decisões contraditórias ou díspares de modo que “o juiz deve respeitar as legítimas expetativas das partes que confiaram no conteúdo da primeira decisão. Ou seja: a proibição de arbítrio decisório, decorrente não só da segurança jurídica, mas também do processo equitativo, sempre limitará a alteração posterior do despacho inicial.” – (v. Rui Pinto in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora de 2014, 397).
O Juiz em determinado processo não pode decidir por forma a possibilitar dar o dito por não dito, relativamente a decisões anteriormente proferidas, sob pena de se subverterem os princípios processuais, designadamente o da confiança jurídica.
O despacho proferido nos autos em 30/04/2015, que em face de findos os termos da ação, não permitiu (independentemente de poder haver motivo para tal, que foi invocado), que se operasse a substituição de demandados, transitou em julgado já que as partes, notificadas do mesmo, conformaram-se com o seu teor.
Tal despacho adquiriu assim, força de caso julgado formal (ou seja, força obrigatória dentro do processo), nos termos do artº 620º do CPC.
O Julgador a quo, ao proferir o despacho subsequente de 18/06/2015 encontra-se limitado pelas anteriores decisões e já não podia decidir diferentemente, como se estabelece no artº 613º, nºs 1 e 3 do CPC, uma vez que proferida sentença ou despacho fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em questão. Ou seja, não é lícito ao Julgador, no processo, dar o dito por não dito.
O princípio da imodificabilidade da decisão, ou da sua irrevogabilidade, consagrado no artº 613º, nºs 1 e 3 do CPC, implica o esgotamento do poder jurisdicional sobre a questão apreciada, obstando a que, fora das condições expressamente previstas na lei (nº 2 do artº 613º), o juiz a altere.
Havendo caso julgado formal o seu cumprimento é obrigatório no processo onde foi proferido (artº 620º, nº 1 do CPC), obstando a que o juiz possa na mesma ação alterar a decisão proferida, mesmo que posteriormente venha a reconhecer que a questão possa ter sido mal julgada.
O Julgador a quo, ao decidir em sentido diferente daquele em que anteriormente já se havia decidido, infringiu a autoridade do caso julgado, por desrespeitados os seus efeitos processuais, ocorrendo a situação de julgados contraditórios, com a consequência de valer a decisão que primeiramente tenha sido proferida (artº 625º, nºs 1 e 2, do CPC).
O despacho impugnado, ao decidir, como decidiu, acabou por, na prática, julgar habilitado o E…, S.A., a fim de ocupar posição processual até aí detida nos autos pelo Banco D…, contrariando o que, em sentido contrário, por estarem findos os termos da ação, já havia sido decidido pelo STJ que negou que se operasse no processo a “substituição” de demandados.
Há que ter em conta que o avanço da relação processual a que alude o artº 620º, nº 1 do CPC, baseia-se em procedimentos de natureza definitiva e preclusiva, os quais ordinariamente, tornam estáveis, dentro do processo, as decisões tomadas pelo juiz, não podendo, ordinariamente, ser discutidas de novo ou contraditadas decisões já tomadas e transitadas em julgado.
Qualquer modificação subjetiva da instância a operar pressupõe que a mesma se encontre em algum dos momentos do seu desenvolvimento e, não quando já se encontre extinta, por ter sido efetuado o julgamento da causa com decisão transitada em julgado [cfr. artº 277º al. a) do CPC].
Tendo o despacho, proferido pelo Conselheiro Relator em 30/04/2015, consolidado nos autos a impossibilidade de “substituição” da parte demandada, pelo facto de estarem definitivamente findos os termos da causa, formou-se caso julgado formal, não podendo aquele despacho deixar de ser tido em conta, pelo Juiz do processo na 1ª instância, não podendo, assim, ser anulado ou revogado quando o mesmo não foi submetido a impugnação via recursiva.
Nestes temos, por razões de ordem formal impõe-se a revogação da decisão impugnada, não havendo necessidade de proceder à apreciação das razões de ordem substancial apresentadas pelo recorrente.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida.
Custas pelos apelados.

Évora, 21 de Janeiro de 2016
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura