Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
990/14.6TBSSB.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
NÃO USO
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - Em face da redacção do art.º 1083.º, n.º 2, do CC, a simples alegação e prova de factos, à primeira vista, subsumíveis em qualquer uma das situações exemplificativamente enunciadas, pode não bastar para o imediato e indispensável preenchimento da cláusula geral do n.º 2 do artigo, que exige um incumprimento qualificado, incumbindo ao senhorio, autor na acção de despejo, o ónus da alegação e da prova, nos termos gerais do artigo 342.º do CC, de factualidade subsumível, não apenas nas diferentes alíneas do n.º 2 mas também na cláusula geral constante da 1.ª parte deste número.
II - A invocação e prova do não uso do locado, por mais de um ano, sem que ocorra nenhuma situação enquadrável numa das “causas de justificação” consagradas no n.º 2 do artigo 1072.º, preencherá, em princípio, o referido standard de incumprimento grave, justificativo da resolução do contrato.
III - A conclusão de que não existe uso ou residência no locado não depende de se demonstrar que ali não se praticam todas as actividades ditas normais, que habitualmente se encontram elencadas nas petições de acções deste tipo, mas sim que o arrendatário não tem no local o centro da sua vida.
IV - Provado que o Réu e o Chamado padecem de uma incapacidade permanente geral avaliada em 71 pontos, que implica que se encontram em situação de incapacidade para autonomamente exercerem as tarefas diárias necessárias à sua sobrevivência, nomeadamente no que respeita à própria alimentação, tarefas de limpeza da habitação e higiene pessoal, sendo a sua irmã quem providencia pelo bem-estar dos mesmos, auxiliando-os nos seus cuidados e tarefas do quotidiano, o facto de esses cuidados serem, por regra, prestados em sua casa, não inculca que exista um “não uso do locado”, quando aqueles ali continuam, pelo menos, a pernoitar, ou seja, a ter no locado o centro de vida que lhes é ainda possível fazer com a autonomia de que dispõem.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 990/14.6TBSSB.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. BB e CC instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra DD, pedindo que:
a) seja declarado extinto o contrato de arrendamento em vigor entre as Autoras e o Réu, pelo exercício do direito de denúncia com fundamento na realização de obras de remodelação/restauro profundas que obrigam à desocupação do locado;
b) seja o Réu condenado a entregar o locado às Autoras livre de pessoas e bens;
c) seja fixada sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829.º A do Código Civil, no montante diário de 100,00 euros por cada dia que o Réu não proceda à entrega do locado.
Em fundamento, alegaram, em suma, que por carta registada com aviso de recepção comunicaram ao Réu a denúncia do contrato de arrendamento, cujo direito ao arrendamento lhe adveio por morte de seu pai, tendo em vista operação urbanística que obriga à desocupação do locado.
Acontece que, não obstante o contrato estar extinto desde 31 de Maio de 2014, o Réu não procedeu à sua entrega na data que estava obrigado a fazê-lo, nem posteriormente, mantendo-o indevidamente na sua posse até à presente data.
Mais invocaram que Autoras e Réu não estão de acordo quanto ao realojamento, sendo que as Autoras apenas admitem o pagamento da indemnização, no montante de 1.490,66 €, correspondente a 1 ano de renda de acordo com o disposto nos artigos 26º, nº 4, alínea b) e 35º, alínea a) e b) da Lei n.º 6/2006 com as introduções introduzidas pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, cujo pagamento será efectuado na data da entrega do locado.

2. Regularmente citado, o réu contestou arguindo a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, invocando que o arrendamento foi também transmitido ao seu irmão EE; e alegando que a denúncia do contrato não pode produzir efeitos uma vez que o Réu e o seu irmão sofrem de incapacidade superior a 60 %, estando as Autoras obrigadas a providenciar pelo respectivo realojamento num imóvel com e em condições análogas às do actual locado.
Caso assim não se entenda, requer que seja diferido o prazo para a desocupação do locado, por um prazo não inferior a 3 meses.

3. Notificadas para sanar a excepção dilatória de ilegitimidade passiva vieram as Autoras requerer a intervenção principal provocada de EE, incidente que foi admitido, tendo o mesmo sido citado nos termos do artigo 319.º do CPC.

4. As autoras apresentaram ainda articulado superveniente, invocando que atento o elevado estado de degradação do imóvel, tiveram conhecimento em Agosto de 2016, que, pelo menos desde 28.09.2013, o Réu e o Chamado não residem no imóvel.
Com esse fundamento, pretendem que seja decretada a cessação do contrato de arrendamento, por resolução, e que o Réu e o Chamado sejam condenados a desocupar o locado e a entregá-lo às Autoras livre e devoluto de pessoas e bens.

