Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
693/17.0T8FAR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: NEGÓCIO SIMULADO
TERCEIROS
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Tendo sido realizada escritura de compra e venda de imóvel a determinada pessoa, quando se pretendia na realidade doá-lo a um terceiro, ocorre simulação subjectiva, também conhecida como interposição fictícia de pessoas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. Para efeitos do art. 394.º n.º 3 do Código Civil, são de considerar terceiros os herdeiros legítimos ou legatários do simulador, que este, com a simulação, pretendia prejudicar.
2. Tendo sido realizada escritura de compra e venda de imóvel a determinada pessoa, quando se pretendia na realidade doá-lo a um terceiro, ocorre simulação subjectiva, também conhecida como interposição fictícia de pessoas.
3. Nestes casos, a única sanção possível é a nulidade, pois não ocorre a necessária intervenção dos declarantes do negócio dissimulado.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Faro, (…) demandou (…), pedindo que seja declarada nula a compra e venda de imóvel identificado nos autos, celebrada entre (…) e a Ré, por ter sido celebrada com simulação absoluta e, em consequência, restabelecida a situação pré-existente à data da celebração do referido contrato, devendo, para o efeito, o imóvel voltar a pertencer à herança por morte do referido (…) e rectificar-se o registo predial em conformidade.
Contestada a acção, realizou-se audiência prévia, na qual se julgou improcedente a excepção de caducidade que havia sido deduzida na contestação.
Identificado o objecto do processo e enunciados os temas da prova, realizou-se julgamento, após o que se proferiu sentença julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- declarou a nulidade, por simulação, do negócio de compra e venda celebrado através da escritura pública identificada em 9. dos factos provados;
- determinou a rectificação do registo de aquisição efectuado a favor da Ré passando a constar como causa de aquisição doação;
- absolveu a Ré do demais peticionado.

Recorrem ambas as partes.
As conclusões da Ré são as seguintes:
a) Com o presente recurso visa a Recorrente questionar a apreciação da prova feita e da qual resultará a violação dos arts. 392.º e segs. do CC.
b) Ora salvo o devido respeito, não se verifica qualquer tipo de contradição relevante quanto às declarações das testemunhas, sendo que as mesmas foram peremptórias ao afirmarem que emprestaram dinheiro e viram entregar ao vendedor, (…), para a aquisição do imóvel sito na Trav. (…), n.º 2, Horta dos Pardais, Edif. (…), Bloco D – R/C Fr., em Faro.
c) E consequentemente o negócio jurídico realizado foi uma compra/venda e não uma doação pelo que a douta sentença recorrida violou, por má interpretação, o disposto no art. 607.º n.º 4 do CPC, com remissão para os arts. 363.º, 369.º, 371.º, n.º 1 e 352.º do CC.

Quanto ao Autor, coloca as seguintes questões nas suas conclusões (que aqui se sumariam, pois aquelas que apresentou não efectuam uma verdadeira síntese das suas alegações):
A) Deveria ter sido considerada provada a al. b) dos factos não provados, pois tal resulta do depoimento das testemunhas (…) e (…) e dos documentos juntos aos autos, bem como das regras de experiência comum.
B) Da prova produzida em audiência de julgamento resultou também provado que o pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidasse dele, ou seja, à mãe da Ré.
C) A 1.ª instância só poderia ter conhecido da existência e validade do negócio dissimulado, se alguma das partes lho pedisse.
D) Ora tal pedido não foi deduzido por qualquer das partes, limitando-se a Ré a solicitar a improcedência da pretensão do A., o que até contraria o reconhecimento, que só agora pretende, da existência e validade do negócio dissimulado – art. 241.º do Código Civil. Quer a factualidade provada integre a previsão deste art. 241.º, quer não, a Ré teria de deduzir por via reconvencional um pedido autónomo contra o A. para que a 1.ª instância pudesse conhecer do negócio dissimulado.
E) Por outro lado, não sendo os mesmos os intervenientes nos dois negócios jurídicos, o negócio dissimulado tem de ser sancionado com a nulidade porquanto não é possível aproveitar a forma observada na celebração do negócio simulado (em que tiveram intervenção sujeitos diversos daqueles que efectivamente celebraram o negócio oculto ou dissimulado).
