Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1915/13.1TASTB.E1
Relator: ALBERTO JOÃO BORGES
Descritores: VENDA DE COISA ALHEIA
BURLA
ASTÚCIA
Data do Acordão: 05/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – São elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do crime de burla:

a) - o emprego de astúcia pelo agente;
b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) - a prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos;
e) - a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

II - Um dos elementos do crime de burla é, pois, que o erro ou engano da vítima sejam provocados pelo agente (com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo) mediante o emprego de astúcia.

III - Se num primeiro momento a postura da arguida, ao arrogar-se dona do artefacto em ouro que pretendia alienar, não passa de uma mentira, num segundo momento a sua postura, assumindo por escrito que era a dona de tal objeto, configura já alguma habilidade, no sentido de convencer a funcionária – como convenceu, de que ela era, de facto, a dona de tal objeto, razão que determinou o pagamento do seu preço.

IV - Não era exigível à assistente, de acordo com a postura de um bonus pater familiae, que tivesse feito outras diligências para comprovar a proveniência lícita do objeto, o que seria e é incompatível com o normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa fé que devem nortear as relações comerciais entre as pessoas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial de Setúbal correu termos o Proc. n.º 1915/13.1TASTB (autos de instrução) no qual, na sequência da instrução requerida pela assistente A..., Ld.ª – fol.ªs 23 a 38 – foi decidido rejeitar o requerimento para abertura de instrução, por – em síntese – se entender que a “eventual prática dos factos imputados à arguida (S), ainda que eventualmente pudesse vir a ser dada por suficientemente indiciada, não consubstancia o crime que lhe é assacado, ou seja, o crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217 n.º 1 do Código Penal”, e, por isso, “se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução” (art.ºs 287 n.ºs 2 e 3 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP).

2. Recorreu a assistente desse despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1 - O recurso é circunscrito à matéria de direito e traduz-se na discordância da interpretação dada pelo tribunal a quo ao art.º 217 n.º 1 do Código Penal, segundo a qual «a eventual prática dos factos imputada à arguida, ainda que eventualmente pudesse vir a ser dada como suficientemente indiciada, não consubstancia o crime de burla, previsto e punível pelo art.º 217 n.º 1 do Código Penal», rejeitando, com esse argumento, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente.

2 - Estriba esse seu entendimento na circunstância de não se verificar, no caso concreto, um dos elementos constitutivos desse crime, designadamente, o emprego da astúcia pela denunciada, acrescentando, ainda, em abono da sua tese, não existir um «dano social relevante, que justifique a aplicação de uma pena», concluindo que a recorrente «não se comportou como um bonus pater familiae no negócio em causa, por não se ter rodeado das cautelas que uma situação como a que se desenrolou lhe exigiriam que adoptasse».

3 - Tem sido entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que, por o património, globalmente considerado, constituir o bem jurídico protegido pela burla, a definição desta, no plano criminal, remete para o princípio da boa fé (em sentido objetivo), tal como é definido no direito privado.

4 - Efetivamente, ao reflectir uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o domínio-do-erro que viole os ditames da boa fé consubstancia, desde que preenchidos os demais pressupostos do delito, o desvalor caraterístico do ilícito da burla, integrando, nessa medida, a expressão acabada do conteúdo de previsão do art.º 217.

5 - Todavia, transposta para o plano do art.º 217, não será qualquer domínio-do-erro (ainda que efetivo) que importa a consumação do delito e a consequente responsabilização do agente, mas um «domínio-do-erro jurídico-penalmente relevante», consistente na sua instrumentalização em termos de atingir o cerne do princípio da boa fé objetiva, o que pode ser julgado em função das circunstância de cada caso.

6 - No caso dos autos, atentos os factos relatados na queixa-crime, a denunciada, fingindo-se senhora do artefacto em ouro que vendeu, como se seu fosse, omitindo, ao contrário do que lhe impunha o princípio da boa fé, a sua ilícita proveniência, provocou, astuciosamente, o erro e o engano da recorrente, na pessoa da responsável de loja, acerca da propriedade desse objeto, determinando-a a efetuar a compra deste.

