Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
60/20.8GBETZ.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRADITÓRIO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:

1 - As imputações genéricas, para que possam assumir relevância jurídico-penal, para efeitos de condenação criminal, carecem de ser concretizadas em factos, sendo irrelevantes ou inócuas as imputações genéricas, que não encontram no texto da decisão aquele limiar indispensável de concretização, pelo que, das duas uma, ou essa concretização é feita ou não podem essas imputações ser consideradas na decisão condenatória.

2 - Especificamente, em relação ao crime de violência doméstica, quando estão em causa condutas reiteradas, que se prolongaram no tempo, é decisiva «a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente», não podendo haver unificação da atuação desenvolvida pelo arguido se existirem hiatos temporais significativos entre as condutas pelo mesmo perpetradas.
Como é evidente, este aspeto assume relevância, designadamente, para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.

3 - O que está em causa nesta exigência de definição concreta da matéria que é imputada ao arguido relaciona-se, precisamente, com o direito ao exercício do contraditório, o qual só pode ser plenamente assegurado se o arguido souber quais os factos concretos de que é acusado para que deles se possa defender.

4 - Decisivo para que os comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar.

5 - A verificação de qualquer dos exemplos-padrão estabelecidos no artigo132º, n.º 2, do CP, não qualifica automaticamente a ofensa à integridade física, ex vi do artigo 145° CP.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1 - RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 60/20.8GBETZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo de Competência Genérica de Estremoz, foi submetido a julgamento o arguido (...), melhor identificado nos autos, acusado da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal.
1.2. A ofendida (...) deduziu pedido cível contra o arguido/demandado, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €15.000,00, a título de indemnização por danos morais sofridos, acrescida de juros de mora desde a data da notificação até integral pagamento.
1.3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 05/07/2021, depositada nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(…), o Tribunal julga a acusação procedente por provada e, consequentemente, decide:
I. Condenar o arguido (...), pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos dos artigos 152.º/1, a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão.
II. Suspender a pena de 2 anos e 10 meses de prisão de prisão pelo mesmo período de tempo (art. 50.º do Código Penal e art. 152.º, n.º 4 do Código Penal), com sujeição a regime de prova, a delinear pela DGRSP.
III. Condenar o arguido (...) a pagar à ofendida (...) a quantia de € 7.500,00, acrescida de juros legais contados desde o trânsito em julgado até efetivo e integral pagamento.
IV. Condenar o arguido (...) nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's (artigo 8.º/5 do Regulamento das Custas Processuais e respetiva tabela III anexa).
(…).»
1.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«Assim, face ao exposto e pelo mais que V. Exas., doutamente, suprirão, não pode deixar de concluir-se que:
A) Analisando os factos 4., 5, 6., 7., 8., 9. e 20. da matéria provada, o que ressalta, logo à vista, é a forma como os mesmos estão redigidos, repletos de alegações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, sem que dos mesmos resulte qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, nem as datas concretas da sua prática (excepção feita, quanto à data, ao facto 4.), quando é certo que a relação conjugal perdurou durante 33 anos.
B) Ou seja, os aludidos “factos”, alegados de forma genérica (primeiramente na acusação e, depois, na Sentença), o que demonstram é que, na ausência/dificuldade de prova dos factos concretos integrantes do tipo objectivo e subjectivo dos crimes simples e tradicionais (ofensas e/ou injúrias), o MP e o tribunal enveredaram pela alegação genérica, sem qualquer rigor fáctico e de concretização, tentando dessa forma preencher o tipo do crime de violência doméstica, como se este tipo de crime se tratasse de um crime “residual” no qual caberiam todas e quaisquer condutas menos cordiais praticadas pelo arguido sobre a ofendida.
C) Ora, o crime de violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que, no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroactivamente o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime” (Acórdão do TRP de 08/07/2015 - PROC 1133/13.9PHMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt).
D) E também não é “um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial.”. (Acórdão do TRP de 08/07/2015 – PROC. 1133/13.9PHMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt).
E) “Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação (e, consequentemente, na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele (Acórdão do TRP de 08/07/2015 – PROC. 1133/13.9PHMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt).
F) Acresce que o crime de violência doméstica é um crime habitual, na modalidade de crimes de trato sucessivo, uma vez que supõe a prática de condutas ilícitas sucessivas, de forma reiterada, essencialmente homogéneas e temporalmente próximas (conexão temporal), “presididas por uma mesma unidade resolutiva criminosa desde o início assumida pelo agente”. É essa unidade resolutiva, a par da homogeneidade da actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos num só crime (sumário do ac. do TRG de 09/10/2017 - Proc 83/14.6GAMCD.G1, relatado pela Senhora Desembargadora Ausenda Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt).
G) Ora, ANALISANDO OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS 4., 5., 6, 7., 8., 9. e 20. o que constatamos é que:
(a) QUANTO AO FACTO 4., ocorrido há 33 anos, nada consta quanto à motivação para o acto, nem quanto ao modo como o mesmo ocorreu.
(b) QUANTO AOS FACTOS 5., 6. e 20. (estes dois últimos por arrastamento), alude-se apenas ao período de coabitação, que durou 33 anos, ao local e à quantidade de vezes em que as agressões e injúrias terão ocorrido (20 vezes), mas sem se precisar em que circunstâncias as mesmas concretamente ocorreram, nem como ocorreram, nem sequer a periodicidade com que ocorreram (tendo em conta o lapso temporal – 33 anos), e sem se referir sequer qual a motivação para o que acontecia e como acontecia em concreto.
Aliás, sem se saber exactamente em que anos as supostas agressões ocorreram, tendo em conta o grande hiato temporal (33 anos), não se consegue determinar se há ou não conexão temporal entre as condutas, sendo, até de presumir que não existe, tendo em conta a relação do número de vezes em que ocorreram supostas agressões (20) com o número de anos (33 anos).
Acresce que o Facto 20. é contraditório com o Facto 6., ambos reportados às mesmas condutas do arguido, o que revela a falta de rigor do tribunal na apreciação da matéria de facto.
(c) QUANTO AOS FACTOS 7., 8. e 9., os mesmos também não estão situados no tempo, o que era imprescindível, como vimos, ainda para mais quando a relação durou 33 anos, aludindo-se a uma discussão do casal, mas sem se perceber quem a iniciou, nem a motivação da discussão.
H) Estes “factos”, pura e simplesmente, não podem ser considerados penalmente relevantes, pois não oferece qualquer dúvida de que «apenas se destinam a mascarar a pretensão de “sair” de um crime simples e tradicional (as ofensas corporais, injúrias e/ou ameaças) para concretizar a pretensão de preenchimento de um crime pleno de modernidade, a violência doméstica» (…) O politicamente correcto não se pode impor ao penalmente correcto (Acórdão do Tribunal desta Relação de Évora de 17/09/2013 (PROC 97/11.8PFSTB.E1), relatado pelo Senhor Desembargador João Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt).
I) A justiça que se pretenderia ser cega e alheia ao histerismo colectivo e à pressão social crescente nesta matéria, não tem claramente conseguido manter o distanciamento e a imparcialidade necessárias, preferindo acusar e condenar por presunção, partindo do pressuposto (e preconceito), em completa subversão dos princípios penais de garantia de defesa do arguido e da presunção de inocência, de que tudo o que a mulher diz que o homem faz é a realidade dos factos e tudo o que homem diz em sua defesa ou é considerado como uma tentativa de “denegrir” a imagem da mulher (caso da Sentença recorrida) ou justificação para os actos, não confessados, de que é acusado.
J) Em face do exposto, forçoso será concluir que os factos 4., 5., 6., 7., 8., 9. e 20. dados como provados são desprovidos de relevância penal, tendo de ser considerados não escritos e eliminados da matéria provada, por violação irreparável do direito ao contraditório e das garantias de defesa em processo penal, em clara violação do disposto no artigo 32.º da CRP.
K) Consequentemente, e necessariamente, impõe-se eliminar dos factos 13. e 14. da matéria provada, e, desde já (mais alterações infra serão requeridas quanto a estes factos), qualquer referência ou remissão para os referidos factos 4. a 9. da matéria provada.
L) Sem conceder, e ainda que não procedam os argumentos supra explanados, sempre se impõe alterar a matéria de facto provada, por absoluta carência de prova quanto à maioria dos factos que vieram a ser dados como provados pelo tribunal.
M) Impõe-se a eliminação do facto provado 4. da Matéria de Facto Provada, desde logo porque este putativo facto não resulta de qualquer depoimento: o arguido negou qualquer tipo de agressões à ofendida (com excepção do aperto dos braços do episódio relatado no facto 11.), conforme decorre das suas declarações (minutos 5:03 a 5:15, 18:00 a 18:05, 27:56 a 28:10, das suas declarações do dia 18/06/2021, das 09:45:27 Às 10:29:13, constantes no ficheiro áudio 20210618094525_1502155_2870797); os filhos (…) não eram ainda nascidos nesta data; nenhuma das demais testemunhas presenciou qualquer agressão ao longo da relação do arguido com a ofendida (veja-se a motivação de facto do tribunal e o depoimento das testemunhas: (…), amiga desde sempre da ofendida (minutos 1:14 a 2:14 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 16:05:35 a 16:08:59 constante do ficheiro áudio 202106181600534_1502155_2870797); (…), conhecida da ofendida desde tenra idade e colegas de trabalho e de escola, (minutos 1:00 a 1:20 e 2:48 e 2:52 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 15:20:58 às 15:25:25, constantes do ficheiro áudio 20210618152057_1502155_2870797), (…), vizinho do casal, durante cerca de 22 anos, sendo parte da sua casa inclusivamente geminada com a do casal (minutos 0:46 a 1:16, 2:42 a 2:54 e 1:50 a 2:58 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 15:56:07 às 15:59:34, constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797); (…), vizinha do casal durante 21 anos, (minutos 00:36 a 1:03 e 2:05 a 3:12, do seu depoimento do dia 18/06/2020, das 15:56:07 às 15:59:34, constante do ficheiro áudio 20210618155606_1502155_2870797); (…), irmã da ofendida (minutos 1:30 a 1:58, 9:50 a 9:54, 10:40 a 11:13, 13:25 a 15:10, 18:48 a 18:52, 21:06 a 21:12, 21:14 a 21:50 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 14:32:07 às 14:59:35, constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797).
N) A ofendida também não relata este episódio, limitando-se a dizer que ofendida e arguido se deram bem uma semana após o casamento e a partir de “uma semana começou a haver discussões e ele começou a bater-me.” (minutos 00:02:06 do depoimento da ofendida do dia 18/06/2021, das 10H31:21 às 11:30:29, do ficheiro áudio 20210618103121_1502155_2870797)
O) Ora, uma alegação deste género é insuficiente para sustentar uma qualquer prova de um qualquer facto, nomeadamente do facto 4., sendo certo que, na motivação do facto, o tribunal nem justifica com base em que provas deu este “facto” como provado???!!!....
P) Impõe-se, também, a eliminação dos factos provados 5. e 6. Da Matéria de Facto Provada, face à notória carência de provas.
Q) Como decorre do depoimento das testemunhas, a ofendida e o arguido fixaram a sua residência numa localidade, (…)), muito pequena, com cerca de 500 habitantes, em que todos se conhecem.
R) O arguido negou qualquer tipo de agressões físicas à ofendida, com excepção do apertão nos braços no decorrer da discussão das pinturas (Facto 11.), confirmando apenas a existência de discussões (minutos 5:03 a 5:15, 18:00 a 18:05, 27:56 a 28:10, das suas declarações do dia 18/06/2021, das 09:45:27 Às 10:29:13, constantes no ficheiro áudio 20210618094525_1502155_2870797).
S) A ofendida, de modo generalizado, o que foi característica notória, ao longo do seu depoimento (único que a ofendida concretizou no seu depoimento, com rigor, foi o facto de o arguido estar sempre fora de casa, nos cafés, e ela estar sozinha em casa?!...), afirmou que uma semana depois do casamento o arguido começou a bater-lhe, pelo menos, umas 20 vezes, de mãos fechadas, afirmando que a «maior parte das vezes era nos braços, na cabeça e a última vez apanhou-me a cara também.» (minutos 00:08:00 a 00:09:13 do seu depoimento constante do ficheiro áudio referido supra).
T) Quanto às ofensas verbais, também perscrutando o depoimento da ofendida, o que constatamos é que a mesma nunca alegou que ele a apelidou de “parva”, “és uma burra” ao longo dos 33 anos de casamento.
U) Pelo contrário, estes foram os únicos dois termos que a ofendida conseguiu dizer, após ser insistentemente pressionada pela Digna Procuradora, uma vez que, quando questionada pela Digna Procuradora porque é que anteriormente dissera que era humilhada pelo arguido, a mesma nada refere acerca de tais nomes, dizendo antes, espontaneamente, que a ofensa consistia em ele desvalorizar as suas acções (minutos 00:28:42 a 00:28:57 do seu depoimento).
V) Ou seja, não decorre do depoimento da ofendida que a mesma se sentisse diminuída ou enxovalhada e humilhada com o proferimento de tais nomes.
W) Mas conjuguemos este depoimento com o das demais testemunhas:
(a) (…), amiga desde sempre da ofendida e que apenas conhece o arguido desde que começou a namorar com a ofendida, declarou que costumava conviver com o casal que frequentava o seu café e, a seu ver, era um casal normal, nunca tendo notado que se dessem mal, nem ouviu dizer que se desse mal, nem nunca viu marcas de agressões (minutos 1:14 a 2:14 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 16:05:35 a 16:08:59 constante do ficheiro áudio 202106181600534_1502155_2870797).
(b) (…) declarou conhecer a ofendida, desde pequena, sendo ambas da mesma freguesia, andaram à escola juntas e trabalharam juntas. Mais declarou não ter visto marcas de agressão: “Marcas? Não vi” (minutos 1:00 a 1:20 e 2:48 e 2:52 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 15:20:58 às 15:25:25, constantes do ficheiro áudio 20210618152057_1502155_2870797);
(c) (…), vizinho do arguido e da ofendida, durante cerca de 22 anos, sendo parte da sua casa inclusivamente geminada com a daqueles, declarou que nunca ouviu discussões, barulhos anormais, nem nunca ouviu dizer que ofendida e arguido se davam mal. “Viu-os sempre bem. Sempre, sempre, sempre … Da melhor maneira possível.” (minutos 0:46 a 1:16, 2:42 a 2:54 e 1:50 a 2:58 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 15:56:07 às 15:59:34, constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797);
(d) (…) declarou que foi vizinha do casal durante 21 anos e que nunca ouviu qualquer discussão entre ambos, nem ninguém dizer que o arguido e a ofendida tivessem um mau relacionamento.
Declarou ainda que “via-os sempre juntos” e “eram um casal normal” (minutos 00:36 a 1:03 e 2:05 a 3:12, do seu depoimento do dia 18/06/2020, das 15:56:07 às 15:59:34, constante do ficheiro áudio 20210618155606_1502155_2870797);
(e) Finalmente, (…), irmã da ofendida declarou que também reside na mesma localidade que a ofendida, que a vida da irmã era “Aparentemente uma vida normal como outra pessoa qualquer”, “achava que estava tudo bem, porque nunca vi nada que indicasse e ela também nunca deu a entender”. Disse que costumava conviver com a irmã e o arguido, irem a festas e passar férias juntas e que “nunca viu nada de anormal” no relacionamento da irmã com o arguido.
Declarou ainda saber que a ofendida tem um problema com o álcool há cerca de 11 anos e que, na altura, pensava que seria um problema de auto-medicação, tendo-a aconselhado a consultar um médico. E que a irmã não quis que a acompanhasse à consulta com o médico psiquiatra, a (…), tendo sido acompanhada pelo arguido. No entanto, ela ligou ao médico, depois da consulta, identificou-se, tendo-lhe o médico dito que não se tratava de auto-medicação, mas de álcool. Declarou ainda que nunca viu qualquer marca no corpo da ofendida: “Não, nunca vi.” Mais disse que a ofendida “era uma pessoa que não tinha medo de ninguém” e que a frequência dos cafés pelo arguido era normal: “É uma aldeia pequena e as pessoas saem do trabalho vão para o café.” E às vezes estão até lá de madrugada. “É normal”. (minutos 1:30 a 1:58, 9:50 a 9:54, 10:40 a 11:13, 13:25 a 15:10, 18:48 a 18:52, 21:06 a 21:12, 21:14 a 21:50 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 14:32:07 às 14:59:35, constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797).
X) Ora, dos referidos depoimentos constata-se que nenhum dos vizinhos e conhecidos da ofendida e do arguido, incluindo a irmã da ofendida, presenciaram ou assistiram ou ouviram qualquer tipo de discussão, desentendimento ou agressões entre o ofendido e a arguida ou quaisquer marcas de agressão.
Y) Por outro lado, os filhos do casal, só presenciaram discussões entre os pais, afirmando ambos que nunca viram o pai a agredir a mãe (com excepção do filho (…), hoje com 37 anos, que diz que se lembra de ver o pai a agredir a mãe quando tinha 6,7 anos, ou seja, há mais de 30 anos, e que viu a mãe a bater no pai no episódio da discussão das pinturas…) – minutos 09:35 a 10:34, 10:46 a 11:00, 16:54 a 17:11 do depoimento da testemunha (…), do dia 18/06/2021, das 13:47:08 às 14:29:19, constantes do ficheiro áudio 20210.618134707_1502155_2870797, e minutos 02:07 a 02:18, 05:51 a 06:21, 06:26 a 6:5429:09 a 31:33, 32:31 a 32:34, do depoimento da testemunha (…), do dia 18/036/2021, das 11:32:456 a 12:15:40, constante do ficheiro áudio 20210618113245_1502155_2870797.
Z) Ora, não é crível que o arguido espancasse e desse sovas na ofendida, a maioria das vezes à noite, quando os filhos estavam em casa, como a ofendida relata, sem que os filhos que viviam com o casal sequer alguma vez presenciassem tais agressões sistemáticas ou sequer se apercebessem das mesmas!
AA) Quanto ao facto 6., também se desconhece em que documentação clínica ou depoimentos o tribunal se baseia para dar como provado a existência de hematomas e inchaços sabe-se lá em que partes do corpo da ofendida e mais ainda como concluiu pela causalidade entre sabe-se lá que agressões e sabe-se lá que hematomas ou inchaços concretos, quando nenhuma prova se fez a este respeito.
BB) Impõe-se, igualmente, a eliminação do facto 9. da Matéria de Facto Provada.
CC) O arguido negou qualquer tipo de agressão física à ofendida (minutos 5:03 a 5:15, 18:00 a 18:05, 27:56 a 28:10, das suas declarações do dia 18/06/2021, das 09:45:27 às 10:29:13, constantes no ficheiro áudio 20210618094525_1502155_2870797), pelo que este facto é sustentado unicamente na versão da ofendida, sendo certo que a mesma não ficou com quaisquer marcas, nem ninguém as presenciou.
DD) Ora, o tribunal não pode, sem mais, valorizar mais uma versão do que outra, ainda para mais quando o filho (…) esteve com a mãe nesse dia e não viu quaisquer marcas na mãe, nem esta lhe contou o que quer que fosse respeito de agressões físicas (minutos 9:54 a 12:05 do seu depoimento constante do ficheiro áudio referido).
EE) Impõe-se, também, a alteração do facto provado 11., passando a ter passando a ter a seguinte redacção:
FACTO 11. - No decurso da aludida discussão, o arguido, para evitar ser agredido pela ofendida, fazendo força com as suas mãos, apertou os braços da ofendida, tendo esta lhe desferido duas bofetadas na cara e, após, quando o mesmo lhe virou costas, desferiu-lhe duas palmadas nas costas.
FF) Com efeito, decorre da lei, o objecto de prova no âmbito do processo penal são todos os factos que constam, quer da acusação, quer da contestação, quer da discussão da causa, pois «não interessa apenas o que aconteceu, mas como aconteceu, e porque aconteceu (para além de quando ocorreu), pois só assim se pode atingir o facto global (crime) submetido a julgamento.» (Ac. TRP de 08/07/2015 - PROC 1133/13.9PHMTS.P1, relatado pelo Senhor Desembargador José Carreto, disponível em www.dgsi.pt).
GG) E é evidente, no caso dos autos que, quanto aos factos ocorridos no dia 24/07/2020, o tribunal, revelando mais uma vez a sua PARCIALIDADE E PRECONCEITO relativamente ao arguido, não retirou, como podia e devia todos os factos concretamente ocorridos neste episódio, apesar de fazer expressa menção aos mesmos na fundamentação:
• A ofendida admite ter dado duas estaladas ao arguido;
• O filho (…) presenciou a mãe a dar duas palmadas nas costas do arguido, já no final da contenda, quando o arguido ia a sair de casa e estava de costas para a ofendida.
HH) Aliás, a própria ofendida afirma, no seu depoimento, que, no seu trabalho, na fábrica dos enchidos, por ser um trabalho que exigia carregar com caixas e empilhar, era normal as mulheres ficarem marcadas, com um toque (minutos 00:25:20 a 00:25:32 do seu depoimento do dia 18/06/2021, das 10H31:21 Às 11:30:29, do ficheiro áudio 20210618103121_1502155_2870797).
II) Atente-se que não houve nos autos qualquer perícia médica, ou relatório médico, pelo que também mal se compreende que o tribunal, para sustentar o seu PRECONCEITO, vista as vestes de perito médico (como o fez e, ainda para mais, analisando mal, como veremos, as fotos dos autos), para colmatar mais essa ausência total de prova, para concluir pela (in)veracidade da versão do arguido???!!!...
JJ) Ao dar como provado o Facto 11., o tribunal não faz sequer menção às agressões perpetradas pela ofendida ao arguido e que foram confessadas por esta e, parte delas, presenciadas pelo filho (…).
KK) Na dúvida, o tribunal tinha de decidir em favor do arguido e não em seu desfavor como claramente resulta do texto da decisão recorrida, acreditando na tese apresentada pelo mesmo que, aliás, é totalmente compatível com os elementos constantes dos autos.
LL) Mas, ainda que assim não se entendesse, no máximo dos máximos, teria de levar à matéria provada as agressões mútuas ocorridas no decorrer dessa discussão, o que também manifestamente não fez.
MM) O arguido afirma, num relato, aliás muito emocionado, que, nesse dia da discussão das pinturas, agarrou, é certo a mulher pelos braços, porque a mesma veio direito a ele a dizer que o odiava e que abanava os braços e que, é possível, com a força que a mulher fazia com os braços, se aleijasse na cara, no calor da discussão (minutos 5:03 a 5:15, 25:22 a 27:0630:39 a 30:56 do seus depoimento constante do ficheiro áudio referido supra).
NN) Segundo a ofendida, o arguido e a ofendida, no dia em questão, envolveram-se numa discussão, por causa da falta de dinheiro do casal para custear as pinturas da casa, quando o arguido “começou-me a bater. E eu depois já estava a levar tanto murro a punho fechado que eu dei-lhe 2 chapadas. E quando eu lhe dei 2 chapadas a ver se ele caía em si e me parava de bater ele continuou, bateu até que se enfadou e pôs-me na rua nesse dia,Vai-te embora, desaparece daqui.”, e eu disse “Eu daqui não saio.”, e a resposta dele “Isso querias tu minha linda”, e saiu porta fora (minutos 00:19:01 a 00:21:57 do seu depoimento constante do ficheiro áudio supra indicado).
Nota: esta descrição, feita em julgamento, nada tem a ver com a descrição feita pela ofendida em declarações perante a GNR, onde alude a apenas um murro…
OO) Por sua vez, o filho (…), nesse dia, foi lá a casa, depois destes factos, mas a ofendida “não lhe disse que ele me tinha batido, pois os factos aconteceram a uma quarta feira e o “o meu filho descobriu na sexta-feira” (minutos 00:22:09 a 00:22:19 do mesmo depoimento).
PP) (...), no final das suas declarações (antes omitira), a instâncias do mandatário do arguido, quando informado pelo mandatário do arguido que a mãe tinha confessado ter batido no pai, no episódio de que tratamos, a testemunha visivelmente atrapalhada e querendo sempre desvalorizar (é notório a atrapalhação da testemunha) acabou por afirmar que presenciou, no dia da discussão, o pai a sair de casa e a mãe a vir atrás dele e a bater nas costas do pai (minutos 00:19:26 a 00:19:35 e 00:28:02 a 00:31:32 do seu depoimento constante do ficheiro áudio referido).
QQ) Ou seja, basta confrontar o depoimento da ofendida com o do arguido e do filho (...), bem como com as fotos juntas aos autos a fls…, para se concluir que a ofendida mentiu descaradamente no seu depoimento, pois é MANIFESTAMENTE IMPOSSÍVEL que uma mulher seja espancada literalmente a murros de punho fechado por um homem, nomeadamente na cara (como se deu como provado por causa da foto), e não fique imediatamente com o típico “olho à Belenenses”, o sobrolho aberto, o sangue a jorrar do nariz ou o lábio inchado, os sinais típicos das agressões com murros na cara.
RR) Acresce que o filho (...) ainda assistiu ao fim da contenda e não viu quaisquer sinais de agressão no corpo da mãe, nomeadamente na cara e braços.
SS) Ora, a versão da ofendida é fantasiosa e, ao contrário do que o tribunal assevera, nada do que a mesma diz é credível ou verosímil.
TT) O mesmo já não se pode dizer do depoimento do arguido que é compatível com os demais elementos e depoimentos constantes do processo, nomeadamente com os hematomas que se evidenciam nas fotos juntas aos autos.
UU) Um toque ou pancada acidental na cara, enquanto o arguido segura os braços da ofendida, no meio da discussão, é compatível com um hematoma na cara que só no dia seguinte aparece, mas nunca com um murro de punho fechado na cara, desferido por um homem, naquela zona da face.
VV) Na sequência das alterações propugnadas na matéria de facto, deverão ser eliminados os factos provados 13. e 14., por não terem qualquer correspondência com os factos objectivos provados.
WW) Sem esquecer que, mesmo sem qualquer alteração na matéria provada, não existia já qualquer base objectiva na matéria provada anteriormente para dar como provado um qualquer propósito do arguido provocar “medo e humilhação” na ofendida, nem qualquer adequação da conduta do arguido à provocação de medo e receio na ofendida, nem que esta temesse pela vida e integridade física.
XX) Impõe-se, também, a eliminação do Facto 20. da Matéria de Facto Provada, por total carência de prova, desde logo porque a ofendida nunca disse que escondia quaisquer marcas (minutos 00:13:11 a 00:13:43 e 00:25:02 a 00:25:32 do ficheiro áudio supra indicado), sendo certo que, ao contrário do que a ofendida afirmou, nem as colegas de trabalho, nem a sua irmã as viram, como o tribunal reconhece na motivação de facto e decorre do depoimento das testemunhas (…) (amiga e colega de trabalho da ofendida - minutos 2:48 e 2:52 do seu depoimento constante do ficheiro áudio 20210618152057_1502155_2870797) e (…) (minutos 9:50 a 9:54 e 18:48 a 18:52 do seu depoimento constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797), nem o filho (…) (minutos 17:01 a 17:11 e 26:05 a 26:21 do seu depoimento) as viu, o que é contraditório com a afirmação da ofendida.
YY) Impõe-se a alteração do Facto Provado 21., passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
«Facto 21. - A ofendida sentiu dores
ZZ) Com efeito, excepção feita às dores, o que decorre das regras da experiência comum, tudo o mais não se pode dar como provado.
AAA) Na verdade, ninguém que tenha medo ou receio do marido pode dizer que gostava era que o mesmo estivesse mais tempo em casa (“só não gostava que ele tivesse fora de casa”, “estava sempre a tentar puxá-lo para mim” – minutos 00:42:06 a 00:42:29 do depoimento da ofendida constante do ficheiro áudio supra indicado) e que, sem qualquer pejo, o confrontava quando o mesmo chegava tarde a casa, discutindo com o mesmo, pois, segundo a mesma, é lógico que o fizesse pois ninguém “aceita um marido a passar tempo fora de casa nos cafés ou sabe-se lá onde” (minutos 00:42:46 a 00:43:07 do seu depoimento).
BBB) É, por isso, evidente que a ofendida não tinha medo nem receio do arguido.
CCC) E tanto assim que a mesma iniciava as discussões, quando o mesmo chegava tarde e embriagado a casa, e nem sequer se inibia de lhe bater, como aconteceu no episódio de 24/07/2020, mesmo depois de o arguido lhe virar costas e estar a sair de casa.
DDD) Aliás, a própria irmã da ofendida, (…) é a própria a afirmar que a ofendida “era uma pessoa que não tinha medo de ninguém” (minutos 18:48 a 18:52 do depoimento desta testemunha constante do ficheiro áudio 20210618143207_1502155_2870797).
EEE) Quanto à humilhação e vergonha, também não resulta do depoimento da ofendida que os sentisse, uma vez que o único que ressalta do seu depoimento é a mágoa/frustração que a ofendida sentia pelo facto de o arguido não ter sido um marido e pai presente.
FFF) Impõe-se a eliminação do Facto 22. da Matéria de Facto Provada, uma vez que não é admissível que o tribunal retire uma conclusão desta natureza ao olhar para uma mulher, cerca de um ano depois dos factos, sem nunca a ter visto sequer no período de convivência com o marido e sem que nenhuma testemunha tivesse falado no aspecto envelhecido da ofendida.
GGG) Acresce que o tribunal não pode ignorar as dependências (álcool e comprimidos) da ofendida, o que é reconhecido por esta, pelos filhos, pelo arguido e pela irmã da ofendida, dependências essas que, notoriamente, deitam abaixo qualquer pessoa.
HHH) Não há, além disso, nos autos, um único relatório médico que comprove o stress e a ansiedade da ofendida.
III) Impõe-se também a eliminação do Facto 23. da Matéria de Facto Provada, porque o que ressalta à vista da depoimento da ofendida é que o motivo da tristeza sentida pela ofendida e que a levou a tomar medicamentos e misturá-los com álcool e que a levava a ter uma vida mais recatada e a não sair, era, na sua perspectiva, o facto de o arguido não ser o companheiro que a mesma sonhou quando casou, já que o mesmo raramente estava em casa, não a ajudava nas lides domésticas nem a cuidar dos filhos, chegava tarde a casa, não lhe dando carinho e atenção, tendo de ser ela a tratar sozinha da casa e dos filhos (minutos 00:43:45 a 00:44:11 do seu depoimento).
JJJ) Não decorre, por isso, do depoimento de qualquer testemunha que a ofendida não saísse de casa por causa de qualquer conduta do arguido ou muito menos por humilhação ou vergonha, até porque a mesma pelo que decorre do seu depoimento trabalhava e saía de casa para trabalhar (minutos 00:13:11 a 00:13:31 do depoimento da ofendida).
KKK) Aliás, na motivação de facto o tribunal deixou claro que a ofendida “sempre manteve uma boa relação com a sua mãe e irmã” e que “(…) afirmou que a sua mãe teve hábitos de consumo de álcool, sendo que tais hábitos impeliam a sua mãe a isolar-se e a fechar-se no quarto”, o que é incompatível com o dar-se como provado que a facto provado 23.
LLL) Assim, nem a ofendida deixou de conviver com a sua família, nem se fechava no quarto por causa das condutas do arguido, mas sim porque o feitio da mesma era de pessoa recatada e ela própria tinha dependências (álcool e comprimidos), como notoriamente ressai do seu depoimento (minutos 00:50:23 a 00:51:52 do depoimento da ofendida supra indicado), bem como do depoimento da irmã da ofendida (…) (minutos 13:25 a 15:10 do depoimento desta testemunha constante do ficheiro áudio supra indicado), do depoimento do arguido (minutos 5:20 a 6:54 e 13:00 a 15:49 do depoimento do arguido constante do ficheiro áudio indicado supra), e do depoimento de (…) (minutos 34:36 a 35:16 do depoimento desta testemunha).
MMM) Aliás, (...), filho da ofendida e do arguido, é claro ao dizer que o feitio da mãe nunca foi “de festas” ou de “ir aqui [ou ali]” (minutos 30:41 a 30:50 do seu depoimento).
NNN) O crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do CP, tem subjacente «um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas» (sumário do acórdão do TRP de 28/02/2012 (PROC 368/09.3PQPRT.P1), relatado pelo Senhor Desembargador Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt.)
OOO) «Não configura crime de violência doméstica toda e qualquer ofensa à integridade física, injúria ou ameaça, praticado por um cônjuge sobre o outro. Tais condutas só preenchem esse tipo de crime quando forem aptas para ofender a saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.» (vide Acórdão do TRE de 26/01/2021 - PROC 229/18.5GBGDL.E1, relatado pelo Senhor Desembargador Martinho Cardoso, disponível em www.dgsi.pt).
PPP) Ora, a situação retratada na matéria de facto é de todo insuficiente para configurar o elemento "maus-tratos" (físicos e/ou psíquicos), ou qualquer outro crime.
QQQ) Quando muito, se este Venerando Tribunal não considerar provado que o arguido agiu em sua defesa quando agarrou os braços da ofendida (Facto 11.), o que apenas por cautela de patrocínio se admite, a actuação do arguido configurará, no máximo, uma lesão do bem jurídico “integridade física”, tutelado pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
RRR) Acontece que a ofendida não só não apresentou queixa nos presentes autos como renunciou, inclusivamente e expressamente, a esse direito quando foi inquirida na GNR, em 28/07/2020, como se extrai do auto de inquirição de testemunha de fls…, onde ficou a constar que “a depoente não deseja procedimento criminal contra o denunciado”, o que importa a extinção do procedimento criminal quanto a este crime.
SSS) Aliás, e independentemente do que se decidir quanto aos pontos supra enumerados (irrelevância penal dos factos dados como provados e impugnação da matéria de facto), o que se constata da leitura da Sentença é que à míngua da prova dos factos concretos que permitissem imputar a prática do crime de violência doméstica ao arguido, o tribunal, extrapola completamente o objecto do processo, balizado pelos factos que deu como provados, e vem trazer à colação uma história que não é a narrada na matéria provada e que a extravasa por completo.
TTT) É condenar o arguido pelo que não se provou, sem hipótese de qualquer defesa!!!...
UUU) Em face do exposto, forçoso será concluir que o arguido tem de ser absolvido do crime pelo qual foi acusado e, consequentemente, do pedido cível em que o mesmo foi condenado, por não se verificarem os seus pressupostos, ou seja, a prática de um qualquer ilícito criminal por parte do arguido.
VVV) Sendo certo que o pedido cível, atendendo à matéria provada na Sentença, sempre teria de considerar-se totalmente desadequado, por elevado, tendo em conta desde logo a atitude participativa da ofendida e o seu comportamento aguerrido, bem como os danos não patrimoniais sofridos (artigo 496.º do CC).
WWW) Decidindo, como decidiu, violou a Exma. Juíza, designadamente, o disposto nos artigos 32.º, n.º1, da CRP, artigos 127.º e 152.º, n.º1 – al. a) e n.º2 – al. a), do CPP, artigos 483.º e 496.º do CC, e os princípios do in dubio pro reo, do contraditório e da presunção de inocência.
NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a Sentença Recorrida e substituindo-se por outra que absolva o arguido, quer do crime, quer do pedido de indemnização civil, em que foi condenado.»
1.5. O recurso foi admitido.
1.6. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. O arguido (...) foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular e foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos dos artigos 152.º/1, a) e n.º 2, alínea a) do CP, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (art. 50.º do CP e 152.º, n.º 4 do Código Penal), com sujeição a regime de prova nos termos a delinear pela DGRSP. Mais foi o arguido condenado a pagar à ofendida uma indemnização de €7.500,00, acrescida de juros legais contados desde o trânsito em julgado até efetivo e integral pagamento.
2. Quanto às questões suscitadas pelo arguido entende o Ministério Público que não assiste razão ao recorrente, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer reparo.
3. Desde logo quanto à alegação de que estamos perante factos genéricos, que inviabilizam o direito de defesa do arguido, entendemos que não assiste razão ao recorrente.