F) Pois o que o pai do A. pretendeu foi doar o imóvel à mãe da Ré.
G) A mãe da Ré não é parte, nem se associou à presente acção.
H) A sentença é nula por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.Civil.
I) Dos factos provados, não existe um único que considere provado que o pai do A. pretendeu doar à Ré a fracção vendida (negócio simulado) e que esta aceitou tal doação.
J) Nem tal questão constituiu o objecto do litígio, o qual consistiu em “saber se o contrato de compra e venda celebrado entre o pai do autor e a ré é nulo, por simulação e, em caso afirmativo, quais as consequências de tal nulidade.”
K) Não é consequência da declaração de nulidade o considerar que houve uma doação. A única consequência é o restabelecimento da situação anterior.
L) O Autor pediu ao Tribunal que declarasse nula a compra e venda celebrada entre o pai do Autor e a Ré por ter sido celebrada com simulação absoluta e, em consequência, restabelecida a situação pré-existente à data da celebração do referido contrato, devendo, para o efeito, a referida fracção voltar ao acervo hereditário de (…).
M) Citada para contestar, a Ré pugnou pela validade da compra e venda, sem que tivesse deduzido pedido reconvencional, pugnando pela validade e existência do negócio dissimulado (doação).
N) A factualidade provada e indicada na sentença recorrida, sob os n.ºs 1 a 12 dos Factos Provados, não integra a previsão do artigo 241º do Código Civil, razão pela qual, tendo a decisão recorrida conhecido da existência da doação como negócio dissimulado pela compra e venda (simulada) e ao reconhecer a validade daquela, cometeu a nulidade supra referida, por excesso de pronúncia.

As partes não responderam às alegações das respectivas contra-partes.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º n.º 5 do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Estando a matéria de facto impugnada por ambas as partes, analisemos as razões de cada uma delas.

Da impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré
Da análise das conclusões da Ré (…), resulta patente que esta pretende que se não considerem provados os pontos 10, 11 e 12 dos factos provados, nos quais a decisão recorrida declarou provado que a Ré não efectuou o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda, e que esta foi realizada com o propósito de retirar a fracção do acervo hereditário do (…), evitando que o A. reclamasse o seu direito na partilha desse bem.
Começa a Ré por suscitar a questão da inadmissibilidade da prova testemunhal, sendo certo que resulta do art. 394.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil ser inadmissível este meio quanto à prova do acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores. No entanto, o n.º 3 do mesmo preceito determina que tal proibição de prova testemunhal não é aplicável a terceiros, pelo que haverá a discutir se o A. assume no caso dos autos a posição de terceiro em relação ao acto titulado pela escritura de 23.07.2015.
Nos arts. 32.º e 33.º da petição inicial, o A. afirma a sua posição de terceiro enganado pelo acordo simulatório, na medida em que a celebração da escritura de compra e venda terá tido “como único propósito retirar o bem do acervo hereditário do referido (…), evitando que o A. viesse mais tarde a reclamar o seu direito na partilha de tal bem”, havendo a notar que, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos, o falecido não fez testamento ou outra disposição de última vontade e, tendo falecido no estado de viúvo, deixou como único herdeiro o seu único filho, o aqui A..
Na senda do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.1992, publicado no endereço da DGSI[2], a jurisprudência vem reconhecendo que, para efeitos do art. 394.º, n.º 3, do Código Civil, são de considerar terceiros os herdeiros legítimos ou legatários do simulador, que este, com a simulação, pretendia prejudicar. Nesta linha, o mesmo Supremo Tribunal decidiu no seu Acórdão de 04.05.2010, publicado no mesmo local[3], que mesmo após a abertura da herança, os herdeiros legitimários têm legitimidade para invocar a nulidade de negócios simulados que se traduzam em prejuízo da respectiva legítima, ainda que não com esse intuito.