5. Dispensada a audiência prévia, procedeu-se ao saneamento do processo, tendo sido fixado o valor da acção, identificado o objecto do litígio, e elencados os temas de prova.

6. Realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção improcedente, e absolvendo o Réu e o Interveniente dos pedidos formulados.

7. Inconformadas, as Autoras apelaram, formulando as seguintes conclusões[3]:
«3. As Recorrentes consideram incorrectamente julgados, impugnando-se desde já a decisão no que a esses pontos concerne, ou seja, os pontos 2º e 3º do Articulado Superveniente, da matéria de facto dada como não provada, que deviam ter sido dados como provados.
4. Mais consideram que devia ter sido dada como provada a seguinte matéria factual:
a) O Réu e o Chamado tomam as suas refeições em casa da sua irmã, Fernanda L…, facto que se verifica desde a data do óbito do pais do Réu e Chamado, facto que se verificou há 16 anos.
b) O Réu e o Chamado fazem a sua higiene pessoal em casa da sua irmã, Fernanda L…, onde tomam duche, facto que se verifica desde a data do óbito do pais do Réu e Chamado, facto que se verificou há 16 anos.
c) O Réu e o Chamado não recebem amigos e visitas, facto que se verifica desde a data do óbito dos pais do Réu e Chamado, facto que se verificou há 16 anos.
e) As roupas do Réu e do Chamado são lavadas e passadas em casa da irmã destes, Fernanda L…, facto que se verifica desde a data do óbito dos pais do Réu e Chamado, facto que se verificou há 16 anos.
5. Consideram as Recorrentes que, relativamente a matéria infra indicada devia ter sido dada como provada porque resulta dos seguintes meios probatórios: (…)
12. Com especial relevância para o caso em apreço atender-se à demais prova considerada como provada, designadamente, a atinente ao estado de conservação do locado (5º; 8º da P.I., 28º; 29º e 30º da Resposta) bem como situação de incapacidade do Réu e Chamado, que não lhe permite gerir as suas pessoas e bens sem o apoio diário da sua irmã Fernanda L…, necessitando dos cuidados permanentes desta.
13. É irrefutável e indiscutível que ficou demonstrado que o Réu e o Chamado não habitam no locado há mais de um ano. Que ali não tomam as suas refeições, não fazem a sua higiene pessoal, não descansam, não recebem visitas, não lavam nem passam a sua roupa e não pernoitam.
14. A matéria factual que deve ser considerada como provada, conjugada com a demais prova produzida, faz com que estejam reunidos os pressupostos fácticos que permite a aplicação ao caso em apreço do disposto no artigo 1083º nº1 e 2 al. d) do Código Civil, por referência ao disposto no artigo 1072º do mesmo diploma legal, já que, efectivamente, o Réu e o Chamado não usam o locado há mais de um ano.
17. Ao não ter decidido da forma como é pugnada no presente recurso, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1072º, 1083º nº1 e 2 al. d) e 1084º nº2 todos do Código Civil».