4. Porquanto os factos assentam na prova produzida, estão totalmente circunstanciados no espaço, e estão na medida do possível circunstanciados no tempo.
5. Ademais, os factos estão concretizados pelo número de vezes em que ocorreram e correspondem a uma descrição fáctica permitindo que o arguido se defenda, como aliás ocorreu em sede de audiência de julgamento.
6. Pois o arguido apresentou a sua versão sobre a factualidade que lhe era imputada, não apresentando qualquer dificuldade quanto à percepção dos factos.
7. Aliás o arguido apenas confirmou perante o Tribunal o que não podia negar.
8. Quanto à demais factualidade optou por tentar “destruir” perante o Tribunal a credibilidade da ofendida.
9. Assim, entende o Ministério Público que os factos dados como provados não são meras alegações genéricas, não merecendo qualquer reparo nesta parte a sentença recorrida.
10. Por outro lado, quanto à impugnação da matéria de facto, pretende o recorrente que o Tribunal ad quem reaprecie toda a prova gravada e valore a prova de acordo com a sua convicção.
11. A decisão fáctica baseou-se na análise crítica das declarações do arguido, nas declarações prestadas pela ofendida e nas declarações prestadas pelas testemunhas (...) e (...), filhos da ofendida e do arguido, (…), conjugadas com os demais elementos de prova, designadamente fotografias da ofendida.
12. Contrariamente ao que pretendia fazer crer o arguido, as testemunhas (…) nada sabiam sobre a vida em comum do casal.
13. No caso em apreço, a decisão de facto encontra-se, assim, devidamente fundamentada e suportada por prova testemunhal, documental, bem como nas declarações do recorrente, provas que o tribunal recorrido valorou correctamente, sendo facilmente perceptível o seu processo lógico de formação da convicção.
14. Aliás, da leitura da sentença recorrida, constata-se que no exame crítico levado a efeito se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova e que esta foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre apreciação do tribunal, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo penal.
15. E, a ser assim, a sentença recorrida de forma alguma pode ser tido como uma decisão arbitrária e contrária às regras da experiência, sendo que a prova foi correctamente apreciada, não sendo possível extrair outra conclusão que não seja a condenação do recorrente.
16. Da sentença recorrida ressalta a enorme clareza do texto e do sentido da decisão, não existindo a mais pequena obscuridade ou contradição, daí que o texto da decisão se mostre integralmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado.
17. A sentença recorrida não enferma de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
18. Atendendo à prova produzida, não podia o Tribunal ter decidido de forma diversa.
19. Acresce a qualificação jurídica dos factos provados também se mostra correcta, porquanto a subsunção dos factos ao direito apenas podia levar à condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica.
20. Por outro lado, também não merece qualquer reparo a sentença recorrido no que tange ao pedido de indemnização civil formulado a favor da ofendida.
21. A sentença recorrida fez uma correcta valoração da prova produzida e aplicação da lei, sendo a condenação do arguido a sua decorrência, pelo que deve a mesma ser mantida e o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente.
Assim decidindo, se fará a habitual JUSTIÇA!»
1.7. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, elencando serem três as questões suscitadas no recurso[1], emitiu parecer do seguinte teor (transcrição):
«(…)
1.º - Quanto à integração de factos genéricos na factualidade provada
Como é sabido, as imputações genéricas, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e impedirem o exercício do direito de defesa, constitucionalmente consagrado.
«Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal»[2].
Estes factos devem «ser considerados não escritos»[3].
Transpondo este entendimento para o caso dos autos, afigura-se inquestionável a razão do recorrente.
Com respeito ao facto provado 3, dar-se como provado que «as discussões entre o casal iniciaram-se logo após o casamento», sem qualquer particularização acerca dos contornos das discussões, é irrelevante em termos típicos.
Gramaticalmente, discutir significa confrontar ideias, defender e sustentar pontos de vista contrários sobre alguma questão, eventualmente de maneira apaixonada e exaltada. Mas nesta acepção, «discussões» entre casais (quaisquer casais), são comuns e são atípicas.
Relativamente ao facto provado 4, embora o episódio esteja localizado temporalmente (por referência à data do casamento somos remetidos para princípios de Outubro de 1987), a imputação continua a ser vaga, não só quanto aos factos que integram a agressão («de forma não concretamente apurada (…) desferiu pancadas no corpo da ofendida»), mas também quanto à motivação do arguido, quanto às consequências que daí advieram para a integridade física e/ou psíquica da ofendida ou quanto ao local onde as mesmas tiveram lugar.
Nos factos provados 5 e 6, deparamo-nos com uma excessiva indeterminação temporal. Na verdade, dá-se como assente que o arguido, durante o período de coabitação do casal, em «pelo menos vinte» ocasiões distintas, agrediu e insultou a ofendida. Como esse período de coabitação perdurou mais de três décadas, cabe perguntar se essas «vinte vezes» ocorreram todas no mesmo ano, se se distribuíram por diferentes anos e, nesse caso, por quais. O leque de hipóteses possíveis é infindável.
Da mesma forma, quanto às agressões, podemos interrogar-nos se em cada uma dessas vinte vezes o arguido martirizava a ofendida com murros na face, na cabeça e nos braços, com empurrões e apertões nos braços e apodava-a de “burra” e “maluca” e dizia-lhe “não prestas”, ou se, nalgumas ocasiões, limitava-se a empurrá-la, noutras a insultá-la, noutras a esmurrá-la nos braços, noutras ainda a esmurrá-la na face, e assim por diante. Uma vez mais, o espectro de possibilidades é demasiado amplo.
Por fim, os factos provados 7 a 9, não obstante tenham sido parcialmente admitidos pelo arguido, padecem da mesma indeterminação temporal que o facto provado 5 (terão ocorrido algures entre 1987 e 2020).
Novamente salientamos, «perante um tipo legal com a estrutura do crime de violência doméstica a aceitação da imputação de factos genéricos, sem qualquer concretização, significaria a multiplicação da imputação deste tipo legal uma vez que bastaria ao seu preenchimento cobrir toda uma vida em comum com a nuvem da violência, bastando para tanto dizer que o agente desde sempre/desde o casamento deu pontapés na vítima, lhe chamou vaca, etc. O resultado é que seria muito mais fácil acusar e condenar pelo crime de violência doméstica – por dispensar qualquer esforço de concretização e localização –, do que pelos crimes em que o mesmo se decompõe, menos graves do que aquele. E daqui resultaria a tentação de enquadrar todas as agressões físicas e verbais perpetradas num determinado contexto no tipo da violência doméstica. Ou seja, aquela norma não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos»[4].
Na decorrência do que antecede, para efeitos de responsabilização criminal, os factos provados 3 a 9 devem considerar-se não escritos.
2.º - Passando à questão da errada apreciação da prova e da violação do in dubio pro reo.
Preambularmente importa dizer o que se segue.
Segundo estabelece o artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o sujeito processual que pretenda impugnar a matéria de facto deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso,
c) As provas que devem ser renovadas (neste caso, apenas se forem invocados alguns dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 – v. o artigo 430.º, n.º 1).
Quando a prova tiver sido gravada, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364.º, n.º 2,do Código de Processo Penal, devendo ser indicadas as passagens concretas em que se funda a impugnação, ou então, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, com a transcrição das passagens em que se funda a impugnação (artigos 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012, in Diário da República, n.º 77, Série I, de 18 de Abril de 2012).
Tem-se entendido a este propósito que «o recorrente no corpo motivador e depois nas conclusões [v. o artigo 417.º, n.º 3] (…) deve especificar, isto é, identificar devidamente, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados. (…). Como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas, (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos de facto impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo. (…). Em segundo lugar, o recorrente deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. (…) tratando-se de prova testemunhal (outra pode ser, como é óbvio) deve identificar as testemunhas cujos depoimentos, no seu entendimento, e relativamente ao concreto ponto de facto em questão, impõem decisão diversa (…). Mas não basta identificar as testemunhas; o recorrente deve ainda indicar concretamente as passagens dos depoimentos dessas testemunhas em que se funda a impugnação»[5].
A razão de ser de tais exigências decorre da circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não visar «a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correcção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância»[6], como sucede quando «o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário»[7], por exemplo, «se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto (…) [ou] se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros»[8].
Regressando ao caso.
O recorrente identifica como incorrectamente julgados os factos provados 11 e 12 (em relação aos demais factos a apreciação ficou prejudicada pelo que anteriormente ficou exposto).
Quanto às provas que impõem decisão diversa, alega, fazendo referência a concretas passagens de algumas deposições, que apenas agarrou a mulher pelos braços porque a mesma veio direita a si a dizer que o odiava, que estes factos são sustentados «unicamente na versão da ofendida, sendo certo que a mesma não ficou com quaisquer marcas, nem ninguém as presenciou», nomeadamente, o seu filho (...) que «esteve com a mãe nesse dia e não viu quaisquer marcas na mãe, nem esta lhe contou o que quer que fosse [a] respeito de agressões físicas», e que inexiste qualquer relatório ou perícia médica que corrobore as lesões. Acresce que a ofendida admitiu «ter dado duas estaladas ao arguido» e o filho (...) viu «a mãe a dar duas palmadas nas costas do arguido» quando este «ia a sair de casa e estava de costas para a ofendida». Por tudo isso, conclui, «na dúvida, o tribunal tinha de decidir em favor do arguido e não em seu desfavor como claramente resulta do texto da decisão recorrida» e que «no máximo dos máximos» teria de levar a matéria provada que houve «agressões mútuas» no decorrer da discussão.
Lê-se no capítulo da douta sentença dedicado à indicação e exame crítico da prova que (transcrição a bold dos segmentos que se reportam directamente ao episódio de 24 de Julho de 2020):
(…)
O arguido prestou declarações, tendo admitido a prática dos factos n.ºs 7 e 8, o que justificou com o facto de ter encontrado a ofendida bêbeda em casa e tendo afirmado que, por referência ao facto n.º 10 da acusação, apenas segurou a ofendida nos braços quando esta se preparava para lhe bater, não sabendo explicar o hematoma existente na face esquerda da ofendida.
Quanto ao mais, o arguido tentou denegrir a imagem da ofendida, dizendo que a mesma era alcoólica e tomava medicação e que as discussões ocorridas entre o casal foram sempre motivadas apenas pelo simples facto de o arguido estar preocupado com a ofendida.
Perguntado pela razão apontada para a queixa apresentada, o arguido afirmou que considera que se trata de um plano gizado pelo seu filho (...), ao qual a ofendida aderiu, e que visou despojá-lo de todos os seus bens.
Este processo trata-se, pois, de uma vingança do seu filho (...), uma vez que o arguido não aceitou que este mantivesse uma relação amorosa com uma menor de idade.
Questionado sobre a medicação que a ofendida tomava, o arguido não soube responder.
Questionado sobre os seus hábitos de ingestão de álcool, afirmou que tal não sucedia com regularidade.
Em face do exposto, o arguido afirmou que a presença da GNR na sua habitação no dia 26.07.2020 foi para si uma total surpresa.
Sucede que, em face das declarações do arguido, este Tribunal está convicto de que este apenas assumiu os factos que, em tese, não assumem um carácter especialmente censurável e que não poderia negar (quebra de pratos e copos), por terem sido os mesmos confirmados pelos seus filhos (...) e (...) que assistiram a tal episódio. Quanto ao facto n.º 10, o arguido apresentou uma versão que não é compatível, como veremos, com os elementos objectivos existentes nos autos, conjugados com as declarações da ofendida e dos seus filhos.
De facto, ouvidas as declarações sérias e credíveis da ofendida (...) e dos seus filhos, (...) e (...), este Tribunal ficou convencido que os factos ocorreram nos exactos termos que se encontram descritos na acusação.
Assim, para prova dos factos provados o Tribunal considerou os referidos depoimentos, cumprindo salientar os seguintes aspectos:
Desde logo, a ofendida (...) corroborou todos os factos descritos na acusação, o que fez aos olhos deste Tribunal de forma séria, isenta e credível, não parecendo o seu depoimento eivado de uma qualquer sanha contra o arguido e tendo a ofendida relatado diversas circunstâncias que, em tese, a poderiam desfavorecer (consumos de álcool, depressão, o facto de responder e exigir explicações ao arguido e de lhe ter dado duas bofetadas no contexto de uma agressão perpetrada pelo arguido) e que poderiam favorecer o arguido, negando que ele tivesse por hábito dizer asneiras, chegando mesmo a dizer que ele gostava muito das netas).
Ao contrário do que foi mencionado pelo arguido, resultou evidente que o arguido passava os seus tempos livres nos cafés da aldeia a ingerir bebidas alcoólicas, ficando, não raras vezes, embriagado. Tal circunstância assumiu, segundo resultou dos depoimentos da ofendida e dos seus filhos, a função de factor catalisador das condutas do arguido, que iniciava discussões e agredia e insultava a ofendida nessa sequência.
A ofendida, por seu turno, fazia uma vida caseira, sendo que o arguido exigia que ela tomasse conta das lides domésticas.
Ficou claro aos olhos do Tribunal que (...) confrontava o arguido, questionando-o com quem estava, onde gastava o dinheiro e onde estava o que culminava, muitas vezes, em discussões acesas. Veja-se que (...) pareceu a este Tribunal uma mulher inteligente e capaz de confrontar o arguido, ainda que soubesse que com isso geraria uma discussão e ainda que tivesse medo.
Ora, muito embora os filhos do arguido e da ofendida tenham afirmado que não assistiram a qualquer agressão (com excepção de (...) que se recorda de ver a sua mãe a ser agredida quando tinha seis/sete anos de idade), os seus depoimentos foram essenciais para relatar ao Tribunal as sucessivas discussões existentes dentro da sua habitação e bem assim a personalidade do arguido.
Dos seus depoimentos resultou, pois, que o arguido sempre demonstrou ter uma personalidade agressiva, autoritária e indiferente para com o bem-estar da ofendida no contexto da relação existente, o que contraria a imagem que o arguido quis passar de pessoa apenas preocupada com o bem-estar da ofendida.
Importa referir que os filhos da ofendida e do arguido, muito embora tenham mostrado uma enorme mágoa em relação ao seu pai, em face do que viram a sua mãe sofrer, depuseram de forma extremamente credível, séria e isenta. Não tem, pois, este Tribunal qualquer dúvida de que (...) e (...) disseram apenas a verdade. Em face do que ficou dito, a ideia de que o presente processo se trata de uma vingança de (...) pelo facto de o arguido não ter aceitado uma relação de namoro iniciada em 2013, ou seja, mais de sete anos antes, parece a este Tribunal totalmente inverosímil.
(...) relatou, igualmente, ao Tribunal as agressões de que foi vítima, explicando que o arguido a agrediu pelo menos por vinte vezes, em regra, com a mão fechada em diversas partes do corpo, nomeadamente cabeça, braços e, na última vez, na face e que o arguido a colocou, por vezes, fora de casa, dizendo “vai morar com a bruxa da tua mãe”. Neste particular, (...) afirmou que nunca relatou tais agressões a ninguém, o que sucedeu por medo e vergonha, tendo juntado aos autos fotografia onde é visível uma nódoa negra que atribuiu a mais uma agressão do arguido.
Quanto à agressão de Julho de 2020 (facto provado n.º 10), cumpre mencionar, desde logo, que foi possível constatar em sede de audiência que o arguido tem uma compleição física mais robusta do que a ofendida, ao contrário do que o arguido afirmou, dizendo que, ao contrário do que uma mera observação poderia sugerir, a ofendida tem mais força do que o arguido.
Ademais, o arguido afirmou que agarrou nos braços da ofendida para se defender, pois que aquela lhe queria bater.
Sucede que, no entendimento deste Tribunal, os hematomas e equimoses que com que a ofendida ficou após a prática dos factos pelo arguido, não são compatíveis com a adopção de uma postura defensiva adoptada por parte do arguido. Veja-se que nos braços da ofendida se constataram diversas nódoas negras, com uma extensão não despicienda, e ainda um enorme hematoma na face esquerda da vítima. O arguido, ouvido, afirmou que não sabe como tal hematoma surgiu, admitindo que tivesse sido a própria vítima a magoar-se a si própria. Ora, tal justificação não se nos afigura razoável, desde logo porque a extensão e visibilidade do hematoma na face da ofendida não é compatível com um toque acidental, nos termos invocados pelo arguido.
Ademais, das declarações de (...) resultou que, no dia dos factos, entrou em casa e viu o seu pai a vir na sua direcção e a sua mãe atrás dele dando-lhe duas palmadas nas costas, tendo o pai saído de casa nesse momento. De resto, tal resultou das declarações de (...) que admitiu, sem qualquer rebuço, que estava a ser agredida e, nessa sequência, deu duas estaladas ao arguido, tendo continuado a ser agredida, não excluindo este Tribunal que a ofendida tenha reagido, novamente, com as referidas palmadas, essas sim presenciadas por (...) Pardal.
(…), companheira de (...), foi clara ao afirmar que dias após a prática dos factos, foi a casa da ofendida e do arguido e encontrou a ofendida muito assustada, o que a motivou a si e ao seu companheiro a fazer queixa.
Diga-se que (…) foi clara ao afirmar que quando conseguiu abordar a ofendida, esta estava num estado lastimável, chorando, tendo afirmado que tinha receio, que não tinha sido a primeira vez e que tinha sido ameaçada, tendo dito “e agora o que é que ele me vai fazer”.
Este comportamento não é de quem finge agressões; pelo contrário, é o comportamento típico de quem é vítima às mãos de um agressor.
Diga-se, ainda, que não foi a ofendida a apresentar queixa, mas sim o seu filho mais velho, pelo que não se nos afigura verosímil que a ofendida tenha inventado tais agressões.
No que concerne às ofensas verbais, (...) foi muito sincera dizendo que o arguido a apelidava de “burra”, “maluca”, não tendo tendência para dizer asneiras com uma conotação mais grave.
(...) e (...) foram claros ao corroborar as declarações da ofendida, mormente no que diz respeito aos consumos de álcool do seu pai, que se agravaram nos últimos anos, tendo (...) afirmado que o arguido andava quase sempre embriagado.
(...) afirmou, também, que também a sua mãe teve hábitos de consumo de álcool, sendo que tais hábitos impeliam a sua mãe a isolar-se e a fechar-se no quarto. Pelo contrário, segundo o relato de (...) e (...), o arguido desencadeava inúmeras discussões na sequência da ingestão de bebidas alcoólicas, tendo (...) afirmado que, no contexto das discussões, a expressão da mãe era de medo e a do pai era de raiva.
Veja-se que (...) afirmou que, nas inúmeras discussões ocorridas, não era raro ouvir o seu pai a dizer “vai viver com a tua mãe”, “vai viver com a tua irmã”, “não prestas”, o que mais uma vez contraria a imagem que o arguido quis fazer passar.
Ao contrário do mencionado pelo arguido, (...) afirmou, de forma serena, que sempre manteve uma boa relação com a sua mãe e sua irmã, tendo o seu depoimento sido corroborado por (...) (sua irmã), não tendo, em momento algum desenvolvido uma zanga com a sua mãe por força de um empréstimo dado à sua irmã. Pelo contrário, (...) afirmou que foi o arguido a ficar zangado com tal circunstância e a exigir que a ofendida pedisse um montante idêntico à sua mãe, o que ela não fez. Mais. (...) foi clara ao afirmar que o arguido sempre disse mal da sua família, tendo o seu depoimento sido corroborado por (...) e (...). De resto, (...) foi claro ao afirmar que o arguido apelidava a sua tia de “bruxa”, sendo constante a tentativa de denegrir a imagem da sua tia (…).
(…), irmã da ofendida, prestou um depoimento sério e credível, relatando que no dia em que a queixa foi apresentada encontrou a sua irmã num estado de nervos absurdo, chorando compulsivamente, tendo, posteriormente, relatado o que acabou por relatar em Tribunal.
(…), colegas de trabalho, afirmaram que a ofendida se apresentava ao trabalho, por vezes, muito triste, não tendo visto quaisquer marcas.
(...) foi claro ao afirmar que o arguido era uma pessoa em casa e outra na rua, sendo que em casa arranjava discussões a toda a hora, sendo muito agressivo.
Chegados aqui, não pode este Tribunal deixar de consignar que do depoimento de (…) (cunhado do arguido, que convivia com a ofendida e arguido de 6 em 6 meses), (…) (vizinho), (…) (vizinha), (…) (vizinho), (…) (dona de um café frequentado pelo arguido e pela ofendida) resultou que o arguido é pessoa bem vista na aldeia onde reside, grassando naquela comunidade a ideia de que tudo o que foi relatado é mentira e que qualquer condenação que se verifique nos autos não passa de uma grande injustiça.
Sucede que todas as referidas testemunhas não era visitas de casa, não conviviam com regularidade com o casal, nem souberam descrever a dinâmica do casal, para além do facto de, por vezes, irem beber um café à aldeia.
Em todo o caso, dos seus depoimentos resultou que o arguido era frequentador assíduo dos cafés, o que corresponde ao relatado pela ofendida e seus filhos, que afirmaram que o arguido sempre ingeriu bebidas alcoólicas. Veja-se que (...) foi claro ao afirmar que o seu pai andava quase sempre embriagado e que considera que o seu pai está, actualmente, “agarrado” ao álcool.
Ora, esta forma de pensar da comunidade em que a ofendida se insere contribuiu, estamos em crer, para a postura da ofendida ao longo dos anos, escondendo e camuflando o que realmente se passava dentro de sua casa. Efectivamente, compreende-se a postura da ofendida, pois que as pessoas da sua comunidade nem questionam, para elas é certo e sabido que o arguido é inocente.
Este modo de pensar é dramático e toldou certamente os comportamentos da ofendida que, ao longo de vários anos, escondeu o que se passava na sua habitação. Veja-se que a queixa que originou os autos foi apresentada pelo filho da ofendida, (...), sendo que estamos em crer que se não fosse o filho da ofendida e do arguido, nada teria mudado.
De outra perspectiva, a forma como o arguido é visto pela comunidade em que se insere, tem certamente como efeito impeli-lo a negar os factos, também por vergonha. É esta a convicção deste Tribunal.
Quanto aos factos n.ºs 19 a 22, o tribunal considerou, essencialmente, as declarações de (...), (...) e de (...), porque dignas de crédito.
(...) assumiu que sempre teve uma personalidade recatada, não sendo “uma mulher de festas”. Assim, se é certo que o tratamento sofrido às mãos do arguido contribuiu para esse recolhimento, não é possível afirmar que tal comportamento pode ser imputado, na íntegra, ao arguido. Em face do exposto, quanto ao facto n.º 23, o tribunal considerou que o comportamento da ofendida foi determinado, apenas em parte, pelo comportamento do arguido. Neste particular, o Tribunal considerou, ainda, as declarações sérias e credíveis de (…).
Por fim, quanto à ansiedade e stress sentido pela ofendida, cumpre mencionar que apesar de a ofendida ser uma mulher nova, com apenas 53 anos de idade, tem um aspecto extremamente envelhecido, o que não pode deixar de ser também associado ao relato que fez da vida que manteve em comum com o arguido.
Os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido actuou, foram extraídos dos respectivos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso concreto.
Quanto às condições sociais, o Tribunal considerou as declarações do arguido prestadas em sede de audiência.
O tribunal considerou, ainda, os seguintes elementos:
- Auto de notícia (quanto à data da queixa);
- Relatório fotográfico, de fls. 188;
- Assento de casamento de fls. (…);
- Certificado de registo criminal de fls. (…);
- Fotografia junta em sede de audiência.
(…)
Como se pode verificar, a Mm.ª juiz a quo ponderou expressamente todos os ângulos das deposições que o recorrente invoca em abono da sua versão.
Chegou foi a uma diferente conclusão e explicou o porquê da divergência em termos plausíveis e que de forma alguma afrontam as regras da experiência e da normalidade.
Para que o recurso procedesse nesta parte, impunha-se que o recorrente demonstrasse ou que não foi produzida qualquer prova sobre os factos, ou que o tribunal firmou a sua convicção em deposições de testemunhas ou de declarantes sem razão de ciência sobre os factos, ou que descartou, injustificadamente, qualquer prova, ou que o juízo quanto à credibilidade das provas, nomeadamente da prova testemunhal ou por declarações, ofende de forma flagrante as regras da experiência comum.
Nenhuma destas hipóteses se verifica.
Com respeito à violação do princípio in dubio pro reo.
De harmonia com este princípio fundamental do direito processual penal, o tribunal deve decidir a favor do arguido se não ficar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a respectiva verificação.
Existe violação do in dubio pro reo sempre que se «detecte que, na margem da dúvida, o tribunal decidiu in pejus contra o arguido, ou quando, não reconhecendo o estado de dúvida, ele resulta do texto da decisão reconhecida por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum»[9] ou «quando o tribunal dá como provados factos duvidosos desfavoráveis ao arguido, mesmo que o tribunal não tenha manifestado ou sentido a dúvida que, porém, resulta da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório»[10].
No caso concreto, com respeito aos factos que agora nos ocupam, o tribunal só considerou provada, nos termos lógicos e consentâneos com as regras da experiência comum que estão explicitados no supra citado segmento de fundamentação, a realidade que tinha como certa e segura, em lado algum transparecendo que tenha sentido ou devesse ter sentido, face às provas produzidas, quaisquer dúvidas sobre a sua ocorrência.
Também neste particular a pretensão do recorrente deve decair.
Aqui chegados, conclui-se que inexiste fundamento para alterar os factos provados 10 a 12.
Já no que tange ao elemento subjectivo, e na decorrência do que ficou exposto na primeira parte deste parecer, há que reformular a redacção do facto provado 13 por forma a que do mesmo passe a constar tão só que:
(…)
13. O arguido quis agir como agiu, com o propósito concretizado de atingir a integridade física da ofendida, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicilio comum, revelando não demonstrar qualquer respeito pela mesma enquanto esposa e mãe dos seus filhos.
(…)
3.º - Subsunção jurídica dos factos
A questão que se coloca agora é a de saber se este acontecimento de 24 de Julho de 2020 tem guarida na previsão normativa do artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
Os pressupostos típicos do crime de violência doméstica encontram-se suficientemente dissecados na douta sentença recorrida.
Acrescentaremos, apenas, o que se segue.
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ficou clarificado que a reiteração das condutas (que à data dos factos dos autos abrangia a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais) deixou de constituir requisito do crime de violência doméstica.
Um comportamento singular pode bastar para se considerar preenchida a previsão legal.
Mas esse comportamento singular deve revestir alguma gravidade.
Como observa Nuno Brandão, com «a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos seus casos [acto único] no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência à intensidade dos maus tratos como alternativa à reiteração, que fazia parte da Proposta de Lei 98-X. Afigura-se-me, porém, evidente que não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Pergunto-me, por isso, se não teria sido preferível ter mantido uma referência expressa à intensidade da conduta, assim tornando clara uma exigência que não pode deixar de fazer-se numa interpretação conforme ao bem jurídico e ao princípio da dignidade penal. Na jurisprudência anterior à revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não pressupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo. Para tal, as mais das vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente. Mais recentemente e pela mão da Relação de Coimbra vem aflorando uma outra ideia, ligada à dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”. Creio que os critérios judiciais expostos apontam na direcção correcta, mas julgo que lhes falta ainda uma clara vinculação ao bem jurídico. Daí que me pareça sempre de exigir que o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima»[11].
No caso vertente, por causa de uma discussão motivada pela falta de dinheiro para pagar a pintura da habitação do casal, o arguido apertou os braços da ofendida, sua mulher, e desferiu-lhe um murro na face.
Como consequência deste acto, a ofendida ficou com um hematoma e inchaço no lado esquerdo da face e com diversos hematomas nos braços.
Na nossa perspectiva, à vista da frivolidade do motivo da agressão e da forma descomedida como a mesma foi executada, estamos convictos de que a conduta cai na previsão típica do crime de violência doméstica.
Se assim não se entender, os factos deverão ser reconduzidos ao crime público de ofensa à integridade física qualificada da previsão conjugada dos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, por referência aos índices de especial censurabilidade e perversidade previstos no artigo 132.º, n.º 2, alíneas b) [praticar o facto contra o cônjuge] e e) [determinar-se o agente por motivo fútil], todos do Código Penal.
Nesta hipótese, deverá ser cumprido o disposto no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, emite-se o seguinte parecer:
1.º - Para efeitos de incriminação, devem considerar-se não escritos os factos provados 3 a 9;
2.º - Inexiste fundamento probatório que imponha a alteração dos factos provados 10 a 12;
3.º - Do facto provado 13 deve passar a constar que:
(…)
13. O arguido quis agir como agiu, com o propósito concretizado de atingir a integridade física da ofendida, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicilio comum, revelando não demonstrar qualquer respeito pela mesma enquanto esposa e mãe dos seus filhos.
(…)
4.º - A factualidade provada em 1 e de 10 a 14 cabe na previsão típica do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea a), do Código Penal, ou, se assim não se entender, na do crime de ofensa à integridade física qualificada da previsão conjugada dos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, por referência aos índices de especial censurabilidade e perversidade previstos no artigo 132.º, n.º 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal (devendo, nesta hipótese, cumprir-se o preceituado no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).»
1.8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não houve resposta.
1.9. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. artigo 428º do C.P.P.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
Tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e passando a apreciar o recurso interposto pelo arguido.
Considerando os fundamentos do recurso são as seguintes as questões suscitadas:
- Integração de factos genéricos na factualidade provada com a consequente violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido;
- Impugnação da matéria factual dada como provada, por erro na apreciação da prova;
- Violação do in dubio pro reo;
- Erro de subsunção.
2.2. A sentença recorrida
A sentença recorrida, nos segmentos pertinentes para a apreciação das questões suscitadas, é do seguinte teor:
«(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados:
Produzida a prova e discutida a causa, o Tribunal julga assente a seguinte factualidade:
1. O arguido (...) e a ofendida (...) celebraram casamento católico, entre si, no dia 27 de setembro de 1987 e fixaram domicilio comum na (…), área desta comarca, tendo cessado o período de coabitação no dia 05.08.2020.
2. Fruto do aludido relacionamento nasceram os dois filhos do casal, (...) com 30 anos de idade e (...) com 22 anos de idade.
3. As discussões entre o casal iniciaram-se logo após o casamento.
4. Oito dias depois do casamento, no decurso de uma discussão entre o casal, de forma não concretamente apurada o arguido desferiu pancadas no corpo da ofendida.
5. Durante o período de coabitação, que durou cerca de trinta e três anos, em número de vezes não apurada, mas pelo menos vinte vezes, em diversas ocasiões distintas, no interior do domicilio comum o arguido desferiu murros na face, cabeça e braços da ofendida, empurrões e exercendo força com as suas mãos apertou os braços da ofendida, apodando-a de “burra”, “maluca” e dizendo “não prestas”.
6. Como consequência direta da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e hematomas apresentado inchaço no local das agressões.
7. Em data não concretamente apurada, no interior do domicílio comum, durante uma discussão mantida à hora de jantar, o arguido atirou ao chão a loiça, pratos e copos, que se encontravam em cima da mesa, tendo partido os mesmos e espalhado comida e vinho pelo chão da cozinha.
8. Após, o arguido atirou ainda para o chão frascos de perfume da ofendida que se encontravam na casa de banho, provocando a quebra dos mesmos e estilhaços no chão.
9. De seguida, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida, provocando-lhe, pelo menos, dores.
10. No dia 24.07.2020, no interior do domicilio comum, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida motivada pela falta de dinheiro para efetuar o pagamento da pintura da parte exterior da moradia onde residiam.
11. No decurso da aludida discussão, o arguido fazendo força com a suas mãos, apertou os braços da ofendida, e de seguida desferiu-lhe um murro na face esquerda.
12. Como consequência direta da conduta do arguido, a ofendida sentiu dores e ficou com um hematoma e inchaço no lado esquerdo da face e diversos hematomas nos braços.
13. Em todos os momentos acima descritos, o arguido quis agir como agiu, ao longo de trinta e três anos de vida em comum com a ofendida, sempre com o propósito concretizado de trinta e três anos de vida em comum com a ofendida, sempre com o propósito concretizado de provocar medo e humilhação na ofendida, perturbando-a física e psiquicamente, atingindo a sua integridade física, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicilio comum, bem sabendo que a sua conduta era adequada a provocar na ofendida medo e receio, o que logrou concretizar, temendo a ofendida pela sua vida e integridade física, revelando o arguido não demonstrar qualquer respeito pela ofendida enquanto sua esposa e mãe dos seus filhos.
14. O arguido, em todas as circunstâncias acima descritas, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
15. O arguido vive sozinho.
16. Trabalha na construção civil e aufere cerca de € 1.180,00.
17. Em € 600,00 de despesas mensais.
18. Tem o 7.º ano de escolaridade.
19. Não regista antecedentes criminais.
Provado, ainda, que:
20. Os murros, empurrões e aperto de braços a que se aludiu supra deixavam, por vezes, marcas que a ofendida escondia, por vergonha.
21. A ofendida sentiu dores, medo, receio, humilhação e vergonha.
22. Sentiu-se ansiosa e stressada.
23. Em parte pela conduta do arguido, a ofendida deixou de sair à rua e de conviver com amigos e família, por sentir vergonha e tristeza.
Não provado que:
1. Por referência ao facto n.º 7 provado, que tal sucedeu no decurso do ano de 2020.
2. Que a ofendida expunha as marcas perante as colegas de trabalho.
3. Que a ofendida não saía à rua para as pessoas não verem as suas marcas.