Já Manuel de Andrade escrevia que eram «terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam os simuladores, nem os seus herdeiros (ou legatários), a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas.»[4]
De igual modo, Carvalho Fernandes ensinou que «a morte do autor da sucessão não exclui a possibilidade da declaração de nulidade dos negócios simulados por ele celebrados, pois que a nulidade é arguível a todo o tempo. Por outro lado é incontroverso que aos seus herdeiros não pode deixar de ser reconhecida legitimidade para invocar a simulação pois seja por uma razão, seja por outra, sempre eles têm de ser considerados como “interessados” na declaração de nulidade. Mas não é de excluir, embora seja corrente colocar os herdeiros na mesma posição do simulador, poderem eles ser tratados como terceiros, enquanto visam satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afectados pela subsistência da simulação, particularmente sendo essa a situação dos herdeiros legitimários quanto está em causa a defesa da sua legítima. (…) É, sem dúvida, como terceiro que após a morte do autor da simulação, actua o herdeiro legitimário que, por exemplo, pretende demonstrar que certo acto de compra e venda praticado pelo seu progenitor encobre, na realidade, uma doação.»[5]
Seguindo-se esta linha jurisprudencial e doutrinal, que nos parece acertada, o A. deve ser considerado como terceiro enganado pelo acordo simulatório descrito nos autos e, como tal, não tem a Ré razão quando invoca a proibição de prova testemunhal, na medida em que é aplicável a excepção prevista no art. 394.º, n.º 3, do Código Civil.
A decisão recorrida fundamentou longamente a sua convicção acerca das respostas aos pontos 10, 11 e 12 dos factos provados, ao longo de doze páginas e meia, socorrendo-se quer da confissão parcial da Ré – que admitiu não ter pago qualquer preço, mas sim a sua mãe, a (…) – quer da análise da prova testemunhal e documental, concluindo que “não obstante não existir prova directa sobre o acordo prévio entre o falecido e a Ré e sobre a intenção de enganar terceiros, a prova destes factos obteve-se por presunção judicial…”
Não é função deste tribunal repetir a argumentação desenvolvida pela primeira instância, mas tão só verificar a sua razoabilidade e se a prova produzida impõe decisão diversa.
Acerca do uso de presunções judiciais na prova da simulação negocial, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou recentemente, citando o Prof. Beleza dos Santos, que «aqueles que efectuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no acto que praticam. Por essa razão, há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do acto jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados. Destes factos, que se conhecem, se deduzirá a simulação que se pretende demonstrar. Dentre esses factos constituirão indícios aproveitáveis aqueles que, segundo o que ensina a experiência comum, segundo o que normalmente acontece na vida, em regra só se verificam, quando se praticam actos simulados.»[6]
No caso dos autos, a primeira instância começa por identificar a confissão da Ré resultante do seu depoimento de parte prestado em audiência de julgamento, admitindo não ter pago qualquer preço, embora com a justificação de tal ter sido feito pela sua mãe, a (…), mas apenas através de entregas em numerário.
Ora, os extractos bancários do falecido (…), juntos aos autos, demonstram efectivamente que não recebeu qualquer transferência ou outra forma de pagamento proveniente da Ré ou da sua mãe – e face ao valor declarado da escritura, de € 85.789,58, torna-se realmente duvidoso que esse montante tenha sido, na sua totalidade, pago em numerário, pois tal já não era a prática usual adoptada em negócios de tal montante na data em que foi realizada a escritura, não esquecendo que actualmente, por força da Lei 92/2017, de 22 de Agosto, estão até proibidos os pagamentos em numerário de valor igual ou superior a € 3.000,00.
Acresce ainda que, mesmo tendo ocorrido o pagamento de toda aquela quantia em numerário, o que se nota é que não ocorreram depósitos em numerário na conta do (…) em valor minimamente correspondente àquele preço.
De todo o modo, constatada a ausência de qualquer forma de pagamento documental, e alegada pela Ré e pela sua mãe, a testemunha (…), que todo o preço foi pago exclusivamente em numerário, a primeira instância lançou-se na tarefa de verificar se tal alegação tem fundamento e se ocorreu o propósito de retirar o imóvel do acervo hereditário e evitar que o A. reclamasse o seu direito na partilha de tal bem.
A fundamentação a propósito desta matéria constante da decisão recorrida mostra-se convincente e a presunção judicial obtida tem efectivo suporte na prova produzida.
Repetindo que não é nossa função repetir toda a fundamentação da decisão recorrida, notaremos, de todo o modo, a considerável diferença de idades entre o falecido (…), nascido a 16.01.1937, e a (…), nascida a 18.01.1974 – 37 anos de diferença, portanto. Tendo a (...) sido contratada como cuidadora do (…), que nos últimos anos sofria da doença que o veio a vitimar, cancro da próstata, pouco depois aquela inicia um relacionamento íntimo com o (…), e começa então o processo de afastamento da família próxima deste, constituída pelo filho, a nora e as netas.
