Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
529/08.2TAPTG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
PROVA PERICIAL
LEGES ARTIS
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSOS PENAIS
Decisão: NÃO PROVIDOS
Sumário:
I – A não tradução integral para a língua portuguesa de actos orais praticados em língua castelhana é uma nulidade sanável de invocação imediata no próprio acto.

II - O sistema processual penal português não consagra uma figura híbrida de “temoin-expert” ou um sistema de perícias contraditórias, acolhendo um sistema oficial de peritagens, designadamente as de cariz médico-forense. Mas não proíbe a testemunha de “emitir opinião” sobre matéria técnica ou científica que esteja no âmbito dos seus conhecimentos, desde que assente num conhecimento perfeito e não parcial dos factos.

III - A opinião emitida por um médico que seja testemunha no processo que incida sobre matéria médica, não obstante qualificada pelo seu conhecimento profissional, será sempre uma opinião não qualificada, face à opinião pericial.

IV - Assim, o artigo 163º, nº 2 do Código de Processo Penal é aplicável não só à convicção livre e racional do juiz enquanto processo interior mas racional de convicção e posterior motivação, também à apreciação probatória feita pelo tribunal relativamente a vários e diferentes meios probatórios.

V - O nº 1 do artigo 150º do Código Penal é um “não-tipo” ou uma norma de exclusão da tipicidade penal com quatro requisitos ou pressupostos. Não se considera existir ofensa à integridade física se a “intervenção e o tratamento” forem indicados, realizados por pessoa “legalmente autorizada”, não forem violadas as leges artis e se forem realizados com intenção de tratamento.

VI - Tendo o arguido médico, em serviço de urgência, realizado actos médicos de forma necessária e com intenção de tratamento não é possível o preenchimento do tipo contido no artigo 143º do CP.

VII - Mas poderá ocorrer o preenchimento do tipo penal contido no número 2 do artigo 150º do Código Penal se, estando o agente legalmente habilitado, proceder a “intervenção e tratamento” que seja indicado e haja animus curandi, mas ocorrer violação das leges artis e, por isso, se crie “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

VIII – No caso dos autos poderia ocorrer crime praticado fora desta tipologia em caso de dolo de ofensas corporais (i. é, ofensa à integridade física sem intenção de tratamento) ou de dolosa violação das leges artis.

IX - Os relatórios periciais devem assentar em factos e dados suficientes e judicialmente aceites; utilizar princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança; serem devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado. Isto é, revela-se essencial existir uma relação lógica, científica ou técnica entre os fundamentos factuais e metodológicos e as conclusões do relatório.

X - A leges artis são soft law (mollis lex), instrumentos normativos, por natureza não vinculativos, a que o direito constituído, o hard law (dura lex), recorre para definir parâmetros de comportamento seguro, fiável ou desejável, dessa forma conformando aspectos relevantes do dever de agir numa determinada área profissional. Lex artis ad hoc será a forma adequada de tratar um concreto episódio, a aplicação daquelas regras, no caso médicas, a um caso concreto.

XI - A presunção com base no facto probatum só permite a ligação ao facto probandum se aquela se basear num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco, de forma a evitar a mera verosimilhança, o provável, o plausível.

XII - No processo criminal, onde impera a presunção de inocência do arguido, o padrão de prova que pode conduzir à condenação é muito exigente e não se coaduna – para a ultrapasagem daquela presunção de inocência – com o operar de um mero juízo de “preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades” (num juízo equiparado ao matemático, mais de 50%).

XIII - A convicção do tribunal quanto à imputação dos factos ao arguido tem que assentar num juízo de probabilidade muito forte, forte convicção essa que pode ter duas formulações para espelhar a mesma realidade, a anglo-saxónica “proof beyond reasonable doubt” e a continental europeia probabilidade que roça a certeza”.

XIV - Esse juízo deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que permitam concluir com um elevado grau de probabilidade que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido L, casado, médico, nascido a 15 de Janeiro de 1948, natural de Badajoz, Espanha, de nacionalidade espanhola, filho de..., residente..., em Badajoz, Espanha, ao qual havia sido imputada a prática, em autoria imediata e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelos art.º 137.º, conjugado com o art.º 26.º, 1.ª alternativa, art.º 13.º e 15.º al. a), todos do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143.º n.º 1 do Código Penal.

MA constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 609.089,50 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que em consequência da sua conduta, o arguido provocou dor e lesões irreversíveis na bebé que a conduziram à morte, 34 dias após o nascimento, sendo que, durante esse período, permaneceu em estado vegetativo.

Mais alega que o arguido, ao efectuar os toques vaginais à demandante cível e ao utilizar a ventosa e os fórceps, causou-lhe dores e, com a utilização dos instrumentos, rasgou-lhe o tecido vaginal e, posteriormente, suturou-a sem anestesia.

Refere igualmente que, mais tarde, teve necessidade de voltar a ser suturada e de retirar os restos de placenta que não haviam sido extraídos, na íntegra, pelo arguido.

Mais alega que, em consequência da conduta do arguido, sentiu-se angustiada, desesperada, impotente, revoltada, triste e desgostosa, incapaz de dormir e de se alimentar, sendo que esteve com a filha no Hospital onde esta se encontrava, diariamente, até à sua morte, onde tomava as suas refeições.

Refere igualmente que as lesões que lhe foram provocadas pelo arguido lhe deixaram sequelas permanentes e foram causa directa do nascimento prematuro do seu segundo filho F, ocorrido a 12 de Junho de 2011.

Alega também que, com deslocações a Lisboa, refeições aí tomadas e transportes diários para o hospital, despendeu a quantia de € 8.000,00 e com as despesas de funeral, a quantia de € 1.089,50.

Reclama assim, a quantia de € 9.089,50, a título de danos patrimoniais; a quantia de € 400.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela filha até à sua morte e do direito à vida da mesma; a quantia de € 200.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos pela própria demandante em virtude do sofrimento pela perda da filha e estado da mesma antes do óbito e pelos próprios danos que lhe foram, directamente, causados.

A final e por sentença lavrada e depositada a 20-03-2012, veio a decidir o tribunal recorrido:

a) absolver o arguido L da prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art.º 137.º, com referência ao disposto no art.º 15.º al. a) do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143.º n.º 1 do mesmo diploma legal, de que vinha acusado;

b) julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado por MA contra o arguido e, consequentemente, absolvê-lo do pedido;

c) condenar a demandante cível no pagamento das custas da instância cível enxertada nos presentes autos, sem prejuízo do apoio judiciário (art.º 446.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
*
A assistente, MA, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

I - Da Douta Sentença proferida pela Meritíssima Juíza facilmente se verifica o erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.º n.º 2, alínea c) do C.P.P., existindo uma clara contradição entre os factos revelados em Audiência de Discussão e Julgamento e os factos efetivamente provados, e consequentemente, a decisão plasmada na Douta Sentença.

II - Mais, o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, absolveu erradamente o arguido, L, da prática do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artº 137º, com referência ao disposto no artº 15º al. a) do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

III - Face à prova produzida, como acima melhor se explana, somos de concluir que estão preenchidos os elementos dos tipos legais dos crimes acima mencionados, pois, partem de uma correta subsunção dos factos àqueles tipos de crime.

IV - Em suma, ficou cabalmente provado que o arguido praticou ambos os crimes, sem margem para quaisquer dúvidas, não podendo de todo afastar-se a culpa deste, pelo que deve ser condenado pelos crimes em causa.

V - Salvo o devido respeito, considera a Recorrente incorretamente julgados os pontos 7, 22, 28, 29, 39, 40, 41 e 43 da Fundamentação de Facto.

VI - É entendimento da Recorrente e salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo, julgou incorretamente os aludidos factos, porquanto em relação aos mesmos foi produzida prova bastante e irrefutável para que se concluísse pela culpa do arguido e a sua consequente condenação.

VII - Com o depoimento das testemunhas apresentadas pela Assistente, as apresentadas pelo Ministério Público, toda a prova documental junta e a prova pericial produzida, ficou provado, de modo credível, que o arguido praticou os crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física simples, de que ia acusado.

VIII - Assim, também no que concerne ao pedido de indemnização civil, o mesmo deverá proceder, aliás, tendo ficado provado nos presentes Autos tais danos, deverá o arguido ser condenado no pagamento da quantia peticionada, bem como custas e demais encargos com o processo.

IX - Pelo que, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da Sentença recorrida, tendo sido violados Princípios relativos à produção de prova, nomeadamente no que concerne aos testemunhos abonatórios prestados por dois médicos espanhóis, os quais serviram de base à fixação da matéria de facto dos pontos 17, 39 a 41, sendo que estes foram meras testemunhas abonatórias e não dos factos, apresentadas pelo arguido.

X - Na motivação da matéria de facto onde são referidos os pontos 37 e 38 dos factos provados, também aqui, incompreensivelmente, são consideradas as declarações do arguido, corroboradas pela testemunha por este apresentada, Dr. ML, repetindo-se de novo violação dos princípios de produção de prova, consagrados nos artigos 128º e 129º nº3 do Código Processo Penal.

XI - A par dos testemunhos dos médicos acima referidos, foram, incompreensivelmente consideradas as explicações dadas pelo arguido, como se de perito se tratasse, e em igualdade de circunstâncias com a Drª I, testemunha dos factos e o Senhor Professor Doutor PR, Perito Médico, o que viola o artigo 410º nº2 al. c), por estarmos perante um erro notório na apreciação da prova.

XII - Do teor da motivação da matéria de facto é dado como provado o ponto 43 dos factos provados com base nos testemunhos das enfermeiras AB, FS, Drª A, Drª I e nas declarações do perito médico, os quais, segundo a Mmª Juiz estariam em total sintonia relativamente à morosidade de uma cesariana no Hospital de Portalegre, porém tal não decorre do teor de todos testemunhos, designadamente o da Drª I.

Esta testemunha aos 16 minutos e 04 segundos da gravação do dia 19/01/2012 afirma “não, 10-15 minutos está o staff, não mais que isso, estamos todos dentro do hospital”, contrariando-se assim as declarações prestadas pelo arguido relativamente a tal matéria, mais concretamente o que consta da página 23 da motivação da matéria de facto, e, em contradição com o teor da fundamentação da Matéria de Facto e a decisão, encontrando-se assim violado o artigo 410º nº2 al. b) do C.P.P.

XIII - As testemunhas JP, CP e DR, apresentadas pela assistente confirmaram ter tido conhecimento de que na origem do nascimento prematuro do segundo filho da ora Recorrente, esteve a dilaceração do útero provocada aquando do parto da bebé N, factos estes que já haviam sido dados a conhecer, encontrando-se juntos aos Autos, e que não mereceram apreciação por parte do Tribunal à quo.

XIV - Sendo certo que por conta da prática dos aludidos factos, se vê comprometida a faculdade da Assistente em procriar, bem como viu afetado de forma direta o seu filho F, o qual, por ter nascido prematuramente, carece de cuidados especiais, tornando-o vulnerável e frágil em termos de saúde e desenvolvimento.

Ficou confirmado que a Assistente teve necessidade de voltar a ser suturada na zona do períneo o que veio a ocorrer na Urgência do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, para onde se deslocou afim de acompanhar a sua filha N.

Do mesmo modo que se considerou comprovado o facto de lhe terem sido retirados restos de placenta que o arguido não havia extraído na íntegra e que lhe causavam perdas vaginais com odor fétido, o que obrigou desde logo à toma de antibiótico, tal o estado de decomposição dos tecidos que ainda permaneciam no útero da Assistente.

Tendo sido também medicada naquela mesma Unidade Hospitalar, para as fortes dores de cabeça de que padecia.

Ora ao dar-se como provados factos como os que acima se descrevem não poderiam os mesmos deixar de ser valorados e pesar na decisão final, quanto à conduta do arguido, patenteando-se de novo um erro notório na apreciação da prova.

XV - Não pode deixar de referir a Recorrente a expressão utilizada pela Meritíssima Juíza, no dia 12/01/2012 após as 11h26m13seg, concretamente aos 29 segundos de gravação desse mesmo dia, quando afirma, ao dirigir-se ao arguido, “Eu só estou a dizer isso em benefício do sotor... em benefício da verdade e daquilo que se pode dizer”.

Considerando o circunstancialismo que envolveu as declarações do arguido e as da própria assistente, conforme acima se dá a conhecer, não compreende nem aceita esta tal facto, por ser assistente e não arguida, vendo-se obrigada a lidar, com aquilo que considerou ser uma nítida inversão de papéis entre os sujeitos processuais.

XVI - Relativamente ao enquadramento jurídico-penal da factualidade acima descrita e contrariamente à fundamentação apresentada na motivação de direito, considera a ora Recorrente ter ficado cabalmente provado que o arguido efetuou o parto instrumentado sem que a dilatação da parturiente estivesse completa e o polo encefálico do feto tivesse atingido o Plano III de Hodge, violando assim as legis artis, pelo que estamos perante um nexo de causalidade com tal conduta com o resultado morte da bebé N.

XVII - Age o arguido negligentemente porque não procedeu com o cuidado que segundo as circunstâncias estava obrigado e era efetivamente capaz.

XVIII - Constata-se de forma evidente a existência de um nexo causal entre a ação do arguido e o resultado por este obtido, ou seja, o crime de Homicídio por Negligência e de Ofensa à integridade Física.

XIX - Teve este a possibilidade de prever o perigo, sem que tenha adotado uma conduta apta a evitar tal resultado, violando o dever de cuidado, ou seja, das leges artis.

Por outro lado a não consideração de prova verdadeiramente relevante produzida nos autos, permitiu a não imputação ao arguido de condutas de extrema importância, como o são o facto de este ter requisitado análises com carácter emergente, cujo resultado dava a conhecer a existência de uma infeção que deveria ter sido combatida de imediato e que pura e simplesmente o arguido, para além de as não ter visto, nem sequer se recordava de as ter requisitado. (gravação)

De notar que o carácter com que o arguido pede as análises (emergente) possui a mais alta prioridade de resposta laboratorial. De referir que tais análises se encontravam prontas pouco depois das 19h, o que permitiria ter evitado o agravamento da infeção.

Ora, o arguido ao ter requisitado as referidas análises e não as ter apreciado, negligenciou um procedimento médico elementar, violando grosseiramente as legis artis.

Também aqui o Tribunal a quo julga incorretamente ao não levar em linha de conta tais factos.

XX - Ficou provado que aquando da utilização, em primeira mão, da ventosa e depois dos forceps, sem que a parturiente tivesse reunidas as condições necessárias para a realização de um parto instrumentado, lhe foi causada ofensa à integridade física, da qual o arguido ia acusado, com a agravante da dilaceração do colo do útero que mais tarde se veio a comprovar com o nascimento prematuro do seu segundo filho, o que consubstanciaria desde logo a prática por parte do arguido a de um crime de Ofensa à Integridade Fisica Grave p. e p. pelo art.º 144º, alínea b) do C.P..

XXI - Consta também um foco de contusão medular que e conforme o Senhor Perito muito bem explicou não é causada por qualquer infeção, mas sim por lesão traumática. Sendo que, imediatamente se descreve também uma tetraplegia. Até um leigo facilmente relaciona a lesão na medula a nível da vértebra C2 da bebé com a tetraplegia que se veio a comprovar.

Ora o Senhor Perito Médico é perentório quando diz que tetraplegia pode ser causada por uma encefalopatia hipóxico-hisquémica, porém tal nunca ocorreria num tão curto lapso de tempo. Sendo que com a causa direta da força aplicada através dos instrumentos pelo arguido, a bebé que pouco tempo antes se mexia no ventre da mãe, ao ter sido retirada por aquele conforme o foi, deixou de o fazer, porque terá passado a partir desse momento a padecer de tetraplegia, após ter sido alvo de lesão a nível da cervical.

Em bom rigor e conforme consta do Certificado de Óbito junto aos Autos, bem como da Histologia Autópsia ao feto, não é considerada apenas a encefalopatia hipóxico-isquémica de grau III como sendo a causa da morte da bebé N, outras existem, designadamente a atrofia focal da medula em C2.
Sendo de alertar, nesta sequência, que a bebé N possuía um desenvolvimento adequado à sua idade, sem malformações externas ou internas, o que desde logo denota um erro notório na apreciação da prova, uma vez que um feto que se desenvolveu dentro de todos os parâmetros da normalidade e que após o parto passa a padecer de tão graves patologias, como o são a tetraplegia, não se pode dissociar de um ato alheio à bebé, logo causado por terceiros.

Ora e conforme se encontra descrito no Relatório de Autópsia da bebé N, esta faleceu com o vasto leque de complicações possíveis, aí elencadas.

Consta do aludido relatório, para além do referido nos pontos 39, 40 e 41 dos factos provados, a existência de lesões, comprovadas documentalmente por exame complementar de diagnóstico (Ressonância Magnética) como o são a asfixia neonatal gravíssima que e a ter-se em conta o Plano que o médico registou, como sendo o correspondente à hora do nascimento (Plano II), associado ao uso, em primeira mão de ventosas, que segundo o Perito Médico nunca poderiam ter sido utilizadas em tal caso, nem posteriormente os forceps, conforme o fez e consta do ponto 19, o que é consentâneo e explica a asfixia neonatal gravíssima que a bebé sofreu aquando da permanência e passagem pelo canal do parto.

XXII - Relativamente à eventual renovação de prova é entendimento da Recorrente, e salvo melhor opinião, haver, in casu, necessidade de produção da mesma, bem como a apreciação de prova incompreensivelmente preterida, de entre outra, a constante dos pontos 3 e 4 da impugnação da decisão para efeitos de decisão final, a qual certamente modificaria a convicção formada pelo Tribunal a quo.

Termos em que e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao presente Recurso, e em consequência, ser o arguido condenado pelo crime de Homicídio por Negligência p. e p. pelo art.º137º, com referência ao disposto no art.º 15º, alínea a) do Código Penal e pelo crime de ofensa à Integridade Física Simples p. e p. pelo art.º143º, n.º1 do mesmo diploma legal.

No que tange ao pedido de indemnização civil, pelo mesmo deverá ser também condenado, como consequência direta da prática de tais crimes.

Em face do exposto, requer-se a V. Exas., Venerandos Desembargadores, se dignem considerar de nenhum efeito a Douta Sentença ora recorrida e ordenar a consequente realização de novo Julgamento contra o Arguido.
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Responderam ao recurso o Ministério Público e o arguido.

A resposta do Ministério Público foi realizada com as seguintes conclusões:

1º - A Recorrente, assistente MA nos autos à margem identificados, põe em crise a Douta Sentença proferida pela Mma. Juiz a quo, recorrendo de facto e de direito,

2º - Visando obter a condenação do arguido L, pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo artigo 137º com referência ao disposto no artigo 15º al. a) do Código Penal e pelo crime de ofensa à integridade física simples previsto e punível pelo artigo 143º/1 do Código Penal, para tal, alega:

3º - O erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º/2 al. c) do Código de Processo Penal, a violação dos princípios da produção de prova, e ainda a incorrecta fundamentação de facto. ORA:

4º - O erro notório na apreciação da prova não pode ser confundido com a divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que a Mma. Juiz a quo formou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.