II.1. – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nos termos do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas.
Como é consabido, o crime de violência doméstica é cometido, não raras vezes, no interior do domicílio comum ao agressor e à vítima. É, pois, por esse motivo que são muitos os casos em que escasseiam as testemunhas presenciais, tratando-se de casos em que, basicamente, o tribunal tem acesso à palavra do arguido e à palavra da ofendida/vítima.
Nesse contexto, o tribunal deve analisar as versões apresentadas e complementá-las com a demais prova produzida. Apenas dessa forma é possível atribuir maior ou menor credibilidade a cada uma das versões ou quedar-se pela dúvida insanável.
Em face do que fica dito, importa explicar o percurso percorrido pelo tribunal na fixação do elenco de factos provados e não provados.
O arguido prestou declarações, tendo admitido a prática dos factos n.ºs 7 e 8, o que justificou com o facto de ter encontrado a ofendida bêbeda em casa e tendo afirmado que, por referência ao facto n.º 10 da acusação, apenas segurou a ofendida nos braços quando esta se preparava para lhe bater, não sabendo explicar o hematoma existente na face esquerda da ofendida.
Quanto ao mais, o arguido tentou denegrir a imagem da ofendida, dizendo que a mesma era alcoólica e tomava medicação e que as discussões ocorridas entre o casal foram sempre motivadas apenas pelo simples facto de o arguido estar preocupado com a ofendida.
Perguntado pela razão apontada para a queixa apresentada, o arguido afirmou que considera que se trata de um plano gizado pelo seu filho (...), ao qual a ofendida aderiu, e que visou despojá-lo de todos os seus bens.
Este processo trata-se, pois, de uma vingança do seu filho (...), uma vez que o arguido não aceitou que este mantivesse uma relação amorosa com uma menor de idade.
Questionado sobre a medicação que a ofendida tomava, o arguido não soube responder.
Questionado sobre os seus hábitos de ingestão de álcool, afirmou que tal não sucedia com regularidade.
Em face do exposto, o arguido afirmou que a presença da GNR na sua habitação no dia 26.07.2020 foi para si uma total surpresa.
Sucede que, em face das declarações do arguido, este Tribunal está convicto de que este apenas assumiu os factos que, em tese, não assumem um caráter especialmente censurável e que não poderia negar (quebra de pratos e copos), por terem sido os mesmos confirmados pelos seus filhos (...) e (...) que assistiram a tal episódio. Quanto ao facto n.º 10, o arguido apresentou uma versão que não é compatível, como veremos, com os elementos objetivos existentes nos autos, conjugados com as declarações da ofendida e dos seus filhos.
De facto, ouvidas as declarações sérias e credíveis da ofendida (...) e dos seus filhos, (...) e (...), este Tribunal ficou convencido que os factos ocorreram nos exatos termos que se encontram descritos na acusação.
Assim, para prova dos factos provados o Tribunal considerou os referidos depoimentos, cumprindo salientar os seguintes aspetos:
Desde logo, a ofendida (...) corroborou todos os factos descritos na acusação, o que fez aos olhos deste Tribunal de forma séria, isenta e credível, não parecendo o seu depoimento eivado de uma qualquer sanha contra o arguido e tendo a ofendida relatado diversas circunstâncias que, em tese, a poderiam desfavorecer (consumos de álcool, depressão, o facto de responder e exigir explicações ao arguido e de lhe ter dado duas bofetadas no contexto de uma agressão perpetrada pelo arguido) e que poderiam favorecer o arguido (negando que ele tivesse por hábito dizer asneiras, chegando mesmo a dizer que ele gostava muito das netas).
Ao contrário do que foi mencionado pelo arguido, resultou evidente que o arguido passava os seus tempos livres nos cafés da aldeia a ingerir bebidas alcoólicas, ficando, não raras vezes, embriagado. Tal circunstância assumiu, segundo resultou dos depoimentos da ofendida e dos seus filhos, a função de fator catalisador das condutas do arguido, que iniciava discussões e agredia e insultava a ofendida nessa sequência.
A ofendida, por seu turno, fazia uma vida caseira, sendo que o arguido exigia que ela tomasse conta das lides domésticas.
Ficou claro aos olhos do Tribunal que (...) confrontava o arguido, questionando-o com quem estava, onde gastava o dinheiro e onde estava o que culminava, muitas vezes, em discussões acesas. Veja-se que (...) pareceu a este Tribunal uma mulher inteligente e capaz de confrontar o arguido, ainda que soubesse que com isso geraria uma discussão e ainda que tivesse medo.
Ora, muito embora os filhos do arguido e da ofendida tenham afirmado que não assistiram a qualquer agressão (com exceção de (...) que se recorda de ver a sua mãe a ser agredida quando tinha seis/sete anos de idade), os seus depoimentos foram essenciais para relatar ao Tribunal as sucessivas discussões existentes dentro da sua habitação e bem assim a personalidade do arguido. Dos seus depoimentos resultou, pois, que o arguido sempre demonstrou ter uma personalidade agressiva, autoritária e indiferente para com o bem-estar da ofendida no contexto da relação existente, o que contraria a imagem que o arguido quis passar de pessoa apenas preocupada com o bem-estar da ofendida.
Importa referir que os filhos da ofendida e do arguido, muito embora tenham mostrado uma enorme mágoa em relação ao seu pai, em face do que viram a sua mãe sofrer, depuseram de forma extremamente credível, séria e isenta. Não tem, pois, este Tribunal qualquer dúvida de que (...) e (...) disseram apenas a verdade. Em face do que ficou dito, a ideia de que o presente processo se trata de uma vingança de (...) pelo facto de o arguido não ter aceitado uma relação de namoro iniciada em 2013, ou seja, mais de sete anos antes, parece a este Tribunal totalmente inverosímil.
(...) relatou, igualmente, ao Tribunal as agressões de que foi vítima, explicando que o arguido a agrediu pelo menos por vinte vezes, em regra, com a mão fechada em diversas partes do corpo, nomeadamente cabeça, braços e, na última vez, na face e que o arguido a colocou, por vezes, fora de casa, dizendo “vai morar com a bruxa da tua mãe”. Neste particular, (...) afirmou que nunca relatou tais agressões a ninguém, o que sucedeu por medo e vergonha, tendo juntado aos autos fotografia onde é visível uma nódoa negra que atribuiu a mais uma agressão do arguido.
Quanto à agressão de julho de 2020 (facto provado n.º 10), cumpre mencionar, desde logo, que foi possível constatar em sede de audiência que o arguido tem uma compleição física mais robusta do que a ofendida, ao contrário do que o arguido afirmou, dizendo que, ao contrário do que uma mera observação poderia sugerir, a ofendida tem mais força do que o arguido.
Ademais, o arguido afirmou que agarrou nos braços da ofendida para se defender, pois que aquela lhe queria bater.
Sucede que, no entendimento deste Tribunal, os hematomas e equimoses que com que a ofendida ficou após a prática dos factos pelo arguido, não são compatíveis com a adoção de uma postura defensiva adotada por parte do arguido. Veja-se que nos braços da ofendida se constataram diversas nódoas negras, com uma extensão não despicienda, e ainda um enorme hematoma na face esquerda da vítima. O arguido, ouvido, afirmou que não sabe como tal hematoma surgiu, admitindo que tivesse sido a própria vítima a magoar-se a si própria. Ora, tal justificação não se nos afigura razoável, desde logo porque a extensão e visibilidade do hematoma na face da ofendida não é compatível com um toque acidental, nos termos invocados pelo arguido.
Ademais, das declarações de (...) resultou que, no dia dos factos, entrou em casa e viu o seu pai a vir na sua direção e a sua mãe atrás dele dando-lhe duas palmadas nas costas, tendo o pai saído de casa nesse momento. De resto, tal resultou das declarações de (...) que admitiu, sem qualquer rebuço, que estava a ser agredida e, nessa sequência, deu duas estaladas ao arguido, tendo continuado a ser agredida, não excluindo este Tribunal que a ofendida tenha reagido, novamente, com as referidas palmadas, essas sim presenciadas por (...).
(…), companheira de (...), foi clara ao afirmar que dias após a prática dos factos, foi a casa da ofendida e do arguido e encontrou a ofendida muito assustada, o que a motivou a si e ao seu companheiro a fazer queixa.
Diga-se que (…) foi clara ao afirmar que quando conseguiu abordar a ofendida, esta estava num estado lastimável, chorando, tendo afirmado que tinha receio, que não tinha sido a primeira vez e que tinha sido ameaçada, tendo dito “e agora o que é que ele me vai fazer”.
Este comportamento não é de quem finge agressões; pelo contrário, é o comportamento típico de quem é vítima às mãos de um agressor.
Diga-se, ainda, que não foi a ofendida a apresentar queixa, mas sim o seu filho mais velho, pelo que não se nos afigura verosímil que a ofendida tenha inventado tais agressões.
No que concerne às ofensas verbais, (...) foi muito sincera dizendo que o arguido a apelidava de “burra”, “maluca”, não tendo tendência para dizer asneiras com uma conotação mais grave.
(...) e (...) foram claros ao corroborar as declarações da ofendida, mormente no que diz respeito aos consumos de álcool do seu pai, que se agravaram nos últimos anos, tendo (...) afirmado que o arguido andava quase sempre embriagado.
(...) afirmou, também, que também a sua mãe teve hábitos de consumo de álcool, sendo que tais hábitos impeliam a sua mãe a isolar-se e a fechar-se no quarto. Pelo contrário, segundo o relato de (...) e (...), o arguido desencadeava inúmeras discussões na sequência da ingestão de bebidas alcoólicas, tendo (...) afirmado que, no contexto das discussões, a expressão da mãe era de medo e a do pai era de raiva.
Veja-se que (...) afirmou que, nas inúmeras discussões ocorridas, não era raro ouvir o seu pai a dizer “vai viver com a tua mãe”, “vai viver com a tua irmã”, “não prestas”, o que mais uma vez contraria a imagem que o arguido quis fazer passar.
Ao contrário do mencionado pelo arguido, (...) afirmou, de forma serena, que sempre manteve uma boa relação com a sua mãe e sua irmã, tendo o seu depoimento sido corroborado por (...) (sua irmã), não tendo, em momento algum desenvolvido uma zanga com a sua mãe por força de um empréstimo dado à sua irmã. Pelo contrário, (...) afirmou que foi o arguido a ficar zangado com tal circunstância e a exigir que a ofendida pedisse um montante idêntico à sua mãe, o que ela não fez. Mais. (...) foi clara ao afirmar que o arguido sempre disse mal da sua família, tendo o seu depoimento sido corroborado por (...) e (...). De resto, (...) foi claro ao afirmar que o arguido apelidava a sua tia de “bruxa”, sendo constante a tentativa de denegrir a imagem da sua tia (...).
(...), irmã da ofendida, prestou um depoimento sério e credível, relatando que no dia em que a queixa foi apresentada encontrou a sua irmã num estado de nervos absurdo, chorando compulsivamente, tendo, posteriormente, relatado o que acabou por relatar em Tribunal.
(…), colegas de trabalho, afirmaram que a ofendida se apresentava ao trabalho, por vezes, muito triste, não tendo visto quaisquer marcas.
(...) foi claro ao afirmar que o arguido era uma pessoa em casa e outra na rua, sendo que em casa arranjava discussões a toda a hora, sendo muito agressivo.
Chegados aqui, não pode este Tribunal deixar de consignar que do depoimento de (…) (cunhado do arguido, que convivia com a ofendida e arguido de 6 em 6 meses), (…) (vizinho), (…) (vizinha), (…) (vizinho), (…) (dona de um café frequentado pelo arguido e pela ofendida) resultou que o arguido é pessoa bem vista na aldeia onde reside, grassando naquela comunidade a ideia de que tudo o que foi relatado é mentira e que qualquer condenação que se verifique nos autos não passa de uma grande injustiça.
Sucede que todas as referidas testemunhas não era visitas de casa, não conviviam com regularidade com o casal, nem souberam descrever a dinâmica do casal, para além do facto de, por vezes, irem beber um café à aldeia.
Em todo o caso, dos seus depoimentos resultou que o arguido era frequentador assíduo dos cafés, o que corresponde ao relatado pela ofendida e seus filhos, que afirmaram que o arguido sempre ingeriu bebidas alcoólicas. Veja-se que (...) foi claro ao afirmar que o seu pai andava quase sempre embriagado e que considera que o seu pai está, atualmente, “agarrado” ao álcool.
Ora, esta forma de pensar da comunidade em que a ofendida se insere contribuiu, estamos em crer, para a postura da ofendida ao longo dos anos, escondendo e camuflando o que realmente se passava dentro de sua casa. Efetivamente, compreende-se a postura da ofendida, pois que as pessoas da sua comunidade nem questionam, para elas é certo e sabido que o arguido é inocente.
Este modo de pensar é dramático e toldou certamente os comportamentos da ofendida que, ao longo de vários anos, escondeu o que se passava na sua habitação. Veja-se que a queixa que originou os autos foi apresentada pelo filho da ofendida, (...), sendo que estamos em crer que se não fosse o filho da ofendida e do arguido, nada teria mudado.
De outra perspetiva, a forma como o arguido é visto pela comunidade em que se insere, tem certamente como efeito impeli-lo a negar os factos, também por vergonha. É esta a convicção deste Tribunal.
Quanto aos factos n.ºs 19 a 22, o tribunal considerou, essencialmente, as declarações de (...), (...) e de (...), porque dignas de crédito.
(...) assumiu que sempre teve uma personalidade recatada, não sendo “uma mulher de festas”. Assim, se é certo que o tratamento sofrido às mãos do arguido contribuiu para esse recolhimento, não é possível afirmar que tal comportamento pode ser imputado, na íntegra, ao arguido. Em face do exposto, quanto ao facto n.º 23, o tribunal considerou que o comportamento da ofendida foi determinado, apenas em parte, pelo comportamento do arguido. Neste particular, o Tribunal considerou, ainda, as declarações sérias e credíveis de (...).
Por fim, quanto à ansiedade e stress sentido pela ofendida, cumpre mencionar que apesar de a ofendida ser uma mulher nova, com apenas 53 anos de idade, tem um aspeto extremamente envelhecido, o que não pode deixar de ser também associado ao relato que fez da vida que manteve em comum com o arguido.
Os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido atuou, foram extraídos dos respetivos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso concreto.
Quanto às condições sociais, o Tribunal considerou as declarações do arguido prestadas em sede de audiência.
O tribunal considerou, ainda, os seguintes elementos:
- auto de notícia (quanto à data da queixa);
- Relatório fotográfico, de fls. 188;
- Assento de casamento de fls. (…);
- Certificado de registo criminal de fls. (…);
- Fotografia junta em sede de audiência.