7 - Aliás, mais do que omitir dizer a ilícita proveniência do indicado objeto, a denunciada declarou, expressis verbis, ser dona dele e atuou como tal ao aceitar assinar um documento (declaração de venda) donde consta, além da identificação de ambas as partes no negócio e do rol de peças vendidas, uma sua declaração, enquanto vendedora, em que afirma, expressa e categoricamente, que «o(s) objecto(s) transacionado(s) é/são de minha propriedade, foi/foram adquirido(s) licitamente e assumo toda a responsabilidade de quaisquer consequências que possam advir da venda efectuada. Mais declaro, que recebi o valor total acima referido» (cf. item 5 da queixa-crime).

8 - Dúvidas não existindo de que, subjacente à subscrição da aludida declaração pela denunciada, esteve a (deliberada) intenção desta de convencer falsamente a recorrente, na pessoa da responsável de loja, de que, efetivamente, podia dispor do objeto em causa, por ser a sua legítima proprietária, com a finalidade, conseguida, de a enganar, por forma a obter, como obteve, a entrega do respetivo valor em dinheiro, com isso locupletando-se, ilegitimamente, à custa da recorrente, que, por força de tal atuação, veio a sofrer um prejuízo patrimonial em montante equivalente, pelo menos, ao valor da venda.

9 - Portanto, a insídia da denunciada foi determinante no comportamento da recorrente, na pessoa da responsável de loja, na exata medida em que aquela, ao mentir-lhe (uma mentira pré-concebida, porque sagazmente gizada em função das caraterísticas da situação e da vítima), surpreendeu a boa fé desta, provocando o seu erro, designadamente, ao ter-lhe descrito por palavras, e através de uma declaração expressa, sob a forma escrita, uma falsa representação da realidade, que funcionou, decisivamente, como vício influenciador do seu consentimento para a aceitação da venda.

10 - A denunciada agiu com um grau intenso e muito grave de dolo, porquanto, como bem admite e reconhece o MP e o Mm.º Juiz a quo, a subscrição da mencionada declaração pela denunciada constituía uma «condição imposta» pela recorrente para a concretização da venda, sendo certo que a denunciada, apesar de ter ocasionado o erro expressis verbis, nunca, em nenhum momento, pôs termo ao estado de erro da recorrente, na pessoa da responsável de loja; antes e pelo contrário, adotando uma regra de “economia de esforço”, típica dos burlões, a denunciada adequou a sua atuação à situação concreta, maxime, às exigências com que foi confrontada, concorrendo, ainda mais, para aprofundar o erro da recorrente, ao aceitar subscrever a mencionada declaração, deixando, assim, a nu, se dúvidas houvesse, a verificação, in casu, de um efetivo e genuíno domínio-do-erro pela denunciada.

11 - Contudo, ao invés do douto entendimento expresso na decisão sob recurso, considera a recorrente que esse domínio-do-erro violou, flagrantemente, os ditames da boa fé exigíveis no caso concreto, por, desde logo, refletir uma deslealdade intolerável e inadmissível no comércio jurídico, não podendo, na sua perspetiva – sob pena de se estar a promover a total impunidade deste tipo de comportamentos socialmente perigosos – a atuação da denunciada deixar de integrar a previsão do art.º 217 n.º 1 do Código Penal, tanto mais que, in casu, foi, precisamente, na referida adequação de meios que radicou a inteligência ou astúcia da denunciada, cujo modus operandi se enquadra, aliás, no estereótipo social da burla.

12 - Está, assim, demonstrada uma patente má fé por parte da denunciada, de absoluta deslealdade e desrespeito pelos legítimos interesses da contraparte – a recorrente – no aludido negócio (compra e venda), a justificar, dada a notória danosidade social dessa sua atuação, uma reação social traduzida numa pena criminal, até porque, como é por demais evidente, estão presentes todos os outros elementos do tipo legal da burla, verificando-se aqui, especificamente, e salvo melhor opinião, a chamada burla por defraudação.

13 - Por outro lado, em face do caso concreto, não se pode afirmar que a conduta da recorrente foi ilícita (porque não violou normas legais) e culposa (porque o comerciante típico, zeloso e cumpridor a que faz apelo a regra do n.º 2 do art.º 487 do Código Civil, teria agido talqualmente a recorrente agiu, ou seja, em total conformidade com os princípios e procedimentos que regem a atividade comercial em causa, ínsitas na Lei n.º 37/2008, de 06/08, e no DL n.º 42/2009, de 12/02, e sem descurar as regras da experiência e as boas práticas comerciais.