5º - Recorrendo da matéria de facto, a recorrente não indicou as provas, que, no seu entender, devem ser renovadas, Contudo, sempre se dirá:

6º - Que o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a segunda instância aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse;

7º - Antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram erros.

8º - O princípio da imediação da prova deve conduzir a que o Tribunal da Relação aceite como correcta a decisão da primeira instância, não sendo esta arbitrária, correspondendo esta a uma das soluções possíveis.

9º - Assim sendo, não se vê razão para que se considere superior ou melhor fundada a convicção da recorrente, essencialmente baseada nas suas declarações, na sua interpretação das provas e nas ilações que delas tira.

10º - Por todas as razões ora aduzidas, entende-se que a Douta Sentença de absolvição do arguido proferida pela Mma. Juiz a quo não deverá merecer qualquer censura, pelo que, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo a mesma nos seus precisos termos.

Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmado a Douta Sentença, nos seus precisos termos.
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A resposta do arguido concretizou-se nas seguintes conclusões:

A matéria de facto considerada provada pela instância recorrida mostra-se lógica, coerente e consentânea com as regras da experiência comum.

Inexiste, por isso, in casu, qualquer dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2 do CPP.

Além disso, a sentença recorrida mostra-se extremamente bem fundamentada, sendo perceptível, ao pormenor, o iter congniscitivo percorrido pelo julgador para alcançar o veredicto a que chegou, seja quanto ao julgamento da matéria de facto, seja quanto à apreciação das questões de direito.

O recurso interposto quanto à matéria de facto provada deve ser liminarmente rejeitado por não observar os requisitos previstos no art.º 412.º n.º 3 do CPP.

Sendo, de resto, evidente que a recorrente não indica quaisquer provas de um eventual erro de julgamento, apenas pretendendo sobrepor a sua convicção pessoal à livre convicção do julgador.

Também não ocorre, no caso sub judice, qualquer violação de princípios ou normas relativos à produção de prova, nem qualquer postergamento dos deveres de isenção e imparcialidade do julgador.

Nestes termos e sempre sem esquecer o douto suprimento de V. Ex.as, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
*
A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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Recurso interlocutório

Entretanto a assistente, em sede de audiência de julgamento e em recurso interlocutório, recorreu do despacho lavrado na acta de audiência de julgamento de 21-02-2012, a fls. 829-831, apresentando as seguintes conclusões:

I- Do Douto Despacho proferido pela Meritíssima Juíza facilmente se verifica uma omissão na análise dos novos factos, trazidos ao processo, dado o indeferimento do requerimento apresentado pela Assistente no decurso da Audiência de Julgamento, onde se requereu a junção aos Autos de certidão extraída do Processo Nº ---/11.4TAPTG, que se encontrava em fase de Inquérito, a decorrer nos Serviços do Ministério Público do Tribunal a quo.

Do teor do Douto Despacho não se extrai fundamentação suficiente para sustentar o dito indeferimento, aplicando-se assim o preceituado no art.º 410.º n.º 1 e alíneas a) e b) do nº 2, do C.P.P..

II- Do teor do Douto Despacho proferido pelo Digno Magistrado do Ministério Público não se poderá depreender que o mesmo pugna pelo indeferimento, mas tão somente pela não autonomização dos factos, ao ler-se que “...porquanto estamos perante factos não autonomizáveis (art. 359º nº2 do Código de Processo Penal) ”. Ora, jamais a Assistente requereu qualquer alteração substancial dos factos, limitou-se apenas a dar a conhecer os novos factos não autonomizáveis e, consequentemente, integradores de uma alteração não substancial dos factos descritos na Acusação, nos termos do Artigo 358º nº1 do C.P.P., preceito este que deveria ter sido aplicado e o não foi.

III- Salvo o devido respeito, não deveria a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo fundamentar o seu despacho numa posição que não nos parece ser de todo a assumida pelo Ministério Público.

IV- No que ao Arguido respeita, nunca a Assistente no seu requerimento pretendeu ofender ou limitar as garantias de defesa e interesses daquele, pretendeu tão somente ver reconhecidos os seus próprios direitos.

V- Ao invocar a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo, diplomas como a Convenção dos Direitos do Homem e a Constituição da República Portuguesa, fê-lo na perspetiva do Arguido, porém e salvo o devido respeito a alusão a tais diplomas deveria ser extensiva à perspetiva da Assistente, a qual vê comprometida a faculdade de procriar e afetada a saúde do seu filho F, o qual nasceu prematuro.

VI- Os factos novos dados a conhecer são suscetíveis de integrar o Crime de Ofensa à Integridade Física Grave, p.e p. pelo Artigo 144º nº1 alínea b).

VII- Ao não serem apreciados tais factos novos, dados a conhecer, inviabiliza-se a descoberta da verdade e, consequentemente, a boa decisão desta causa, vendo assim a Assistente quartados, de forma irreparável, os seus direitos.

VIII- Estando em causa a integridade física da Assistente, a qual é inviolável segundo o preceituado no artigo 25º da C.R.P., impõe-se uma tutela efetiva.

IX – Porque não se conformou a Assistente com o teor da Acusação, serviu-se dos meios processuais ao seu alcance, para dar a conhecer os novos factos (lesões/sequelas resultantes da conduta do Arguido), que dado o seu estado de saúde física, psíquica e emocional, dá a conhecer logo que tal lhe é possível, mas fá-lo.

X- É o próprio Arguido quem, ao afirmar que caso tivesse atuado conforme consta da acusação, teria obrigatoriamente dilacerado o útero da parturiente, aqui Assistente, ora, pasme-se que in casu foi o que ocorreu! Apontada como previsível que foi, por várias testemunhas, inclusivé pelo senhor perito médico, a aludida dilaceração do útero da Assistente.

XI- Face a tal, não é possível dissociar estes novos factos dados a conhecer com os restantes factos, constantes da Douta Acusação, uma vez que uns são causa direta dos outros e se mostram manifestamente imprescindíveis à descoberta da verdade e boa decisão desta causa.

XII- Dada a relevância dos novos factos, não poderão deixar estes de ser apreciados, considerando que ainda não foi proferida qualquer Sentença, tendo sido dados a conhecer tempestivamente, independentemente da fase processual em que o foram, atendendo a que existem disposições que regulam o surgimento de novos factos antes e no decurso do julgamento.

XIII- Salvo o devido respeito, não se compreende como é que após o indeferimento do requerido pela Assistente, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo referiu no seu Douto Despacho que: “...e, sendo caso disso, o tribunal poder sempre lançar mão do disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal”, quando nos encontrávamos na última sessão de julgamento, e se mostrava necessária nova produção de prova quanto aos novos factos, bem como a concessão de prazo para a defesa.

XIV- Considera a Assistente que deveria ter sido aplicado, in casu, o disposto nos Artigos 358º nºs 1 e 3 e 359º nº2, a contrario, ambos do C.P.P.

XV- O indeferimento do requerido pela Assistente traduz-se na não apreciação dos novos factos dados a conhecer.

XVI- Ora, face ao supra exposto, e salvo o devido respeito a não apreciação dos novos factos dados a conhecer, pela sua enorme relevância para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, viola princípios basilares de Direito, ao inviabilizar a apreciação de factos com alto relevo penal, dando azo à impunidade do Arguido.

Termos em que e nos mais de Direito, deve ser dado provimento ao presente Recurso, e em consequência, serem apreciados os novos factos dados a conhecer, os quais consubstanciam uma alteração não substancial dos factos prevista nos artigos 358.º n.º 1 e 3, e o artigo 359º nº 2, a contrario, ambos do C.P.P., bem como ser deferido o requerimento para junção aos Autos de Certidão extraída do Processo Nº---/11.4TAPTG, que se encontrava em fase de Inquérito, a decorrer no Ministério Público do Tribunal Judicial de Portalegre, na qual se encontram descritos expressa e especificadamente tais factos.
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Apresentou o Ministério Público resposta ao recurso interlocutório, com as seguintes conclusões:

1º - O recurso da recorrente é extemporâneo, devendo o mesmo não ser admitido nos termos do disposto no artigo 414º/2 do Código de Processo Penal.

2º - A recorrente põe em crise a decisão da Mma. Juiz a quo de indeferimento da junção aos autos de um certidão de uma participação criminal e declarações da recorrente, relativamente a factos novos, que correram termos nos serviços do Ministério Público de Portalegre sob o n.º ---/11.4 TAPTG, com interesse para a boa decisão da causa e descoberta da verdade.

3º - O inquérito n.º ---/11.4 TAPTG foi arquivado pelo Magistrado do Ministério Público com base no fundamento no princípio ne bis in idem interno.

4º - Sendo certo que a assistente, ora recorrente não reagiu contra o despacho de arquivamento, nomeadamente requerendo a abertura de instrução.

5º - Com efeito, com este inquérito, a recorrente pretendia procedimento criminal contra o mesmo arguido, L, pelos mesmos factos naturalísticos.

6º - Na verdade, nesse inquérito e nos presentes autos, se sindica a mesma conduta do arguido L, mais concretamente ao parto da recorrente, ocorrido no dia 09 de Setembro de 2008 e às sequelas daí advenientes.

7º - Perante o arquivamento do inquérito, a recorrente decidiu então requerer a junção aos presentes autos da certidão da participação criminal e das suas declarações.

8º - Ora, tais elementos não podem ser valorados em sede de audiência de julgamento, por justamente terem sido prestados em sede de inquérito.

9º - Ademais, a assistente, ora recorrente, no momento do seu requerimento já havia prestado declarações em sede de audiência de julgamento no âmbito dos presentes autos, relatando a sua versão dos factos.
10º - É de referir igualmente que os factos apelidados de novos pela recorrente não o são na realidade.

11º - Com efeito, esses factos já constam do pedido cível formulado pela recorrente.

12º - Daí, podermos concluir com toda a certeza, de que a recorrente deles já tinha conhecimento.

Aliás é de notar que o segundo filho da assistente nasceu a 12 de Junho de 2011 e que a notificação da acusação ocorreu em 08 de Julho de 2011 – beneficiando assim dos vinte dias para requerer a abertura de instrução acrescido do período de férias judiciais.

13º - A verdade é que a recorrente conformou-se com os factos constantes da acusação, não requerendo a abertura de instrução.

14º - A recorrente não funda o seu requerimento em factos novos que tenha tido conhecimento no decorrer das sessões de audiência de julgamento,

15º - Esses factos eram conhecidos pela recorrente tanto assim é que constam do pedido cível.

16º - Por todas as razões ora aduzidas entende-se que a decisão de indeferimento proferido pela Mma. Juiz a quo não deverá merecer qualquer censura, pelo que, deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantida aquela decisão nos seus precisos termos.

Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmado a Douta Decisão, nos seus precisos termos.
*
É o seguinte o teor do despacho recorrido e lavrado em acta a 21-02-2012, a fls. 829-831:

“A assistente, estando já em curso, a audiência de discussão e julgamento nos presentes autos, veio apresentar o requerimento constante de fls. 740, requerendo a junção aos autos de uma certidão extraída dos autos de inquérito nº ---/11.4TAPTG que correm termos nos Serviços do Ministério Público deste tribunal.

De tal certidão consta uma queixa apresentada pela ora assistente, um auto de declarações da mesma e um documento.

Justifica a assistente o seu requerimento com a circunstância de "se ter constatado que da conduta do arguido resultaram sequelas para a ora assistente (designadamente a dilaceração do útero), que pela sua gravidade integram o crime de ofensa à integridade física grave segundo o previsto no art. 144º, alínea b) do Código Penal."

Refere igualmente, que "tais factos/sequelas foram causa directa da conduta do arguido, objecto de discussão no presente processo, pelo que se impõe a apreciação dos mesmos, de acordo com o que ora se dá a conhecer".

O Ministério Público e o arguido pronunciaram-se pugnando pelo indeferimento da pretensão da assistente.

Cumpre decidir.

No que diz respeito à junção da certidão ora apresentada aos presentes autos, não pode a mesma ser deferida, já que é totalmente irrelevante para a boa decisão da causa e descoberta da verdade.

Com efeito, o teor da queixa ou as declarações da aqui assistente prestadas num inquérito em curso não podem, natural e obviamente, ser valoradas no âmbito do presente processo.

Além disso, importa referir que a assistente já prestou declarações na audiência de discussão e julgamento em curso nestes autos e relatou a sua versão dos factos, sendo que a mesma será, oportunamente, isto é, em sede de sentença, objecto de análise crítica e valoração em conjunto com toda a restante prova produzida e examinada.

Por outro lado, o documento que consta da certidão cuja junção se requer é uma cópia do que se mostra junto aos presentes autos a fls. 459, com o pedido de indemnização civil.

Em face do exposto, indefiro a requerida junção aos autos da certidão constante de fls. 741 a 748 e determino a sua devolução à apresentante.

Pese embora, como se referiu supra, a assistente menciona a existência de sequelas que integram, em seu entender, a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física grave p.e p. pelo art. 144º al. b) do Código Penal, como fundamento para a pertinência da junção aos autos, neste momento, da certidão em causa, a verdade é que, ao que se depreende, pretende igualmente, requerer que tais factos sejam apreciados neste processo.

Como bem referem o Digno Magistrado do Ministério Público e o ilustre mandatário do arguido, o objecto do processo é delimitado pela acusação ou pelo despacho de pronúncia, caso o haja.

Tal é a consequência da estrutura acusatória do processo penal e do princípio do contraditório, relacionando-se com as garantias de defesa do arguido, que assim se vê protegido contra o alargamento do objecto do processo, sendo capaz de organizar a respectiva defesa perante os factos de que é acusado.

Assim o estatuem o nº 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa e o nº 3 do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

No caso dos autos, requer agora a assistente que sejam apreciados factos que não constam da acusação e que, pode concluir-se face ao teor do seu pedido de indemnização civil e ao documento junto a fls. 459, que dela já eram conhecidos, aquando do prazo legal para requerer a abertura de instrução (saliente-se, inclusivamente, a circunstância do segundo filho da assistente ter nascido a 12 de Junho de 2011 e a notificação da acusação ter ocorrido a 8 de Julho de 2011).

E a verdade é que, não obstante, a ora assistente optou por se conformar com o teor da acusação e não requereu a abertura de instrução conforme lhe era permitido.

A assistente não funda assim o seu pedido em factos novos de que tenha tomado conhecimento pela prova produzida em sede de audiência de julgamento, mas sim em factos anteriores e que já conhecia.

Assim sendo, indefiro o requerido, sem prejuízo de, em face da prova que ainda venha a ser produzida em sede de audiência de julgamento e, sendo caso disso, o tribunal poder sempre lançar mão do disposto nos art. 358º e 359º do Código de Processo Penal.

Notifique”.
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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 9 de Setembro de 2008, MA, então grávida de 38 semanas, cerca das 13 horas, deslocou-se ao serviço de urgência do Hospital xxx, em Portalegre, área desta comarca, porquanto sentira, nessa mesma manhã, um corrimento vaginal com vestígios de sangue, sintoma da proximidade dos trabalhos de parto.

2. Aí chegada, MA, foi encaminhada, pelas 14 horas, para o Serviço de Obstetrícia do Hospital xxxx que funciona no 4.º piso da referida unidade hospitalar.

3. Acto contínuo, MA foi atendida pelo arguido tendo, nessas circunstâncias, relatado os sintomas de que padecia.

4. Nessa altura, o arguido examinou MA, conjuntamente com a enfermeira C, sendo que esta, ao efectuar o toque vaginal, rompeu, com a mão, as membranas, dando lugar à saída de líquido amniótico.

5. Nesse momento, cerca das 14 horas e 10 minutos, MA apresentava 2 cms de dilatação.

6. Durante o período temporal compreendido entre as 15 e as 16 horas, MA manteve-se na sala de dilatação, acompanhada de DP, mãe do seu companheiro.

7. Pelas 16 horas, o arguido realizou um toque vaginal em MA, tendo, na sequência do mesmo, aquela sentido fortes dores.

8. Pelas 18 horas desse mesmo dia, a médica anestesista Dra. AS administrou a MA uma anestesiologia epidural.

9. Após a aplicação do fármaco, MA foi acometida de uma súbita perda de controlo dos movimentos dos membros inferiores, persistindo, porém, uma dor inespecífica, razão pela qual, pelas 20 horas, a médica anestesista recolocou o cateter e voltou a administrar o fármaco.

10. Cerca das 21 horas e 30 minutos, o arguido efectuou outro toque vaginal em MA.

11. Acto contínuo, o arguido, após analisar o CTG, disse para MA que “isto está muito complicado”, sendo que, no seguimento dessa constatação, ordenou à enfermeira ali presente para ministrar a MA, os fármacos necessários, tendo em vista a aceleração do número de contracções e o aumento da dilatação, em ordem a acelerar o período expulsivo da puérpera.

12. Nessa ocasião, o arguido disse a MA para fazer força quando tivesse contracções, o que aquela não acatou, mas, ainda assim, as mesmas, entretanto, tornaram-se mais intensas e fortes.

13. MA, cerca das 22 horas e 30 minutos, enquanto permanecia na sala de dilatação, apresentava uma dilatação de 7,5 cm, o que foi constatado pela enfermeira de serviço.

14. MA permaneceu na sala de dilatação até cerca das 23 horas e 30 minutos, sendo que, pouco depois, conforme ordenado pelo arguido, foi encaminhada para a sala de parto.

15. Aí chegada, o arguido efectuou um outro toque vaginal a MA, no sentido de aferir se o bebé já estava em posição de expulsão.

16. O arguido pediu a uma das enfermeiras para carregar na parte superior da zona abdominal de MA, de modo a fazer descer o bebé, e, assim, ajudar à expulsão do mesmo.

17. Para o uso da instrumentação adequada ao processo expulsivo do bebé, mediante o uso de fórceps ou ventosas, era necessário que MA tivesse uma dilatação completa e que o pólo encefálico do bebé estivesse em III ou IV plano.

18. O arguido utilizou um instrumento denominado “ventosa” e introduziu-o na vagina de MA, mas não extraiu, dessa forma, o bebé.

19. Acto contínuo, sempre com o intuito de extrair o bebé, cerca das 0 horas e 10 minutos, o arguido, utilizando fórceps, conseguiu fazê-lo, à segunda tracção.

20. Pelas 0 horas e 15 minutos, procedeu-se, com êxito, à reanimação do bebé.

21. Como se o estado de saúde do recém-nascido carecesse de cuidados intensivos especializados na área da neonatologia, foi o mesmo encaminhado, em ambulância munida de instrumentos para suporte de vida, por volta das 5 horas, para o Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, onde veio a falecer no dia 14 de Outubro de 2008, devido a encefalopatia hipoxico-isquémica grave com degenerescência e necrose neuronal multifocal.