Como revelou a testemunha (…), ex-nora do (…) – cujo depoimento se mostrou coerente e desinteressado, tanto mais que se divorciou do A. em Março de 2015 – a (…) assumiu uma atitude autoritária em relação ao (…), proibiu os contactos do pai com o filho e com as netas (que deixou até de visitar e levar a passear, como sempre tinha feito, ou até de participar nos seus aniversários e oferecer-lhes prendas), passou a controlar as chamadas telefónicas, mudou a fechadura de casa e, na altura em que o (…) foi hospitalizado e a família teve acesso à sua casa, verificaram que do cofre tinha desaparecido todo o dinheiro e as jóias, que eram pertença da sua falecida mulher (desapareceram também outros objectos que estavam em casa e o carro também desapareceu).
Estas circunstâncias, aliadas à ausência de rendimentos próprios da (…) que lhe permitissem efectuar o pagamento do preço, e face às declarações prestadas pelo falecido (…) a diversas testemunhas – (…), (…), (…) e (…) – de que pretendia deixar o imóvel à sua companheira, evitando assim que este fosse herdado pelo seu filho, levam-nos a concluir, tal como o fez a decisão recorrida, que não ocorreu o pagamento de qualquer preço e que a escritura foi realizada apenas com o propósito de retirar o imóvel do acervo hereditário e evitar que o A. reclamasse o seu direito na partilha de tal bem.
Deste modo, improcede a impugnação fáctica deduzida pela Ré.

Da impugnação da matéria de facto deduzida pelo A.
Nas suas alegações, o A. coloca duas questões de impugnação fáctica: deveria ser considerada provada a al. b) dos factos não provados, e deveria ser também provado que o pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidava dele, ou seja, à mãe da Ré.
Em relação a esta última questão, já a decisão recorrida admite que a intenção do (…) era deixar o imóvel à sua companheira, a (…), e que a realização da escritura à sua filha se justifica pelo alto grau de confiança entre estas. E, de resto, tal é confessado pela Ré no seu depoimento – referindo-se à mãe, “o apartamento é dela, que o pagou”, a 6m24s – e é corroborado pela própria (…), que no seu depoimento, depois de afirmar que foi ela quem pagou o apartamento, justifica a realização da escritura com a sua filha “porque eu andava a tratar do divórcio com o pai da minha filha, entretanto…, por isso é que eu passei em nome da minha filha, porque sou mãe” – entre 3m30s e 3m40s.
De resto, as testemunhas (…), (…), (…) e (…), também confirmaram que a intenção do (…) era deixar o imóvel à sua companheira, e se tal não sucedeu, sendo o imóvel escriturado à aqui Ré, a explicação está no depoimento da própria (…) – questões relacionadas com o seu divórcio, não pretendendo que o imóvel ficasse em seu nome.
Na al. b) foi declarado não provado que “a Ré e a respectiva mãe, aproveitando-se da situação de fragilidade de (…), conluiaram-se no sentido de se apropriarem dos bens de que o mesmo era proprietário.”
A situação de fragilidade do (…) parece-nos patente, pelo menos, a partir da altura em que é internado, em Setembro de 2014, e lhe é diagnosticado o cancro que acabaria por o vitimar, tendo necessitado, a partir de então, de cuidadoras em permanência, como foi o caso das testemunhas (…) e (...). Como resulta da experiência comum, uma doença daquela natureza, aliada à idade – em Janeiro de 2015 o (…) tinha 78 anos de idade e faleceu já com 80 – são fortemente incapacitantes e daí os cuidados permanentes de que carecia.
Quanto à apropriação de bens de que o (…) era proprietário, para além do desaparecimento do dinheiro e jóias existentes no cofre existente na sua casa, e do carro – factos revelados pela testemunha (…) – temos também duas situações que revelam essa atitude de apropriação e importa não olvidar: a escritura impugnada nos autos, em que sob a capa de uma compra e venda à aqui Ré, se pretendeu retirar o imóvel do acervo hereditário, e o negócio relativo à venda do outro imóvel pertencente ao (…), sito na Rua (…), n.º 30, Faro.