14 - Cai, assim, por terra a asserção inserta na decisão sob recurso de que a recorrente, «no caso concreto, não se comportou como um bonus pater familiae no negócio em causa, designadamente, por não se ter rodeado das cautelas que uma situação como a que se desenrolou lhe exigiriam que adoptasse».

15 - Diversamente, a recorrente atuou, no caso concreto, em conformidade com o padrão da diligência exigível (ética e/ou deontológica e/ou legal) do comum das pessoas, particularmente, quando centrada no seu setor de atividade económica, relacionada com o comércio de ouro usado, onde, dada a especificidade do mesmo, tudo se passa, essencialmente, na base da boa fé entre o comprador e o vendedor.

16 - Pelo exposto, temos de concluir que a conduta da denunciada se integra, indiciariamente, no tipo legal de crime previsto e punido no art.º 217 n.º 1 do Código Penal, contrariamente ao que foi decidido no tribunal a quo.

17 - Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou o disposto no art.º 217 n.º 1 do Código Penal, que deveria ter sido interpretado e aplicado no sentido supra exposto, nenhum motivo existindo, por conseguinte, para o tribunal ter rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente, por não ocorrer a violação do comando dos art.ºs 287 n.ºs 2 e 3 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c), ambos do Código do Processo Penal, verificando-se, assim, em face desses preceitos legais, a admissibilidade legal da instrução.

18 - Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, proferindo-se douto acórdão a revogar a decisão recorrida, devendo, em conformidade, o requerimento de abertura de instrução ser admitido, tudo com as inerentes consequências legais.
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3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 - Nos presentes autos foi proferido douto despacho, cristalino, escorreito e objetivo, que considerou inadmissível a abertura de instrução, porquanto considerou que a matéria denunciada não integra a prática de ilícito criminal, designadamente, o previsto no art.º 217 n.º 1 do Código Penal.

2 - Consideramos que assiste inteira razão ao Mm.º JIC, porquanto, não se verificou qualquer astúcia na conduta assumida pela arguida, pois que esta ter-se-á limitado a deslocar-se a uma loja que compra de ouro usado, terá apresentado um fio para venda, o que terá sido aceite, tendo sido pago o preço proposto.

3 - A simples assinatura de uma declaração pela arguida dizendo que o fio seria de sua propriedade não pode ser considerada astuciosa ou enganadora, já que é condição imposta pela ofendida para proceder à venda.

4 – De facto, parece-nos que a declaração assinada pela arguida não comporta em si mesma qualquer astúcia com vista ao engano. Outrossim, trata-se de uma declaração pré-elaborada pela assistente, apresentando-se como condição imposta para a concretização da venda, mas que em nada garante a propriedade do bem por parte de quem o vende, sendo, portanto, uma declaração inócua a nível penal.

5 – Como bem refere o douto despacho em crise, “será ingénuo … assumir que todas as pessoas que entram nos diversos estabelecimentos da assistente transportando objetos de ouro para vender terão adquirido tais bens por via lícita. E pretender que a mera declaração do vendedor é garantia suficiente da licitude de tal proveniência não é razoável”.

6 - Não se pode esquecer ou querer imputar à arguida o risco associado à atividade desenvolvida pela assistente, que - como bem se sabe - é grande, bastando para tanto atender ao facto de que se dedica à aquisição de peças em ouro a completos estranhos, a um preço que lhes permite obter lucro, e tendo em conta que são diariamente difundidas notícias pelo comunicação social de furtos a residências em que os objetos subtraídos são, na esmagadora maioria dos casos, peças em ouro e roubos a idosos, e não só, em que, igualmente, os objetos em ouro ganham destaque.

7 Não pode, assim, a nosso ver, a assistente sentir-se vítima de um crime, quando desenvolve e assume uma atividade económioca lucrativa, consciente do elevado risco que lhe está associado, não podendo, por isso, afirmar-se que foi a arguida quem adotou qualquer conduta astuciosa ou enganadora que pudesse ludibriar a assistente e aumentar o trisco, já enorme, daquela atividade.

8 – Parece-nos, pois, que a existir responsabilidade, a mesma terá natureza civil, uma vez que em causa estará uma questão de natureza contratual associada á venda de um bem alheio; parece-nos, igualmente, que, tal como em qualquer incumprimento contratual, há um engano, mas cuja relevância não assume contornos criminais.