22. À nascença, a bebé pesava 3,000kg e encontrava-se morfologicamente bem formada.

23. Após o referido em 20. e até à data da sua morte, a bebé esteve mecanicamente assistida a nível respiratório.

24. O arguido ignorou os pedidos de MA para que procedesse à realização de uma cesariana.

25. O Hospital xxxx– Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, E. P. E. dispunha e dispõe de bloco operatório onde se realizam partos por cesariana.

26. MA não sentiu dores aquando do primeiro toque que lhe foi efectuado pela enfermeira C.

27. Não obstante as dores que sentia e a sutura de que havia sido alvo na zona vaginal após o parto, MA deslocou-se para Lisboa, no dia 11 de Setembro de 2008, de táxi, com o intuito de acompanhar a filha.

28. Foi com um sentimento de angústia e sofrimento que MA fez tal viagem, e em estado de dor e debilidade, pelo que teve necessidade de voltar a ser suturada na zona do períneo, no Serviço de Urgência do Hospital de Santa Maria e medicada devido às fortes dores de cabeça que sentia. 29.

No dia 6 de Outubro de 2008, M deu entrada no Hospital de Santa Maria, a fim de lhe serem retirados restos de placenta que o arguido não havia extraído na íntegra e que lhe causavam perdas vaginais com odor fétido e com indicação para tomar oito dias de antibiótico.

30. MA vive em profunda angústia e sofre diariamente com a recordação da perda da filha.

31. Durante o período que antecedeu a morte da filha, MA sentiu uma dor enorme, angustia, desespero e aflição ao vê-la lutar pela vida, ventilada e sem se movimentar e sentiu-se impotente.

32. MA deslocou-se ao Hospital onde a filha se encontrava até à sua morte e aí permanecia durante o máximo de horas permitido, a fim de lhe dar carinho, conforto e apoio, o que a traumatizou e frustrou.

33. Em consequência da morte da filha, MA sentiu desgosto, tristeza, angústia, chorava, passou noites sem dormir e dias sem conseguir alimentar-se.

34. Durante os dias em que se deslocou ao Hospital para estar com a filha, MA aí tomava as suas refeições.

35. A bebé foi a primeira filha de MA e era muito querida e desejada.

36. O arguido decidiu optar pelo parto instrumentado depois de ter verificado a existência de hipertermia materna, já que MA apresentava uma temperatura de 38,5º aquando do referido em 15. e suspeita de sofrimento fetal agudo.

37. Em consequência do referido em 36., havia necessidade de terminar o parto tão rapidamente quanto possível.

38. Sendo que o eventual recurso a cesariana constituía, no momento em que constatou o referido em 36., uma solução mais morosa e não garantia a inexistência de danos no feto.

39. A infecção intra-amniótica constitui uma inflamação aguda das membranas placentárias, geralmente de origem infecciosa, acompanhada por infecção do conteúdo amniótico, ou seja, do cordão umbilical, fetal e do líquido amniótico, sendo uma das principais causas de morbidade materna e fetal e sepsis neonatal.

40. A sepsis intra-amniótica aguda pode acarretar um conjunto de efeitos adversos: Apgar baixo, dificuldade respiratória, sepsis intraventricular, displasia broncopulmonar e lesão cerebral perinatal.

41. O grau mais grave de encefalopatia hipoxico-isquémica de origem infecciosa comporta o risco de paralisia cerebral ou morte.

42. O arguido efectuou um corte na região vaginal de MA, designado por “episiotomia”, o qual se destina a facilitar a extracção fetal e a evitar um eventual rasgão descontrolado dos tecidos do períneo materno, sendo uma técnica habitualmente utilizada nos partos instrumentados.

43. Aquando do referido em 37., o arguido desconhecia a que horas a sala de cirurgias e a respectiva equipa poderiam estar prontas a actuar.

44. A verificação de uma dilatação lenta da parturiente e a circunstância do parto ter demorado cerca de 10 horas, não determinam, por si, que o obstetra deva optar pela realização de uma cesariana, sendo que esta é uma opção médica.

45. O arguido não se opôs a que fosse ministrada a epidural a MA, por forma a minorar o sofrimento associado ao parto.

46. O arguido exerceu a profissão de médico obstetra no Hospital/Maternidade de Badajoz, no Hospital de Elvas e no Hospital de Portalegre, sendo que, actualmente, o faz apenas no primeiro e aufere um vencimento mensal líquido no montante de € 3.500,00.

47. É casado e tem quatro filhos maiores que já não estão a seu cargo.

48. A mulher é doméstica.

49. Habita em casa própria.

50. Paga uma prestação mensal no montante de € 800,00 relativa a um empréstimo contraído pelo filho.

51. É licenciado em Medicina, exercendo a profissão há cerca de 40 anos e na especialidade de ginecologia/obstetrícia, há cerca de 38 anos.

52. Nada consta do seu certificado de registo criminal.

53. A demandante cível está desempregada e aufere subsídio de desemprego no montante mensal de € 300,00.

54. Vive com o companheiro e um filho comum de sete meses.

55. O companheiro é guarda prisional e aufere um vencimento mensal líquido no montante de cerca de € 1.000,00.

56. Habitam em casa própria.

57. Pagam uma prestação mensal no montante de cerca de € 200,00 relativa à aquisição de habitação própria.
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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

a) O serviço de obstetrícia do Hospital xxxx funciona no 5.º piso.

b) Foi o arguido quem rompeu as membranas de MA, dando lugar à saída do líquido amniótico.

c) Aquando do referido em 4., foi a placenta que se rompeu.

d) Foi MA quem solicitou a administração de uma anestesia epidural, por desejar um parto sem dor.

e) Foi aplicada a MA uma anestesia epidural.

f) A médica anestesista, aquando do referido em 9., retirou o cateter que havia introduzido e recolocou um outro no seu lugar, porquanto, se vislumbrava a possibilidade de um parto por cesariana, sendo que o segundo foi colocado para esse efeito.

g) O arguido efectuou um toque vaginal a MA às 20 horas, sendo que esse e os mencionados em 10. e 15., foram, respectivamente, os segundo, terceiro e quarto que efectuou.

h) Ao tomar conhecimento do referido em 13., o arguido ordenou que MA fosse encaminhada para a sala de parto, ao que a enfermeira de serviço repontou “mas Dr., ela só tem 7,5 cm de dilatação”.

i) Pese embora tenha sido confrontado com tal facto, o arguido permaneceu irredutível e ordenou, novamente, que MA fosse encaminhada para a sala de parto.

j) Quando efectuou o toque vaginal a MA na sala de parto, o arguido disse que “a cabeça do bebé já estava alta”.

l) Aquando do referido em 16., a dilatação vaginal de MA mantinha-se nos 7,5 cm e o pólo encefálico do bebé encontrava-se no plano II, surgindo a cesariana como a única solução possível para a extracção fetal.

m) O arguido agiu conforme descrito em 18. e 19., não obstante, estar ciente do mencionado em l).

n) O arguido introduziu a ventosa com muita força na vagina de MA e fê-lo, por duas vezes.

o) O arguido quando utilizou os fórceps, fê-lo, com um pé à frente e outro atrás e fez muita força para retirar o bebé da vagina de MA, causando, ao mesmo tempo, um rasgo no tecido vaginal da mesma, provocando-lhe, assim, fortes dores e um traumatismo de natureza corto-contundente na região do períneo com laceração do tecido vaginal, uma cicatriz anciforme na região do períneo, para mediana direita, de concavidade interna, com cerca de seis centímetros de comprimento, por um centímetro de largura que lhe demandaram um período de doença fixado em 54 dias.

p) Aquando do referido em 19., a cabeça do bebé estava completamente encaixada nos fórceps utilizados pelo arguido.

q) O bebé, ao ser retirado do interior de MA, não deu quaisquer sinais de vida e foi, por esse motivo, que foi efectuada a reanimação mencionada em 20.

r) Foi em consequência directa e necessária da conduta do arguido que a bebé N sofreu a encefalopatia hipoxico-isquémica grave que lhe causou a morte.

s) Ao actuar da forma descrita, o arguido não agiu de acordo com o dever objectivo de cuidado e com as “leges artis” referentes à realização de um parto, bem sabendo que para o uso da instrumentação adequada ao processo expulsivo do bebé, era necessário que MA tivesse uma dilatação vaginal completa e que o pólo encefálico do bebé estivesse em III ou IV plano e, bem sabendo, ainda, que o facto do pólo encefálico do bebé não ter atingido, sequer, o plano III, impedia que fosse encetada a extracção fetal do bebé, seja por fórceps ou por ventosa, surgindo a cesariana como a única solução possível para a extracção fetal, caso não estivesse verificada, como não estava, a dilatação completa de MA e o pólo encefálico do bebé, em III ou IV plano, o que representou mentalmente, mas não se conformou com a hipótese de essa morte se realizar em virtude da sua conduta.

t) O arguido actuou da forma descrita, bem sabendo que o facto de utilizar os fórceps e a ventosa na vagina de MA, sem estar verificada a dilatação completa, ofendia a integridade física desta, o que representou mentalmente e quis realizar.

u) O arguido agiu de forma consciente e livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

v) A bebé, nasceu com 3,125 kg e 50 cm, era saudável e perspectivava-se-lhe uma longa vida sem quaisquer problemas de saúde.

x) A dilatação de MA quando foi encaminhada para a sala de parto não ultrapassava os 7,5 cm e manteve-se sem qualquer evolução.

z) O arguido introduziu a ventosa e os fórceps com força excessiva na vagina de MA e atingiu a bebé, causando-lhe dor e molestando-a fisicamente, provocando-lhe as lesões que foram causa directa da sua morte.

aa) O arguido ignorou os alertas e informações que lhe foram dados pelas enfermeiras de serviço.

bb) Após, o referido em 8. e 9., o arguido optou por dar continuidade ao parto vaginal, persistindo em manter mãe e filha em sofrimento.

cc) O arguido procedeu à sutura da rasgadura que causou a MA sem ter utilizado qualquer anestesia e apesar dos pedidos daquela.

dd) Em consequência do referido em cc), MA sofreu traumatismo da região do períneo com laceração dos tecidos.

ee) Em virtude do referido em 29., MA padecia de fortes dores.

ff) Em consequência da conduta do arguido, MA sofreu lesões que lhe deixaram sequelas permanentes que se repercutiram na posterior gravidez desta e foram causa directa do nascimento prematuro do seu bebé F, a 12 de Junho de 2011, com vinte e oito semanas de gestação e que a impedem de engravidar novamente, sem antes, ser submetida a intervenção cirúrgica.

gg) Com a sua conduta, o arguido provocou um sofrimento atroz, dores e lesões irreparáveis à bebé.

hh) Em deslocações para Lisboa, refeições aí tomadas e transportes diários para o Hospital, MA despendeu os € 8.000,00 resultantes da alienação de um imóvel.

ii) Com as despesas de funeral da bebé, MA despendeu a quantia de € 1.089,50.

jj) Quando o arguido iniciou a extracção fetal, a dilatação já estava completa e o pólo encefálico do bebé encontrava-se no Plano III-IV.

ll) A alusão ao Plano II-III feita pelo arguido no registo clínico reporta-se ao momento em que decidiu optar pela realização do parto instrumentado e não ao momento inicial da extracção.

mm) A extracção do feto antes de atingida a dilatação máxima e sem que o pólo encefálico do bebé alcance o Plano III de Hodge causaria, necessariamente, a dilaceração do útero da parturiente.

nn) O recurso a uma cesariana demoraria, pelo menos, mais de uma hora do que o parto instrumentado.

oo) A morte da recém-nascida foi determinada por infecção ou sepsis neonatal.

pp) MA tinha indicação médica de repouso após ter recebido alta hospitalar.

qq) O arguido exerceu a profissão de médico obstetra no Hospital Militar de Badajoz.

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B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

“A convicção do tribunal acerca da factualidade dada como provada assentou no conjunto da prova produzida e examinada em julgamento, nos seguintes termos:

- no que diz respeito aos factos vertidos de 1. a 4., nas declarações do arguido e da assistente, no depoimento da testemunha CC, enfermeira que na ocasião se encontrava de serviço e que, segundo afirmou, o esteve até às 16 horas do dia 9 de Setembro de 2008, coincidentes, no essencial, em conjugação com os documentos juntos aos autos a fls. 48 e 49.

De salientar porém que, pese embora o arguido tenha admitido poder ter sido ele a romper as membranas, a verdade é que a testemunha CC e a assistente foram peremptórias em afirmar que foi aquela e não o arguido quem o fez, razão pela qual, o tribunal deu tal facto como provado e, necessariamente, como não provados os factos vertidos em b).

Uma vez que o arguido afirmou que o que se rompe, com o toque vaginal, são as membranas e não a placenta, e que, efectivamente, assim é, perante o conhecimento geral, sendo certo que a testemunha CC igualmente afirmou que foram as membranas que rompeu, o tribunal deu ainda como não provados os factos narrados em c).

- no que diz respeito aos factos vertidos em 5., nas declarações do arguido e da assistente, coincidentes, ainda que a testemunha CC tenha afirmado não se recordar.

Contudo, é também essa a dilatação que consta da folha de enfermagem junta a fls. 54 e elaborada pela mencionada testemunha nesta parte, não tendo assim o tribunal qualquer dúvida quanto à comprovação de tal facto.

- relativamente aos factos vertidos em 6., nas declarações do arguido e da assistente e no depoimento da testemunha DP, coincidentes.

- no que concerne aos factos narrados em 7., o tribunal deu-os como provados com base nas declarações do arguido e da assistente, coincidentes no que diz respeito à realização do toque vaginal, sendo certo que no que diz respeito à circunstância da assistente ter sentido dores, nas declarações da própria, confirmadas pela testemunha DP que afirmou ter ouvido os gritos daquela no corredor para onde se dirigira a fim de ser efectuado o exame médico.

- no que diz respeito aos factos vertidos em 8., o tribunal atendeu às declarações do arguido e da assistente e ao depoimento da testemunha Dra. AS, médica anestesista. Contudo, uma vez que esta última afirmou peremptoriamente que administrou uma anesteseologia epidural e não uma anestesia, isto é, que administrou um fármaco que apenas atenua as dores e não as elimina completamente, o tribunal deu tal facto como provado e, necessariamente, como não provado o facto vertido em e).

Foi também com base no depoimento da Dra. AS que o tribunal deu como provado que a mesma, pelas 20 horas, recolocou o cateter e voltou a administrar o fármaco, afastando assim a versão apresentada pela assistente em sede de audiência de julgamento, segundo a qual, aquela não voltou a administrar o fármaco porque o arguido terá dito que a queria activa para participar no parto.

Ora a verdade é que não só consta da folha de enfermagem de fls. 54 v., como resulta do depoimento da testemunha FS, enfermeira que assistiu a assistente entre as 16 e 00 horas, que esta, após ter sido examinada pela Dra. AS, cerca das 20 horas, ficou menos queixosa, de onde resulta que, efectivamente, o fármaco voltou a ser aplicado, conforme afirmou a Dra. A.

É certo que a assistente afirmou que, após a recolocação do cateter, as dores na perna passaram, tendo ficado com “as dores de um parto normal”.

Contudo, o tribunal não consegue aferir, em concreto e com segurança, sobretudo pelo subjectivismo que encerra, o significado de tal afirmação no que diz respeito à intensidade das dores sentidas pela assistente, já que, como a mesma afirmou, esta foi a sua primeira gravidez e o seu primeiro parto e, como se referiu supra, a Dra. AS afirmou peremptoriamente que tendo aplicado, por sua iniciativa, uma analgesia e não uma anestesia, as dores não desaparecem, mas apenas são atenuadas até para que a parturiente possa colaborar no parto, o que não sucederia se lhe fosse aplicada uma anestesia.

Importa salientar ainda que, em 2008, segundo acabou por afirmar a Dra. AS, não era ainda muito habitual a aplicação de epidural no Hospital de Portalegre.

De referir que foi com base nas declarações do arguido e da assistente, coincidentes no essencial, que o tribunal deu como provado o motivo para a nova intervenção da médica anestesista.

De salientar que a testemunha Dra. AS foi peremptória em negar ter colocado outro cateter que não o inicial e que o tenha feito por qualquer motivo relacionado com a realização de uma cesariana, ainda que tenha mencionado que caso se tivesse procedido a uma cesariana, o cateter que seria utilizado seria o mesmo da epidural. Também a assistente se limitou a afirmar, em sede de audiência de julgamento, que a Dra. A lhe referiu apenas que se fosse preciso cesariana, já ficava pronta. Ora daqui não resulta qualquer prova, sendo certo que nenhuma outra foi produzida nesse sentido, de que, nesse momento, se avizinhasse ou estivesse sequer equacionada a hipótese de realização de um parto por cesariana. O tribunal teve assim, que dar como não provados, necessariamente, os factos vertidos em f).

Em face dos elementos probatórios referidos supra e pelas razões aduzidas, o tribunal deu assim como provados os factos vertidos em 9.

No que diz respeito aos factos narrados de 10 a 12., o tribunal atendeu às declarações do arguido e da assistente e ao depoimento da testemunha FS.

Pese embora a testemunha FS tenha afirmado que o arguido só mandou a assistente fazer força após ter sido conduzida para a sala de partos e que isso resulte, efectivamente, do registo da folha de enfermagem de fls. 54 v., a verdade é que o arguido confessou tais factos, mostrando-se assim coincidente em tais declarações, com as declarações da assistente e com o depoimento da testemunha JP, pai da bebé, que também o referiu, ainda que estes tenham afirmado que aquela não o fez, a conselho da testemunha FS. De referir ainda que o arguido e a assistente afirmaram que aquele efectuou novo toque vaginal a esta, na ocasião.

Foi também com base nas declarações do arguido que os confessou, que o tribunal deu como provados os factos vertidos em 11, sendo certo que, em face do depoimento da testemunha F e dos registos efectuados no partograma de fls. 64 e nos CTG de fls. 32 a 47, resulta evidente que o parto evoluiu, de onde se conclui que, efectivamente, as contracções se tornaram mais fortes e intensas, razão pela qual, foram dados como provados os factos narrados em 12.

- no que diz respeito aos factos vertidos em 13., o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha F que o afirmou de forma credível, tanto mais que corresponde com o registo efectuado pela própria no partograma de fls. 64.

Foi também com base no depoimento desta testemunha e da testemunha AB, enfermeira que ia entrar ao serviço às 0 horas do dia 10 de Setembro de 2008 e que chegou um pouco antes, segundo afirmaram, e que ajudou no transporte da assistente, que o tribunal deu como provados os factos vertidos em 14.

