Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
357/20.7PCSTB-A.E1
Relator: BERGUETE COELHO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DOLO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se na acusação, não se usou a forma tabelar, muitas vezes utilizada, que a arguida “agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”, daí não decorre falta/insuficiência de narração dos elementos subjectivos, uma vez que essa forma é eminentemente conclusiva e não serve para, sem mais, suprir a visada narração.
O que interessa verdadeiramente é aquilatar se esses elementos subjectivos se patenteiam na acusação de modo a serem entendíveis e, como tal, susceptíveis de compreendidos e discutidos pela defesa, e não o acolher de perspectiva formalista que redunde em restringir a apreciação de quem acuse, desligada, aliás, do sentido de justiça que, em qualquer caso, deve estar presente.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora
*

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, deduzida acusação particular (bem como pedido de indemnização civil), pelo assistente, (...), contra a arguida (...), imputando-lhe, além do mais, a prática de crimes de injúria e difamação e, remetidos para julgamento, proferiu-se despacho, no Juízo Local Criminal de Setúbal, Comarca de Setúbal, que, ao abrigo do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP), rejeitou essa acusação, por a considerar “manifestamente infundada”.
Mais determinou a rejeição da acusação do Ministério Público na parte relativa àqueles mesmos crimes.

Inconformado com tal despacho, o assistente interpôs recurso, formulando as conclusões:
a) Vem o presente Recurso interposto do Despacho proferido em 22 de junho de 2021, ao abrigo do preceituado no artigo 311.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b) do CPP;
b) O douto Despacho rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente contra a arguida, imputando-lhe um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, por ser manifestamente infundada e, por conseguinte, atento ao princípio da adesão, a não admissão do pedido de indemnização civil.
c) Alicerça o douto despacho o juízo de falta de fundamentação manifesta da acusação particular, em resumo, porque “analisada a acusação particular deduzida pelo assistente, verifica-se que os factos constantes da mesma são insuficientes no que diz respeito aos elementos subjetivos do tipo de ilícito de injúria imputado à arguida. (…) a acusação particular deduzida pelo assistente, não obstante transcrever o preceito legal incriminador, é totalmente omissa quanto ao elemento intelectual do dolo.”;
d) Contudo, não concorda o ora recorrente com o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, não aceitando que, por falta de alegação dos factos integradores do elemento subjetivo do crime de injúria imputado à arguida, seja a acusação particular deduzida pelo assistente manifestamente infundada;
e) A factualidade descrita na acusação particular resulta inequivocamente que a arguida tinha a intenção de ofender a dignidade e honorabilidade do assistente, ora recorrente;
f) A acusação particular deduzida pelo assistente, ora recorrente, possui factos demonstrativos de uma conduta que está tipificada nos crimes de injúria e difamação consagrados no Código Penal;
g) Mais, foi exatamente a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção que o assistente descreveu, e bem, na sua acusação particular;
h) Resultam cristalinos os elementos constitutivos do crime ali explanados, basta ler a acusação particular, que inclusive os narra analiticamente;
i) Tanto basta para concluir que a acusação particular deduzida contem todos os elementos elencados pelo n.º 3 do artigo 283º do CPP, como já mencionado, imputando-lhe a prática de factos de natureza objetivamente criminosa e, bem assim, o intuito de praticar esses crimes, pelo que mal andou o douto despacho ao rejeitar a acusação particular oferecida e, em consequência, rejeitar o pedido de indemnização civil deduzido, por conter a indicada peça todos os elementos legalmente exigidos;
j) Atender-se, exclusivamente, à omissão da expressão “ter a arguida atuado livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser a sua conduta ilícita e punida por lei”; não se concede, uma vez que, e salvo o devido respeito, é um mero formalismo, e nunca poderá ser fundamento para a rejeição da acusação particular;