9 – Ora, subjacente ao direito penal está o princípio da intervenção mínima ou subsidiária na proteção dos bens jurídicos, sendo que apenas alguns comportamentos antijurídicos são subsumíveis a ilícitos criminais (nesse sentido refere Figueiredo Dias, in Jornadas de Direito penal, Revisão do Código Penal I, Lisboa, CEJ, que “todo o direito penal é (e só é), segundo a sua função, um direito de tutela subsidiária de bens jurídicos”.

10 – Nesta conformidade, é nosso entendimento que não existe qualquer censura a fazer ao despacho recorrido, bem tendo andado a decisão em crise, que não violou qualquer disposição legal, devendo manter-se na íntegra.
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4. Sustentada a decisão recorrida e remetidos os autos a este tribunal, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 130 a 132).

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir - em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP) - tendo em atenção a questão colocada no recurso, que se resume a saber se a conduta da arguida – tal como descrita no requerimento de abertura de instrução/acusação – consubstancia o crime de burla (p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do CP) que em tal requerimento lhe é imputado.
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5.1. Os presentes autos tiveram origem numa queixa apresentada pela assistente contra a arguida acima identificada (fol.ª 1 a 4), tendo o Ministério Público, por despacho de fol.ªs 13 a 17, ordenado o arquivamento dos autos, por entender, em síntese - pelos fundamentos aí exarados – que, perante a prova recolhida, a conduta denunciada não integra a prática de crime.

5.2 Requereu a assistente a abertura de instrução, fol.ªs 23 a 38, onde – para além de descrever os factos que imputa à arguida (fol.ªs 35 a 36) – manifesta a sua divergência quanto ao decidido, terminando o seu requerimento com o pedido de várias diligências de prova, requerimento que foi rejeitado - em síntese – por se entender que a “eventual prática dos factos imputados à arguida, ainda que eventualmente pudesse vir a ser dada por suficientemente indiciada, não consubstancia o crime que lhe é assacado, ou seja, o crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217 n.º 1 do Código Penal”, e, por isso, “se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução” (art.ºs 287 n.ºs 2 e 3 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP), tudo como melhor consta dos fundamentos expostos de fol.ªs 51 a 60, que assim se sintetizam:

- Ponto fulcral da acusação alternativa formulada pela assistente é a existência de uma declaração emitida, quer verbalmente, quer por escrito, pela arguida, no sentido de a fazer crer que celebraria consigo um contrato de compra e venda de um objeto em ouro, bem sabendo, contudo, que não era proprietária desse objeto e assim lhe causaria, possivelmente, prejuízos, sendo que por conta dessa declaração a assistente lhe entregou € 780, todavia, tal objeto veio a ser-lhe apreendido em sede de processo penal, porque havia sido indicado como ilegitimamente apropriado pela arguida.

- Estabelece o artigo 217 número 1 do Código Penal: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

- São elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do crime de burla:
a) - o emprego de astúcia pelo agente;
b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia
c) - a prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida
d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos actos
e) - a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

- Este ilícito integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento e que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva, após indução em erro, a praticar actos concretos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.

- O erro do sujeito passivo tem que ser provocado astuciosamente ou mediante um artifício fraudulento; o que o que se deve ter por “astúcia” não tem sido unanime, todavia, “quer se entenda que a mentira da astúcia tem de ser acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe maior credibilidade, quer se aceite que, consoante o caso concreto, é bastante uma mentira qualificada, que dê ao agente um genuíno domínio do erro, este não pode resumir-se ao convencimento de que a outra parte vai cumprir a sua prestação no contrato” (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/3/2008, relatado por Fernando Monterroso, proc. número 2367/07-1, in www.dgsi.pt.).

- Com efeito, terá que haver “fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir” – por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/10/2007, processo número 07P2599, relatado por Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt (texto integral).

- A distinção entre ações que integrem o mero ilícito civil e o ilícito penal não é, todavia, fácil. Um aresto em que a mesma aparece bem dilucidada, e que em face da fundamentação expressa totalmente se anui, é o acórdão, já aqui mencionado, do Supremo Tribunal de Justiça de 4/10/2007, processo número 07P2599, relatado por Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt (texto integral).

- Na realidade, há que não esquecer a função do direito penal como direito de última ratio.