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Quanto aos factos n.ºs 1 e 3 não provados, decorreu da ausência de prova produzida nesse sentido.
Quanto ao facto n.º 2 não provado, resultou o mesmo das declarações da ofendida (...) que disse que sempre escondeu as agressões e que arranjava desculpas para a existência de marcas no corpo, nomeadamente pequenos acidentes no trabalho que então prestava.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Fixados os factos, cumpre aplicar o Direito, tendo em consideração o enquadramento jurídico dado pelo libelo acusatório e o enquadramento jurídico que este Tribunal considera o adequado ao caso dos autos.
III.1 Quanto ao crime ao crime de Violência Doméstica
Vem o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do Código Penal (CP).
Dispõe o art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal que: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) a) A cônjuge ou ex-cônjuge (…) c) progenitor de descendente comum (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Por sua vez, o artigo 152.º/2, al. a), do Código Penal refere “no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
A referida incriminação visa proteger qualquer pessoa e a sua dignidade humana no seio da vida em casal ou em economia comum, visando, assim, a proteção da saúde física, psíquica e mental e a liberdade pessoal das vítimas.
Pretende-se, com este tipo de ilícito, intervir em determinadas situações que, frequentemente, ocorrem no seio das relações humanas e sociais mais próximas.
O tipo objetivo do presente tipo de ilícito compreende quer os maus tratos físicos (ofensas à integridade física), quer os maus tratos psíquicos (ameaças, injúrias, humilhações, entre outros).
Assim, existem maus tratos físicos sempre que existir uma ofensa no corpo da vítima, ou de forma mais clara, um prejuízo para o bem-estar físico de uma pessoa.
Os maus tratos psíquicos abarcam as humilhações, as provocações, as molestações e as ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça e ainda atos que limitem e diminuam a liberdade pessoal, entendida em sentido amplo.
A especialidade deste tipo de crime reside no facto de não se ter em conta, de forma atomística, todos os factos que, por si só, constituiriam crime (por exemplo as ofensas à integridade física), devendo a valoração da conduta ser global, tendo em consideração todos o comportamento que corresponda aos maus tratos físicos e psíquicos.
Assim, este crime corresponde ao já existente crime de maus tratos, sendo, no entanto, um crime específico impróprio, porquanto a especial relação entre o agente e o ofendido, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus tratos ao seu familiar, agrava a ilicitude da conduta.
Ora, não é de ter em conta os atos isolados que vão sendo repetidos no tempo, mas sim a globalidade da conduta, que é levada a cabo no âmbito da vida familiar e que põe em causa a vida do casal.
Acresce que, o 152.º, n.º 2, do CP, prevê uma qualificação, sendo que, neste caso, encontra-se preenchida a previsão porque os factos foram praticados na presença dos filhos da ofendida, bem como perante o filho comum do casal.
O tipo subjetivo pressupõe a existência de dolo em qualquer uma das modalidades de previstas no artigo 14º do Código Penal.
É, pois, essencial que o agente conheça a especial relação que o liga à vítima, atuando, ainda assim, com intenção de praticar atos que configurem maus tratos físicos e psíquicos.
Isto dito, cumpre apreciar o caso dos autos.
Como resultou da prova produzida, o casamento entre o arguido e a ofendida foi sempre pautado por uma total indiferença daquele por esta, que se traduziu na circunstância de o arguido ser frequentador diário de cafés, onde ingeria bebidas alcoólicas, chegando tarde a casa, relegando a ofendida para o papel de mãe, dona de casa e doméstica.
Esta circunstância fez com que a ofendida não se sentisse feliz no seio do seu casamento, sendo que resultou à saciedade do seu depoimento que esta não se sentia amada e cuidada pelo arguido.
Como é evidente, o crime de violência doméstica não visa tutelar uniões infelizes, em que um dos cônjuges não é capaz de dar o que o outro pretende, no quadro da relação conjugal.
Sucede que, independentemente de tal circunstância, o Tribunal está convicto de que a prática de sucessivas agressões físicas e verbais importa a conclusão de que o arguido feriu a vítima na sua dignidade de pessoa no seio da união conjugal.
De resto, as palavras/expressões “burra”, “maluca”, “não prestas”, ditas naquele contexto, importam uma humilhação que extravasa a ideia de união infeliz e encontra-se, sem dúvida, dentro das margens de punibilidade do crime em análise.
É importante ver em frente dos nossos olhos o quadro relatado pela ofendida, uma mulher de 53 anos que viveu cerca de 33 anos com o arguido, arguido esse que nunca fez vida de casal, passando os seus tempos livres nos cafés da aldeia a ingerir bebidas alcoólicas e relegando a ofendida para a vida doméstica.
Na sequência da ingestão de bebidas alcoólicas e interpelado pela ofendida para explicar onde havia estado, com quem havia estado, o arguido agrediu, por diversas vezes, a murro a ofendida em diversas partes do seu corpo no domicílio comum ao ex-casal, chamando-lhe “burra”, “maluca”, “não prestas” e denegrindo a imagem da sua família de origem.
Este pedaço de vida que nos é apresentado reveste quanto a nós uma clara situação de violência doméstica, pois que relata uma situação de humilhação e grave afetação da pessoa no seio da relação conjugal.
O facto de a ofendida reagir, responder, exigir explicações, não importa conclusão diversa. É que nem só as vítimas incapazes de reagir são suscetíveis de serem vítimas de violência doméstica, nem as agressões perpetradas no contexto de discussões, ainda que recíprocas, deixam de ser cruéis e degradantes.
Veja-se que não há maior humilhação do que sofrer agressões, físicas e verbais, ao longo de mais de trinta anos, reagir e perceber que nada tinha efeito no arguido. Tal coloca em causa o bem-estar, autoestima e dignidade de qualquer pessoa que partilhe com outra a sua vida.
De referir que o estado de degradação, humilhação e fragilidade em que se viu a ofendida foi determinante para que ela própria começasse a ingerir bebidas alcoólicas, o que fez como escape ou fuga para a vida infernal que levava com o arguido.
A circunstância, aventada em sede de audiência, de que a ofendida nunca ter abandonado o domicílio comum, não pode permitir a conclusão de que aquela não tinha medo ou receio do arguido ou que, no limite, nunca foi alvo de agressões. É que tal corresponderia a exigir à vítima que saísse da sua habitação, para a qual trabalhou uma vida inteira, como forma de credibilizar o seu testemunho. Tal não se nos afigura, de todo em todo, admissível.
De todo o quadro factual apurado resulta que entre o arguido e a ofendida existia uma relação desequilibrada, no sentido de que o arguido fazia o que bem entendia, ignorando os apelos da sua mulher, e sempre que era chamado à atenção pela ofendida, o arguido agredia, ofendia e humilhava. De resto, não obstante ter resultado demonstrado que a ofendida respondia e exigia explicações ao arguido, este nunca alterou as suas rotinas, não admitindo ser chamado à atenção.
O ascendente que o arguido tinha pela ofendida retira-se, no entendimento deste Tribunal, da circunstância de que, não obstante a vítima ter sido alvo de sucessivas agressões físicas e verbais, manteve-se com o arguido por mais de três décadas, nunca conseguindo reagir pondo termo a tais humilhações e agressões. O arguido, sabedor de tal circunstância, humilhou, maltratou, agrediu e injuriou a sua então mulher, sendo que foi o filho do ex-casal que tomou a iniciativa de apresentar queixa. Assim, está este tribunal em crer que a ofendida não teria, por si, colocado termo à relação conjugal e aos maus tratos de foi vítima ao longo de mais de trinta anos.
Ao longo de cerca de mais de trinta anos, o arguido (...) revelou desprezo e desconsideração pelo bem-estar da sua mulher e mãe dos seus filhos, mostrando-se indiferente perante as consequências nefastas que causou, não só a (...), mas também aos filhos do casal, que assistiram ao longo da sua vida a conflitos, discussões e agressões (no caso de (...) que, com apenas seis/sete anos, assistiu a uma agressão que o marcou).
O episódio de vida retratado nos presentes autos deixa a descoberto uma dependência emocional, sendo que atentos os laços que uniam o arguido e a ofendida não podem deixar de relevar para efeitos de enquadramento da conduta do arguido no tipo de violência doméstica.
Esta sujeição, que ficou patente nos autos, é paradigmática de situações de violência doméstica, sendo, pois, de concluir que a ofendida foi alvo de agressões verbais e físicas que causaram humilhação, sendo este o quadro típico de violência doméstica.
Por outro lado, os seus atos foram praticados dentro do domicílio comum ao arguido e à vítima, o que agrava, como é evidente, a sua conduta.
O arguido ao agir da forma supra descrita quis molestar psicologicamente a ofendida, intimidá-la, humilhá-la e ofendê-la na sua honra e consideração, bem sabendo que, em atenção à especial relação que tinham, lhe devia especial respeito e que com o seu comportamento causava à ofendida vergonha, humilhação, angústia e tristeza.
Agiu, pois, com dolo direto (art. 14.º, n.º 1, do CP).
Inexistem quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade.
Desta forma, podemos concluir que o arguido com as suas condutas preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto no art.º 152º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 2, al. a), do Código Penal.
III.3 Da pena abstrata
O crime de violência doméstica cometido pelo arguido, é punido com pena de prisão de dois anos até cinco anos (artigo 152º 1, al. a), n.º 2, al. a) e art. 41.º, ambos do Código Penal).
III.4 Da escolha da pena aplicável
Decorre do artigo 70º do Código Penal que o Tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, dependendo a escolha entre a pena de prisão e a alternativa única da punição, dependendo a escolha entre a pena de prisão e a alternativa unicamente de mente de considerações de prevenção geral e especial.
De acordo com MAIA GONÇALVES, o supra mencionado art. 70.º cristaliza “o critério de orientação para a escolha, quando ao crime são aplicáveis pena privativa ou pena não privativa de liberdade, e traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam atingir-se por outra via.” [1- Código Penal Português Anotado e Comentado, anotação ao artigo 70º, 15.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, pág. 240.]
Assim, o legislador dá preferência a pena não privativa da liberdade sempre que esta for admissível e puder realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade.
Quanto às necessidades de prevenção geral, há a apontar o seguinte, as necessidades de prevenção geral são prementes e elevadíssimas, tendo em consideração frequência de ilícitos relacionados com a violência doméstica e a sua estreita relação com desfechos mais graves, nomeadamente, a morte das vítimas, e também a necessidade de reprimir, eficazmente, as condutas que impliquem a ofensa a bens pessoais. É, pois, necessário manter e reforçar a validade e vigência da norma jurídica violada, especialmente, tendo em consideração a escalada de violência entre casais, com todas as consequências pessoais e sociais associadas.
No caso dos autos, as razões de prevenção especial são diminutas, porquanto o arguido não regista antecedentes criminais.
No caso dos autos, o crime de violência doméstica não prevê a possibilidade de aplicação de pena de multa, pelo que não resta ao tribunal outra opção que não seja a aplicação de pena privativa da liberdade.
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III.5 Da pena concreta a aplicar ao arguido
Nos termos do artigo 71.º/3 do Código Penal, “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”. No mesmo sentido, o n.º 1 do artigo 375.º do CPP prevê que “a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidem à escolha e à medida da sanção aplicada”. Assim, enquadrada juridicamente a conduta do arguido e apurada a sua responsabilidade criminal, importa agora expor os fundamentos que irão presidir à escolha e medida da pena a aplicar.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo levar-se em conta que, nos termos previstos no artigo 40º do CP, a pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena.
A medida da pena, além de determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e especial, deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele, devendo o Tribunal atender, nomeadamente, ao grau de ilicitude do facto, à culpa do agente, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas.
Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, verificamos que, para além das razões de prevenção já mencionadas supra:
- No que respeita à ilicitude, a mesma revela-se a mesma elevada, atendendo à reiteração de condutas e desvalor da ação que emerge das condutas praticadas pelo arguido e às consequências da conduta do arguido.
- No que concerne à culpa, o arguido agiu sempre da forma que representa um maior desvalor jurídico-social, isto é, com dolo direto, não se importando com as consequências que os seus atos pudessem ter.
- Em benefício do arguido o facto de estar social e profissionalmente inserido.
Assim, não pode deixar de concluir-se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral e especial da punição, considerando-se justa, adequada e proporcional, à conduta do arguido a pena de 2 anos e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica.
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III.6 Da suspensão de execução da pena de prisão aplicada por prática do crime de violência doméstica.
Cumpre ainda ponderar, de harmonia com o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, a suspensão da execução daquela pena de prisão.
Dispõe o art. 50.º/1 do CP, que “o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Este é, pois, um poder-dever do tribunal, o qual suspenderá a execução da pena de prisão sempre que, atentos os fatores preceituados por aquele normativo, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, ou seja, sempre que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarem para afastar o delinquente da criminalidade.
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.
Atendendo às finalidades da punição previstas no artigo 40.º do Código Penal, nomeadamente a importância de assegurar a reintegração do agente na sociedade, considera o Tribunal não ser de aplicar ao caso concreto uma pena de prisão efetiva.
Atendendo às circunstâncias supra enunciadas (destacando-se aqui a ausência de antecedentes criminais registados), afigura-se que o arguido é merecedor do juízo de prognose favorável a que alude este preceito, e que justifica a suspensão da execução da pena, tendo-se como certo que a sua ameaça, juntamente com a censura do facto, será suficiente para assegurar as finalidades da punição.
De facto, considera este tribunal que o cumprimento da pena de prisão, apesar de ser a pena aqui aplicada, em pouco iria beneficiar o arguido em termos de integração social.
Verificando-se, assim, o pressuposto formal, previsto no artigo 50º, nº 1 do Código Penal, o tribunal considerando o circunstancialismo dos autos, e porque entende, saliente-se de novo, que a simples censura do facto e fundamentalmente a ameaça da prisão, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, entende dever suspender a execução da pena de prisão.
Assim, decide-se suspender a execução da pena de 2 anos e 10 meses de prisão pelo mesmo período.
*
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 34.º-B da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, a “suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio”.
Assim, a suspensão supra determinada deverá ser acompanhada de regime de prova, nos termos dos artigos 50.º/ 2, 53.º/1 e 2 e 54.º do C.P., de forma a assegurar melhor a ressocialização, reeducação e reintegração do arguido na sociedade.
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III.8 – Da indemnização à ofendida
O pedido de indemnização civil por danos emergentes da prática de crime é, por regra, obrigatoriamente deduzido no processo penal e trata-se, no essencial, de uma ação cível enxertada na ação penal.
A obrigação de indemnizar depende, por isso, da verificação dos requisitos gerais da lei civil, sendo que o facto ilícito gerador da responsabilidade é o crime objeto do processo penal.
*
Tratando-se de responsabilidade civil por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar depende da verificação dos requisitos previstos no artigo 483.º do Código Civil, a saber:
- A ocorrência de um facto voluntário facto voluntário.
- O carácter ilícito desse facto.
- A imputação do facto ao agente a título de culpa.
- A ocorrência de danos.
- Nexo causal entre os danos e a conduta do agente.
No caso concreto, o facto ilícito corresponde ao tipo criminal imputado ao arguido e cujos factos resultaram demonstrados. De facto, como referido supra, a ilicitude resulta, in casu, do facto de o arguido ter causado danos psíquicos e físicos à ofendida, conduta essa que, para além de integrar a prática de um crime, configura um ataque à integridade psíquica e física de outrem que mais não são do que direitos absolutos.
Quanto à culpa, resulta evidente que o arguido atuou com dolo direto, querendo e conseguindo o resultado criminoso, quando lhe era exigível que agisse de outra forma mais conforme ao Direito.
Quanto aos danos, há a elencar as dores, vergonha, humilhação, medo e temor sentidos pela ofendida, o que se prolongou por cerca de mais de trinta anos.
Ademais, resultou evidentemente demonstrado que os danos sofridos pela ofendida foram causados pela conduta do agente.
Assim, no caso concreto, esse nexo é de verificação evidente, pois foi dado como provado que aqueles sentimentos resultaram dos atos dos factos praticados pelo arguido.
Os danos não patrimoniais em causa nos presentes autos são, no essencial, danos psíquicos tipicamente decorrentes de maus-tratos psíquicos e físicos.
*
Na fixação da obrigação de indemnizar relativamente aos danos não patrimoniais, as regras são diferentes da vulgar indemnização por danos patrimoniais.
Por um lado, nem todos os danos são indemnizáveis, mas apenas aqueles que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, não se justificando a tutela no caso de meros incómodos ou arrelias.
Por outro lado, à falta de uma correspondência pecuniária imediata, a fixação da indemnização terá de fazer-se recorrendo à equidade.
No caso concreto, tendo em conta o critério legal, considera-se que os danos não patrimoniais descritos merecem a tutela do direito, para tanto sendo suficientemente graves, já que excedem, em grande medida, meros incómodos.
Ora, tendo em consideração os danos sofridos pela ofendida, considera-se adequado à compensação dos referidos danos o montante de € 7.500,00 tendo por referência o momento atual, nos termos do artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil.
*
Tratando-se, como é o caso, de decisão que leva em conta a situação no momento actual (nos termos do artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil), os juros contar-se-ão desde o trânsito em julgado da decisão [2 - Acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002 (publicado no D.R. I Série-A, de 27 de junho de 2002].
A taxa aplicável é a fixada para os juros civis, que é de 4%, nos termos do artigo 559.º, n.º 1 do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
*
O arguido deverá ser condenado em taxa de justiça e nas demais custas (art.º 513.º e 514.º do CPP).
(…).»