Da escritura de venda desse imóvel, datada de 08.01.2016, consta que o preço foi de € 75.000,00 e que os compradores contraíram um empréstimo com hipoteca para pagamento de parte desse preço, no valor de € 65.800,00. O dia da escritura coincidiu com uma sexta-feira e logo no primeiro dia útil seguinte, segunda-feira, dia 11.01.2016, são depositados valores para cobrança na conta do (…), no montante de € 67.500,00. Logo a 13.01.2016 é transferida para a conta da aqui Ré, (...), a quantia de € 50.000,00, em operação não justificada e que, na nossa leitura, demonstra o aproveitamento da situação de fragilidade do (…), com apropriação do seu património.
Importa, ainda, notar que em audiência foi afirmado que já com outro idoso a (…) tentou aproveitar-se da sua fragilidade para apropriar-se dos seus bens. Como foi referido pela testemunha (…), quando o seu sogro foi internado por complicações de saúde associadas à idade, a (…) foi ao hospital exigir-lhe o pagamento de € 5.000,00 e se tal não ocorreu foi porque a esposa da testemunha se opôs e determinou a mudança de fechadura da porta de casa do seu pai – o que motivou nova ida da (…), desta vez para queixar-se que tinha tentado ir à casa deste idoso, na ausência dele e da sua família, e não tinha conseguido entrar…
Acresce ainda que esta testemunha, (…), observou directamente uma ida do (…) ao balcão do Montepio Geral, acompanhado pela (…), onde reparou que ela é que assumia a posição de liderança e geria a relação entre o banco e (…), de tal modo que, para a testemunha, foi evidente que “ele estava numa posição de subalternizado em relação a ela.”
Assim, na procedência de impugnação fáctica deduzida pelo A., adita-se o seguinte ao elenco de factos provados:
· o pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidava dele, ou seja, à mãe da Ré;
· a Ré e a respectiva mãe, aproveitando-se da situação de fragilidade de (…), conluiaram-se no sentido de se apropriarem dos bens de que o mesmo era proprietário.

O elenco fáctico fica assim estabelecido:
1. O A. era o único filho de (…).
2. O qual faleceu no estado de viúvo de (…), no dia 04.02.2017, com última residência habitual na Travessa (…), n.º 2, R/C frente, em Faro.
3. A Ré é filha de (…), a qual iniciou um relacionamento com (…), em data não concretamente apurada e que perdurou até à data da sua morte.
4. Os quais viveram em condições análogas à dos cônjuges na referida residência, na qual a Ré também residiu por escasso período.
5. Em Setembro de 2014, o (…) foi internado no Hospital das (…), onde lhe foi diagnosticado um cancro.
6. Aí tendo permanecido até Outubro de 2014, data em que teve alta hospitalar e regressou à sua residência.
7. Em Julho de 2015, o (…) residia sozinho na referida residência.
8. Data a partir da qual fez cessar o contrato de trabalho que tinha celebrado com a sua empregada doméstica (…).
9. Através de escritura pública, datada de 23.07.2015, outorgada no Cartório Notarial a cargo de Cristina Maria da Cunha Silva Gomes, em Faro, (…) declarou vender a (…), que declarou comprar, pelo preço de € 85.789,58 a fracção autónoma, designada pelas letras “AA”, correspondente ao R/C frente – Bloco D, destinada a habitação, com uma divisão na sub-cave destinada a arrumos com o n.º 106 e um lugar de estacionamento com o n.º 200, integrada no prédio urbano denominado “(…)”, Lote n.º 1, Edifício (…), situado na Travessa (…), n.º 2, Penha, União de freguesias de Faro (Sé e São Pedro), descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…)/20030306 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de Faro (Sé).
10. A Ré não efectuou o pagamento do preço declarado na escritura de compra e venda.
11. A escritura de compra e venda foi realizada com o propósito de retirar a fracção autónoma do acervo hereditário de (…).
12. Evitando que o A. reclamasse o seu direito na partilha deste bem.
13. O pai do A. pretendia doar a fracção em apreço nos autos à pessoa que cuidava dele, ou seja, à mãe da Ré.
14. A Ré e a respectiva mãe, aproveitando-se da situação de fragilidade de (…), conluiaram-se no sentido de se apropriarem dos bens de que o mesmo era proprietário.