- no que diz respeito aos factos vertidos em 15., 16., 18., 19. e 36, o tribunal atendeu às declarações do arguido, aos depoimentos das testemunhas FS e AB, aos resultados de CTG de fls. 32 a 47 e à consulta técnico-cientifica de fls. 318, que refere que, ainda que sem grande certeza, os mesmos revelam aparente bradicardia fetal já na sala de parto, o que é compatível com a suspeita de sofrimento fetal agudo afirmada pelo arguido.

O arguido afirmou ainda que quando efectuou o toque vaginal à assistente apercebeu-se que a mesma estava febril, razão pela qual mandou averiguar a temperatura, cujo resultado foi 38,5º e administrar antibiótico, o que foi feito e confirmado pelo depoimento da testemunha FS.
Foi também com base nas declarações do arguido e do depoimento da testemunha FS, coincidentes, que o tribunal deu como provados os factos vertidos em 16.

No que diz respeito aos factos narrados em 18. e 19., o tribunal atendeu às declarações do arguido e aos depoimentos das mencionadas testemunhas AB e FS que os presenciaram, coincidentes.

- relativamente aos factos vertidos em 17., o tribunal atendeu às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas de defesa Dr. JN e Dr. ML, todos médicos obstetras, coincidentes com o teor das consultas técnico-cientificas de fls. 168 a 171 e 318 a 320, sendo certo que o Sr. Perito Médico que a elaborou, Sr. Prof. Doutor PR, voltou a afirmá-lo em sede de audiência de julgamento, aquando dos esclarecimentos que prestou.

- relativamente aos factos vertidos em 24., nas declarações da assistente corroboradas pelo depoimento da testemunha AB, ainda que esta tenha referido que a cesariana é uma opção médica, tal como o arguido afirmou.

- no que concerne aos factos vertidos em 20., o tribunal atendeu aos depoimentos das testemunhas Dra. IM, médica pediatra que assistiu o recém-nascido após o parto e às já supra mencionadas testemunhas Dra. AS e AB que auxiliaram a primeira.

Foi também com base nos depoimentos das mencionadas testemunhas, em conjugação com os documentos juntos a fls. 25 e 30 (história clínica do recém-nascido e diário de enfermagem do recém-nascido), com a certidão do assento de óbito junta a fls. 405 e com o relatório de autópsia de fls. 116 e 117 e 133 e 134, que o tribunal deu como provados os factos vertidos em 21.

No que concerne aos factos vertidos em 22., nos documentos de fls. 25 (história clínica do bebé) e nos relatórios de autópsia de fls. 116 e 117 e 133 e 134.

Relativamente aos factos constantes do ponto 23., o tribunal atendeu às declarações da assistente e ao depoimento das testemunhas JP, DP e CP, respectivamente, progenitor, avó e tia paternas da bebé, em conjugação com o teor de fls. 72.

No que diz respeito aos factos vertidos em 25., nos depoimentos das testemunhas Dra. IM, Dra. AS, FS, AB, CC e MG, esta última auxiliar de acção médica que estava de serviço aquando da realização do parto, coincidentes com as declarações do arguido.

De salientar que foi com base nos depoimentos das testemunhas Dra. IM e Dra. AS que o tribunal deu como provado o piso em que funciona o Serviço de Obstetrícia e, necessariamente, como não provados os factos vertidos em a).

No que diz respeito aos factos vertidos em 26., nas declarações da assistente, sendo certo que nenhum outro elemento probatório as infirmou.

Foi também com base nas declarações da assistente e no depoimento da testemunha JD, taxista que efectuou o transporte, que o tribunal deu como provados os factos vertidos em 27, bem assim os factos mencionados em 28 relativos ao estado com que a primeira efectuou tal viagem.

Já no que concerne à necessidade da assistente voltar a ser suturada na zona do períneo e motivo do mesmo, o tribunal atendeu às declarações da própria e do arguido, aos depoimentos das testemunhas FS, CC e AB, JP e CV, às fotografias de fls. 94 a 97 e ao teor dos documentos juntos a fls. 15, 51, 55 e 59.

Com efeito, o arguido e a testemunha FS afirmaram, peremptoriamente, que o primeiro efectuou uma episiotomia à assistente, tendo a testemunha F afirmado, inclusivamente, que o arguido o fez com recurso a uma tesoura, sendo certo que o documento junto a fls. 57 faz referência à realização de uma episiotomia, razão pela qual, o tribunal deu igualmente como provados os factos vertidos em 42. De referir que, não só o arguido e a mencionada testemunha, mas também as testemunhas AB, CC e o Sr. Perito Médico, Prof. Doutor PR, aquando dos esclarecimentos que prestou em sede de audiência, esclareceram em que consiste tal técnica e que a mesma é, habitualmente, utilizada nos partos instrumentados, isto é, em partos onde se recorre à utilização de ventosa e/ou fórceps.

O arguido e as testemunhas FS, CC e AB afirmaram que, após o parto, o arguido procedeu à sutura da assistente, o que, igualmente, consta dos documentos juntos a fls. 53 e 57, sendo certo que, horas depois, a episiorrafia (sutura) se mostrava edemaciada, o que determinou a indicação para aplicação de gelo e raios-ultravioleta, conforme consta de fls. 55 e 59 v., ainda que as testemunhas CC e AB tenham afirmado que tal situação é compatível com a utilização de fórceps, sendo que a primeira afirmou, inclusivamente, que é possível a laceração dos tecidos mesmo tendo sido realizada uma episiotomia (o que, aliás, também foi afirmado pelo Sr. Prof. Doutor PR) e que, durante o internamento, ao observar a assistente a mesma “estava dentro dos parâmetros de uma puérpera acabada de parir”.

Ora daqui resulta que a assistente estava ferida e necessitava de continuar a ter cuidados médicos.

Não obstante, a própria assistente afirmou em sede de audiência de julgamento que, ainda assim, saiu do Hospital no dia 11 de Setembro, por sua iniciativa e não por lhe ter sido dada alta médica e deslocou-se, de táxi, para Lisboa, para estar com a filha, sendo certo que a testemunha JP, seu companheiro, afirmou que a assistente só após a nova sutura realizada no Hospital de Santa Maria é que passou a sentar-se utilizando uma almofada específica para o efeito.

Assim sendo, entendo que tais elementos probatórios permitem concluir, como aliás, a própria assistente afirma no seu pedido de indemnização civil, que terá sido a própria conduta daquela, ao deslocar-se da forma como o fez e sem que tivesse tido prévia alta médica, que provocaram a necessidade de ter sido novamente suturada. Relativamente aos factos vertidos em 29, o tribunal teve em consideração o teor do documento junto a fls. 17 e 18, que o documenta, sendo certo que atendeu igualmente ao depoimento da testemunha CC que afirmou que foi o arguido quem efectuou a dequitadura (extracção da placenta).

Pese embora o depoimento da testemunha JP e as declarações da assistente, segundo as quais, tal circunstância lhe provocava dores, a verdade é que tal não consta do teor de fls. 17, mas sim o contrário: que a assistente, na ocasião, negou ter algias pélvicas, razão pela qual o tribunal deu como não provados os factos vertidos em ee).

No que diz respeito aos factos narrados de 30 a 35, o tribunal atendeu aos depoimentos das testemunhas JP, DP, CP, PV e CV e ao documento de fls. 361, em conjugação com as regras da experiência comum e normalidade da vida, sendo certo que foi evidente em sede de audiência de discussão e julgamento, a dor que a assistente ainda sente pela perda da filha.

No que concerne aos factos vertidos em 37. e 38., nas declarações do arguido, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas AB e FS e Dr ML e ainda pelas declarações do Sr. Perito Médico, Sr. Prof. Doutor PR, em sede de esclarecimentos prestados em audiência e pelo teor da consulta técnico-científica de fls. 168 a 171 e 318 a 322.

Tendo em consideração os depoimentos das testemunhas AB, FS, Dra. AS, Dra. IM e as declarações do Sr. Perito Médico e até o teor da consulta técnico-científica constante de fls. 168 a 171 e 318 a 322, o tribunal não teve dúvidas em afirmar que, estando já a decorrer o parto, a cesariana constituía, no caso concreto, um modo mais demorado do que a extracção por fórceps, já que as mencionadas testemunhas afirmaram que pelo menos demorariam, quinze minutos, a transportar a assistente da sala de parto para o bloco operatório, sendo certo que também referiram ter de reunir a equipa necessária à realização da cesariana, incluindo recorrer a um outro médico obstetra que não estava no interior do hospital, já que na ocasião, apenas estava um de serviço, ou a um médico cirurgião do serviço de urgência que poderia estar ocupado, o que não demoraria menos de dez minutos. Perante os depoimentos das mencionadas testemunhas que acabaram, assim, por corroborar as declarações prestadas pelo arguido, o tribunal teve, necessariamente, também que dar como provados os factos vertidos em 43.

Apesar de desconhecer as condições em concreto do Hospital de Portalegre, o Sr. Prof. Doutor PR, afirmou em sede de audiência de julgamento e consta também da consulta técnico-científica que efectuou e que se mostra junta de fls. 168 a 171 e 318 a 320, que, por vezes e até em geral, a cesariana pode ser mais demorada e que tal facto pode colocar em risco a vida do bebé, por aumentar o período de exposição à infecção e, como tal, à ausência de oxigenação, dado que metabolicamente os tecidos tornam-se mais sensíveis, sendo certo que, tendo em consideração a causa da morte da bebé constante do relatório de autópsia de fls. 133, isto é, encefalopatia hipóxico-isquémica, não pode afirmar que a opção por uma cesariana pudesse evitar danos no feto e o resultado morte.

De salientar, desde já, que a conclusão da consulta técnico-científica, segundo a qual, a utilização de fórceps possa ter contribuído para o agravamento da situação, assenta numa premissa que, conforme melhor se explanará infra, não se logrou provar com o grau de segurança que se impõe no âmbito penal: que o pólo encefálico do bebé, aquando da utilização dos fórceps, não tivesse ainda atingido o plano III.

Relativamente aos factos vertidos de 39. a 41., os mesmos resultam das explicações dadas em sede de audiência de julgamento pelo médicos ouvidos, isto é, o arguido, a Dra. IM, o Dr. JN, Dr. ML e Sr. Prof. Doutor PR.

Relativamente aos factos vertidos em 44., nas declarações do Sr. Perito Médico, Sr. Prof. Doutor PR, prestadas em sede de esclarecimentos na audiência de julgamento.

No que concerne aos factos narrados em 45., no depoimento da testemunha Dra. AS que afirmou que apenas administrou a epidural, após indicação do arguido, para o efeito, já que é o médico obstetra quem indica o momento adequado que contende com a dilatação, ainda que o médico anestesista verifique depois se estão reunidas as condições do seu ponto de vista para o fazer.

Relativamente às condições de vida do arguido e da assistente, nas declarações dos próprios.

No que diz respeito aos factos vertidos em 46., nas declarações do arguido e nos depoimentos das testemunhas de defesa Dr. JN e Dr. ML, colegas de trabalho do arguido e que demonstraram ter conhecimento directo de tais factos.

No que concerne ao facto de nada constar do certificado de registo criminal do arguido, no último que se mostra junto aos autos.

O tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos de a) a qq), uma vez que não foi produzida prova sobre os mesmos.

Com efeito, atenta a discrepância existente sobre a matéria, seja nas declarações do arguido e do assistente, seja nos depoimentos das testemunhas FS, DP e Dra. AS, acerca de quem pediu ou ofereceu a administração da epidural, sendo certo que nenhuma das versões se apresentou com maior credibilidade do que a outra, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em d). Na verdade se perante as regras da experiência comum e normalidade da vida, seria mais credível que tivesse sido a assistente a solicitar a epidural, a verdade é que quando confrontada a Sra. Médica Anestesista com a versão apresentada pela assistente segundo a qual a mesma lhe foi oferecida, aquela remeteu-se a um incompreensível silêncio e acabou por dizer que, na altura, não era hábito, no Hospital de Portalegre, administrar epidurais.

Uma vez que também não houve um mínimo de coerência entre as declarações do arguido e da assistente e os depoimentos das testemunhas FS, CC e DP, relativamente ao número de toques vaginais efectuados pelo arguido à assistente, bem assim se efectuou um às 20 horas, sendo certo que inexistem registos clínicos elaborados pelo arguido acerca de tal facto, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em g).

Tendo em consideração que a testemunha FS, enfermeira de serviço àquela hora, negou peremptoriamente os factos vertidos em h) e j), o tribunal deu-os como não provados.

É certo que a testemunha JP afirmou de certo modo. Contudo, acabou por reconhecer que não ouviu o arguido dar a ordem para que a assistente fosse encaminhada para a sala de parto e que ainda terá decorrido algum tempo desde a altura em que afirmou ter ouvido a Sra. Enfermeira proferir tal afirmação até que tal sucedeu.

O tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em l), x) e jj), uma vez que não foi produzida prova suficiente em nenhum dos sentidos aí referidos, isto é, acerca da dilatação e plano do pólo encefálico, no momento do parto e da utilização dos fórceps.

Com efeito, o partograma apenas tem registos até às 22 horas e 30 minutos, sendo certo que o registo constante da folha de enfermagem de fls. 54 v., não obstante ter sido elaborado pela mesma pessoa que apôs o registo no partograma – a testemunha FS -, nem sequer se mostra minimamente coincidente com aquele.

E o único registo médico efectuado pelo arguido e que consta de fls. 51 e onde se menciona que a assistente chegou a dilatação completa e o pólo encefálico no plano II-III, mostra-se, de forma evidente incompleto e resumido, sendo que o próprio arguido reconheceu tê-lo escrito durante a madrugada do dia 10 de Setembro e já após o parto. E referiu tê-lo feito estando nervoso com toda a situação e que o mesmo não espelha o que, de facto sucedeu e que segundo afirma, consistiu em a assistente ter a dilatação completa e o plano encefálico estar já no plano III aquando da utilização dos fórceps, atentas as manobras efectuadas para o efeito.

E se é verdade que se estranha, por não usual, que tendo, de facto, segundo afirma, sucedido uma coisa, tenha escrito outra (inexistindo, qualquer outro meio probatório que corrobore a sua versão, razão pela qual, o tribunal não a pode dar como provada); é também verdade que quer as testemunhas FS e AS, quer o próprio perito, o Sr. Prof. Doutor PR, quando ouvido em esclarecimentos em sede de audiência, foram peremptórios em afirmar que, numa hora, hora e meia – intervalo entre o último registo e momento do parto – e não obstante a anterior evolução lenta, a dilatação pode chegar a completa e o bebé descer.

Assim sendo, ainda que à partida a versão do arguido possa parecer inverosímil, a verdade é que perante tais depoimentos e declarações do Sr. Perito Médico, a mesma afigura-se possível.

Contudo, ainda assim, perante o registo efectuado pelo arguido e na ausência de outra prova segura que corrobore a sua versão, não pode o tribunal dá-la como provado com o grau de segurança que se impõe. Como igualmente não pode dar como provada a versão segundo a qual, aquando da utilização dos fórceps pelo arguido, a dilatação permanecia nos 7,5 cm e o pólo encefálico no plano II-III, uma vez que quanto a esta ainda de menos elementos probatórios dispõe, já que, como se disse, o arguido o nega e nenhuma das Sras. Enfermeiras conseguiu afirmá-lo dado que, na ocasião, não observaram a assistente.

De salientar ainda que as testemunhas FS e AB afirmaram que o arguido não teve dificuldade em aplicar os fórceps nem, com eles, extrair o bebé, sendo que o fez, segundo afirmaram, do modo habitual como vêem os médicos fazer.

Por outro lado, não consta do relatório pericial de fls. 122 a 126, a existência de lesões uterinas na assistente que pudessem corroborar a existência de dificuldades na aplicação dos fórceps e extracção do feto, sendo certo que o Sr. Prof. Doutor PR afirmou, em sede de audiência, que não existem regras acerca do tamanho adequado, isto é, da extensão, de uma episiotomia, tudo variando em função do caso concreto e não estranhando uma de seis centímetros.

Além disso, pese embora a testemunha JP tenha afirmado que quando viu a filha após o nascimento, esta tinha a “cabeça esborrachada”, a verdade é que tal afirmação foi infirmada pelos depoimentos das testemunhas AB, FS, Dra. IM e Dra. AS que afirmaram não ter visto lesões notórias na bebé, além das marcas habituais da utilização de fórceps que todos os bebés apresentam.

Assim sendo e pelos motivos supra aduzidos, o tribunal não pode com o grau de segurança que se impõe em processo penal dar como provada qualquer uma das versões apresentadas relativamente à dilatação e plano do pólo encefálico no momento da aplicação dos fórceps e, pelos mesmos motivos já aduzidos, não pôde igualmente dar como não provados os factos vertidos em ll).

No que concerne aos factos vertidos em l), importa ainda salientar o que consta da consulta técnico-científica e foi esclarecido pelo Sr. Prof. Doutor PR em sede de audiência de julgamento, segundo o qual, ainda que a dilatação fosse de 7,5cm e o pólo encefálico se encontrasse no plano II, tal não faria surgir, necessariamente, a cesariana como a única solução possível para extracção fetal.

Com efeito, segundo afirmou, tal apenas seria verdadeiro caso houvesse necessidade de extrair o bebé com urgência, pois, caso assim, não sucedesse, poderia esperar-se que fosse atingida a dilatação completa e a descida do bebé.

Uma vez que não se logrou provar a dilatação e o plano do pólo encefálico no momento da realização do parto, o tribunal teve, necessariamente, que dar como não provados os factos vertidos em m), s), t), u).

De salientar, mais uma vez que, as conclusões da consulta técnico-científica baseiam-se na premissa não comprovada em sede de audiência de julgamento de que o arguido utilizou os fórceps sem que, pelo menos, o pólo encefálico tivesse atingido o plano III.

Tendo em consideração que o arguido os negou e os depoimentos já supra mencionados e analisados das testemunhas AB e FS, no que concerne à forma como o arguido utilizou os fórceps e a ventosa, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em n) e o).

É certo que as lesões descritas na alínea o) mostram-se descritas no relatório pericial junto de fls. 122 a 126.

Contudo, uma vez que as testemunhas AB e FS descreveram a utilização dos instrumentos por parte do arguido, com tendo sido “normal” e sem dificuldade, bem assim, que o arguido e a testemunha FS foram peremptórios em afirmar que aquele realizou uma episiotomia e que, como se referiu supra e pelos motivos já aduzidos, a assistente adoptou posteriormente uma conduta que levou à necessidade de voltar a ser suturada, sendo que o exame médico-legal em causa foi realizado em momento posterior, o tribunal teve, necessariamente, que dar como não provado que as lesões descritas tivessem resultado da utilização indevida (por falta de dilatação completa e plano do pólo encefálico abaixo do plano III) ou com força excessiva dos instrumentos por parte do arguido.

Também o Sr. Perito Médico, quando ouvido em sede de audiência de julgamento afirmou que o que está descrito no relatório médico-legal de fls. 122 a 126 é totalmente compatível com uma episiotomia.