- Assim, e como foi dito no douto aresto, “Numa opção, em que muitas vezes não é imediatamente reconhecível um rigoroso científico ou distinção ontológica entre tais fatos, por razões de política criminal, o legislador efectua uma selecção, elegendo as condutas penalmente censuráveis entre as quais não inclui o facto contra direito que não provoque alarme colectivo, caso em que se contenta com os meios próprios do direito civil, como sancionamento. Parte assim, da maior gravidade do delito penal, da mais extensa e intensa perturbação social que causa.

Não obstante serem múltiplas são as teorias que se apresentaram para clarificar esta distinção (cfr. Nelson Hungria, op. cit., 171-191, sobre a sua consideração), é de aceitar, face às dificuldades, incluindo práticas, de estabelecer uma distinção ontológica entre o injusto penal e o civil, pelo menos em face do direito positivo, o único critério discriminativo aceitável será, pois, o critério relativo e não apriorístico da suficiência ou insuficiência das sanções não-penais, de forma a que, só quando a sanção civil se apresenta como ineficaz para a reintegração da ordem jurídica, é que surge a necessidade da sanção penal, o último dos recursos.”

- No caso concreto, e sempre no pressuposto que sejam verdadeiros os factos alegados pela assistente, é inquestionável que a lei civil estabelece formas de reparação do dano, que se consubstancia essencialmente no prejuízo causado pela venda de um bem alheio (cuja forma de obtenção pela arguida nem sequer aparece esclarecida nos autos).

- Neste sentido, também foi referido no acórdão supra aludido: “Importa, assim, procurar delimitar o âmbito de protecção da norma, do ilícito subjacente ao crime de burla, como já se adiantou. Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que «a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla».

Ora é este desvalor da acção que permite responder à dificuldade com se pode ser confrontado, a propósito da criminalização da vida colectiva. Como se disse acima, há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.

Como se disse já, como referir-se o ilícito penal como a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, enquanto o ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções da indemnização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao statu quo ante, da anulação do acto.”

- E é neste seguimento, por apelo ao princípio da boa fé, que se tem que entender que a astúcia requerida pelo artigo 217 do Código Penal tem que consubstanciar uma fraude capaz de iludir o “diligente pai de família” – seguindo o que ficou veiculado no mesmo aresto e é, ao que se considera, generalizadamente aceite atualmente.

- Ou seja, importa acentuar que a vítima se tenha comportado com a diligência – e boa fé – exigível a um bonus pater familiae.

- No caso concreto (considerando em abstrato a factualidade enunciada pela assistente como verdadeira), e com todo o respeito por entendimento diverso, não se considera que tenha havido um dano social relevante, que justifique a aplicação de uma pena, mas meramente um dano individual, reparável através dos mecanismos próprios previstos na lei civil. E mais, entende-se também que a assistente não se comportou como um bonus pater familiae no negócio em causa, designadamente, por não se ter rodeado das cautelas que uma situação como a que se desenrolou lhe exigiriam que adoptasse.

- Não olvidará a assistente - como o não desconhece o homem comum - que a entrega de objetos em ouro por parte de pessoas desconhecidas do comprador contra a entrega imediata de dinheiro potencia a ocorrência de situações como a que vem relatada no requerimento de abertura de instrução.

- Será - com todo o respeito por opinião diversa - ingénuo assumir que todas as pessoas que entram nos diversos estabelecimentos da assistente transportando objetos de ouro para vender terão adquirido tais bens por via lícita.

- E pretender que a mera declaração do vendedor é garantia suficiente da licitude de tal proveniência não é razoável.

- Se o conceito de boa fé tem algo de subjetivo, entende-se ainda assim que nenhuma pessoa, desde que imbuída do espírito do bonus pater familiae, adquiriria um completo estranho um objeto em ouro por este oferecido (a um preço que lhe permitiria efetuar lucro na revenda, não nos esqueçamos deste pormenor), bastando-se com a sua palavra para se convencer que tal objeto tinha sido licitamente adquirido. E menos ainda tendo conhecimento – profusamente veiculado pela comunicação social – da enorme quantidade de assaltos a residências que atualmente se faz sentir.