Aplicando o Direito.
Da nulidade por excesso de pronúncia
Para melhor enquadramento desta questão, importa notar que, na sua petição inicial, fundando-se no instituto da simulação de negócio (art. 241.º do Código Civil), o A. pede a declaração de nulidade da escritura de compra e venda identificada nos autos, por simulação absoluta, uma vez que não foi pago qualquer preço e o que se pretendeu efectuar foi uma doação.
Na sentença recorrida, após se concluir que ocorria simulação, declarou-se que era somente relativa e que o negócio dissimulado – de doação – podia ser aproveitado, nos termos do art. 241.º do Código Civil, pois havia sido respeitada a forma legalmente exigida para esse contrato.
De acordo com o art. 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o juiz não pode ocupar-se na sentença senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – se o fizer, a sentença é nula, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil. De igual modo, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, igualmente sob pena de nulidade – arts. 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. e), do mesmo diploma. Porém, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5.º, n.º 3.
Como nota Anselmo de Castro[7], a propósito do vício de falta ou de excesso de pronúncia em relação às questões suscitadas pelas partes, «a palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.»
E quanto à nulidade por condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido, o mesmo autor aponta que a mesma «relaciona-se com o princípio da rigorosa coincidência da sentença com a pretensão deduzida em juízo, ou seja, com o objecto do litígio»[8].
No caso dos autos, estando arguida a simulação absoluta do negócio, porquanto o negócio dissimulado seria uma doação, foi o tribunal recorrido colocado na obrigação de analisar a diferença entre o negócio simulado e o dissimulado, a fim de formular o seu juízo acerca da validade do negócio aparente. Tal análise envolvia, necessariamente, a apreciação da validade do negócio realmente pretendido, a fim de se concluir pela ocorrência da simulação.
Realizada essa subsunção jurídica, outra tarefa se apresentava ao julgador – qualificar a simulação como absoluta, tal como peticionado pelo A., conduzindo à pretendida nulidade do negócio.
Tendo o tribunal recorrido concluído que a simulação era meramente relativa, e que não existiam vícios de forma que obstassem à validade do negócio dissimulado, não excedeu a pronúncia que lhe era exigida, antes pelo contrário, condenou em limite inferior ao que lhe era peticionado, denegando ao A. parte da pretensão que este havia deduzido.
Logo, não se vislumbra que tenha ocorrido excesso de pronúncia, mas sim um juízo de improcedência parcial do pedido, que de resto motivou a interposição do recurso pelo A. e a sua admissão, enquanto parte vencida, motivo pelo qual improcede esta linha de argumentação.

Da simulação absoluta
No ensino de Mota Pinto[9], secundado por Carvalho Fernandes[10], os elementos integradores da simulação são:
a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
b) Acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório), o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais;
c) Intuito de enganar terceiros.
A principal distinção entre modalidades de simulação ocorre em função do tipo de divergência, dizendo-se que a simulação é absoluta quando os simuladores fingem concluir determinado negócio e na realidade nenhum negócio quiseram celebrar, e é relativa quando é declarada a celebração de um dado negócio jurídico (negócio simulado), mas na realidade as partes pretenderam celebrar outro negócio jurídico, de tipo, natureza, objecto ou conteúdo jurídico diverso, ou concluído com sujeitos diversos (o negócio dissimulado).
No que concerne ao negócio com simulação de pessoas, também dita de simulação subjectiva, Carvalho Fernandes[11] escreve que «reporta-se às partes do negócio, que não são aquelas que aparentemente nele intervêm. Há várias razões que podem levar a um conluio sobre quem é parte no acto. Em certos casos, acontece que o verdadeiro interveniente não estaria em condições de o praticar; noutras o problema é que o verdadeiro contraente não poderia praticar o acto com o simulador ou só o poderia praticar em condições que se não verificaram naquele caso; pode ainda acontecer que ao simulador não interesse que aquela pessoa surja como parte do negócio.»
Depois de identificar um exemplo clássico de simulação subjectiva, quando se pretende afastar o regime do art. 877.º, n.º 1, do Código Civil – venda a filhos sem consentimento dos demais – em que a simulação envolve a utilização de um terceiro que, como ensina aquele autor, «corresponde ao que na linguagem corrente se designa por testa de ferro ou homem da palha», conclui afirmando que nesta modalidade de simulação há uma interposição fictícia de pessoas.