Assim sendo e uma vez que não se pode falar, pelos motivos aduzidos, de uma rasgadura ocasionada pela má utilização de instrumentos, o tribunal teve também que dar como não provados os factos vertidos em cc). No que diz respeito à não utilização de qualquer anestesia aquando da sutura efectuada pelo arguido, importa referir que a testemunha C afirmou apenas que o arguido a iniciou sem anestesia local, sendo que só a administrou quando aquela o alertou para o fazer. Por outro lado, conforme se referiu supra e pelos elementos probatórios já aduzidos, não se pode falar em ausência total de anestesia, já que à assistente foi administrada, por duas vezes, a epidural, que, segundo afirmou a Sra. Médica anestesista, atenua as dores que, como é do conhecimento geral, são muitas aquando de um parto, sendo certo que a testemunha FS afirmou que em condições normais, não seria necessário outro tipo de anestesia para a episiorrafia além da epidural.

Uma vez que não é sequer lógico o alegado em dd) e não existe naturalmente qualquer prova que a sutura efectuada pelo arguido tenha lacerado tecidos, o tribunal teve que dar tais factos como não provados.

No que diz respeito aos factos vertidos em p), o tribunal deu-os como não provados, uma vez que não foi produzida qualquer prova sobre os mesmos.
Já no que concerne aos narrados em q), o tribunal deu-os como não provados com base nos depoimentos das testemunhas AB e Dra. IM, em conjugação com os documentos de fls. 25 e 30.

Com efeito, não obstante a reanimação efectuada, a verdade é que não se pode afirmar que o bebé ao ser retirado do interior da assistente não deu quaisquer sinais de vida.

O mesmo tinha um índice de Apgar muito baixo e nasceu muito deprimido, o que significa, não obstante, que estava vivo, sendo que a reanimação efectuada, ocorreu, precisamente por tal motivo, segundo resulta dos depoimentos das mencionadas testemunhas.

Pese embora a inexistência de malformações do bebé, o teor do relatório de autópsia de fls. 116 e 133 e o facto da gravidez ter decorrido normalmente, conforme resulta de fls. 345 a 352 e afirmaram a própria assistente e a testemunha JP, a verdade é que atenta a causa da morte e o facto da mesma ter ocorrido intra-parto, conforme resulta do teor da consulta técnico-científica e dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Prof. Doutor PR, a verdade é que, até pelo teor algo conclusivo de tais factos, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em v). De referir que o peso do bebé no momento do nascimento é o que foi dado como provado no ponto 22 e pelos motivos a propósito indicados.

Pese embora o teor do certificado de óbito de fls. 103 e do resumo clínico do recém-nascido de fls. 72, a verdade é que, segundo o relatório de autópsia de fls. 133, a causa da morte foi a encefalopatia hipoxico-isquémica grave, que, em linguagem comum, significa uma insuficiente irrigação do cérebro por falta de oxigenação adequada.

Assim sendo, o tribunal teve de dar como não provados os factos vertidos em oo). De salientar que resulta do teor do resumo clínico de fls. 72, que houve uma boa evolução do ponto de vista infeccioso, com PCR (proteína c reactiva) negativa desde o dia 6., sendo certo que o relatório de autópsia faz ainda alusão à existência de infecção a nível pulmonar, mas relaciona-a com a circunstância da recém-nascida ter estado ventilada e não com a infecção neonatal.

Tendo em consideração que a própria assistente afirmou ter saído do hospital sem ter tido alta, mas por sua iniciativa e vontade, o tribunal teve que dar, necessariamente, como não provados os factos narrados em pp).

Uma vez que não foi produzida qualquer prova sobre os mesmos, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em hh) e qq).

Dado que o único elemento probatório sobre o mesmo é o documento de fls. 460, que nem sequer se encontra emitido em nome da assistente, o tribunal teve que dar como não provados os factos vertidos em ii).

Uma vez que o Sr. Prof. Doutor PR negou que tal ocorresse necessariamente, referindo, inclusivamente que há muitos anos se faziam partos instrumentados sem o pólo encefálico ter atingido o plano III de Hodge, o tribunal deu como não provados os factos vertidos em mm).

Tendo em consideração os timings referidos pelas testemunhas mencionadas supra a propósito do tempo necessário para realização de uma cesariana e que motivaram a resposta ao ponto 38., o tribunal deu como não provados os factos narrados em nn).

Dado que as próprias enfermeiras, as testemunhas AB, FS e CC o negaram, o tribunal deu como não provados os factos vertidos em aa).

Pese embora as declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas JP, DP e CP, que, salvo o devido respeito, não podem basear convicções do tribunal em termos médicos ou científicos e o teor de fls. 459, que em bom rigor, nada diz quanto ao nexo de causalidade entre o nascimento prematuro do segundo filho da assistente e o parto em causa nos presentes autos, o tribunal deu como não provados os factos vertidos em ff), com base no teor do relatório pericial de fls. 122 a 126 que afirma ter a assistente apenas ficado com uma cicatriz como lesão permanente. De salientar que tal relatório pericial refere “penetração de espéculo de tamanho médio sem qualquer dificuldade. Cervix sem lesões. Toque sem despertar dor. Fundos de são livre e indolores”.

E o próprio documento junto pela assistente a fls. 360 refere que, não obstante as queixas apresentadas por aquela, o médico, da observação que realizou, constatou precisamente a existência de cicatriz, indolor à palpação, sem fissuras e a mucosa sem evidência de lesões.

Os factos vertidos em bb) tiveram, necessariamente, que ser dados como não provados, uma vez que, segundo afirmaram o arguido e as testemunhas FS e CC, nada indiciava aquando da administração da epidural à assistente, a existência de sofrimento fetal, sendo que relativamente à mãe, tudo evoluía como normalmente ocorre num parto. É certo que conforme consta dos CTG de fls. 32 a 47 e é mencionado na consulta técnico-científica, os batimentos fetais – taquicardia por alguns períodos -, deveriam ter sido considerados, sendo que o Sr. Professor esclareceu em sede de audiência que tal significa que deveria ter sido tirada a temperatura à assistente. Ora as testemunhas CC e FS afirmaram que o fizeram, sendo tal tarefa sua, e que a assistente não tinha febre, razão pela qual não registaram na folha de enfermagem, sendo certo que a própria assistente afirmou que só se sentiu febril já na sala de parto e confirmou que as enfermeiras lhe mediram a febre algumas vezes. As referidas testemunhas que monitorizavam o CTG, afirmaram que as alterações nos batimentos fetais registadas no aparelho se deviam a questões relacionadas com o posicionamento da assistente e funcionamento do próprio aparelho e que, rapidamente, eram solucionadas.

É certo que resulta dos autos um resultado de análises clínicas, a fls. 66, datado de 9 de Setembro de 2008, pelas 19 horas e 50 minutos, que evidencia a existência na assistente de uma leucocitose com neutrofilia e, como tal, de uma infecção aguda no organismo daquela, sendo certo que tais análises foram requisitadas pelo arguido.

Contudo, o arguido negou tê-las visto antes da sala de parto, sendo certo que a testemunha FS afirmou não as ter mostrado ao arguido, não obstante os resultados das análises serem entregues às enfermeiras que as colocam no processo e que as mostram ao médico, como também foi afirmado pela testemunha CC.

O arguido afirmou que pediu as análises não por ter suspeitado de algo, mas por causa da epidural.

Pese embora não se afigure minimamente credível que tendo um médico solicitado análises clínicas, depois não se preocupe em ver os resultados das mesmas, assim como não é credível que o arguido as tenha solicitado por causa da epidural, já que esta foi ministrada cerca das 18 horas e o resultado impresso menciona quase a hora da administração da segunda epidural, a verdade é que não foi produzida a mínima prova acerca do motivo pelo qual o arguido solicitou as análises e sobre se, efectivamente, as viu antes do momento em que afirma tê-lo feito. É que ninguém se lembra sequer de terem sido realizadas análises à assistente, nem a própria.

Assim sendo, forçoso é de concluir que não foi produzida prova relativamente aos factos vertidos em bb), sendo certo que sempre se dirá que tal nem sequer é consentâneo com a conduta que se espera de um médico. Com efeito, não se vislumbra, perante as regras da experiência comum e normalidade da vida, como é que um médico, intencionalmente, opta, deliberadamente, por manter em sofrimento alguém.

A conduta do arguido descrita na acusação como tendo sido causal da morte da bebé é a utilização de fórceps sem que estivessem reunidos os pressupostos necessários para o efeito: dilatação completa e apresentação cefálica, pelo menos, no plano III.

Uma vez que não se logrou provar que tal sucedesse, conforme já se referiu supra e pelos motivos aí aduzidos, o tribunal teve, necessariamente, que dar como não provados os factos vertidos em r), z) e gg), sendo que, no que diz respeito aos narrados em r) há ainda que salientar que o tribunal não atendeu aos demais factos que constam da acusação, uma vez que os mesmos não traduzem em que consiste uma encefalopatia hipoxico-isquémica, mas sim o resultado de exames realizados à bebé, já no Hospital de Santa Maria e que reflectem, quando muito, as lesões que resultaram de tal encefalopatia – cfr. fls. 72.

Mas sempre se dirá que, mesmo em sede de audiência de julgamento, não se logrou provar que o arguido pudesse ter previsto a infecção materna mais cedo do que o fez e que devesse ter optado, ainda que mais cedo, pela realização de uma cesariana.

O Sr. Perito médico afirmou, inclusivamente, que a existência de infecção materna implica a administração de antibiótico e não necessariamente e, só por si, a realização de uma cesariana.

Como já se mencionou supra, as Sras. Enfermeiras e a própria assistente disseram que esta nunca teve febre antes da sala de parto; não se fez prova que o resultado das análises da assistente tivessem sido conhecidos antes do momento do parto e não se provou, pelos motivos já aduzidos, que a utilização de fórceps não pudesse ser efectuada e que o arguido tivesse, necessariamente, de recorrer à realização de uma cesariana, dado que, desde logo, não se conseguiu provar qual a dilatação e qual o plano do pólo encefálico no momento exacto do parto; o Sr. Perito médico afirmou não ser anormal um período de 10 horas entre o rebentamento das membranas e o nascimento; que o período expulsivo, no seu todo, não foi muito demorado e esclareceu, várias vezes, em sede de audiência de julgamento que perante os resultados do CTG, não existem sinais que aconselhassem uma decisão de parto por cesariana, nem pode afirmar que esta via pudesse ter evitado o resultado.

De salientar o comentário do Sr. Prof. Doutor PR, a fls. 319, segundo o qual, perante os elementos clínicos que analisou e que constam dos autos, existia “um processo inflamatório/infeccioso com provável envolvimento fetal, como é sugerido pela febre intraparto e as alterações do hemograma realizado durante o trabalho de parto e que a endometrite puerperal e a sepsis neonatal precoce sustentam; as alterações verificadas no registo cardiotocográfico (taquicardia e variabilidade reduzida em certos períodos) parecem traduzir esse envolvimento fetal, prévio ao período expulsivo”.

Os elementos probatórios apontam assim para a existência de uma infecção materna que terá afectado o bebé ainda intraparto sendo que, como se refere na consulta técnico-cientifica de fls. 318 e ss., “a coexistência de processo inflamatório/infeccioso com hipoxia-isquémia fetais cria um efeito de potenciação mútua no sentido do estabelecimento de lesão neurológica”.

E a verdade é que, pelos motivos já supra aduzidos, não se logrou provar que o arguido pudesse ter previsto mais cedo a existência de infecção materna e de hipoxia-isquémia fetais.

De salientar que o tribunal não teve em consideração alegações de índole exclusivamente conclusiva ou adjectivos que nada relevam para a decisão. De referir ainda que o pedido de indemnização civil formulado se limita a alegar a existência de lesões no bebé e na demandante, sem, contudo, as concretizar, remetendo para relatórios e documentos que o tribunal não conseguiu, com segurança, aferir quais são, razão pela qual, teve em consideração a factualidade constante da acusação quanto a tal questão”.

Do recurso interlocutório

B.2 – A mandatária da recorrente deixou “cair” o recurso interlocutório que interpôs de despacho lavrado em acta de fls. 829-831, despacho de indeferimento de que interpôs recurso em audiência de julgamento, abandonado por incumprimento do disposto no artigo 412º, nº 5 do Código de Processo Penal, que obriga a referência à sua existência e declaração de interesse na sua subida.

Dispõe este preceito que “(5) havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse”.

Essa declaração de interesse não resulta existente de forma explícita no seu recurso da decisão final.

No entanto, entende-se não ser de convidar a recorrente a esclarecer tal ponto na medida em que a mesma refere esta matéria nas suas conclusões XIII e XIV do recurso da decisão final.

Apesar de, em si e enquanto conclusões finais não terem qualquer relevo, porquanto fora da economia da decisão e seus fundamentos, essa irrelevância tem, ao menos, o mérito de demonstrar o interesse da recorrente na sua apreciação.
Acresce que o original do recurso interlocutório - e o despacho da sua admissão - foi junto aos autos após prolacção da sentença.

De qualquer forma, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reduzido a pó o citado nº 5 [Acórdãos n.º 288/00, 388/01, 401/2001, 320/2002, 191/2003, 529/2003, 322/2004, 405/2004, 724/04, 174/2006, 381/2006, 476/2006, 215/2007 (Com voto de vencido do Cons. Mota Pinto)] o que tudo nos leva a conhecer de imediato do recurso retido, não obstante a posição de recorrente ser ocupada por assistente e não por arguido.

Que pretende a mandatária da assistente com o recurso interlocutório? A simples alteração do objecto do processo em plena audiência de julgamento, aquele já delimitado pela acusação deduzida contra o arguido nos presentes autos.

E pretende-o porquê? Na estrita medida em que não usou dos poderes que a lei lhe conferia de reacção contra o despacho de arquivamento do Ministério Público em sede de um outro inquérito posterior e por factos alegadamente ocorridos ou constatados posteriormente, o inquérito nº 474/11.4TAPTG, “que se encontrava em fase de Inquérito, a decorrer nos Serviços do Ministério Público do Tribunal a quo”, como afirma.

Mas já não corre na estrita medida em que a assistente, naquele inquérito, não reclamou hierárquicamente nem ali requereu a abertura da instrução.

Não o fazendo ali, pretende fazê-lo aqui. Isto é, não tendo reagido contra o arquivamento do inquérito respectivo, pretende que ele se realize durante a audiência nestes autos, daí que apresente a denúncia e aspire que sobre a mesma se produza prova.

Não pode! E não pode na medida em que o objecto do processo está cristalizado enquanto nos próprios autos se não demonstrar a existência de factos novos relevantes e não constantes da base acusatória.

Como se sabe – ou geralmente é sabido - o actual Código de Processo Penal português perfila-se como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal. [1]

Daqui resulta, como mera assunção constitucional do princípio do acusatório, a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento (dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório) e a distinção entre fases do processo (no caso, acusação e julgamento), no que é definido como a dimensão material daquele princípio. [2]

É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º e 53º do Código de Processo Penal (com as naturais limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).

E o juiz de julgamento está impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restando-lhe o papel de direcção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).

Os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal surgem como um permissivo alargar do objecto do processo e da extensão da cognição, mas com balizas substantivas e sujeição a apertados pressupostos de controlo e, em parte, na disponibilidade do arguido no âmbito de um determinado processo onde já tenha sido deduzida acusação.

Esta é matéria que parece não ser facilmente aceite pela ilustre mandatária da assistente que pretende forçar a introdução de factos novos neste processo para além do que consta da acusação.

“Para além” em sentido temporal – eventualmente ocorridos ou constatados posteriormente - e “para além”, igualmente, no sentido de os factos que pretende ver discutidos constituirem uma alteração substancial dos factos descitos na acusação, o que sempre levaria à aplicação do regime do artigo 359º do Código de Processo Penal.

Para além disto – que não é nada pouco – falha à pretensão da assistente a base processual para a admissão dos factos em discussão nos presentes autos: a constatação de que os factos “novos” não se apuraram “no decurso da audiência”.

Nem sequer são factos novos, são alegações novas. É que a aceitação de factos novos não tem o sentido ambicionado pela assistente.

Esta pretende “declarar” a existência de factos “novos” não resultantes da prova produzida em audiência, mas sim da “declaração” de existência desses factos pela própria assistente através de uma denúncia já objecto de despacho de arquivamento.

Aliás, a assistente é clara na sua pretensão de “ver apreciados os factos constantes da certidão extraída do processo nº 474/11.4TAPTG”. E até pretende produzir prova sobre os mesmos.

Ou seja, quer realizar um inquérito novo e em sede de audiência de julgamento. Uma pura inversão do pretendido e consagrado pelo legislador: a declaração de factos a investigar e subsequente prova sobre os mesmos, quando deveria ser o inverso, a constatação dos factos pela prova já admitida e produzida e a eventual aceitação desses mesmos factos.

Neste sentido a sua pretensão é, obviamente, de indeferir.

Naturalmente que isto não obviaria à aceitação da existência de factos não descritos na acusação – mesmo se os descritos na denúncia - se reconhecidos pela prova produzida em audiência de julgamento e caso o tribunal recorrido os tivesse constatado no decurso daquela.

Aliás, essa é a razão por que o despacho recorrido lavrado em acta está dividido em duas partes:

primeiro de indeferimento de junção de certidão; depois da admissão – na segunda parte – de que factos novos (alteração dos descritos na acusação) poderiam ser aceites pelo tribunal recorrido caso os entendesse demonstrados no decurso da audiência.

Nesse sentido, a segunda parte do despacho recorrido não indeferiu o pretendido pela assistente, apenas relegou o conhecimento dos alegados factos novos para a audiência e para o âmbito de conhecimento da matéria de facto.

Neste sentido o recurso interlocutório não tem objecto: não foi indeferida a pretensão da assistente.

Esta pretensão só após, em sede de conhecimento da matéria de facto e na altura da formação da convicção, se não concretizou como ela a pretendia. Mas já fora do âmbito do recurso interlocutório.

Apenas a junção da certidão foi indeferida e bem. Subtileza que, não percebida, se tornou insindicável.

Daqui decorre que quer na pretensão de junção da certidão, quer na pretensão de admissão, por “declaração” em denúncia de factos não constantes da acusação é o recurso interlocutório improcedente.

Do recurso principal

B.3 – Em reflexão geral, cumpre começar por afirmar que não cabe ao Tribunal pronunciar-se sobre a estratégia de recurso, naturalmente da competência da ilustre mandatária da assistente, mas apenas cumprirá, inicialmente, fazer ressaltar dois aspectos: a falta de concisão – e alguma confusão – nas conclusões; a concentração nas declarações em audiência da Mmª Juíza do tribunal recorrido. Ambos são aspectos coibitivos de uma melhor percepção dos interesses recursais da assistente e que se impõem esclarecer com algum espírito pedagógico.