2.3. Conhecimento do recurso
2.3.1. Da integração de factos genéricos na factualidade provada com a consequente violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido
Sustenta o arguido/recorrente que a matéria dada como provada sob os n.ºs 4 a 9 e 20 consubstancia imputações genéricas, sem qualquer rigor e concretização, não constando qualquer motivação para a prática dos factos pelo arguido, nem as datas concretas do seu cometimento (exceção feita, quanto à data, ao facto 4.), quando é certo que a relação conjugal perdurou durante 33 anos.
Entende o recorrente que, tal circunstância, não permite um efetivo exercício do contraditório e impossibilita uma cabal defesa do arguido, em violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Por essa razão, pugna o recorrente para que os pontos da matéria factual provada referenciados sejam dados como não escritos.
O Ministério Público, na 1ª instância, pronuncia-se no sentido de que devem manter-se, na matéria factual provada, os factos indicados pelo recorrente.
Por sua vez, o Exm.º PGA, nesta Relação, emitiu parecer no sentido de que assiste razão ao recorrente e, nessa decorrência, que para efeitos de responsabilização criminal, os enunciados factos dados como provados, devem considera-se como não escritos.
Apreciando:
Vem sendo entendimento consolidado, na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, que as imputações genéricas, sem qualquer concretização das condutas em que se traduziu a atuação do agente e do tempo, modo e lugar em que acontecerem, por não permitirem o pleno exercício do contraditório e, portanto, do direito de defesa, constitucionalmente consagrado (cf. artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente e, como tal, à sua condenação penal[12].
As imputações genéricas, para que possam assumir relevância jurídico-penal, para efeitos de condenação criminal, carecem de ser concretizadas em factos, sendo irrelevantes ou inócuas as imputações genéricas, que não encontram no texto da decisão aquele limiar indispensável de concretização, pelo que, das duas uma, ou essa concretização é feita ou não podem essas imputações ser consideradas na decisão condenatória[13].
Especificamente, em relação ao crime de violência doméstica, quando estão em causa condutas reiteradas, que se prolongaram no tempo[14], conforme se decidiu no Ac. da RP, de 20/04/2016[15] é decisiva «a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente», não podendo haver unificação da atuação desenvolvida pelo arguido, se existirem hiatos temporais significativos entre as condutas pelo mesmo perpetradas, tendo-se decidido nesse acórdão que «a interrupção dos actos criminosos durante um determinado lapso de tempo relevante (v.g. um ano) não autoriza a sua unificação» num único crime[16]. Como é evidente, este aspeto assume relevância, designadamente, para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal[17].
É certo que situações existirão em que a reiteração das condutas criminosas ao longo de anos é de tal forma persistente que se revelará quase como uma prática habitual, não permitindo concretizar, com o mínimo de precisão, a localização temporal dessas condutas. Contudo, sendo essa a situação, tem de haver a especificação dos concretos atos praticados pelo arguido e a contextualização de alguns deles, para que seja possível ao arguido, o pleno exercício do contraditório.
O que está em causa nesta exigência de definição concreta da matéria que é imputada ao arguido relaciona-se, precisamente, com o direito ao exercício do contraditório, o qual só pode ser plenamente assegurado se o arguido souber quais os factos concretos de que é acusado para que deles se possa defender.
Nesse sentido, como se escreve no Acórdão desta Relação de Évora, de 26/10/2021[18] «mais importante do que a indicação circunstancial temporal dos factos – que, muitas vezes, é impossível ou muito difícil de determinar, – importa assegurar que os mesmos têm uma definição concreta suficientemente segura para que o arguido deles se possa proteger, seja pela evidente compreensão da materialidade que os envolve, seja, até, pela localização espacial.»
Nesta linha de entendimento veja-se o Acórdão do STJ, de 20/02/2019[19] - tratando-se de um caso de concurso entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado -, cujo sumário se transcreve:
«I - Pretende o recorrente que sejam dado por não escritos os factos dados como provados, com consequente absolvição pelo crime de violência doméstica, alegando que o respectivo conteúdo consubstancia imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa do arguido, porém, se é certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso, a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida, sendo que, no caso dos autos, quem mais esclarecimentos podia prestar, a vítima, foi silenciada com 17 facadas desferidas pelo arguido.
II - Perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.
III - Se é certo que no ponto 3 da matéria de facto se refere que o arguido "começou a exercer violência física e a ofender verbalmente” a ofendida, expressão de índole conclusiva, certo é também que a tal conclusão é dado substrato factual nos pontos seguintes da matéria de facto, indicando-se concretamente os modos de atuação do arguido em relação à ofendida, as palavras ofensivas que lhe dirigia, as agressões que nela praticava, enfim, as humilhações a que a sujeitava, impedindo-a de contactar com as pessoas das suas relações, de decidir a roupa que iria vestir ou até de descansar durante a noite na residência comum do casal, não por proibição do arguido mas por receio da ofendida de ofensas à vida e integridade física, sua e dos filhos, traduzindo-se toda esta factualidade num continuado atentado contra a integridade física e moral da ofendida, contra a sua liberdade e autonomia, enfim, contra a sua dignidade como pessoa, através de agressões, palavras ou proibições bem concretas e especificadas, não havendo assim qualquer dúvida de que os factos apurados em sede de julgamento preenchem tanto os elementos objectivos como subjectivos do crime de violência doméstica.
IV - Os factos constantes da acusação que vieram a ser dados como provados, resultado este que, lembre-se, competia à acusação, contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que aliás não seria diferente se outra fosse a formulação da peça acusatória dado que o arguido, conforme documentam os autos, se limitou a negar os maus tratos que lhe eram imputados.
(…)»
Neste quadro e tendo em conta a factualidade que é referenciada pelo recorrente como constituindo imputações genéricas ou revestindo caráter conclusivo, analisemos, então, a questão:
Os pontos 4 a 9 e 20 da matéria factual provada são do seguinte teor:
4. Oito dias depois do casamento, no decurso de uma discussão entre o casal, de forma não concretamente apurada o arguido desferiu pancadas no corpo da ofendida.
5. Durante o período de coabitação, que durou cerca de trinta e três anos, em número de vezes não apurada, mas pelo menos vinte vezes, em diversas ocasiões distintas, no interior do domicilio comum o arguido desferiu murros na face, cabeça e braços da ofendida, empurrões e exercendo força com as suas mãos apertou os braços da ofendida, apodando-a de “burra”, “maluca” e dizendo “não prestas”.
6. Como consequência direta da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e hematomas apresentado inchaço no local das agressões.
7. Em data não concretamente apurada, no interior do domicílio comum, durante uma discussão mantida à hora de jantar, o arguido atirou ao chão a loiça, pratos e copos, que se encontravam em cima da mesa, tendo partido os mesmos e espalhado comida e vinho pelo chão da cozinha.
8. Após, o arguido atirou ainda para o chão frascos de perfume da ofendida que se encontravam na casa de banho, provocando a quebra dos mesmos e estilhaços no chão.
9. De seguida, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida, provocando-lhe, pelo menos, dores.
20. Os murros, empurrões e aperto de braços a que se aludiu supra deixavam, por vezes, marcas que a ofendida escondia, por vergonha.
Relativamente à matéria factual dada como provada no ponto 4, tal como refere o Exm.º PGA no seu parecer «embora o episódio esteja localizado temporalmente (por referência à data do casamento somos remetidos para princípios de Outubro de 1987), a imputação continua a ser vaga, não só quanto aos factos que integram a agressão («de forma não concretamente apurada … desferiu pancadas no corpo da ofendida»), mas também quanto à motivação do arguido, quanto às consequências que daí advieram para a integridade física e/ou psíquica da ofendida ou quanto ao local onde as mesmas tiveram lugar.»
No tocante à factualidade dada como provada no ponto 5, como refere o Exm.º PGA «deparamo-nos com uma excessiva indeterminação temporal. Na verdade, dá-se como assente que o arguido, durante o período de coabitação do casal, em «pelo menos vinte» ocasiões distintas, agrediu e insultou a ofendida. Como esse período de coabitação perdurou mais de três décadas, cabe perguntar se essas «vinte vezes» ocorreram todas no mesmo ano, se se distribuíram por diferentes anos e, nesse caso, quais. O leque de hipóteses possíveis é infindável.
Da mesma forma, quanto às agressões podemos interrogar-nos se em cada uma dessas vinte vezes o arguido martirizava a ofendida com murros na face, na cabeça e nos braços, com empurrões e apertões nos braços e apodando-a de “burra”, “maluca” e dizia-lhe “não prestas”, ou se nalgumas ocasiões, “limitava-se” a empurrá-la, noutras a esmurrá-la nos braços, noutras ainda a esmurrá-la na face, e assim por diante. Uma vez mais, o espectro de possibilidades é demasiado amplo.»
E a matéria factual provada vertida nos pontos 7 a 9 padece da mesma indeterminação temporal que o facto provado 5, tendo esses factos em questão ocorrido em data não apurada, situada entre 1987 e 2020.
Assim, no referente aos factos descritos nos pontos 7 a 9, pese embora contenham a concretização dos atos praticados pelo arguido na situação a que se reporta, tais factos não estão minimamente localizados no tempo, com referência ao período de 33 anos – desde 27/07/1987 até 05/08/2020 –, de coabitação do arguido e da ofendida
E apesar de - como resulta da motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida -, o arguido ter admitido a factualidade vertida nos pontos 7 e 8, a indefinição temporal da ocorrência desses acontecimentos, bem assim como da agressão descrita no ponto 9 - que o arguido negou, mas que a ofendida (...) confirmou ter existido, na mesma ocasião em que o arguido praticou os factos descritos nos pontos 7 e 8 -, acarreta que não possa aferir-se da eventual prescrição do procedimento criminal em relação a esses factos[20], como o consequente prejuízo para o direito de defesa do arguido.
Por fim a factualidade dada como provada nos pontos 6 e 20 está na dependência dos factos vertidos no ponto 5.
Ora, tendo em conta que a coabitação do casal constituído pelo arguido e pela ofendida se manteve ao longo de 33 anos – desde 27/07/1987 até 05/08/2020 – a referência a que, durante esse período, pelo menos, «vinte vezes, em diversas ocasiões distintas, no interior do domicilio comum o arguido desferiu murros na face, cabeça e braços da ofendida, empurrões e exercendo força com as suas mãos apertou os braços da ofendida, apodando-a de “burra”, “maluca” e dizendo “não prestas”», carecia de alguma concretização, em termos de localização temporal, senão de todos – por, nestas situações, tal se mostrar muito difícil ou mesmo impossível –, pelo menos, de alguns desses episódios e do circunstancialismo em que ocorreram, por forma a permitir ao arguido o pleno exercício do contraditório e o direito de defesa e também para se poder aquilatar na existência ou não de conexão temporal entre as condutas imputadas ao arguido e, eventualmente, na hipótese de se verificar uma interrupção temporal relevante entre as condutas, para se poder aferir da eventual prescrição do procedimento criminal no referente a alguns dos factos.
Assim, no referente à matéria vertida nos pontos 4, 5, 7 a 9, concluímos que assiste razão ao recorrente, tratando-se de imputações genéricas e/ou imprecisas, designadamente, não havendo concretização do contexto ou das circunstâncias em que o arguido praticou os atos referidos, nem existindo localização temporal, desses factos, designadamente, de qualquer uma das “vinte vezes” em que o arguido terá atuado da forma descrita no ponto 5, no período de trinta e três anos que perdurou a coabitação do casal, em termos de não permitir ao arguido, ora recorrente, o pleno exercício do contraditório e o direito de defesa, em violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da CRP.
Por conseguinte, os factos vertidos nos pontos 4, 5 e 7 a 9 da matéria factual provada, não podem relevar para efeitos de responsabilização criminal do arguido, ora recorrente, pelo que, são dados como não escritos.
E porque os factos constantes dos pontos 6, 20 a 23 da matéria factual provada, estão na dependência dos factos vertidos no ponto 5, também os mesmos têm de ser considerados não escritos, o que se decide.