k) Uma acusação particular omissa quanto ao elemento subjetivo não é sempre, automática e necessariamente nula, podendo, de acordo com cada caso concreto, conter todos os elementos típicos necessários para que a arguida a entende e dela possa defender cabalmente; que é o caso dos autos; e, este entendimento servirá – sempre – melhor a justiça material, ao serviço da qual está a justiça adjetiva, não devendo esta, quando existe “remédio” alternativo, sacrificar aquela; o que se requer;
l) Acrescendo que, a decisão recorrida fundamenta a não receção da acusação do MP por alegação dos factos integradores dos elementos subjetivos dos crimes ali mencionados, representar uma alteração substancial dos factos legalmente inadmissível;
m) Contudo, o aditamento do elemento subjetivo do crime não se traduz em qualquer alteração substancial da acusação do assistente, ora recorrente, pelo singelo facto de, com esse aditamento, não se imputar à arguida crime diverso, nem se agravar o limite máximo da sanção aplicável;
n) Consagra o artigo 1.º, alínea f) do CPP que, a alteração substancial dos factos é “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”;
o) Pela análise da acusação feita pelo MP, e salvo o devido respeito, outro não pode ser o entendimento que a alteração feita é uma alteração não substancial, uma vez que não existiu uma transformação do quadro factual explanado na acusação particular; os factos são os mesmos, os crimes são os mesmos, os intervenientes são os mesmos;
p) O douto despacho recorrido violou os artigos 16.º e 17 do CP, e bem assim, os artigos 311.º, n.º 1, n.º 2, aliena a) e n.º 3 alínea b), c) e d), bem como, o artigo 283.º, n.º 3 e 284.º, estes do CPP;
q) Bem como, os artigos 1.º, alínea f e 285.º, n.º 4, ambos do CPP;
r) Assim e pelas razões supra expostas deverá o douto despacho agora colocado em crise e que não recebeu a acusação particular e, em consequência, não recebeu o pedido de indemnização civil formulado, ser revogado e consequentemente ser substituído por outro que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil apresentados pela assistente, submetendo a arguida a julgamento por todos os factos aí narrados;
s) Bem como, ser o mesmo revogado e substituído por outro que se digne a admitir a acusação do MP na totalidade, recebendo-a no que respeita aos crimes de injúria e difamação, por esta não se mostrar uma alteração não substancial dos factos legalmente admissível.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência:
a) Deverá ser revogado o despacho proferido e consequentemente ser substituído por outro que receba acusação particular e o pedido de indeminização civil deduzidos pelo assistente, ora recorrente, submetendo a arguida a julgamento por todos os factos aí narrados;
b) Assim como, admitir a acusação do MP na totalidade, recebendo-a no que respeita aos crimes de injúria e difamação, por esta não se mostrar uma alteração substancial dos factos legalmente inadmissível.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1. O despacho recorrido mostra-se bastante claro, explícito e adequadamente fundamentado, estribando-se na lei aplicável, não violando quaisquer disposições legais, designadamente, o art.º 311º do C.P.P.
2. A acusação particular deduzida é omissa quanto aos factos que integram os elementos subjetivos dos crimes de injuria e difamação imputados à arguida, sendo que não poderá o Ministério Público a sanar tais omissões, por falta de legitimidade para o efeito.
3. Estão em causa crimes de natureza particular, cuja legitimidade para acusar é exclusivamente do assistente, sendo que a intervenção do Ministério Público deverá reger-se pelos limites impostos no art.º 285.º, n.º 3 do C.P.P.
4. O Ministério Público não pode substituir-se ao assistente, corrigindo eventuais falhas da acusação particular, designadamente, acrescentando os factos integradores dos elementos subjetivos do ilícito em causa, porquanto tais factos comportam em si uma alteração substancial dos factos - Acórdãos da Relação de Coimbra, de 30.04.2014, 21.03.2012, 09.05.2012 disponíveis em www.DGSI.PT
5. Aliás, na mesma senda, o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Fixação de Jurisprudência, nº 1/2015, de 27.01.2015, veio fixar a seguinte Jurisprudencia:
“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal»”.
6. Conclui-se, assim, que a acusação particular deduzida pela assistente enferma de nulidades, não sanáveis através da posterior intervenção do Ministério Público, pelo que bem andou a decisão recorrida ao rejeitá-la.