B.3.a) – Quanto à primeira matéria, vem a jurisprudência entendendo, de modo pacífico, que as conclusões hão-de constituir uma enunciação resumida, explícita e inteligível das questões equacionadas pelo recorrente, visando facilitar a realização do contraditório e balizar a decisão; em suma, pretende-se que sejam uma súmula das razões da discordância da decisão impugnada.

Na motivação, o recorrente expõe, explica e desenvolve os fundamentos da discordância relativamente à decisão impugnada e os que conduzem à solução que pretende ver consagrada.

Nas conclusões apresenta proposições sintéticas que decorrem do que se expôs e considerou ao longo da motivação, procede-se a um enunciado conciso daquela exposição.

Assim se concretiza o dever de colaboração da recorrente na formulação das questões controvertidas e delimitação objectiva do âmbito do recurso, e se contribui, do mesmo passo, para a defesa dos direitos da recorrente e do arguido na realização da justiça.

Como afirmava Alberto dos Reis, “para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359)".

Assim, o ónus de concluir obtém-se “pela indicação resumida dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho. Mais simplesmente, enunciação abreviada dos fundamentos do recurso” (idem, ibidem), os quais devem ser claros e concretos “pois aos tribunais não incumbe perscrutar a intenção das partes, mas sim apreciar as questões que são submetidas ao seu exame” (idem, ibidem) e não a “reprodução longa e indigesta” das motivações (idem, pag. 360).

Ora, nas suas conclusões a recorrente não é concisa e, principalmente, não é clara, nem sintética, nem sistemática, criando uma extrema dificuldade na apreensão das suas intenções recursivas, o que se procurará obter com algum esforço de interpretação.

B.3.b) – Quanto ao segundo ponto, a inclusão de apreciações negativas e inúteis sobre o comportamento da Mmª Juíza do tribunal recorrido parece ter feito centrar atenções no inútil, fazendo esquecer o importante.

E inútil na medida em que o comportamento da Mmª Juíza não é objecto de recurso. Só o seria se tivesse sido violado um princípio geral de isenção, imparcialidade e independência.

Enquanto alegação – embora deficiente - de violação de um princípio de imparcialidade está em causa a noção de imparcialidade do Tribunal.

Inexistindo normativo no ordenamento jurídico português que explicitamente defina tal conceito, dispõe o artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) [3] - a vigorar na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional - que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei …”.

Este normativo estabelece garantias dos quais ressalta a “imparcialidade”, enquanto elemento “constitutivo e essencial” da noção de Tribunal.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a desenvolver jurisprudência concretizadora do conceito de “tribunal imparcial” que se impõe recordar:

XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário.

XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.

(Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002)

Também o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 124/90 (v. igualmente os acórdãos nº 935/96 e 186/98), vem a reconhecer aquelas vertentes do conceito “imparcialidade”, de Tribunal imparcial, na consagração constitucional do princípio do acusatório (artigo 32º, nº 5 da CRP) e do princípio do processo justo e equitativo (“a due process of law”) na consagração das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1 da CRP):

«Ao consagrar o nº 5 do artigo 32º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é ……….um julgamento independente e imparcial».
………………..
“Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 ………..”

“um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law”.

São, pois, estes os parâmetros normativos que regem a noção de “imparcialidade” no ordenamento constitucional português.

A que devemos adicionar a própria previsão de necessidade de “independência” dos Juízes – artigo 203º da CRP – e que resulta como consequência pensada na estatuição de um regime de garantias e incompatibilidades – artigo 216º da CRP.

E acrescenta aquele Tribunal no Acórdão nº 135/88 (Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988):

Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.

Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial.

Ou seja, o Tribunal Constitucional vem igualmente a consagrar as ditas vertentes objectiva e subjectiva do conceito de “imparcialidade”.

No caso não está, portanto, em apreciação a vertente objectiva daquele conceito, sim e apenas a vertente subjectiva. Está em causa apurar, somente, esta última hipótese, não apenas na possibilidade (pessoal) de a Mmª Juíza decidir de acordo com ela, também na perspectiva de as suas decisões surgirem perante a comunidade como isentas, imparciais.

Impõe-se, portanto, apurar se algo existe nas alegações da assistente que impeça que o julgamento realizado surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial ou, de outra forma, se há algo “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.

Na perspectiva subjectiva importa fazer apelo a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao “homem médio” (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto,

O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique”, no dizer do Tribunal Constitucional.

Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, “motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes”. [4]

Ou, no dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Ora, nada nas alegações da assistente aponta para a exclusão da presunção de imparcialidade pessoal referida pela jurisprudência do TEDH.

As afirmações imputadas à Mª Juíza estão no âmbito do poder de polícia e direcção da audiência de julgamento. Nada que se possa inserir no conceito de situações “rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Não ocorre qualquer violação desses princípios, o que se afirma em absoluto depois de ouvidas e contextualizadas as situações constantes das motivações, sendo pois irrelevante o que se refere nas motivações e na conclusão XV quanto ao comportamento da Mmª Juíza.

B.4 – Como é sabido o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Quais, então, os fundamentos do recurso da decisão final?

B.4.a) – A assistente alega a existência de uma nulidade por violação do disposto no artigo 92º, nº 1 do Código de Processo Penal, isto é, a não tradução de todas as declarações prestadas em audiência – declarações em língua castelhana - fundamento constante das motivações do recurso da decisão final que deixou decair por a não ter levado às conclusões.

Implicaria um convite à inclusão dessa matéria tratada nas motivações nas conclusões de recurso. No entanto, a simplicidade da matéria e a manifesta exclusão do objecto de recurso não justificam a existência desse convite.

Esta é uma questão que, consabidamente, é uma nulidade sanável, de invocação imediata, no próprio acto, nos termos do artigo 120º, nº 1 e 3, al. a) do Código de Processo Penal. Isto é, a assistente deveria ter arguido logo, no acto, a nulidade que estava a ser praticada, se assim o entendia, conforme deflui cristalinamente do disposto no citado preceito.

Porque sanada, fora do âmbito do recurso, também por efeito do nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal (não se trata de “nulidade que não deva considerar-se sanada”).

B.4.b) – Também alega violação “dos princípios de produção de prova, consagrados nos artigos 128º e 129º nº3 do Código Processo Penal” por referência à valoração das declarações do arguido, depoimento de testemunhas na relação com os esclarecimentos prestados pelo perito médico, por referência aos factos provados sob 17, 37, 38, 39 a 41, afirmando que “foram incompreensivelmente consideradas as explicações dadas pelo arguido, como se de perito se tratasse, e em igualdade de circunstâncias com a Drª IM, testemunha dos factos e o Senhor Professor Doutor PR, Perito Médico, o que viola o artigo 410º nº 2 al. c), por estarmos perante um erro notório na apreciação da prova”.

B.4.c) – É patente, por outro lado, que a recorrente pretende recorrer em termos de “revista alargada” por invocação do vício contido no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, designadamente a sua al. c), o “erro notório na apreciação da prova”.

Mas há aqui uma incompreensão do conceito de “erro notório na apreciação da prova”.

De facto, no quinto parágrafo (!) da sua conclusão XIV a recorrente afirma:

“Ora ao dar-se como provados factos como os que acima se descrevem não poderiam os mesmos deixar de ser valorados e pesar na decisão final, quanto à conduta do arguido, patenteando-se de novo um erro notório na apreciação da prova”.

Daqui se extrai que a assistente entende por “erro notório na apreciação da prova” a não consideração como crime da conduta dada como provada ao arguido. Uma espécie de “erro notório na apreciação do relevo jurídico dos factos”.

Ora, é aceite pela doutrina e pela jurisprudência, de há muito e sem divergências, que erro notório na apreciação da prova, como vício relevante em processo penal, é o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento na apreciação de facto e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

O erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» (Ac. STJ de 12.11.98, no BMJ 481-325).

«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente, nem – como a recorrente o entende – na supostamente errada integração de direito dos factos provados e cuja existência se aceita.

B.4.d) – Afirma, igualmente, impugnar de facto os factos dados como provados em “7, 22, 28, 29, 39, 40, 41 e 43 da Fundamentação de Facto” – da sua conclusão V – entenda-se, dos factos provados com essa numeração.

No entanto, depois de fazer tal afirmação, olvida levar às conclusões os fundamentos de tal impugnação, apenas se extraindo das suas conclusões a sua inconformidade quanto aos factos provados 17, 39, 41 (conclusão IX), 37, 38 (conclusão X) e 43 (conclusão XII) e por referência à já referida incompreensão pelo sopesar dos depoimentos de testemunhas em detrimento da exclusividade, supõe-se, da peritagem médica.

Em termos de impugnação de facto a recorrente limita-se a impugnar – nos termos do artigo 412º, nºs. 3 e 4 do Código de Processo Penal – os factos dados como provados em 22) [sem conclusão autónoma] e 43) [aqui a conclusão XII] e mesmo assim não cumprindo os ónus legais, já que olvida apresentar a prova que imporia diversa decisão de facto.

Apesar disso, o Tribunal irá apreciar as razões invocadas pela recorrente de forma genérica na sua conclusão V para ultrapassar a óbvia deficiência conclusiva do recurso quanto àqueles pontos de facto, já que – à excepção feita aos factos provados sob 22) e 43) – as restantes questões suscitadas pela recorrente não são impugnação de facto, sim diversa apreciação de direito a propósito dos factos referidos pela recorrente.

Por fim, as conclusões XIII, XIV-1º § e XX (no que respeita à agravante) dizem respeito a matéria que não é objecto do processo e que corresponde à pretensão da assistente já afastada pelo despacho objecto de recurso interlocutório.

B.4.e) – De tudo resulta que são questões a apreciar: o acerto da apreciação probatória quanto aos factos provados sob 7, 22, 28, 29, 39, 40, 41 e 43 (o erro na apreciação da prova em sede de “revista alargada” ou a centralização da questão em sede de facto ou de direito); a invocada violação de princípios de apreciação probatória; a qualificação jurídica das condutas do arguido e a procedência do pedido cível.

Algumas questões aparentemente de facto vêm misturadas ou confundidas com questões de direito, o que torna difícil vincar a tese da assistente, mas impõe-se conhecer de ambas nos mesmos pontos de conhecimento, de forma a tornar mais escorreita a argumentação.

B.5.1 – Não obstante questionavelmente motivado e concluído, já que a recorrente não indica qual a prova que sustenta a sua inconformidade quanto ao ponto 22) da matéria de facto provada – um dos dois únicos pontos em que se pode considerar qua a recorrente recorre de facto nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, não obstante não indicar a prova que imporia diversa apreciação - o tribunal constata que existe documentação que aponta para um peso à nascença de 3.000 gr (fls. 25), 3.215 gr e 3528 gr de peso (autópsia de fls. 116).

Assim, o facto provado sob 22) ficará como está em função da “História Clínica de recém-nascido” de fls. 25 e proveniente do Serviço de Puericultura e Pediatria do Hospital...de Portalegre, que indica o peso da criança à nascença como sendo 3.000 gr., pois que esse, o peso à nascença, é o facto dado como provado, e não o peso à data de realização da autópsia, que não se sabe qual seja, pois que indicados dois, qualquer deles irrelevante.

B.5.2 – Relativamente ao facto provado em 43) – o outro facto impugnado - a circunstância de uma testemunha ter dito que a cesareana se faria em 15 minutos não implica que o tribunal tenha que dar os 15 minutos como provados.

A função do tribunal recorrido é a de apreciar toda a prova produzida e é certo que o fez, como se extrai de fls. 867 dos autos (23 da sentença) quer por referência aos depoimentos de outras testemunhas, quer à apreciação das afirmações periciais.

E a fundamentação do tribunal recorrido é clara e esclarecedora, tornando a interpretação da recorrente quanto ao dito pela testemunha pouco crível, isto sem termos presentes todas as circunstâncias de que o tribunal recorrido se apercebeu na plena operatividade dos princípos da imediação e da oralidade.

Como é sabido, “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” – Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 Março 2002 (Rel. Cons. Santos Cabral, Processo 3580/01).

E a simples circunstância de a cesareana ter que ser feita com outro obstetra ou cirurgião, de não haver no momento outro obstetra no hospital e ainda se ir ver da disponibilidade do cirurgião, tornam aqueles 15 minutos uma hipótese muito remota.

B.5.3 – Passemos agora aos factos que a recorrente aponta como “impugnação de facto” mas que de facto o não são.

Quanto ao facto dado como provado em 7) a recorrente insurge-se contra a circunstância de ele não ter conduzido a uma condenação por ofensas corporais simples na medida em que o “toque vaginal” efectuado pelo arguido constituiu uma ofensa corporal.

Ou seja, não é matéria de um recurso de facto, sim a inconformidade com a não consideração de preenchimento de um tipo penal, o que coloca uma questão de subsunção dos factos ao direito, não uma questão de apreciação de facto.

O mesmo ocorre quando a recorrente afirma que ocorreram outros crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, quando o arguido usou ventosas e fórceps para a realização do parto e suturou o períneo sem anestesia.

Trata-se de claras questões de integração jurídica que serão analisadas infra.

B.5.4 – De igual forma se constata pelo teor do recurso (motivações a fls. 956-957) que a recorrente não se insurge contra a prova dos factos sob 28), 29) e 36), com os quais está de acordo, apenas se insurgindo quanto à aplicação do direito, por entender que os factos dados como provados em 28) e 29) causaram o facto dado como provado em 36).

Ora, essa é conclusão que os factos não permitem.

Desde logo porque o facto referido em 36) ocorreu em 9 e 10 de Setembro de 2008 (factos provados de 1 a 20) e os factos referidos em 28) e 29) ocorreram em 11 de Setembro de 2008 e 6 de Outubro de 2008.

Ora, se posteriores, não poderiam ser causais do antecedente.

Acresce que foi detectada infecção no Hospital de Portalegre às 19.50 de dia 9 de Setembro de 2008 – relatório pericial a fls. 320 e fls. 66 – algumas horas antes do nascimento (00 h 15 m de 10-09-2008).

Muito tempo antes do ocorrido nos factos 28 e 29, portanto.

De qualquer forma, essa é conclusão – num sentido ou noutro – que não afecta os factos dados, e bem, como provados.

Por outro lado, isso não permite concluir pela prática de um crime previsto no artigo 144º do Código Penal, considerando também que o arguido disso não foi acusado nem as qualificativas resultaram provadas.

B.5.5 – Por fim, na análise das razões que a recorrente aponta para fundar as suas discordâncias quanto ao decidido de facto, cumpre afirmar que a mesma não discorda do dado como provado em 39), 40) e 41), apesar de criar essa aparência.

Apenas retira de tais factos conclusões diversas, o que ocupa a quase totalidade das suas motivações neste capítulo. Mas retirar conclusões diversas não quer significar discordância com o provado.

De igual forma, a fonte de prova de tais factos – que a recorrente não aceita que sejam o arguido e os médicos por este indicados como testemunhas – é a totalidade dos médicos ouvidos, no dizer do tribunal, e os factos não são favoráveis ao arguido, bem pelo contrário, são uma das possibilidades causais de morte e do seu eventual actuar negligente.

Aliás, a recorrente nem sequer põe em causa o acerto do provado em 39), 40) e 41).

A mistura inconsequente de infecção, tetraplagia e lesão medular, que merece ser desenvolvida adiante, torna-se pouco clara, o que haverá que elucidar em sede própria.

Mais uma vez a necessidade sentida de fazer um inútil apelo à intervenção da Mmª Juíza torna a motivação rebarbativa e pouco consequente.

B.6 – Quanto à alegada violação “dos princípios de produção de prova, consagrados nos artigos 128º e 129º nº3 do Código Processo Penal” por referência à valoração das declarações do arguido, depoimento de testemunhas na relação com os esclarecimentos prestados pelo perito médico, desde logo se impõe esclarecer que o tribunal não está vinculado, no seu objectivo de apreciação probatória, a prova vinculada ou tabelada, já que vigorante o princípio da livre apreciação probatória.

Naturalmente que o peso da opinião pericial em matéria de especial complexidade e de conhecimento especializado do perito sobreleva sobre a de qualquer outro interveniente processual, mas a razão é a base e o limite dessa apreciação.

E é esse o regime que decorre dos artigos 127º, 128º e 163º do Código de Processo Penal que, ao contrário do defendido pela assistente recorrente, são as normas que regulam a matéria, não o disposto no art. 129º do Código de Processo Penal.

É certo que se suscita, com os médicos inquiridos como testemunhas e que emitem um “juízo” médico sobre a matéria dos autos, um problema de cariz processual que outras legislações resolvem através da criação de uma figura híbrida de “testemunha” e “perito”, o “temoin-expert”.

Confusão que também ocorre quando se pretenda fazer – erradamente - a analogia com os sistemas anglo-saxónicos, que em regra apelidam o “perito” como “expert-witness”, o que se compreende pela generalizada inexistência – por ora – de peritagem oficial ou, ao menos, pela generalizada e sistemática aceitação de opiniões periciais de testemunhas que o tribunal aceite com a qualidade de “expert-witness” e no exercício de um contraditório amplo e privatístico no âmbito específico da perícia.

O sistema processual penal português não consagra tal figura híbrida, ou um sistema de perícias contraditórias, acolhendo um sistema oficial de peritagens, designadamente as de cariz médico-forense. [5]

Mas não proíbe a testemunha de “emitir opinião” sobre matéria técnica ou científica que esteja no âmbito dos seus conhecimentos, desde que assente num conhecimento perfeito e não parcial dos factos.

O peso relativo a atribuir a tais “opiniões”, aqui no sentido positivo de opinião sustentada numa correcta percepção dos factos aceites pelo tribunal como provados, racionalmente fundada, de acordo com os princípios técnicos ou científicos a atender e passível de revisão face a “provas contrárias ou raciocínios mais bem fundamentados”, está necessariamente, por imposição legal, inserido no princípio da livre apreciação probatória e dependente - na sua aceitação substancial - da devida fundamentação do tribunal recorrido. [6]

Como já afirmou o relator, é «dever do tribunal, como do filósofo, “defender o raciocínio dialógico entre as opiniões, a necessidade de justificar o opinado não a partir do inefável, do irredutível ou do inverificável, mas sim através do publicamente acessível, do inteligível”» (Fernando Savater). [7]

E, para esse desiderato, ouvir várias opiniões válidas e consistentes racional e científicamente, apresenta uma coloração positiva.

Mas enfrenta um obstáculo inultrapassável – com consagração legal – a prevalência formal e substancial da opinião do perito, que apenas pode ser afastada pelo tribunal nos termos do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal, no que muitos consideram uma limitação ao princípio da livre apreciação e que nós vemos como uma regra qualificada da livre apreciação probatória (v. g. o nº 2 do artigo 163º do Código de Processo Penal).