2.3.2. Da impugnação da matéria de facto dada como provada
Em face do decidido em 2.3.1., tendo sido dados como não escritos os factos vertidos nos pontos 4 a 9 e 20 a 23 da matéria factual provada, mostra-se prejudicada a impugnação da matéria de facto, no que a esses concretos pontos diz respeito.
Apreciemos, então, a impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 11, 13 e 14.
Alega o recorrente que não foi produzida prova suficiente para que o Tribunal a quo pudesse dar como provados os factos vertidos pontos 11, 13 e 14, sendo a prova desses factos sustentada apenas nas declarações da ofendida, que não foram corroboradas por qualquer outra prova, tendo o arguido negado que tivesse agredido fisicamente a ofendida, não podendo o Tribunal a quo valorar uma versão em detrimento de outra, tanto mais, que com referência ao episódio ocorrido em 24/07/2020 – factualidade vertida no ponto 11 –, a testemunha (...), filho do arguido e da ofendida, que esteve com a mãe nesse dia, disse que não viu quaisquer marcas na mãe, nem esta lhe contou o que quer que fosse respeito de agressões físicas.
Sustenta, ainda, o recorrente que, em face das declarações da ofendida, do arguido e da testemunha (...) – tendo a ofendida admitido ter dado duas estaladas ao arguido e duas palmadas nas costas do mesmo, sendo este último facto também confirmado pela testemunha (...) – impõe-se a alteração da redação do ponto 11. da matéria factual provada, nos seguintes termos: «No decurso da aludida discussão, o arguido, para evitar ser agredido pela ofendida, fazendo força com as suas mãos, apertou os braços da ofendida, tendo esta lhe desferido duas bofetadas na cara e, após, quando o mesmo lhe virou costas, desferiu-lhe duas palmadas nas costas
E, nessa decorrência, no referente aos factos provados constantes dos pontos 13 e 14, pugna o recorrente para que sejam dados como não provados.
O Ministério Público defende que o Tribunal a quo valorou corretamente a prova, pelo que, a decisão da matéria de facto deve ser mantida, com exceção, no entender do Exm.º PGA, da factualidade respeitante ao elemento subjetivo vertida no ponto 13., devendo ser reformulada a respetiva redação, por forma a que do mesmo passe a constar tão só que: «O arguido quis agir como agiu, com o propósito concretizado de atingir a integridade física da ofendida, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicilio comum, revelando não demonstrar qualquer respeito pela mesma enquanto esposa e mãe dos seus filhos.»
Apreciando:
O erro de julgamento ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste domínio, importa reter três aspetos fundamentais, que vêm sendo reiteradamente afirmados pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores:
Primeiro: O erro de julgamento não pode ser confundido, como, frequentemente, vem acontecendo, com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal formou, vigorando, neste âmbito, o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Segundo: O recurso da matéria de facto, não visa a realização de um segundo e novo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, cabendo ao tribunal da Relação confrontar o juízo que sobre esses concretos pontos foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cf. al. b) do n.º 3 do referenciado artigo 412º)
É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal.
Terceiro: A atribuição de credibilidade, ou não, a prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que o tribunal de recurso só poderá censurar se for contrária às regras da experiência comum e lógica[21].
E nada impede que a convicção do julgador se possa alicerçar no depoimento de uma única testemunha, mesmo que se trate do(a) ofendido(a), nas declarações do assistente ou do demandante, desde que devidamente explicitadas, pelo julgador, na motivação da decisão de facto, as razões do seu convencimento[22].
Tal como acima já se referiu, o tribunal de recurso limita-se a aferir do processo de motivação e de conformidade com as regras legais de apreciação de prova e a só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa e não se apenas permitem uma outra decisão.
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Não pode admitir-se que haja uma inversão de papéis do juiz e do recorrente, em termos de a convicção pessoal deste último se poder afirmar ou sobrepor à convicção formada pelo julgador, logo que esta se mostre alicerçada nas provas produzidas, respeitando os princípios e as normas legais do direito probatório e que seja devidamente fundamentada.
Neste quadro, lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, que acima transcrevemos, constata-se que o Tribunal a quo enunciou as provas e o exame crítico das mesmas, que fundamentam a decisão de dar como provados os factos que são impugnados pelo recorrente, tendo explicitado as razões por que lhe merecerem credibilidade e, por isso, valorou, as declarações da ofendida/demandante (...), em detrimento das declarações do arguido, que negou a prática dos factos em causa - afirmando que nunca agrediu fisicamente a ofendida, designadamente, que não o fez nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas no ponto 11 da factualidade provada, tendo-se limitado a segurar os braços da ofendida, para se defender, pois que ela lhe queria bater -, explicitando as razões por que assim decidiu e qual o raciocínio lógico efetuado, subjacente à tomada de decisão nesse sentido e que se mostram consentâneos com as regras da experiência comum e da lógica racional.
E entendemos não existirem quaisquer razões objetivas, para pôr em causa a credibilidade que foi atribuída pelo Tribunal a quo às declarações da ofendida/demandante, em detrimento das declarações do arguido, que negou a prática dos factos.
Contrariamente ao que defende o recorrente, a credibilidade das declarações da ofendida/demandante, não surge, minimamente abalada, designadamente, com relação ao relato que fez dos acontecimentos ocorridos no dia 24/07/2020, pelo facto, de não se ter queixado ao seu filho, ora testemunha (...), que entrou no domicilio do casal, seus pais, na parte final dos acontecimentos, que o arguido a tinha agredido fisicamente, de, nessa altura, a testemunha não ter visto marcas no corpo da mãe deixadas pelas agressões e de a ofendida não ter sido submetida a exame médico. Com efeito, foi confirmado quer pela ofendida/demandante, quer pelas testemunhas (...), que logo após o sucedido, a ofendida recusou-se a falar sobre o sucedido e não quis apresentar queixa contra o arguido, sendo que a recusa da ofendida em apresentar queixa, resulta também corroborado nos autos, tendo a denúncia dos factos sido feita pelo filho (...), manifestando a ofendida não desejar procedimento criminal contra o arguido e recusando-se a realizar exame médico (cfr. fls. 3 a 6).
Importa ainda salientar os seguintes aspetos:
- Se é certo que a conduta adotada pelo arguido para com a ofendida/demandante e que foi dada como provada no ponto 11., não foi presenciada pela testemunha (...), nada impede que a prova de tais factos se faça apenas com base nas declarações da ofendida/demandante, desde que devidamente explicitadas, pelo julgador, na motivação da decisão de facto, as razões do seu convencimento, o que, no presente caso, se verifica.
- Diversamente do que defende o recorrente, as declarações da ofendida, na versão que apresentou, admitindo ter dado duas estaladas ao arguido, nas circunstâncias descritas no ponto 11 e ter ainda, quando o arguido parou de a agredir e lhe voltou as costas para sair de casa, desferido duas palmadas nas costas do arguido, sendo este último facto presenciado pela testemunha (...), não corrobora a versão do arguido no sentido de que se limitou a segurar os braços da ofendida, para se defender, porque a ofendida queria bater-lhe, nem aquela atuação da ofendida tinha de constar do elenco dos factos provados.
Com efeito, o que resulta das declarações da ofendida/demandante, que mereceram credibilidade ao Tribunal a quo, é que o arguido a estava a agredir com socos na cabeça e que, nessa altura, para ver se ele parava, lhe deu duas estaladas na cara, tendo o arguido continuado a dar-lhe socos e que, quando ele parou, dizendo-lhe que a queria fora de casa e se voltou de costas para sair de casa, já na presença do filho (...), a ofendida com raiva, deu-lhe duas palmadas nas costas.
Ora, como é evidente, atenta a versão da ofendida, ao desferir as duas estaladas no arguido, forçoso seria concluir que atuou em legitima defesa. E em relação às duas palmadas que a ofendida deu nas costas do arguido, quando este já tinha cessado de a agredir fisicamente, não tendo o arguido apresentado queixa por esses factos, não tinham, nem podiam, esses factos que constar do elenco dos factos provados.
Importa fazer notar que os factos que resultem da discussão da causa e que não constem do elenco dos factos provados ou não provados, não podem ser objeto da impugnação ampla da matéria de facto, só podendo se impugnados e mesmo oficiosamente conhecidos pelo tribunal de recurso, por via do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP, o que, não é, de todo, aqui o caso.
- No tocante à prova do nexo de causalidade entre as lesões sofridas pela ofendida e que são visíveis nas fotografias que lhe foram tiradas pelo OPC, no dia 27/07/2020, que constam do relatório fotográfico inserto a fls. 188 dos autos, o Tribunal a quo valorou as declarações da ofendida, ainda que não tenha sido realizado exame pericial, por recusa da ofendida em comparecer a tal exame, sendo que as declarações da ofendida que afirmou terem essas lesões sido produzidas pelas agressões que o arguido lhe infligiu no dia 24/07/2020 e localizando-se as lesões em zonas do corpo da ofendida onde disse ter sido atingida pelo arguido –, a que o Tribunal a quo atribuiu credibilidade, pelas razões que explicitou, constituem prova bastante para permitir que alicerçasse a convicção segura que o levou a dar como provados os factos vertidos no ponto 12.
A valoração da prova efetuada pelo Tribunal a quo, nos termos sobreditos, dando como provados os factos vertidos nos pontos 11 e 12, respeitando as regras da experiência comum e da lógica racional e sendo explicitadas as razões por que lhe merecerem credibilidade e, por isso, valorou, as declarações da ofendida/demandante, em detrimento das declarações do arguido, não merece qualquer censura, não existindo, pois, erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova a que o Tribunal a quo procedeu e que o levou a dar como provados os referenciados factos, que são impugnados pelo recorrente.
No que se refere à factualidade dada como provada nos pontos 13. e14.,tratando-se de factos que se reportam aos elementos subjetivos, que pertencem ao foro intimo do sujeito, a respetiva prova, na ausência de confissão do arguido, terá de ser feita por recurso a ilações ou inferências, isto é, «terá que resultar da conjugação da prova de factos objetivos – em particular, dos que integram o tipo objetivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum[23]».
Ora, na decorrência de terem sido dados como não escritos os factos constantes dos pontos 4 a 9, mantendo-se a factualidade provada vertida nos pontos 10 a 12, a matéria factual atinente aos elementos subjetivos e que resulta provada, tem de cingir-se ao comportamento assumido pelo arguido contra a ofendida, descrito no ponto 11.
Assim, ante a atuação do arguido contra a ofendida, descrita no ponto 11, apenas ficará a constar do ponto 12 que «Na situação descrita, ocorrida no dia 24.07.2020, o arguido quis agir como agiu, com o propósito concretizado de atingir a ofendida na sua integridade física, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicílio comum, revelando o arguido falta de respeito pela ofendida enquanto sua esposa e mãe dos seus filhos
E do ponto 14 passará a constar que «Nas circunstâncias acima descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal

2.3.3. Da violação do princípio in dúbio pro reo
Sustenta o recorrente que o Tribunal a quo violou o princípio in dúbio pro reo, ao ter valorado a versão dos factos apresentada pela ofendida, em detrimento pelo arguido, não existindo quaisquer provas que corroborem a versão da ofendida e que infirmem a do arguido.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não ter sido violado, pelo Tribunal a quo, o enunciado princípio.
Apreciando:
O princípio in dúbio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, que resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
E como vem frisado pela jurisprudência, o tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[24].
Noutra vertente, a violação do princípio in dúbio pro reo, verificar-se-á, quando, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, resulte demonstrado, o erro na apreciação da prova produzida, em termos de se concluir que o julgador, ao condenar o arguido, com base na prova a que atendeu e na valoração a que procedeu, contrariou as regras da experiência comum, quando, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido[25].
Assim e como se escreve no Acórdão do STJ de 17/06/2021[26] «a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto é um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova (…) só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido; ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.»
Ora, lendo a motivação da matéria de facto exarada na sentença recorrida constata-se que o julgador não ficou com qualquer dúvida em relação à prova dos factos que deu como assentes, designadamente, os ocorridos no dia 24/07/2020 e que são impugnados pelo arguido/recorrente.
Por outro lado, atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, nos termos efetuados pelo Tribunal a quo, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, decidindo o tribunal a quo, de acordo com a livre convicção, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o tribunal a quo devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, em relação aos factos que deu como provados referentes à atuação desenvolvida pelo arguido contra a ofendida, no dia 24/07/2020, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido.
Nesta conformidade, impõe-se concluir que não existir violação, por parte do tribunal a quo, do princípio in dúbio pro reo, na dimensão constitucionalmente consagrada da presunção da inocência, prevista no artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

2.3.4. Da qualificação jurídica dos factos
Tendo sido dados como não escritos os factos que constavam dos pontos 4 a 9 e 20 a 23 da matéria factual dada como provada na sentença recorrida e tendo sido alterada a redação dos pontos 13 e 14, importa apreciar da eventual repercussão de tal modificação da decisão de facto, na qualificação jurídica dos factos provados vertidos nos pontos 11 a 14.
Defende o arguido/recorrente que a factualidade que se mantém provada, não é passível de poder integrar o crime de violência doméstica, por que foi condenado na 1ª instância, pelo que se impõe a sua absolvição da prática de tal crime.
Por outro lado, sustenta o recorrente que, a factualidade provada, sendo suscetível de integrar apenas o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do CP, tendo a ofendida manifestado não desejar procedimento criminal contra o arguido, carece o Ministério Público de legitimidade para a prossecução do procedimento, pelo que, não pode o arguido ser condenado por esse crime, devendo declarar-se a extinção procedimento criminal.
Por sua vez, o Ministério Público, em ambas as instâncias, entende que deve manter-se inalterada a qualificação jurídica dos factos, sendo a conduta do arguido que resultou provada, ainda que se considerem apenas os factos provados descritos nos pontos 11 a 14, o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, AL. a) e n.º 2, al. a), do CP, por que foi condenado na sentença recorrida.
O Exm.º PGA, no parecer emitido, defende, ainda, que caso se entenda ser de afastar a subsunção jurídica dos factos provados vertidos nos pontos 11 a 14, ao crime de violência doméstica, deverá decidir-se que integram o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal (devendo, nesta hipótese, cumprir-se o preceituado no artigo 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Apreciando:
Está em causa a qualificação jurídica dos factos provados nos pontos 11 a 14 e que são os seguintes:
10. No dia 24.07.2020, no interior do domicilio comum, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida motivada pela falta de dinheiro para efetuar o pagamento da pintura da parte exterior da moradia onde residiam.
11. No decurso da aludida discussão, o arguido fazendo força com a suas mãos, apertou os braços da ofendida, e de seguida desferiu-lhe um murro na face esquerda.
12. Como consequência direta da conduta do arguido, a ofendida sentiu dores e ficou com um hematoma e inchaço no lado esquerdo da face e diversos hematomas nos braços.
13. Na situação descrita, ocorrida no dia 24.07.2020, o arguido quis agir como agiu, com o propósito concretizado de atingir a ofendida na sua integridade física, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicílio comum, revelando o arguido falta de respeito pela ofendida enquanto sua esposa e mãe dos seus filhos.
14. Nas circunstâncias acima descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Desde já se dirá que, em nosso entender, salvo o devido respeito pela posição contrária, a conduta do arguido, ora recorrente, descrita nos pontos 10 a 12, não é suscetível de integrar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do Código Penal, por que o arguido foi condenado em 1ª instância, nem tão pouco o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, e 145º, n.ºs 1, alínea a), e 3, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal e apenas será suscetível de integrar o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal.
Explicitando:
No referente ao crime de violência doméstica:
De harmonia com o disposto no artigo 152º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, pratica o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge.
Em relação ao bem jurídico protegido por esta incriminação, sendo a questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, acolhemos a posição que vem sendo maioritariamente defendida, no sentido de que é a saúde física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade da pessoa humana, da vítima, individualmente considerada, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no nº. 1 do artigo 152º do Código Penal[27].
O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
Como se decidiu no Acórdão da RE, de 09/01/2018[28], no crime de violência doméstica, «A descrição típica esgota-se na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos por agente que se encontre com a vítima numa das relações mencionadas no preceito legal, ainda que se reconheça que o fundamento da ilicitude ou da sua agravação, subjacente à incriminação, se encontra na afetação da dignidade humana, decorrente da conjugação dos atos típicos ali previstos com a especial situação em que, reciprocamente, se encontram a vítima e o agente.»
Com a redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, ao artigo 152º do Código Penal, introduzindo-se no corpo do n.º 1 o segmento «de modo reiterado ou não», foi ultrapassada a querela que se vinha suscitando de saber se para integrar o conceito de «maus tratos» bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a reiteração de condutas. Perante a atual redação do enunciado preceito legal, é isento de dúvidas que poderá bastar só uma conduta ou ato para que possa ser preenchido o crime de violência doméstica.
A dificuldade está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros.
Como se faz notar no Acórdão da RP de 13/06/2018[29], a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
Tal como refere Catarina Fernandes[30], os maus tratos físicos podem «traduzir-se em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde) (…)»
«Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se pode traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos, direta ou indiretamente à vitima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (…)»
Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar[31].
Dito de outro modo, o comportamento tem de assumir uma dimensão ou intensidade bastante para poder lesar o bem jurídico protegido, ofendendo a saúde física, psíquica ou emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal, enquanto sujeito compreendido no elenco definido nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 152º do Código Penal.
Na apreciação do(s) comportamento(s) assumido(s) pelo agente, em termos de se poder decidir se configura(m) «maus tratos», haverá que proceder à avaliação da “situação ambiente” e que ter em conta a “imagem global do facto”[32].
Como se escreve no Acórdão desta Relação de Évora, de 24/02/2015[33], «Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Importa, nesses casos, descortinar se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.»
Deste modo, configurando o crime de violência doméstica um tipo em que condutas contra a integridade física, contra a honra e consideração, contra a liberdade e autodeterminação sexual encontram proteção, como bem se decidiu no Ac. da RC de 12/04/2018[34], «a questão de saber se as condutas violadoras encontram adequação, designadamente, nos tipos legais de ofensa à integridade física, injúria, ameaças, exige um juízo sobre a intensidade da violação de todos ou cada um dos bens em causa, quer pela sua reiteração, quer em função da gravidade da ofensa, quer pela conjugação de ambas de modo a aferir se ocorreu uma violação especial dos direitos do parceiro a demandar resposta que já não se compadece com a aplicação das normas penais tipificadoras das condutas (per se), as quais, não fosse a natureza e carga da violação, constituiriam punição adequada
E quando estiver em causa um único ato, sendo que «o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação», como bem se decidiu no Ac. da RP de 10/09/2014[35], «Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana
Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).
Tendo presentes as considerações jurídicas que se deixam expendidas e baixando ao caso dos autos, considerando os factos provados, descritos nos pontos 11 a 14, estando em causa um episódio, ocorrido, no dia 24/07/2020, no interior do domicílio comum, em que o arguido, no decurso de uma discussão com a ofendida motivada pela falta de dinheiro para efetuar o pagamento da pintura da parte exterior da moradia onde residiam, fazendo força com a suas mãos, apertou os braços da ofendida, e de seguida desferiu-lhe um murro na face esquerda, tendo a ofendida, em consequência dessa conduta do arguido, sentido dores e sofrido um hematoma e inchaço no lado esquerdo da face e diversos hematomas nos braços.
Ainda que a descrita atuação do arguido para com a ofendida, seu cônjuge, atentando contra a integridade física desta, seja reveladora de desrespeito e falta de consideração para com a mesma, entendemos que a sua gravidade, não atinge intensidade bastante para poder ser qualificada como «maus tratos físicos ou psíquicos», nos termos que de deixaram supra definidos.
Dito de outro modo, afigura-se-nos que a conduta do arguido que está aqui em causa – tendo, no decurso de uma discussão que iniciou, apertado, com as mãos, os braços da ofendida, e de seguida desferindo-lhe um murro na face esquerda –, não revela intensidade nem aptidão suficiente para lesar, para além da saúde física, também a saúde psíquica ou emocional, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal, ou seja, para lesar o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica.
Assim sendo, fica, desde logo, afastado o preenchimento do tipo objetivo do crime de violência doméstica.
Impõe-se, assim, a absolvição do arguido, da prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do Código Penal, por que foi acusado e condenado em 1ª instância.
E ressalvando o devido respeito pela posição do Exm.º PGA, entendemos que a referenciada conduta do arguido, também não é suscetível de preencher o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal.
Explicitando:
Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada:
De harmonia com o disposto no artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de ofensa à integridade física simples, «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa», sendo «punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa
E sob a epígrafe Ofensa à integridade física qualificada estatui o artigo 145º do CP:
«1. Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º.
b) (…).
2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº. 2 do artigo 132º.»
Por último, preceitua o n.º 2 do artigo 132º, do CP, na parte que para o caso vertente releva, que: «É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, circunstância de o agente:
(…);
b) Praticar o facto contra cônjuge (…);
(…);
e) Ser determinado (…) por qualquer motivo (…) fútil
O elemento objetivo do crime de ofensa à integridade física consiste em causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem.
O preenchimento do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto no artigo 145º do CP, pressupõe a verificação de uma lesão da integridade física simples (artigo 143º) ou grave (artigo 144º) e que «a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, uma “especial censurabilidade ou perversidade”, para utilizar a expressão do legislador no n.º 1 deste artigo, e que se mostra susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º, entre outras[36]».
Conforme vem sendo entendimento uniforme do Supremo Tribunal de Justiça e largamente maioritário, na doutrina - e que se perfilha -, as circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132º do CP, os chamados “exemplos-padrão”, são meramente exemplificativas e devem ser entendidas como relativas à culpa, não sendo de funcionamento automático, ou seja, ainda que se mostrem verificadas, não se pode, desde logo, concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente[37].
Assim sendo, a verificação de qualquer dos exemplos-padrão estabelecidos no artigo132º, n.º 2, do CP, não qualifica automaticamente a ofensa à integridade física, ex vi do artigo 145° CP. Para se poder aferir da verificação ou não da qualificação do crime de ofensa à integridade física, impõe-se uma análise das circunstâncias que o rodearam e a conclusão de que elas exprimem, inequívoca e concretamente, uma especial perversidade do agente ou são merecedoras de um severo juízo de censura. Por conseguinte só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo positivo ou negativo sobre o requisito da agravação especial, prevista no n.º 2 do artigo 145º, por referência ao n.º 2 do artigo 132º, do CP.
Secundando o que escreve Teresa Serra, relativamente ao crime de homicídio[38], diremos que existirá especial censurabilidade, para efeitos do disposto no artigo 132º do CP, reportada ao crime de ofensa à integridade física, se as circunstâncias em que a ofensa foi causada «são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores (…)». E «com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade
Assim, com referência à circunstância agravante da prática do facto contra cônjuge (al. b) do n.º 2 do artigo 132º do CP), para que seja julgada verificada, não basta que essa situação objetiva ocorra, sendo necessário que a prática do facto, ou seja, no que ao presente caso importa, da ofensa à integridade física, revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido as «contra motivações éticas» relacionadas com os deveres inerentes à relação de conjugalidade[39].
No que respeita à circunstância agravante do «motivo fútil» este tem sido caracterizado pela jurisprudência como aquele que não tem relevo, que não chega a ser motivo, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) a conduta do agente; é o motivo notoriamente desproporcionado ou inadequado para ser um começo de explicação da conduta do ponto de vista do homem médio.
Como se refere, no Acórdão do STJ de 19/02/2014[40], «Fútil é o motivo que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.
O vector fulcral que identifica o motivo fútil não é, pois, tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que nem pode chegar a ser motivo, mas aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou.»
Para se poder formular o juízo sobre se motivo é ou não fútil, tem de resultar apurada a motivação subjacente à atuação do agente, que o levou a praticar o crime.
Para que o tipo subjetivo do crime de ofensa à integridade física em questão se mostre preenchido é necessário que o resultado seja imputado ao agente a título de dolo, já que se exige um verdadeiro dolo de dano ou de resultado. Por outras palavras, o dolo tem de abranger não só o delito fundamental, como as circunstâncias que o qualificam.
Neste quadro e, revertendo ao caso dos autos, sem que se desconsidere o desvalor da conduta assumida pelo arguido contra a ofendida, seu cônjuge e mãe do seus dois filhos, descrita nos pontos 11 e 12, apesar de o arguido ter vencido as contra motivações éticas que radicam nos laços de casamento e dos especiais deveres deste decorrentes, entre os quais o dever de respeito, entendemos que a ofensa à integridade física perpetrada pelo arguido contra a ofendida – apertando-lhe, com as suas mãos e com força, os braços e desferindo-lhe um murro na face esquerda –, não foi cometida em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, ocorrendo no decurso de uma discussão entre o casal, a qual foi iniciada pelo arguido e foi motivada por questões relacionadas com a falta de dinheiro para proceder à pintura do exterior da casa residência comum, não estando apurados os exatos contornos dessa discussão, não pode, em nosso entender e salvo o devido respeito pela posição contrária, concluir-se pela verificação de um especial acréscimo de censurabilidade ou de perversidade do arguido, pela afronta aos motivos inibitórios do crime que a relação conjugal deve supor, em termos de poder levar a qualificar a ofensa à integridade física praticada pelo arguido, pela circunstância prevista na al. b) do artigo 132º do CP ou pelo motivo fútil, nos termos que se deixaram supra definidos.
Deste modo, ficando afastada a subsunção da conduta do arguido ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1 e 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132º, n.º 2, al.s b) e e), do Código Penal, tal conduta seria suscetível de preencher, nos seus elementos típicos objetivos e subjetivos, o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do Código Penal.
Coloca-se a questão de saber, se pode ou não haver lugar à prossecução da ação penal, pelo crime de ofensa à integridade física simples, tratando-se este de um crime semipúblico, cujo procedimento criminal depende de queixa (cf. n.º 2 do artigo 143º do CP), quando o arguido vinha acusado ou pronunciado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do CP, sendo este um crime público e não existindo queixa do ofendido.
Como é sabido, esta questão não tem merecido, por parte da jurisprudência, resposta unânime,
Assim:
Enquanto uns defendem, que nessa situação, havendo a “degradação” do crime de violência doméstica, em outro crime, este semipúblico, v.g. crime de ofensa à integridade física simples, ameaça simples, difamação etc., operada no momento da prolação da sentença, não existindo queixa do ofendido, tal não determina a ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução do processo, não podendo exigir-se, na referida fase processual, ao ofendido a satisfação de uma condição de procedibilidade com a qual não poderia anteriormente contar, porque então inexistente, o que frustraria as legítimas expetativas do ofendido. E, só assim não será, quando o ofendido emita declaração no sentido de não pretender o prosseguimento do procedimento criminal [41].
Em sentido contrário, entendem outros, que, em tal situação, não existindo queixa do ofendido, o Ministério Público carece ou, melhor dizendo perde legitimidade para a prossecução do procedimento criminal, pelo que, não pode o arguido ser condenado pelo crime semipúblico que os factos que praticou e que resultaram provados seria suscetível de integrar[42].
No presente caso, não cabe tomar posição em tal controvérsia, na medida em que a ofendida (...), declarou expressamente nos autos, na fase de inquérito, aquando da sua inquirição, pelo OPC, no dia 28/07/2020, não desejar procedimento criminal contra o denunciado, ora arguido (cf. fls. 26) e, como tal, carecendo o Ministério Público de legitimidade para a prossecução da ação penal pelo crime de ofensa à integridade física simples, cujo procedimento criminal depende de queixa do ofendido (cfr. n.º 2 do artigo 143º do CP), revelando-se, por conseguinte, o procedimento criminal quanto aos factos passíveis de integrar tal crime, legalmente inadmissível, não podendo, por isso, o arguido sofrer condenação, pelo mesmo crime.
O recurso do arguido é, pois, na vertente criminal, procedente.