8. O Réu apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as únicas questões a apreciar no presente recurso, consistem em saber se deve ser modificada a matéria de facto nos termos pretendidos pelas Apelantes; e, em caso afirmativo, se os factos provados são suficientes para sustentar a resolução do contrato de arrendamento, por não uso do imóvel arrendado, já que as Autoras restringiram o objecto da apelação a esta sua pretensão, aceitando consequentemente a decisão que absolveu o Réu e o Interveniente da pretendida cessação do contrato de arrendamento, por denúncia.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados e não provados os seguintes factos, que se transcrevem:
«A. FACTOS PROVADOS
(…) DA PETIÇÃO INICIAL
1º. Os Autoras são donas e legítimas proprietárias do prédio urbano, sito em Sesimbra, na Rua …, n.º …, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo … da freguesia de Sesimbra (Santiago), descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob a ficha nº …/20140130.
2º. Sobre o referido prédio incide um contrato de arrendamento a favor do Réu, cujo direito ao arrendamento lhe adveio por morte de seu pai, Ernesto L…, que por contrato verbal tomou de arrendamento o imóvel ao avô das Autoras, Pedro G… em data anterior a 1990. (…)
3º. Por carta registada com aviso de recepção remetida em 22 de Novembro de 2013, recebida a 26 de Novembro de 2013, as Autoras comunicaram ao Réu a denúncia do referido contrato com efeitos a partir de 31 de Maio de 2014, tendo em vista a operação urbanística que obriga à desocupação do locado.
4º. A referida comunicação foi acompanhada do descritivo da operação urbanística, contendo o descritivo das obras a realizar. A saber:
a) Reparação do sistema predial de distribuição de água, por via da substituição de canalização.
b) Reparação das instalações eléctrica e gás, por via da sua substituição.
c) Reparação das paredes interiores, quanto ao seu revestimento e pintura (Picar, rebocar e pintar).
d) Levantamento e colocação de novo revestimento de pavimento interior.
e) Reparação de tectos interiores quanto ao seu revestimento e pintura.
f) Substituição de equipamento sanitário.
g) Substituição de equipamento na cozinha, bem como reparação e substituição do revestimento das paredes.
h) Instalação de sistema de ventilação.
i) Colocação de portas interiores bem como substituição/colocação de aduelas e/ou guarnições.
5º. Não só o locado necessita da realização de tais obras como só são possíveis de realizar com o prédio livre de pessoas e bens.
6º. As obras a realizar no locado estão isentas de controlo prévio, uma vez que se tratam de obras de alteração no interior do locado que não implicam modificação na estrutura de estabilidade, das cérceas, da forma da fachada e da forma do telhado e cobertura.
7º. A construção do imóvel é anterior a 1951.
8º. Está no estado de conservação que se atesta por via da Ficha de Avaliação do Estado de Conservação.
9º. Autoras e Réu não estão de acordo quanto ao realojamento.
DA CONTESTAÇÃO
10º. À data da morte de Ernesto A… ocorrida em 15.09.2002, pai do Réu e primitivo arrendatário, foi comunicada às Autoras, a intenção de suceder no arrendado por parte do Réu e do seu irmão, EE, enquanto descendentes do primitivo arrendatário, que desde sempre habitaram com este no locado.
11º. Para tanto, o Réu manifestou a intenção de suceder no arrendamento, tendo-o feito por cartas registadas com aviso de recepção enviadas às Autoras, em 29/11/2002 e 19/12/2002, tendo a primeira sido devolvida com a menção “não atendeu”, sendo a segunda recepcionada pelas Autoras em 31/12/2002.
12º. Sendo que, pelas referidas missivas, mais comunicou o Réu que, à data da morte do seu pai, no imóvel arrendado habitavam com este os seus dois filhos, DD, ora Réu, e EE.
13º. Facto que foi igualmente atestado pela Junta de Freguesia de Santiago do Concelho de Sesimbra, em documento datado de 22/11/2002 e remetido pelo Réu às Autoras como anexo das cartas supra referidas.
14º. Por carta datada de 20.12.2013 e recebida pelas Autoras em 31.12.2013 o Réu informou que o locado era habitado pelo Réu e pelo irmão, EE, e que ambos sofriam de deficiências que, com grande probabilidade, lhes causariam uma incapacidade de grau elevado, tanto mais que se encontravam reformados por invalidez.
15º. Tanto o Réu quanto o irmão, EE, se encontram numa situação de grande fragilidade.
16º. A situação é mesmo de dependência no que respeita à prática das suas necessidades diárias de alimentação e higiene pessoal.
17º. Sendo certo que ambos se encontram reformados por invalidez, em consequência de problemas do foro neuropsicológico.
18º. Pelo que, é a irmã de ambos, Fernanda L…, que os apoia e lhes presta tais cuidados, diariamente.
19º. Consta de atestado médico de incapacidade multiusos datado de 28.10.2014 que EE é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 70%.
20º. O Réu e o Chamado padecem de uma incapacidade permanente geral avaliada em 71 pontos, a qual já existia à data de 31.05.2014.
21º. O Réu e irmão vivem em circunstâncias especialmente precárias e difíceis, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista social.