7. Pelo exposto, consideramos que o douto despacho em crise deverá ser mantido na sua íntegra, porquanto não violou o disposto no art.º 311º do C.P.P., nem quaisquer outros normativos legais.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e, em consequência, mantendo, na íntegra, o douto despacho recorrido, Vªs. Exªs. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, manifestando acompanhar a referida resposta e no sentido que o recurso deva ser julgado improcedente.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
*

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP.
Assim, reside em apreciar da alegada violação dos arts. 283.º, 284.º, 285.º e 311.º do CPP, ao terem sido, pelo despacho recorrido, rejeitadas as acusações, quer particular, quer do Ministério Público, na parte atinente à imputação à arguida dos crimes de injúria e difamação.
*

No que aqui interessa, consta do despacho recorrido:
(…)
Da rejeição da acusação particular
A fls. 285 e ss. veio o assistente (...) deduzir acusação particular, nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal, contra a arguida (...), imputando-lhe a prática de 1 (um) crime de injúria [p. e p. pelo art.º 181.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal].
Cumpre apreciar.
Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do C.P. Penal, a acusação deve ser rejeitada se for considerada manifestamente infundada.
A acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos [cfr. artigo 311.º, n.º 3, alínea b)].
Com efeito, “a acusação particular deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. Assim sendo, os factos nela descritos terão que integrar, para além do mais, todos os elementos típicos do crime (elementos objetivos e subjetivos)”. – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/04/2014, processo n.º 126/12.8TAMLD.C1, disponível in www.dgsi.pt.
Analisada a acusação particular deduzida pela assistente, verifica-se que os factos constantes da mesma são insuficientes no que diz respeito aos elementos subjetivos do tipo de ilícito de injúria imputado à arguida.
Com efeito, “1 – São os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do caráter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. 2 – Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).”. – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/09/2009, processo n.º 910/08.7TAVIS. C1, disponível in www.dgsi.pt.
Ora, a acusação particular deduzida pelo assistente, não obstante transcrever o preceito legal incriminador, é totalmente omissa quanto ao elemento intelectual do
dolo.
Acresce que tal omissão não pode ser suprida nem pelo MINISTÉRIO PÚBLICO nem pelo Tribunal em sede de julgamento.
Isto porque o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015, veio fixar jurisprudência no sentido de que: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal”.
No caso concreto dos autos a acusação particular deduzida pelo assistente é manifestamente infundada por falta de alegação dos factos integradores do elemento
subjetivo do crime de injúria imputado à arguida.
Pelo supra exposto, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação particular deduzida pelo assistente a fls. 285 e seguintes, por ser manifestamente infundada.
(…)
*
Face à rejeição da acusação particular, conforme supra decidido, e atento o princípio da adesão (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal), não se admite o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante (...) por impossibilidade superveniente da lide [cfr. artigo 277.º, alínea e), do C.P. Civil].
Notifique.
*
Atentos os fundamentos materiais invocados e a respetiva correção formal, recebo (parcialmente) a acusação deduzida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO sob a Ref.ª Citius 92207006 (correspondente a fls. 302 a 308v.º do processo físico) contra os arguidos (...) e (...), ali melhor identificados, pelos factos nela descritos, e respetiva qualificação jurídica, os quais se dão, aqui, por integralmente reproduzidos.
Não recebo a referida acusação no que respeita aos crimes de injúria e difamação imputados à arguida (...), não a aceitando nessa parte, porquanto a alegação dos factos integradores dos elementos subjetivos de tais crimes ali feita pelo MINISTÉRIO PÚBLICO representa uma alteração substancial dos factos legalmente inadmissível [cfr. art.ºs 285.º, n.º 4 e 311.º, n.º 2, al. b), do C.P. Penal].