2.3.5. Do pedido cível
Em face da decisão ora tomada, de absolvição do arguido do crime de violência doméstica por que vinha condenado em 1ª instância e atento o disposto no artigo 403º, n.º 3, do CPP, importa apreciar se e em que termos essa decisão absolutória se repercute sobre a indemnização que foi arbitrada, pelo tribunal recorrido, à ofendida/demandante.
Vejamos:
No pedido cível que deduziu nos autos, a demandante (…) peticionou a condenação do arguido/demandado a pagar-lhe quantia não inferior a €15.000,00 (quinze mil euros), a título de indemnização, por danos morais sofridos, acrescida de juros de mora, desde a data da notificação do demandado para contestar, até integral pagamento.
O Tribunal a quo, tendo em consideração os danos sofridos pela ofendida/demandante, em consequência dos factos praticados pelo arguido/demandado, que haviam sido dados como provados, elencando nesses danos «as dores, a vergonha, humilhação, medo e temor sentidos pela ofendida, o que se prolongou por cerca de mais de trinta anos», fixou a indemnização a arbitrar à ofendida em €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
Em face do que se decidiu supra, deixando de poder ser ponderada, também nesta, a matéria factual que havia sido dada como provada, na sentença recorrida, sob os pontos 4 a 9 e 20 23, que foram dados como não escritos, a indemnização a arbitrar à demandante, apenas poderá ter em consideração os factos dados como provados nos pontos 11 a 14.
A decisão absolutória do arguido/demandado da prática do crime de violência doméstica, por que vinha acusado e o facto de não ser condenado, nestes autos, pelo cometimento de qualquer outro crime, não exclui a condenação do arguido/demandado no pagamento de indemnização cível, à demandante.
E assim é, quer porque o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante se releva fundado, pois que, tem como causa de pedir, para além de outros, também os factos que resultaram provados terem sido praticados pelo arguido/demandado, no dia 28/07/2020 (cfr. artigos 11º a 13º do PIC – fls. 302 verso), quer porque esses factos, descritos nos pontos 11 a 14, permitem sustentar a condenação do arguido/demandado, em indemnização cível, por estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no artigo 483º, n.º 1, do Código Civil[43] - o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano - e atento o disposto no artigo 377º do CPP.
Posto isto, deixando de poder ser ponderada, também nesta sede, a matéria factual que havia sido dada como provada, na sentença recorrida, sob os pontos 4 a 9 e 20 23, tendo estes sido dados como não escritos, a indemnização a arbitrar à demandante, apenas poderá ter em consideração os factos dados como provados nos pontos 11 a 14.
Resulta dos factos provados que, em consequência da agressão perpetrada pelo arguido/demandado contra a ofendida/demandante - tendo aquele, no decurso de uma discussão a que deu início, motivada pela falta de dinheiro para de dinheiro para pagar a pintura da habitação do casal, no interior do domicilio comum, fazendo força com as mãos, apertado os braços da ofendida e de seguida desferindo-lhe um murro na face esquerda -, a demandante sentido dores e ficado com um hematoma e inchaço no lado esquerdo da face e diversos hematomas nos braços.
É isento de dúvida que os danos não patrimoniais sofridos pela demandante, em consequência do facto ilícito praticado pelo demandado, constituem danos cuja gravidade merece a tutela do direito, sendo, por isso, nos termos do disposto no artigo 496º, nº 1, do Cód. Civil, indemnizáveis.
De harmonia com o estatuído no artigo 496º, nº 3, do Código Civil, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, o julgador deve nortear-se por critérios de equidade, tendo em conta, as circunstâncias referidas no artigo 494º do mesmo Código, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso.
Assim, no caso concreto, ponderando os enunciados elementos, sendo o grau de culpa do arguido/demandado acentuado e a sua situação económica remediada - vive sozinho, trabalha na construção civil, auferindo o salário de cerca de €1.180,00 mensais e tem despesas mensais no valor de €600,00 –, tem-se, por ajustado, em termos de equidade, fixar a indemnização a arbitrar à demandante, para ressarcimento, dos danos não patrimoniais que sofreu, em consequência da atuação do demandado que teve lugar no dia 24/07/2020, no montante de €1.000,00 (mil euros).
Á quantia indemnizatória fixada, acrescem juros de mora, à taxa legal, contados a partir da presente data, pois que, se mostra atualizada com referência à mesma (cfr. artigo 566º, n.º 2 do C. Civil e Ac. do STJ, de Uniformização de Jurisprudência, n.º 4/2002, publicado no DR I Série-A, de 27/06/2002, pág. 5057 e segs.), até integral pagamento.
Absolve-se o demandado do demais peticionado pela demandante.

*
O recurso é, assim, parcialmente procedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido/demandado (...) e, em consequência:

a) Na parte penal, revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido (...) da prática do crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152º nº 1, al. a) e n.º 2, al. a), do Código Penal, por que vinha acusado;

b) Na parte cível, julgando-se parcialmente procedente o pedido cível, reduzir a indemnização a arbitrar à demandante (...), à quantia de €1.000,00 (mil euros), condenando o arguido/demandado no respetivo pagamento, à demandante, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados a partir da presente data, até integral pagamento e absolvendo-se o demandado, do demais pedido pela demandante.
Sem tributação, dado que foi dado parcial provimento ao recurso (cfr. artigo 513º, n.º 1, do CPP, à contrario sensu).


Notifique.

Évora, 16 de dezembro de 2021
Fátima Bernardes

Fernando Pina

[1] A saber: 1ª - Integração de factos genéricos na factualidade provada; 2ª - Errada apreciação da prova e da violação do in dubio pro reo; 3ª - Subsunção jurídica dos factos.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 2007, processo 07P3236. No mesmo sentido v. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2007, processo 06P3932, de 2 de Abril de 2008, processo 08P578, e de 2 de Julho de 2008, processo 07P3861, do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Novembro de 2019, processo 214/18.7PDAMD.L1-5, do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Junho de 2016, processo 1170/14.6TAVFR.P1, e de 17 de Junho de 2020, processo 2541/19.7JAPRT.P1, e do Tribunal da Relação de Évora de 1 de Outubro de 2013, processo 948/11.7PBSTR.E1, todos em www.dgsi.pt.

[3] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Novembro de 2019, processo 109/19.7GAARC.P1, e de 8 de Setembro de 2020, processo 672/19.2GBAMT.P1, ambos em www.dgsi.pt.

[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2018, processo 204/10.8GASRE.C1, www.dgsi.pt.

[5] Sérgio Gonçalves Poças, Revista Julgar, n.º 10, Coimbra Editora, páginas 31-32.

[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19 de Maio de 2015, processo 441/10.5TABJA.E2, www.dgsi.pt.

[7] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2017, processo 324/14.0SGPRT.P1, www.dgsi.pt.

[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Fevereiro de 2004, processo 0315956, www.dgsi.pt.

[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2006 processo 06P812, www.dgsi.pt.

[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30 de Janeiro de 2007, processo 2457/06-1, www.dgsi.pt.

[11] Nuno Brandão A Tutela Penal Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar n.º 12 especial (2010), páginas 21-22. Na jurisprudência v. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Março de 2009, pro-cesso 09P0236, do Tribunal da Relação de Évora de 5 de Julho de 2016, processo 515/14.3PAENT.E1, e de 11 de Julho de 2017, processo 627/17.1GDSTB.E1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Outubro de 2020, processo 749/19.4PBSNT.L1-3, e do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Setembro de 2014, processo 648/12.0PIVNG.P1, todos em www.dgsi.pt

[12] Cfr., entre muitos outros, Ac. do STJ de 12/07/2008, proc. 07P3861, Ac. da RE de 22/11/2018, proc. n.º 526/16.4 GFSTB.E1, Ac.s da RP de 17/06/2020, proc. n.º 2541/19.7JAPRT.P1 e de 08/09/2020, proc. n.º 672/19.2GBAMT.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.

[13] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac.s da RE de 01/10/2013, proc. n.º 948/11.7PBSTR.E1 e de 12/09/2011, proc. n.º 331/08.1GCSTB.E1, Ac. da RG de 05/07/2021, proc. n.º 2/20.0GEBRG.G1, Ac. da RP de 15/06/2016, proc. n.º 1170/14.6TAVFR.P1, acessíveis in www.dgsi.pt.

[14] Estando-se, nesse caso, perante um crime habitual ou de reiteração, onde as várias condutas são unificadas pela violação do mesmo bem jurídico (a dignidade da pessoa humana, enquanto bem jurídico plural e complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental), nele se exaurindo ou esgotando. Isto sem que possa deixar de se ter presente que, a partir da alteração introduzida ao artigo 152º do Código Penal, pela Lei 59/2007, de 4 de setembro, os «maus tratos» não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um ato isolado, desde que este pela sua gravidade intrínseca e pelo desvalor, quer da ação quer do resultado, seja apto e bastante a lesar o bem jurídico tutelado.

[15] Proferido no proc. n.º 342/14.8GBSTS.P1, acessível in www.dgsi.pt.

[16] No mesmo sentido, cfr. entre outros, Ac. da RP de 21/12/2016, proc. n.º 1150/14.1GAMAI.P1, disponíveis in www.dgsi.pt

[17] Cfr. Ac. da RC de 09/10/2019, proc. n.º 170/18.1GCPBL.C1, acessível in https://www.direitoemdia.pt/

[18] Proferido no proc. n.º 514/19.9PBBJA.E1, em que a ora Relatora foi Adjunta.

[19] Proferido no proc. n.º 25/17.7GEEVR.S1, acessível in www.dgsi.pt.

[20] Não podendo excluir-se a possibilidade de o respetivo prazo de prescrição já ter decorrido, com a consequente extinção do procedimento criminal, em relação a tais factos, posto que, na hipótese desses factos terem ocorrido no inicio da vivência em comum do casal, que perdurou por 33 anos - desde 27/07/1987 até 05/08/2020 - sendo até à entrada em vigor das alterações introduzidas ao C. Penal, pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, o prazo de prescrição do procedimento criminal do crime de maus tratos entre cônjuges (que estava previsto no artigo 153º, sendo punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias), era o de cinco anos (art.º 117.º, n.º 1, c) daquele Código). A partir de então, o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de maus tratos do cônjuge e, atualmente do crime de violência doméstica, passou a ser de dez anos (art.º 118.º, n.º 1, b) do C. Penal).

[21] Cfr., entre outros, Acórdãos da RC de 18/01/2017 e de 17/05/2017, respetivamente, proferidos nos procs. 112/15.6GAPNC.C1 e 430/15.3PAPNI.C1 e Ac. da R.L. de 18/01/2017, proc. 1050/14.5PFCSC.L1-3, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[22] Idem.

[23] Cf. Ac. do TRC de 06/07/2016, proc. n.º 340/08.0PAPBL.C1, acessível no endereço www.dgsi.pt.

[24] Cfr. entre outros, Ac. da RG de 16/11/2015, proc. 599/14.4GAFAF.G1, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt.

[25] Neste sentido, cfr., entre outros, Acórdão desta Relação de Guimarães, de 06/02/2017, proferido no proc. n.º 1802/14.6TAGMR.G1, acessível no endereço www.dgsi.pt.

[26] , Proferido no proc. n.º 140/19.2GBCCH.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

[27] Neste sentido, cf., entre outros, na doutrina, Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, págs. 511 e 512, Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, in Rev. Julgar, nº. 12, - especial -, 2010, págs. 15 e 16 e Catarina Sá Gomes, in O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, AAFDL, 2004, p. 59; e na jurisprudência, entre outros, Ac. do STJ de 02/07/2008, proc. n.º 07P3861; Acs. da RP de 06/02/2013, proc. 2167/10.0PAVNG.P1 e de 10/07/2014, proc. 413/11.2GBAMT.P1 e Ac. da RL de 23/04/2015, proc. 469/13.3PBAMD.L1-9, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

[28] Sumariado na CJ, Ano 2018, T. 1, pág. 317.

[29] Proferido no proc. n.º 189/17.0GCOVR.P1, acessível in www.dgsi.pt.

[30] Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar”, Centro de Estudos Judiciários, páginas 93 e 94, citando Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas, Estado da Arte, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010 e seguindo de perto a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.

[31] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RP de 11/01/2014, in CJ, 2014, Tomo I, pág. 326 e Ac. da RG de 10/07/2014, proc. 591/11.0PBGMR, acessível in www.dgsi.pt.

[32] Cfr. Nuno Brandão, in ob. cit., pág. 19 e Ac. da RC de 12/04/2018, proc. 3/17.6GCIDN.C1, acessível in www.dgsi.pt.

[33] Proferido no processo 921/13.OPBFAR, acessível in www.dgsi.pt

[34] Proferido no proc. 135/16.8GASRE.C1, disponível in www.dgsi.pt.

[35] Proferido no processo 648/12.0PIVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.

[36] Cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 249 e 250.

[37] Cfr., entre outros, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, págs. 203 a 205 e Ac.s do STJ de 02/04/2008, proc. 07P4730, de 18/09/2018, proc. n.º 359/16.8JAFAR.S1, in www.dgsi.pt. e de 23/06/2016, in CJ, Ano XXIV, T. II, pág. 194.

[38] In Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2000, págs. 63 a 65.

[39] Cfr., a propósito do crime de homicídio e dos laços de parentesco, Prof. Figueiredo Dias, in Comentário …, Tomo I, págs. 27 e 28.

[40] Proferido no proc. 68/11.0GCCUB.S1, acessível in www.dgsi.pt.

[41] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RG de 25/09/2017, proc. 573/16.6PBVCT.G1 e Ac. da RP de 13/01/2021, proc. 799/18.8GBPNF.P1, in www.dgsi.pt.

[42] Neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RP de 24/02/2016, processo 1190/14.0GAMAI.P1e com referência ao crime de injúria, que reveste natureza particular, cfr. Ac.s da RE de 15/12/2016, proc. 33/14.0GBADV.E1 e de 21/09/2021, proc. 329/20.1T9ODM.E1, Ac. da RG de 25/09/2017, processo 573/16.6PBVCT.G1 e Ac. da RC de 05/02/2021, proc. 71/16.8GGCBR.C1, acessíveis in www.dgsi.pt.

[43] Sendo que conforme estabelecido no Assento n.º 7/99, do STJ, de 17 de junho de 1999, publicado no DR I Série-A de 03/08/1999 – atualmente com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência –, no âmbito no processo penal, a condenação em indemnização civil só pode ser sustentada em responsabilidade extracontratual ou aquiliana do demandado.