- Concorda-se que não é exigível que cada particular tenha documentos que provem a licitude da sua propriedade sobre objetos de ouro (que muitas vezes fazem até parte de espólios de heranças familiares) que detenha em seu poder. Mas, atento o ramo de negócio da assistente, outras cautelas básicas poderiam ser, evidentemente, empregues, como a entrega da contrapartida económica da compra e venda do ouro ao vendedor apenas após indagação, junto das forças de segurança, sobre se os objetos em causa não haviam sido reportados como furtados.

- No caso concreto é certo que a arguida, ao declarar que a peça que pretendia vender era sua, tinha o domínio do erro, mas esse mesmo domínio não violou, em meu ver, e atenta a situação do caso concreto – leia-se a pouca cautela de que a assistente dotou a sua forma de negociar - os ditames da boa fé exigíveis.

- No caso concreto, a assistente gere um modelo de negócio que comporta riscos, riscos esses que o cidadão médio rapidamente identifica. E que não estão acautelados. A única coisa que a arguida precisou de fazer para conseguir obter da assistente determinada quantia de dinheiro, foi dizer-lhe que o objeto que pretendia vender era seu. Assinou uma declaração escrita. Era a única forma – e única condição imposta pela assistente - para obter esse pagamento. Quantas pessoas imbuídas do espírito de um bom pai de família se deixariam enganar por uma tal conduta? Nenhuma em meu ver. Onde está a astúcia da arguida? Não existe.

- Como foi notado no arresto supra aludido: “Que a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.
Há, assim, fraude penal:

– quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:

– quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

– quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

– quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

– quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;

- quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.”

- Estes requisitos são cumulativos.

- No caso concreto, e ainda que se dessem por provados todos os factos descritos pela assistente, não se verifica, em meu entender:

- o dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indireto;

– uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

- uma fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

–uma impossibilidade de se reparar o dano sem recurso ao direito penal.

- Numa frase: se a narração factual constante do requerimento de abertura de instrução fosse dada como provada após julgamento, seria a mesma susceptível de fazer concluir pela verificação da responsabilidade criminal concreta da arguida? Parece-me evidente que não.

- Se é verdade que não existe ilicitude penal que não pressuponha uma concomitante ilicitude civil também verdade é que a fronteira da ilicitude penal apenas surge quando, dentro de um território material civilmente relevante, surgem elementos diferenciadores específicos que são o valor acrescentado do ilícito penal. O que não acontece no caso vertente.

- Ou seja, o tipo criminal, enquanto ultima ratio da censurabilidade social, começa onde existe algo mais do que se encontra no ilícito civil.

- Sempre sublinhando que a assistente tem ao seu dispor diversos institutos jurídicos de natureza civilística para ser ressarcida dos prejuízos que possa ter sofrido, circunstância que demonstra à saciedade a inexistência dos elementos subjectivos e objectivos do crime de burla.

- Donde, afastada fica a possibilidade de qualificar a atuação da acusada, tal como lhe vem imputada, como crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217 do Código Penal, por os factos enunciados no requerimento de abertura de instrução não a constituem na prática de qualquer crime.
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5.3. Resulta da factualidade indiciada, na parte que aqui interessa considerar:

- que a arguida (no dia 3.12.2012) se dirigiu ao estabelecimento da assistente identificado nos autos com o propósito de vender um fio de malha barbela, em ouro amarelo, com 29,24 gramas, que disse ser seu, tendo acordado a venda pelo preço de 780,00 €, que lhe foram entregues contra a entrega do referido fio;

- que a arguida subscreveu um documento intitulado “Declaração”, com data de 3.12.2012, que lhe foi presente pela responsável do estabelecimento, com o seguinte teor:

o(s) objecto(s) transaccionado(s) é/são de minha propriedade, foi/foram adquirido(s) licitamente e assumo toda a responsabilidade de quaisquer consequências que possam advir da venda efectuada. Mais declaro que recebi o valor total acima referido”.

5.4. Já se escreveu acima, mas aqui se repete para melhor enquadramento da questão a apreciar, que é punido com a pena de prisão até três anos ou multa “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.

São elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do crime de burla:

a) - o emprego de astúcia pelo agente;
b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) - a prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos;
e) - a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

Um dos elementos do crime de burla é, pois, que o erro ou engano da vítima sejam provocados pelo agente (com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo) mediante o emprego de astúcia.