(…)
*

Apreciando:
A rejeição da acusação deduzida pelo ora recorrente, que desencadeou, também, a rejeição da acusação do Ministério Público, na parte em causa, atinente aos crimes de injúria e difamação, por manifestamente infundada, assentou, como se sublinhou no despacho sob censura, em que “Analisada a acusação particular deduzida pela assistente, verifica-se que os factos constantes da mesma são insuficientes no que diz respeito aos elementos subjetivos do tipo de ilícito de injúria imputado à arguida”, ainda que destacando que “é totalmente omissa quanto ao elemento intelectual do dolo”.
Justificou quetal omissão não pode ser suprida nem pelo MINISTÉRIO PÚBLICO nem pelo Tribunal em sede de julgamento”, de acordo com o firmado pelo “Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015”.
Contrariando a posição seguida, o recorrente, no essencial, alega que é manifesto, da factualidade espelhada na acusação particular, que a arguida tinha intenção de ofender a dignidade e honorabilidade do assistente, chamando à colação o articulado na acusação em 7.º, 8.º, 13.º, 16.º, 17.º e 18.º, concluindo que constam os factos que respeitam os requisitos indicados no artigo 283.º, n.º 3 do CPP1, permitindo formular um juízo de censura ético-jurídico à arguida, que a partir da nua objetividade dos factos, é possível depreender-se os questionados elementos subjetivos dos crimes mencionados, uma vez que são possíveis de captar, através e mediante a factualidade material explanada na acusação particular, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, que Atender-se, exclusivamente, à omissão da expressão “ter a arguida atuado livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser a sua conduta ilícita e punida por lei”; não se concede, uma vez que, e salvo o devido respeito, é um mero formalismo, e nunca poderá ser fundamento para a rejeição da acusação particular, que uma acusação particular omissa quanto ao elemento subjetivo não é sempre, automática e necessariamente nula e que este entendimento servirá – sempre – melhor a justiça material, ao serviço da qual está a justiça adjetiva, não devendo esta, quando existe “remédio” alternativo, sacrificar aquela.
Vejamos.
No que aqui releva, o art. 311.º do CPP prevê:
“2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
b) Quando não contenha a narração dos factos;
d) Se os factos não constituírem crime”.
Tal redação foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25.08, em sintonia com o reforço do princípio do acusatório, restringindo ao mínimo indispensável a possibilidade do juiz de julgamento e, sobretudo, em situações em que não se realiza instrução, se pronunciar valorativamente quanto aos termos da acusação, em cumprimento estrito da distinção constitucional de funções que às diferentes autoridades judiciárias incumbem e das suas diversas atribuições no âmbito processual penal.
Também, as exigências previstas para a acusação (art. 283.º do CPP) são emanação clara desse princípio, consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, impondo que só se pode ser julgado pela prática de crime precedendo acusação formulada por órgão distinto do julgador.
A concepção típica de um processo acusatório implica a estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, em sede de determinação do objecto do processo, bem como na vertente de ponderação dos poderes de cognição e dos limites da decisão, só assim ficando asseguradas as garantias de defesa, por só desse modo o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 65).
Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 daquele art. 32.º, consagrando-se como cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, vol. I, pág. 516).
O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, tomo III, pág. 117).
Toda esta temática se revela, identicamente, como decorrência do direito a um processo equitativo, de harmonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
A importância da acusação é, pois, indiscutível e, por isso, se reconheça que ninguém pode ser punido sem culpa e que os requisitos exigidos para aquela, reflexo daquele princípio acusatório, são essenciais à delimitação do objecto do processo e, como tal, do julgamento a realizar.
Nesses requisitos, se inclui, desde logo, a narração de factos, ainda que sintética, a que o referido art. 283.º, no seu n.º 3, alínea b), se reporta, como sendo aqueles “que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
E também, designadamente, comporta a exigência de que os factos narrados na acusação constituam crime, na medida em que o ponto de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo penal os comportamentos humanos que por lei são declarados passíveis de penas ou medidas de segurança criminais (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 268).
Se isso é bem patente na exigência da indicação das disposições legais aplicáveis (referido art. 283.º, n.º 3, alínea c)), na medida em que qualquer alteração do ponto de vista jurídico pode vir a reflectir-se na relevância atribuída à prova e à defesa de determinados elementos de facto, não deixará, inevitavelmente, de o ser se os factos narrados nem sequer constituem crime, com o que, além do mais, se evita que o arguido venha a ter de ser sujeito, sem justificação, a julgamento.