A primeira instância concluiu que estavam demonstrados os requisitos legais da simulação e, na realidade, os factos demonstram a divergência intencional entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros: o pai do A. pretendia doar a fracção à pessoa que cuidava, a mãe da Ré, mas foi celebrada uma escritura de compra e venda à aqui Ré, que não pagou qualquer preço, pois o propósito foi retirar o imóvel do acervo hereditário e evitar que o A. exercesse o seu direito na partilha deste bem.
No entanto, discorda-se que, sendo a simulação relativa, se possa aplicar sem mais o regime do art. 241.º do Código Civil, aproveitando-se o contrato oculto como doação à Ré.
Na verdade, do n.º 2 deste normativo resulta que o negócio dissimulado só poderá ser reputado válido, em caso de contrato de natureza formal, se tiver sido observada a forma exigida por lei. Porém, os factos demonstram uma interposição fictícia de pessoas, na medida em que o se pretendia era a doação à mãe da Ré, e não a esta.
Nesta situação, a única sanção possível é a nulidade, pois não é possível aproveitar a forma observada na celebração do negócio simulado.
Com efeito, «o negócio dissimulado formal será válido desde que no documento em que consubstancia o acto simulado ou em qualquer outro (que revista as formalidades exigidas por lei) constem os elementos para que vale a razão determinante da exigência da forma legal. Com efeito, da conjugação dos n.ºs 1 e 2 do art. 221.º vê-se que em relação a tais elementos a exigência da forma legal é total, pois abrange mesmo as estipulações anteriores ou posteriores ao documento.»[12]
Ora, um dos elementos essenciais no negócio é a intervenção dos respectivos declarantes, tanto mais que “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida” – artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil.
Como já se notou no Supremo Tribunal de Justiça[13], entre os objectivos da exigência de forma legal conta-se permitir aos interessados, com a necessária publicidade, tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar, e provar o acto realizado. Ora, ocorrendo interposição fictícia de pessoas, em negócio formal, tais objectivos não são respeitados, pelo que não é possível neste caso o aproveitamento do negócio simulado.[14]
Em jeito de conclusão, mostrando-se nulo o negócio simulado através da escritura de 23.07.2015 e, não sendo possível o aproveitamento do negócio dissimulado, a acção procede na totalidade, com a necessária declaração de nulidade e restabelecimento da situação pré-existente à data da celebração do referido contrato, cancelando-se o registo de aquisição a favor da Ré.

Decisão.
Destarte, concedendo provimento ao recurso interposto pelo A. e negando-o ao interposto pela Ré, altera-se a sentença recorrida nos seguintes termos:
a) mantém-se a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda de 23.07.2015, identificada no ponto 9 dos factos provados;
b) determina-se o restabelecimento da situação pré-existente à data da celebração da referida escritura, cancelando-se o registo de aquisição a favor da Ré.

Custas pela Ré.
Évora, 28 de Junho de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1), e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Proc. 082041.
[3] Proc. 2964/05.9TBSTS.P1.S1, igualmente publicado em www.dgsi.pt.
[4] In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 198.
[5] In Estudos Sobre a Simulação, págs. 98 e 99.
[6] Acórdão de 19.01.2017 (Proc. 841/12.6TBMGR.C1.S1), também publicado em www.dgsi.pt.
[7] In Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, pág. 142.
[8] Loc. cit., pág. 143.
[9] In Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 7.ª reimpressão, 1992, pág. 472.
[10] In Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, ed. da AAFDL, 1983, pág. 369.
[11] Loc. cit., págs. 372 e 373.
[12] Carvalho Fernandes, loc. cit., pág. 377.
[13] Em Acórdão de 25.03.2010 (Proc. 983/06.7TBBGR.G1.S1), igualmente em www.dgsi.pt.
[14] No mesmo sentido, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2004 (Proc. 04A1442), o já citado de 25.03.2010, e o de 03.12.2015 (Proc. 2936/07.9TBBCL.G1.S1), e ainda o desta Relação de Évora de 30.06.2016 (Proc. 8112/08.6TCLRS.E1), todos disponíveis no mesmo endereço.