Não se questiona – como bem fundamenta a recorrente, citando douta jurisprudência do STJ – que “é usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade uma aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimula factos verdadeiros, e atuando com destreza, pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo… por erro deve entender-se a falsa (ou nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. O engano a que o art.º 217 n.º 1 do CP faz referência continua a equivaler à mentira (uma mentira pré-ordenada) ” (acórdão do STJ de 20.03.2003, in www.dgsi,pt, em extrato transcrito pela recorrente).

Por outro lado, como aí se afirma, e é reafirmado noutros arestos relatados pelo mesmo autor, é necessário que o agente atue “com destreza”, pretendendo “enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo”, e que os atos, “além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade de os outros serem convencidos… A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as caraterísticas do concreto burlado” (acórdão do STJ de 3.02.2005 e de 4.10.2007, in www.dgsi.pt).

Ora, como bem se vê dos autos, a arguida, num primeiro momento, limitou-se a apresentar-se como dona do objeto cuja venda pretendia, que disse ser seu.

Mentiu; disse que era dona, quando não o era.

Essa mentira não foi convincente – para a funcionária que a atendeu – ou seja, não foi bastante para aquela acreditar que a arguida era a dona do objeto cuja venda propunha e, por conseguinte, apta a enganar a funcionária e a levá-la a aceitar a compra e a pagar o respetivo preço (isto resulta da postura que assumiu, vista à luz das regras da experiência comum e os critérios da normalidade da vida), pois que não aceitou a compra – certamente pelas dúvidas que tal invocada qualidade lhe suscitava – tendo-lhe proposto, para se certificar que não estava a ser enganada, a assinatura de uma declaração - condicionante da aceitação da proposta - em que a arguida assumia expressamente que aquele objeto era sua propriedade.

Esta declaração - num segundo momento – subscrita pela arguida, reafirmando/reforçando a mentira que assumiu anteriormente (que era dona do objeto cuja venda pretendia) - e note-se que a assunção daquela qualidade por escrito poderia, eventualmente, de acordo com os critérios da experiência e da normalidade, demovê-la da venda, pela consciência implícita das consequências que lhe poderiam advir dessa conduta – não pode deixar de se entender como um reforço da confiança, legítima, de acordo com os ditames da boa fé, que a arguida era, de facto, a dona desse objeto, ou seja, esta declaração, ainda que lhe tenha sido presente pela funcionária do estabelecimento, configura já algum engenho e habilidade, enquanto meio adequado/apto a enganar, a dar crebibilidade à postura que antes assumiu, determinando a funcionária, assim, a aceitar a venda que lhe era proposta e a pagar o respetivo preço.

Em síntese, se num primeiro momento a postura da arguida não passa de uma mentira, num segundo momento a sua postura, assumindo por escrito que era a dona de tal objeto, configura já alguma habilidade, no sentido de convencer a funcionária – como convenceu (e não faz sentido pretender que não convenceu, pois se assim não fosse certamente não aceitaria a compra, consciente das consequências da compra de coisa alheia) - de que ela era, de facto, a dona de tal objeto, razão que determinou o pagamento do seu preço.

Não deixará de se acrescentar:

Por um lado, que o negócio de compra e venda de ouro é uma atividade perfeitamente lícita, pelo que não faz qualquer sentido questionar a boa fé da assistente ao adquirir, nas circunstâncias descritas e com as cautelas supra descritas (quanto à sua proveniência), o objeto em causa; aliás, sabido como é que todas as compras são controláveis pela PJ, ex vi DL 42/2009, de 12.02, que interesse teria a assistente em aceitar a venda se soubesse ou admitisse que tal origem seria ilícita?

Por outro, que – contrariamente ao decidido – não era exigível à assistente, de acordo com a postura exigível ao bonus pater familiae, que tivesse feito outras diligências para comprovar a proveniência lícita do objeto, o que seria e é incompatível com o normal funcionamento do mercado e o princípio da confiança e boa fé que devem nortear as relações comerciais entre as pessoas.

E sendo assim, como é, não pode dizer-se que a conduta da arguida, tal como descrita no RAI, não preenche – em termos indiciários, pois que é de indícios que se trata nesta fase processual – os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla que lhe vem imputado pela assistente, razão pela qual carece de fundamento legal a rejeição de tal requerimento com tal fundamento.

Procede, por isso, o recurso da assistente.

6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução, com as legais consequências.

Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 2014 / 05 /20

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)