Ou seja, a opinião emitida por um médico que seja testemunha no processo que incida sobre matéria médica objecto do processo, não obstante qualificada pelo seu conhecimento profissional, será sempre uma opinião não qualificada, face à opinião pericial.

Daqui resulta que, havendo discrepância entre a opinião pericial e a opinião de um qualquer médico que seja testemunha, prevalecerá sempre a opinião pericial, a não ser que o tribunal fundamente, com a razão e os conhecimentos técnicos e científicos implicados no caso, a divergência da opinião pericial, se assumir como sua a “opinião” não (processualmente) qualificada de uma testemunha ou se optar por uma visão científica ou técnica própria.

Isto é, o artigo 163º, nº 2 do Código de Processo Penal é aplicável não só à convicção livre e racional do juiz enquanto processo interior mas racional de convicção e posterior motivação, também à apreciação probatória feita pelo tribunal relativamente a vários e diferentes meios probatórios, com uma obrigação legal e científica de fundamentar devidamente a não-aceitação da opinião pericial e o dar prevalência à “opinião” divergente constante de qualquer outro meio de prova.

Ora, no caso dos autos tal não ocorre, ou seja, o tribunal ao ponderar vários meios probatórios não se afastou da opinião pericial, pelo que não há violação dos princípios relativos à produção e apreciação probatória, designadamente do disposto nos artigos 127º, 128º e 163º do Código de Processo Penal.

Ou seja, não ocorre violação de qualquer regra de produção ou de apreciação probatória se às declarações e esclarecimentos periciais acrescentarmos as “opiniões” não discordantes de testemunhas qualificadas pelo seu conhecimento e experiência.

B.7 – Impõe-se, agora, apurar de forma sistemática e consequente a matéria factual dos presentes autos no que ao imputado homicídio e às ofensas corporais diz respeito.

Relativamente aos crimes imputados ao arguido deve notar-se que o homicídio é tido por negligente – e assim foi acusado - mas o Ministério Público decidiu acusar pela prática de um crime de ofensas corporais doloso. Simples, mas doloso. O que é obra.

Numa primeira aproximação à alegação da assistente de que ocorreu crime de ofensas corporais por realização de “toque vaginal”, uso de ventosas e forceps e realização de sutura à episiotomia, dir-se-á:

- as “ofensas corporais” por toque vaginal nem sequer são objecto do processo (o arguido não foi acusado por tal) e são uma técnica obstétrica essencial;

- a utilização das ventosas e dos fórceps e a realização de sutura à episiotomia, estão integradas nos procedimentos médicos eventualmente necessários, a definir em função do juízo sobre a sua necessidade e adequação, sobre o cumprimento das leges artis;

- a existir crime ele não será – por razões de facto e de direito - o previsto no artigo 143º, nº 1 do Código Penal (nem o previsto no artigo 144º do mesmo diploma, mas aqui apenas por questões de facto).

Desde logo convém deixar claro o que não interessa: o que não está em causa nestes autos, por ausência de factos provados, é a atribuição de diferenciação fáctica e normativa entre o nº 2 do artigo 150º e o artigo 144º do Código Penal. [8]

Depois convém recordar o que é óbvio de facto e que tem de ser a base de partida da apreciação a fazer nos autos: a assistente dirigiu-se ao Hospital de Portalegre porque no termo da gravidez, o que demonstra a necessidade de assistência e intervenção médica; o arguido agiu com intenção de realizar intervenção e tratamento médico-cirúrgico.

De facto, nem a intervenção do arguido é descabida, não consentida ou extemporãnea, nem o seu dolo é de ofensas corporais.

Ou seja, o arguido não quis causar ofensas à integridade fisica. O que se prova é que, bem ou mal, quis realizar intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos.

Desta forma as questões suscitadas a propósito e no âmbito das supostas ofensas corporais só têm resposta na previsão do artigo 150º do Código Penal - Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos.

Nunca no âmbito da previsão do artigo 143º do Código Penal.

Aqui é necessário ter presente o nº 1 do artigo 150º do Código Penal, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e que constituía a totalidade do artigo à data de entrada em vigor do denominado Código Penal de 1995.

Já afirmava o prof. Eduardo Correia a propósito do artigo 162º (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos) do seu ante-projecto na acta da 5ª sessão da Comissão Revisora do Código Penal: [9]

“O Autor do Anteprojecto começou por dar notícia do problema do tratamento jurídico das intervenções médicas e as soluções que lhe têm sido dadas.

Segundo uns as intervenções médiças não cabem no tipo das ofensas corporais ou do homicídio; segundo outros as intervenções são típícas mas assiste-lhes uma causa de justificação baseada no consentimento; ainda segundo outros as intervenções médicas estão abrangidas pelo exercício de um direito profissional dos médicos.

A última solução repugna-nos por representar a entrega total desta matéria a critérios médicos. A segunda é insuficiente na medida em que mantém o carácter típico das intervenções médicas. Resta-nos a primeira solução”.

E esta opção feita para o Código Penal de 1982 manteve-se no chamado Código Penal de 1995.

Não se tratava, nem se trata, neste nº 1, de um tipo penal, sim de uma “descrição de um conjunto de actividades que não se consideram tipicas”, no dizer do prof. Figueiredo Dias. [10]

Este preceito estatui que –“(1) - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.

Ou seja, trata-se de um “não-tipo” ou de uma norma de exclusão da tipicidade penal com quatro requisitos ou pressupostos. Não se considera existir ofensa à integridade física se a “intervenção e o tratamento” forem indicados, forem realizados por pessoa “legalmente autorizada”, não forem violadas as leges artis e se realizados com intenção de tratamento (“prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental”).

Portanto todos os actos praticados pelo arguido e referidos pela assistente – toque vaginal, ventosas e forceps e sutura do períneo – podem entrar na categoria de “intervenções e tratamentos” médicos e beneficiar da causa de exclusão da tipicidade penal referida neste número 1 do artigo 150º do Código Penal.

Em breve: não são crime se cumpridos os requisitos deles constantes.

Ou seja, com os factos provados nestes autos a penalização da conduta do arguido só seria feita através do nº 2 do actual 150º, introduzido pelo Lei n.º 65/98, de 02/09.

Tendo presente a norma (“2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal”) conclui-se existir aqui um tipo penal muito específico.

O que está suposto neste número 2 – que já é um tipo penal - é que o médico o seja legalmente, a “intervenção e o tratamento” sejam indicados e haja animus curandi. E o tipo será preenchido, isto é, só é penalizada a conduta, se ocorrer violação das leges artis e, por isso, se crie “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

Pode ocorrer crime praticado fora desta tipologia ou pela integração no crime de ofensas corporais simples em caso de dolo de ofensas corporais (i. é, ofensa à integridade física sem intenção de tratamento) ou de dolosa violação das leges artis (não interessa ao caso dos autos a hipótese de pessoa não habilitada).
Como está assente que o arguido é pessoa legalmente autorizada a praticar “intervenções e tratamentos” médicos e teve intenção de tratamento (e não dolo de ofensas corporais), não há, não pode haver, preenchimento do tipo de ofensas corporais simples praticado por médico habilitado e com intenção de tratamento.

Assim, a questão de saber se o toque vaginal, a utilização das ventosas e dos fórceps e a sutura do períneo, no caso, constitui ou não uma conduta penalmente relevante passa pela constatação de que qualquer dessas práticas foi realizada em violação das leges artis e criaram “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

Ora, no caso concreto as “intervenções e tratamentos” foram: (1) realizados por pessoa “legalmente autorizada”; (2) realizados com intenção de tratamento (animus curandi);

Resta saber se: (3) eram indicados; (4) se respeitaram as leges artis.

Considerando a previsão excludente do nº 1 do artigo 150º do Código Penal, quer a palpação bi-manual ou toque ginecológico, quer a episiotomia, são técnicas médicas essenciais e adequadas, estando ao abrigo da previsão excludente atrás citada.

Ambas sequer exigem um juízo suplementar a emitir sobre o cumprimento das leges artis, na medida em que, por si, não constituem “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

E a segunda de tais técnicas [incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto e prevenir que ocorra um rasgamento irregular durante a passagem do bebé] é objecto de controvérsia sobre a sua adequação para evitar o “rasgamento” irregular do músculo, ou seja, sobre a sua própria necessidade, mas isso não quer significar que não seja seguida como técnica entendida hoje como adequada em função da assunção de que o corpo feminino pode não conseguir, naturalmente, a passagem do nascituro.

Por outro lado, se o arguido é censurado no recurso não é pela realização da episiotomia, sim pela episiorrafia (sutura do períneo lacerado) sem anestesia local. Ora essa é prática habitual tendo presente a condição em que se encontra o músculo naquele momento.

De qualquer forma, repete-se, nestes dois casos não há dolo de ofensas corporais, nem “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

Nestes casos – toque vaginal, [11] episiotomia e episiorrafia (sutura da episiotomia) – pode já concluir-se não haver violação das leges artis, dada a essencialidade do seu uso em trabalho de parto e o inexistir prova de que tenha sido efectuado de forma dolosamente inadequada, nem com dolo de ofensas corporais (intenção de lesar a integridade física fora do âmbito do tratamento médico).

Quanto à necessidade de realizar nova sutura no períneo e de retirar restos da placenta, não pode o arguido ser por isso responsabilizado na medida em que foi a recorrente, com o abandono do Hospital sem alta médica, a permitir o surgimento do facto ou o não evitar do seu surgimento.

Resumindo, as condutas não preenchem o tipo de ofensas corporais contido no artigo 143º, nº 1, nem o tipo contido no nº 2 do artigo 150º, ambos do Código Penal.

E não integram o primeiro na medida em que o arguido agiu com intenção de tratamento e não com dolo de ofensas corporais ou dolosa violação das leges artis; não integram o segundo porque se não mostram violadas as leges artis e não foi causado “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.

Resta deixar para posterior momento a análise, neste campo, da utilização de ventosas e forceps, por para tanto ser necessário analisar as leges artis do caso.

B.8.1 – Na apreciação da prova a realizar devemos, em primeiro lugar, constatar que existem nos autos dois relatórios periciais de elevado valor da autoria de um perito médico nomeado pelo Ministério Público em inquérito, ou seja, um perito médico adequadamente nomeado segundo as aplicáveis regras relativas à perícia e constantes do Código de Processo Penal.

Esses dois relatórios - a I-168-171 e II-318-322 – subscritos pelo perito Prof. PM, contêm todos os elementos capazes de permitir uma adequada apreciação probatória em conjunto com o relatório de autópsia da infeliz criança, sem prejuízo de as naturais incapacidades do iudex peritus peritorum poderem determinar, se for caso disso, posteriores esclarecimentos.

Claros e cumprindo as exigências da emissão de pareceres científicos em sede judicial, os pareceres cumprem os passos reconhecidos como essenciais pela jurisprudência [12] para a aceitação de um juízo científico, a saber: assentarem em factos e dados suficientes, no caso os possíveis: a utilização de princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança; a devida aplicação aos factos do caso a ser julgado.

Esses passos são essencialmente devidos ao labor jurisprudencial do US Supreme Court na sua decisão Frye [13] e suas sequelas, as decisões nos casos Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc. (509 u.s. 579 - 1993), General Electric Co. et al . v. Joiner (000 u.s. 96-188 - 1997) e Kumho Tire Co., ltd., et al. v. Carmichael et al. (000 u.s. 97-1709 - 1999), vieram a definir as linhas de orientação para a admissão de pareceres científicos (“scientific expert testimony”).[14]

Temos, assim, que os relatórios assentam em factos e dados suficientes e judicialmente aceites; foram utilizados princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança; esses princípios e métodos foram devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado, isto é, revela-se existente uma relação lógica, científica ou técnica, que se estabelece entre os fundamentos factuais e metodológicos e as conclusões do relatório.

Daqueles pareceres resultam não só respostas quanto a questões de substância essenciais para conhecer dos autos, como as “regras da arte” aplicáveis.

Assim como resultam da decisão da Ordem dos Médicos no processo disciplinar instaurado ao arguido, não pelo processo disciplinar em si, mas pelo que dali consta do parecer emitido pelo Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia – fls. 776-779 – que não foi junto aos autos mas cujo teor transcrito se mostra suficiente.

Serão estes pareceres e os relatórios de autópsia os elementos determinantes para determinar o destino dos autos na resposta às seguintes questões:

- qual é a lex artis ad hoc?
- existe prova de que o arguido não cumpriu essa lex artis ad hoc?
- não havendo existe possibilidade de ainda a obter?

B.8.2 – Como se afirmava no acórdão desta Relação de 8 de Abril de 2010 (Processo n.º 683/05.5 TAPTG.E1, sendo relator o Des. Correia Pinto), «as leges artis são as “regras da arte …. normas escritas (não jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos e destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, designadamente, a evitar o desenvolvimento de perigo ou a ocorrência de danos que tais ofícios são naturalmente hábeis a produzir”.

O respeito pelas leges artis, no caso específico da medicina, impõe a execução dos cuidados médicos de acordo com a técnica mais apurada, segundo os processos e regras oferecidas pela ciência médica, quer quanto à técnica da intervenção ou do tratamento médico-cirúrgicos, quer quanto à sua oportunidade e conveniência no caso concreto e à idoneidade dos meios utilizados.

As leges artis constituem, assim, “um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica”. [15]

Ou seja, como já afirmámos no referido acórdão desta Relação de 21-10-2010:

“as leges artis são soft law (mollis lex), instrumentos normativos, por natureza não vinculativos, a que o direito constituído, o hard law (dura lex), recorre para definir parâmetros de comportamento seguro, fiável ou desejável, dessa forma conformando aspectos relevantes do dever de agir.

Apesar da discutibilidade dos conceitos e da não-aceitação da sua vigência e da própria contraposição conceptual mollis lex/dura lex em variadíssimos campos do direito, [16] certo é que outros ramos do direito não o dispensam, como o direito internacional ou o direito administrativo.
No caso do direito penal português e para o que releva no caso sub judicio, é o próprio legislador, de forma expressa, a fazer apelo às leges artis no artigo 150º do Código Penal e a conformar o tipo penal ao seu cumprimento.

…. é tarefa do tribunal apurar qual seja essa lex artis ad hoc (a aplicável ao caso concreto), explaná-la de forma clara e compreensível e, após, formular o seu próprio juízo sobre o seu cumprimento ou incumprimento. Porque esse juízo é determinante no apuramento da verificação da ilicitude e da culpa, tendo presente que a obrigação médica é uma obrigação de meios e de diligência e não uma obrigação de resultado.
…………….
E lex artis ad hoc será a forma adequada de tratar um concreto episódio médico, a aplicação daquelas regras médicas a um caso concreto”.

Apurar a lex artis no caso concreto será, então, objectivo imediato.

E ela surge bem expressa nos relatórios periciais, no relatório do Colégio da Especialidade e nos próprios esclarecimentos prestados pelo perito em audiência de julgamento.

Do relatório do Colégio da Especialidade – de acordo com o que se retira dos relatórios periciais - resulta que:

“ … face à necessidade que o obstetra refere em ter de terminar o parto devido às características do CTG (taquicardia fetal e traçado pouco reactivo), à temperatura da parturiente (febre intraparto com 38,5°C) de recorrer a um parto via vagina! (obviando o tempo de extracção fetal, seguramente mais rápido que o recurso a cesariana no Bloco Central do Hospital, e com que ajuda (?) teria sentido, se estivessem reunidas as premissas essenciais, ou seja:

- Ter dilatação completa (…….);

- Ter uma apresentação abaixo do III plano de Hodge (que permite o parto instrumental)

- E essa apresentação ser conhecida (variedades da apresentação identificadas e favoráveis) para permitir um parto instrumental (por ventosa e/ou fórceps).

Se estas premissas estavam presentes, a iniciativa de tentar um parto vaginal tem todo o sentido, e permitiria abreviar o tempo de nascimento, no sentido de rapidamente extrair o feto de um ambiente desfavorável, como atestou o CTG, a febre e a leucocitose com neutrofilia.

Se tais condicionalismos não estavam concretizados, a opção de parto vaginal não terá sido a mais correcta, …”.

Esta é, portanto – com uma adequada, racionalmente sistematizada e sucinta redacção – a lex artis ad hoc.

Resta saber se existe prova de que o arguido, com culpa, a não cumpriu.

B.8.3 – As causas e a conduta.

Aqui haverá que recordar que «o conhecimento melhor provado é aquele que se erige sobre as “causas” e o “como”». [17]

Vamos, pois, às causas e ao como.

O outro relatório pericial constante dos autos, a autópsia, desdobra-se em dois relatórios, um com exame macroscópico, necessariamente provisório (fls. 116-117), outro de histologia, com a conclusão definitiva (fls. 133-134).

Relativamente à autópsia ela cumpre a sua função probatória.

Se a primeira parte de tal relatório se limita a fazer observações de carácter geral e a constatar ligeira hepatoesplenomegalia (aumento do tamanho do fígado e do baço), ausência de anomalias dismorfológicas (malformações congénitas) e reabsorção de hematoma na região parieto-occipital, sem evidência de hemorragia, já a segunda parte conclui pela definição como causa de morte de uma “encefalopatia hipoxico-isquémica grave com degenerescência e necrose neuronal multifocal

(Hipóxia significa baixo teor de oxigénio. A isquemia é a interrupção do fluxo sanguíneo).

Assim, a causa de morte será nos precisos termos da conclusão do relatório de autópsia, transcrita na parte relevante para o facto provado sob 21): [18]

“Morte por Encefalopatia Hipoxico-isquémica grave com degenerescência e necrose neuronal multifocal. Lesões pulmonares relacíonadas com a necessidade de suporte ventilatório (Dísplasia pulmonar). Pequenos focos de infecção com rolhôes de polimorfonucleares intrabrónquicos no lobo inferior do pulmão direito e pequenos focos subcapsulares renais”.

Daqui se retira, desde logo, que as lesões pulmonares relacíonadas com a necessidade de suporte ventilatório se referem à necessidade de internamento e ventilação artificial, o que sempre acarreta o risco de infecção pulmonar.

Nele está ausente a referência ou indicação de que a causa de morte seja devida a qualquer acção motora exercida pelo arguido no uso dos fórceps.

Daqui se exclui, necessariamente, a tetraplagia e a lesão medular como causas de morte ou co-causais da morte.

Apesar de isso constar do relatório inicial e do diagnóstico do Hospital de São Francisco Xavier de fls. 106 – diagnóstico de RN de termo AIG, Asfixia Neonatal gravissima, Encefalopatia hipóxico-isquémica de grau lll, Foco de contusão medular cervical, Tetraplegia, Sepsis neonatal precoce sem agente isolado e Pneumopatia – a conclusão do relatório de autópsia sobre a causa de morte torna inconsequente a argumentação de que a morte foi devida a tetraplagia e lesão medular.