Aliás, aquele princípio acusatório não dispensa esse controlo judicial, no sentido de obviar a acusações gratuitas.
A viabilidade de rejeição da acusação nesse caso assenta, no fim de contas, em que a acusação, mesmo que procedesse na parte atinente aos factos narrados, seria inconsequente e, por isso, o julgamento seria acto inútil.
Não obstante, pois, todo o cuidado posto no respeito dessas exigências, a expressão “manifestamente infundada” não deixa de ter, como subjacente, a ausência clara de fundamento, seja por não conter a identificação do arguido, seja por ausência de factos que suportem a acusação, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, seja, ainda, porque foi omitida a indicação das disposições legais e, como tal, definindo-se como aquela que, pelos seus próprios termos, é, desde logo, evidente que não pode vir a ser julgada procedente.
O que se pretende com essas exigências é, afinal, que, em qualquer circunstância, o exercício do contraditório e as garantias de defesa não sejam esquecidos, de molde a que, designadamente no que ora se suscita, a narração de factos (para a consequente subsunção criminal) seja claramente entendível, lógica e esclarecedora para que o arguido possa deles conhecer e dos mesmos defender-se, além de que, naturalmente, esses factos não sejam desprovidos de relevância criminal.
De qualquer modo, é pacífico que os poderes do juiz, no momento do saneamento do processo para os efeitos do mencionado art. 311.º, estão limitados ao conhecimento dos vícios estruturais da acusação, pois, acompanhando Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 790, O conhecimento dos pressupostos processuais tem lugar em face dos factos da acusação , não sendo lícito ao juiz aferi-los em face dos elementos de inquérito, na medida em que, a não ser assim, isso implicaria análise indiciária, violadora do princípio acusatório.
Identicamente, daí decorre que o juiz só deva usar da prerrogativa de rejeição da acusação quando seja, de todo, inviável a condenação do arguido.
E não sofre dúvida que o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 791).
Assentes os parâmetros a atender, tendo em conta os imputados crimes de injúria e difamação, cujos tipos são definidos, respectivamente, nos arts. 181.º e 180.º do Código Penal, resulta que se exige, para a sua prática, que a actuação seja dolosa, o que significa que haja de integrar o conhecimento e a vontade do agente na realização dos crimes.
Assim, é necessário que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias dos factos que preenchem esses tipos objectivos de ilícitos, isto é, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos dos mesmos, e adequado a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter de ilícito (elemento intelectual do dolo) e com vontade dirigida à sua realização (elemento volitivo do dolo).
Na verdade, ainda que o dolo comporte os factores psíquicos do agente, a representação e fixação dos fins do crime, a selecção dos meios e a aceitação dos resultados da acção, cuja prova assenta, normalmente, em inferências extraídas de factos materiais, analisados à luz das regras da experiência comum, suportando, pois, tradução sucinta e, até, conclusiva, não pode prescindir-se da sua alegação concreta, sob pena de se assumir como um dolus in re ipsa e, assim, de não ser susceptível de integrar factos conducentes à aplicação de uma pena ou uma medida de segurança.
Como sublinhou Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2.ª edição, pág. 379, também estes elementos (atinentes ao dolo) cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.
Sem que se descure a jurisprudência fixada pelo mencionado Acórdão do STJ n.º 1/2015, de 20.11.2014, in D.R. 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015, de que “A falta de descrição na acusação dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”, ali se descortinando, na fundamentação, que Entre os elementos relevantes que dão sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos. Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.
Além de que, não obstante a situação em análise não se verifique em audiência de julgamento, tal jurisprudência não pode deixar de se aplicar quando, como aqui sucede, anteriormente, em sede do saneamento do processo por via daquele art. 311.º, se constate a falta de elementos da acusação que inviabilize o prosseguimento dos autos.