Duas hipóteses causais nos surgem, então, como possíveis no despoletar da causa de morte da filha da assistente, como resulta dos relatórios periciais, de forma nem sempre clara dada a necessidade formal de responder a quesitos: a asfixia provocada pelo decurso do trabalho de parto; a infecção preexistente e constatada pelas 19 h 50 m.

Assim, apenas a infecção e a asfixia neonatal se mantêm. Essa é uma consequência necessária do teor da conclusão do relatório de autópsia.

Parte considerável das motivações e conclusões da recorrente assentam na tentativa de considerar como causa de morte algo que o relatório de autópsia nega como causa de morte.

Assim, até a afirmação constante do relatório pericial de que a acção dos fórceps pode ter “agravado a situação” (relatório pericial a fls. 170-171), parece, agora, arriscada por não ser – por si ou em concorrência de causas – a causa de morte, já que a ela associada, em geral, uma causa traumática.

Neste ponto o relatório pericial é claro na atribuição de um efeito potenciador de lesões e morte à conjunção das duas causas (“a infecção/inflamação e a hipoxia fetal potenciam-se mutuamente na determinação de lesões neurológicas”).

E, por outro lado, é aceite e resulta do conjunto de apreciações dos relatórios periciais que a infecção materna é uma complicação obstétrica e a infecção intra-uterina uma complicação fetal.

Sem excluir que a preexistência de uma infecção é um elemento perturbador na análise da causalidade, parece ser certo ter o arguido agido de forma adequada ao prescrever antibióticos e nada resultar que indicie que outra deveria ser a conduta do arguido ao constatar a existência dessa infecção.

O único ponto eventualmente criticável será a circunstância de a prescrição de antibiótico só surgir cerca das 23 horas. Mas não existe prova de que esse tempo seria causal ou que a toma de antibiótico pelas 19.50 horas seria um evento de interrupção de causalidade.

Se a infecção materna (e, logo, intra-uterina, como o relatório a fls. 319 explicitamente admite [19]) era preexistente e não pode ser atribuída ao arguido por acção, nem pela sua temporária omissão, resta saber se a hipoxia o pode.

É aceite que a asfixia, que se estabelece ou pode estabelecer, “antes, durante ou depois do nascimento é, seguramente, uma causa importante de mortalidade e, sobretudo, de morbilidade neurológica” e resulta num apor insuficiente de oxigénio e de substrato energético (fluxo sanguíneo) e por isso causa lesões designadas hipóxico-isquémicas. [20]

A asfixia do feto “ocorre como resultado duma redução das trocas gasosas entre os compartimentos materno e fetal. A diminuição do fluxo sanguíneo placentário, a hipoxemia materna, a insuficiência placentária e a compressão do cordão umbilical, podem levar à asfixia fetal. Do mesmo modo, no RN, a asfixia pode surgir como consequência dum traumatismo no parto, de dificuldade em iniciar a respiração, dum síndrome de dificuldade respiratória (SDR) ou de uma apneia”. [21]

Resta, então, saber se algo nos autos demonstra a existência de uma asfixia fetal antes ou durante o parto e se o arguido dela se podia aperceber, não agindo de forma adequada a debelar o risco.

Aqui, como não poderia deixar de ser, temos que basear a decisão do tribunal nas afirmações periciais.

Ora, os relatórios periciais são inconclusivos neste particular ponto (e a restante prova igualmente), chegando a afirmar-se no relatório de fls. 170-171 que “há dúvidas quanto à conduta no que diz respeito à valorização da cardiotocografia e à reparação da episiotomia”, o que abarca quer o imputado homicídio, quer as imputadas ofensas à integridade física por intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos.

Isto quer significar – no que ao ctg (cardiotocograma) e ao imputado homicídio diz respeito – que não é possível apurar com a certeza necessária, se era exigível ao arguido com apoio do ctg constatar a existência de asfixia perinatal ou a existência de um evento sentinela indiciador, antes ou durante o trabalho de parto. [22]

É certo que os relatórios periciais dão conta de práticas administrativas/médicas inadequadas e/ou incoerentes, como a deficiência dos registos médicos e de enfermagem [falta de registo de temperatura materna, gasimetria apenas às duas horas de vida] e incoerências várias com dados registados, como a hora de nascimento e o registo cardiotocográfico (fls. 319).

Mas deficiência profissional e incoerência não são causalidade adequada, pelo que daquelas se não pode inferir a imputabilidade penal.

Para apurar desta reza o primeiro relatório pericial (fls. 171) que: “Quanto à morte do recém-nascido, verificado na sequência de “encefalopatia hipóxico-isquémica” e “sépsis neonatal precoce”, a infecção/inflamação e a hipoxia fetal potenciam-se mutuamente na determinação de lesões neurológicas, pelo que não se pode afirmar que uma orientação diferente no período expulsivo teria evitado seguramente tal desfecho. Contudo, pelo anteriormente exposto, é provável que a instrumentação com Fórceps, nas condições descritas no processo, possa ter contribuído para o agravamento da situação”.

Os “Forceps nas condições descritas no processo” é uma referência directa à apresentação em II-III dos Planos de Hodges, ou seja, a possibilidade de o parto vaginal com forceps ter sido forçado antes do momento adequado.

Assim, como bem concluiu o tribunal recorrido, tudo se concentra no saber se o arguido tinha condições para a realização do trabalho de parto com fórceps ou se deveria ter optado por cesariana.

A opção por cesariana é uma opção médica que, comportando riscos próprios, torna a sua realização contrária ao princípio do benefício se for desnecessária. [23] Aliás, está descrita como opção se na utilização de fórceps vierem a ser enfrentadas dificuldades inesperadas. [24]

Ou seja, é na determinação de um facto básico que está o cerne da decisão sobre a imputabilidade, o saber se a dilatação permitia o parto vaginal e a utilização de forceps, porque só tal determinação factual permite a conclusão sobre a violação da lex artis relativamente à morte da criança e quanto ao uso de ventosas e fórceps.

E no primeiro relatório pericial - fls. 170-171 – afirma-se que “É acerca da aplicação do Fórceps que os registos clínicos indiciam o não cumprimento da leges artis pelo facto de não estarem reunidas as condições indispensáveis para o uso do instrumento. Tais condições para aplicação do Forceps para estarem completamente reunidas teriam que aguardar a descida da apresentação até ao “II/III plano” ou, caso a necessidade de extracção fetal fosse urgente, optar por cesariana”.

Isto é, sugere-se a violação da lex artis ad hoc por se suporem inexistentes as condições adequadas ao uso do instrumento fórceps.

Mas no relatório de fls. 321 já se afirma que “Segundo o partograma (fls. 64) aquela dilatação teria sido atingida cerca das 22h30 e o registo médico (fls. 51, posterior ao parto) indica que a dilatação completa terá sido atingida posteriormente, não se indicando a hora. Assim, não é possível saber se a dilatação estava completa quando eventualmente surgiu indicação da necessidade de extracção fetal ……. o que só deve suceder com a dilatação completa. Em conclusão, se havia indicação para extracção fetal urgente e a dilatação era de 7,5 cm o parto vaginal não seria solução; se a dilatação estava completa às 23 h 45 m o parto vaginal poderia ser uma hipótese viável”.

E afirma o parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetricia:

Em resumo, processo clinico com omissões e insuficientes registos quanto à evolução do trabalho de parto, pelo que não se pode concluir que tenha havido violação das "legis artis ", a não ser que a falta de registos seja considerada como tal.

… uma das conclusões a que se chega facilmente e que o Serviço de Obstetrícia do Hospital ...de Portalegre, além de contratar "empresas" para fornecer serviços clinicos, tinha à data dos factos, uma Sala de Partos a funcionar à margem do que este Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, estipula no que concerne aos recursos humanos exigidos como minimo, aspecto sobre o qual o médico em causa não tem nenhuma responsabilidade.

Uma segunda conclusão, que deriva da primeira, e que desde o internamento até ao parto, o médico de serviço encontrava-se sozinho, não tendo portanto, a quem recorrer para o auxiliar em momento dos procedimentos obstétricos que eventualmente equacionasse executar e que teve segundo o seu critério clínico que executar no melhor interesse do feto. A este propósito convém sublinhar que o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos recomenda que os partos distocicos sejam efectuados por dois especialistas em Obstetrícia”.

Ou seja, não é possível concluir que o instrumento tenha sido utilizado sem as condições adequadas ao seu uso.

Estas conclusões não permitem excluir a virtualidade de ilicitude e culpa civil na conduta do Hospital, designadamente a circunstância de o arguido trabalhar sozinho, e equacionar a ponderação de ter actuado, em devido tempo, contra as chefias administrativas, de gestão e médicas do Hospital.

Mas o que é facto é que – na vertente penal - os relatórios concluem pela inviabilidade de concluir pela existência de violação das leges artis no pressuposto de que estas supõem a definição dos requisitos necessários para uma decisão que era crítica: saber qual a opção mais adequada para o parto; quando a tomar.

E essa é conclusão que o tribunal recorrido entendeu não poder tirar, nem se vê que se possa retirar dos relatórios periciais e da restante prova produzida.

E ao tribunal incumbia a tarefa de apurar se a ausência de registos adequados poderia ser suprida pela restante prova produzida. Não o tendo sido, não é possível presumir a imputação pela existência de uma deficiente prática médica nos registos.

Mesmo quando o relatório pericial afirma que “é provável que a instrumentação com Fórceps, nas condições descritas no processo, possa ter contribuído para o agravamento da situação”, o perito médico não está a pronunciar-se sobre o que causou a hipóxia e a infecção, mas apenas a definir um juízo de probabilidade.

Em breve: sobre a infecção não pode afirmar-se a sua origem, suas consequências e capacidade do arguido diminuir as suas eventuais consequências; sobre a hipoxia não se sabe a sua origem e não está claro se é possível afirmar a responsabilidade do arguido na sua causação ou na omissão da acção adequada a evitar o resultado.

Nem é possível afirmar, sem sombra de dúvida, quais as causas determinantes da síndrome hipóxico-isquémica; nem é possível determinar a violação da lex artis ad hoc.

B.9 – Não há, portanto, prova directa suficiente que permita a imputação dos factos ao arguido.

A prova existente não permite, por outro lado e ao menos, ser a base de uma (ou mais do que uma) presunção de facto. Não se pode aplicar ao caso o brocardo id quod plerumque accidit (É o que geralmente acontece).

Falamos, naturalmente da possibilidade de fazer operar – sobre os elementos probatórios existentes - uma presunção natural, de facto, simples, de experiência, hominis ou judicial (praesumptiones facti ou hominis), enquanto ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – artigos 349º e 351º do Código Civil. [25]

Como é sabido, a presunção com base no facto probatum só permite a ligação ao facto probandum se a presunção se basear num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco, de forma a evitar a mera verosimilhança, o provável, o plausível.

Permitirão os citados factos a afirmação da existência de um juízo seguro de prova de que foi uma actuação do arguido, violadora da lex artis ad hoc, a causar a morte?

No caso a situação nem sequer permite a base da presunção: a prova de que o arguido deveria ter agido de forma diversa. A partir da impossibilidade de prova desse facto probatum não é possível a presunção do facto probandum, que esse seu agir foi causal da asfixia, do não debelar da infecção e, logo, da morte.

Por outro lado convém não esquecer que o juízo de condenação não é um mero juízo de probabilidade simples.

É aceite que o nosso ordenamento civil se basta, para a formação da convicção do tribunal, com uma tese de “preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades”, de mera maior probabilidade, querendo significar que a prova se entende feita se for maior a probabilidade de o facto ter ocorrido do que não ter ocorrido (num juízo equiparado ao matemático, mais de 50%).

Mas no processo criminal, onde impera a presunção de inocência do arguido, a exigência para a prova penal é muito mais exigente e não se coaduna – para a ultrapasagem daquela presunção de inocência – com o operar de um mero “balanço de probabilidades”.

Sempre tendo presente que a verdade judicial (material) “não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial prática” (Prof. Fig. Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º, 194), é “a realidade, aquilo que tem efectiva existência, com exclusão do meramente possível” (Prof. Castro Mendes – “Do conceito de prova em Processo Civil”), a convicção do tribunal quanto à imputação dos factos ao arguido tem que assentar num juízo de probabilidade muito forte.

Essa forte convicção pode ter duas formulações para espelhar a mesma realidade, a anglo-saxónica “proof beyond reasonable doubt” e a continetal europeia probabilidade que roça a certeza”.

Como afirmámos no acórdão desta Relação de Évora de 21-06-2011 (Proc. 1273/08.6PCSTB-A.E1)

“… podemos afirmar – assim o assevera a literatura inglesa – que terá sido Lord Denning que na decisão da House of Lords Miller v. Minister of Pensions (1947 - 2 All ER 372) a formular de forma perfeita o “standard of proof”, o “padrão de prova”, o nível de prova, a força probatória suficiente para convencer o tribunal nas acções cíveis e criminais (V. g. The “Law of Evidence”, Prof. Ian Dennis, Thomson, Sweet & Maxwell, 2007, pags. 479 e segs.).
…………………………..
«Mais exigente se apresenta o nível de prova em processo criminal, expresso por Lord Denning da seguinte forma: «It need not reach certainty but it must carry a high degree of probability. Proof beyond reasonable doubt does not mean proof beyond a shadow of doubt. The law would fail to protect the community if it permitted fanciful possibilities to deflect the course of justice. If the evidence is so strong against a man as to leave only a remote possibility in his favour which can be dismissed with the sentence “Of course it is possible but not in the least probable”, the case is proved beyond reasonable doubt; nothing short will suffice».
………………
Ou seja, estamos a falar de padrões de prova, de juízos de convicção concernentes à sorte da acção, relativos a um juízo de verdade, de certeza judicial como fim natural do processo penal tendo como horizonte possível a condenação do arguido.

Esse juízo deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”.

Ora, o que os autos revelam é que não só estamos longe dessa “probabilidade que roça a certeza, como estamos longe de a poder alcançar por outros meios, já que os meios de prova analisados nos autos esgotam a capacidade probatória.

Isto é, não é possível fazer, agora, análises e exames que demonstrem mais sobre os factos do que aquilo que já consta dos autos (a origem da infecção, por exemplo).

E a incapacidade resultante da ausência dos registos – mesmo que voluntariamente procurada, o que se não prova - não foi ultrapassada pela restante prova produzida.

Isto é, não é possível fazer um juízo de prova seguro quanto à violação da lex artis ad hoc quanto ao homicídio.

O mesmo se diga relativamente às ofensas corporais pela utilização das ventosas e dos forceps.

Quanto ao objecto cível dos recursos, a decisão ora tomada é prejudicial ao seu conhecimento, na estrita medida em que afastados estão os pressupostos da responsabilidade civil.

De qualquer forma sempre se afirma que a sua procedência seria sempre discutível já que o pedido cível foi deduzido contra o arguido, esquecendo que este prestava serviço num Hospital público, que esse sim, sempre deveria ser parte demandada no pedido cível.

Por tudo o que vai exposto são ambos os recursos, o interlocutório e o da decisão final, totalmente improcedentes.

C – Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora:

a) - em negar provimento ao recurso interlocutório;

b) - em negar provimento ao recurso interposto da decisão final e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) U.C.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 05 de Fevereiro de 2013

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
________________________________________________
[1] - “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pág. 330.

[2] - “Constituição da República Portuguesa Anotada – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 1993, pág. 206.

[3] “Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, de 4 de Novembro de 1950 (Roma), com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978 - aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Não houve reservas do Estado português relativamente ao citado artigo.

[4] - Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.

[5] - V. g. do relator «A Perícia técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial» Revista Julgar n.º 15 / Setembro-Dezembro / 2012, pág. 29.

[6] - Ob. cit. pág. 40.

[7] - Ob. e loc. cit..

[8] - V. g. Prof. Costa Andrade em anotação ao artigo 150º do “Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte Especial”, Tomo I, pág. 313, § 28.

[9] - Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Especial, Associação Académica, Lisboa, 1979, págs. 70-71.

[10] - “Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Actas da Comissão de Revisão do Código Penal, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pág. 228. Ver também Prof. Costa Andrade em anotação ao artigo 150º do “Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte Especial”, Tomo I, pág. 302, § 2.

[11] - É elevada a potencialidade de a anestesiologia ou o subjectivismo da parturiente terem papel determinante na diferença sentida entre a actuação da enfermeira e do arguido na execução da mesma técnica.

[12] - Ver o acórdão desta Relação de 21-10-2010, processo nº 281/04.0TALGS.E2, por nós relatado, com outras referências jurisprudenciais.

[13] - Frye v. US, 293 F.1013, DC Circuit Court of Appeals, 1923.

[14] - Os passos reconhecidos como essenciais por esta jurisprudência e pelas Federal Rules of Evidence - rule 702 - para a aceitação de um juízo científico são três: saber se o parecer assenta em factos e dados suficientes; se foram utilizados princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança; se esses princípios e métodos foram devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado.

[15] - Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54».

[16] - V. g. Resolução do Parlamento Europeu, de 4 de Setembro de 2007, sobre as implicações institucionais e jurídicas da utilização de instrumentos jurídicos não vinculativos ("soft law") (2007/2028(INI)

[17] - Fernando Gil, in “Provas” – Estudos Gerais, Série Universitária, IN-CM, 1986, pág. 28.

[18] - Em bom rigor a encefalopatia será o mecanismo de morte, importando agora apurar a ou as causas de morte, o que causou o surgimento do mecanismo de morte.

[19] - Relatório pericial a fls. 319: “Um processo inflamatório/infeccioso com envolvimento fetal, como é sugerido pela febre intraparto e as alterações do hemograma realizado durante o trabalho de parto e que a endometrite puerperal e a sépsis neonatal precoces sustentam; as alterações verificadas no registo cardiotocográfico (taquicardia e variabilidade reduzida em certos períodos) parecem traduzir esse envolvimento fetal prévio ao período expulsivo”.

[20] - “Medicina Materno-Fetal”, Luís Mendes da Graça, págs. 321-322, 3ª Edição, Lidel, 2005, Lisboa-Porto.

[21] - Ob. e loc. cit.

[22] - Ob. e loc. cit. Também “Obstretrícia de Williams”, pág. 612.

[23] - Princípio do benefício – a grávida tem obrigações éticas para com o feto, designadamente a obrigação ética de aceitar riscos razoáveis – e a dor razoável – no sentido de proteger e promover os interesses daquele - “Medicina Materno-Fetal”, cit., pág. 155.

[24] - Não se aborda, por para tanto não haver factos que o permitam nem forma de o apurar nos autos, da própria circunstância de a analgesia epidural poder ter influência ou implicar um aumento da necessidade de efectuar parto por fórceps - V. g. “Obstetrícia de Williams” – Cunningham et. al., págs. 511 e 522, AMGH Editora, 2012.

[25] - V. g. Manuel Domingues de Andrade, “Noções elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 215; também Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao discurso legitimador”, Almedina, 1983, pág. 112.