Ora, revertendo ao concreto e por referência à acusação do recorrente, esta resume-se à imputação à arguida de expressões tidas por objectivamente ofensivas da sua honra e consideração, sejam, a ele dirigidas directamente, por forma verbal, sejam, para terceitos, através de mensagens, via redes sociais e “sms”.
E com pertinência para a questão em análise, os factos da acusação particular invocados pelo recorrente:
7º.
Além dos danos que causou ao veículo do aqui assistente, na sua casa e agressões físicas, a arguida com as palavras que proferiu, denegriu a imagem do assistente; tudo ocorreu não só na presença do seu filho menor, mas também, para todos aqueles que quisessem ouvir – e ouviram – na vizinhança do assistente.
8º.
Saliente-se que os menores, filhos de ambos, enquanto a arguida dizia as aludidas palavras aos berros no meio da rua, o menor de 8 anos, assustado, só pedia para ir para casa dormir; mas nem isso demoveu a arguida de continuar naquele espalhafato; aliás e após o conflito a preocupação do filho menor mais velho – e até a vergonha e humilhação que possa ter sentido – é refletida no pedido que fez ao Assistente para que dispusessem de uma ordem de restrição para que a arguida, sua mãe, não pudesse voltar ao local e ter os comportamentos aqui descritos.
13º.
Ora, tal comportamento como é evidente deixou o Assistente muito preocupado com o que pudessem achar da sua pessoa, tal como, se sentiu completamente invadido da sua vida privada com o uso da sua imagem, uma vez que, a aqui arguida não se limitou a dar a sua opinião, ainda que bastasse para denegrir a imagem do assistente, mas usou a sua fotografia.
17º.
Todo o supra descrito é feito deliberadamente e em frente a terceiros – em frente aos filhos de ambos –, sem que o Assistente dê azo a tal; as palavras ofensivas e os textos escritos pela arguida são deliberados e têm e potenciam que possam ter as consequências que a arguida pretende: que todos acreditem no que ela diz.
Deste modo, na acusação, não se usou a forma tabelar, muitas vezes utilizada, que a arguida “agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”, mas daí não decorre falta/insuficiência de narração dos elementos subjectivos, uma vez que essa forma é eminentemente conclusiva e não serve para, sem mais, suprir a visada narração.
O que interessa verdadeiramente é aquilatar se esses elementos subjectivos se patenteiam na acusação de modo a serem entendíveis e, como tal, susceptíveis de compreendidos e discutidos pela defesa, e não o acolher de perspectiva formalista que redunde em restringir a apreciação de quem acuse, desligada, aliás, do sentido de justiça que, em qualquer caso, deve estar presente.
Por isso, afigura-se que a acusação do recorrente, que não tem de ser uma peça formalmente imaculada, cumpre os desideratos exigidos na vertente subjectiva dos ilícitos imputados.
Com efeito, o descrito no facto 17.º, ao aludir a que Todo o supra descrito é feito deliberadamente e em frente a terceiros as palavras ofensivas e os textos escritos pela arguida são deliberados e têm e potenciam que possam ter as consequências que a arguida pretende, consente, sem esforço, a percepção do elemento volitivo do dolo.
Por seu lado, no que tange ao elemento intelectual do dolo, além de se descortinar, identicamente, desse facto 17.º, ao mencionar, como referido, têm e potenciam que possam ter as consequências que a arguida pretende e, ainda, que todos acreditem no que ela diz, resulta como que implícito a toda a narrativa, reflectindo, esta, sentido de que a arguida agiu com conhecimento da relevância dos seus actos, denotando, na sua multiplicidade, serem perfeitamente direccionados ao recorrente, identificando-o, e mormente, na presença dos filhos e perante terceiros que lhe eram, também, próximos (namorada e mãe), não se podendo dissociá-los de que, inevitavelmente, o atingiam, dentro da normal valoração que se detecta do que expressou, com os efeitos práticos de quem sabia o que fazia.
Aliás, não existe qualquer aspecto que legitime que outro tivesse sido o conhecimento e representação da arguida ao proferir e ao escrever as expressões em causa.
Tanto basta, minimamente, para não sustentar, contrariamente ao despacho recorrido, a ausência daquele elemento do dolo.
Ainda, quanto à verificada ausência expressa do conhecimento, pela arguida, da proibição legal, cumpre salientar, acompanhando citação do recorrente, reportada ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.02.2005, no proc. n.º 0445385, in www.dgsi.pt, isso é indispensável sempre que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal, o que não sucede com a relevância reconhecida à honra e à consideração protegidas pelos imputados tipos legais, além do mais, integrados no denominado direito penal clássico.
A rejeição da acusação, ao abrigo daquele art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), não se afigura, pois, correcta, dentro das considerações que ficaram explicitadas e dada a circunstância de que o julgador deve apenas usar dessa prerrogativa quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento.
In casu, resultando dos princípios da lógica racional que o apontado elemento subjectivo surja inerente à prática dos factos, no conjunto, imputados, seria cominação demasiadamente pesada em vista dos interesses que se impõe proteger, o mesmo é dizer, corresponderia a fazer prevalecer formalidade, contendendo com a desejável realização material da Justiça.
Tanto mais que a alegação dos aspectos suscitados, mesmo que expressa de diferente forma, sempre acabaria por traduzir-se como tendencialmente conclusiva, nada acrescentando aos acontecimentos que a acusação deixou reflectidos.
Como tal, a interpretação acolhida no despacho, por se reconduzir a radical consequência da rejeição da acusação sem motivo bastante, não merece ser sufragada.
Finalmente, a propósito de que o recorrente, no âmbito da rejeição parcial da acusação do Ministério Público, considere que não se concede que a acusação do MP altere substancialmente os factos; aliás, o MP acusa pelos mesmos factos e por outros, estando em causa nos presentes autos e a alteração feita é uma alteração não substancial, uma vez que não existiu uma transformação do quadro factual explanado na acusação particular, desde logo se sublinhe que se defronta com a ilegitimidade para, nessa parte, recorrer.
Na verdade, ao recorrente, como assistente, apenas assiste legitimidade para recorrer de decisões contra ele proferidas (art. 401.º, n.º 1, alínea b), do CPP) e, neste sentido, independentemente da posição que o Ministério Público assuma perante a dedução da acusação particular, nos termos do art. 285.º, n.º 4, do CPP (“O Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles”), sempre só o Ministério Público, directamente, se poderá haver como afetado pelo despacho recorrido, quando rejeitou, como referido, a sua acusação.
De qualquer modo, a aceitação da acusação particular, pelos fundamentos que se deixaram explanados, não pode deixar de se repercutir, atentas as razões subjacentes, naquela acusação do Ministério Público, na medida em que a rejeição desta se deveu, unicamente, à suscitada problemática de suprimento dos elementos subjectivos dos imputados crimes de injúria e difamação, que se consideraram, agora, contidos na acusação particular.
Não, porém, assente em que, se assim não fosse, e contrariamente à perspectiva do recorrente, não existisse, através desse suprimento, alteração substancial dos factos, já que, a não se configurar, na acusação particular, narração conducente aos elementos subjectivos dos ilícitos, tal significaria a inexistência de crimes e, por isso, a sua inserção na acusação do Ministério Público corresponderia a fazer valer crimes diversos, em razão do disposto no art. 1.º, alínea f), do CPP, o que estaria vedado por força daquele n.º 4 do art. 285.º.
Assim, nos termos do art. 403.º, n.º 3, do CPP, cumpre, sim, extrair a consequência de que, no condicionalismo apontado, a acusação do Ministério Público, na parte que foi rejeitada, deva, também, ser recebida.
*
3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente e, assim,
- revogar o despacho recorrido, determinando que seja substituído por outro que, acolhendo o recebimento da acusação particular, bem como da acusação do Ministério Público, pelos factos atinentes aos imputados crimes de injúria e difamação, além do pedido de indemnização civil formulado, designe data para audiência de julgamento.

Sem custas.
*

Processado e revisto pelo relator.

26.Outubro.2021
Carlos Jorge Berguete
João Gomes de Sousa