22º. Tanto o Réu quanto o irmão estão reformados por invalidez, sendo que o primeiro aufere a quantia mensal de € 366,63, com duodécimo do 13.º mês e o segundo aufere a quantia de € 442,25, com duodécimo do 13.º mês.
23º. Ambos se encontram em situação de incapacidade para autonomamente exercerem as tarefas diárias necessárias à sua sobrevivência, nomeadamente no que respeita à própria alimentação, tarefas de limpeza da habitação e higiene pessoal.
24º. Pelo que, é a irmã do Réu e de EE, que providencia pelo bem-estar dos mesmos, auxiliando-os nos seus cuidados e tarefas do quotidiano.
DA RESPOSTA
25º. Por carta datada de 27.09.2002, o Réu, exerceu o seu direito ao arrendamento, juntando para o efeito, cópia do seu bilhete de identidade.
26º. Foi na sequência da missiva referida 24º dos factos provados que o Réu foi instado a juntar os documentos autênticos ou autenticados de acordo com o artigo 89º, nº 2 do R.A.U. (Decreto- Lei nº321-B/90 de 15 de Outubro com as alterações introduzidas pela Lei nº6/2001 e 7/2001 de 11/5 - em vigor à data da transmissão do arrendamento ao Réu por morte do seu pai).
27º. Vindo posteriormente a fazê-lo através da missiva de 31.12.2002, mencionada em 11º dos factos provados.
28º. A canalização do imóvel, designadamente na cozinha, está impregnada de ferrugem.
29º. Aliado ao avançado estado de degradação dos electrodomésticos, designadamente, máquina de lavar roupa, esquentador e frigorífico.
30º. A situação descrita em 27º e 28º supra já se verificava em data anterior a 28.09.2013.
DO ARTICULADO SUPERVENIENTE
31º. Em Agosto de 2016, após a testemunha Cátia B… ter batido na porta do imóvel, foi interpelada por uma vizinha do prédio da frente que lhe disse “Aí não mora ninguém”.
B. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se mostram provados os seguintes factos:
DA RESPOSTA 1º. O valor da renda mensal é de € 8,00 (oito euros).
DO ARTICULADO SUPERVENIENTE
2º. Desde Agosto de 2016 que o imóvel está permanentemente fechado, sem sinais de ser habitado, designadamente por não se encontrarem luzes acesas e ainda com abundantes panfletos de publicidade, em avançado estado de degradação, na porta.
3º. Do mesmo modo, o Réu e o Interveniente deixaram de receber no locado os seus amigos e visitas, tal como deixaram de passar nele os seus momentos de descanso e lazer».
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Da impugnação da matéria de facto
Resulta das respectivas alegações que as Recorrentes consideram incorrectamente julgados os acima descritos pontos 2.º e 3.º da matéria de facto não provada constante do seu articulado superveniente, e entendem que devia ter sido dada como provada a factualidade que indicam, concluindo, no essencial, que «a matéria factual que deve ser considerada como provada, conjugada com a demais prova produzida, faz com que estejam reunidos os pressupostos fácticos que permite a aplicação ao caso em apreço do disposto no artigo 1083º nº1 e 2 al. d) do Código Civil, por referência ao disposto no artigo 1072º do mesmo diploma legal, já que, efectivamente, o Réu e o Chamado não usam o locado há mais de um ano».
Conforme decorre do preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição.
No caso vertente, mostrando-se cumpridos tais ónus, incumbe a este Tribunal proceder à requerida reapreciação da prova.
Como é sabido, nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[5].
Ora, a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
Ademais, relativamente à reapreciação do julgamento de facto pela Relação, cumpre ainda ter presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento - atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto -, evidenciados a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso que, também na respectiva fundamentação a Relação tem de motivar, ou seja, dizer as razões que determinaram o respectivo juízo probatório, para aquilatar se tais elementos impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados. Para tal, e quanto à prova gravada, não basta ouvir os depoimentos ou declarações indicados pelas partes, impondo-se nesse juízo atentar ainda naqueles em que o julgador de primeira instância fundou a respectiva convicção, porquanto só assim se poderá seguramente concluir se os meios de prova indicados pelo Recorrente impõem ou não decisão diversa da recorrida.
Tendo presente o referido, no caso em apreço, começaremos por reapreciar a matéria de facto respeitante aos dois pontos do articulado superveniente que foram considerados não provados, relativamente aos quais o Tribunal a quo fundamentou a respectiva convicção afirmando que «Deram-se como não provados os factos 2º e 3º, uma vez que, a prova do facto 31º não é suficiente para dar como não provado que o Réu e Interveniente não residem no locado. Acresce que a prova de tal facto competia às Autoras, nos termos do artigo 342º, nº 1 do Código Civil, que não lograram dele fazer prova, tanto mais que, o Réu logrou, como decorre da exposição supra fazer prova em sentido contrário».
Consideram as Recorrentes que a matéria infra indicada entre «aspas» devia ter sido dada como provada porque resulta dos meios probatórios que sucessivamente indicam.
Assim, entendem as Apelantes que devia ter sido dado como provado que «Desde Agosto de 2016 que o imóvel está permanentemente fechado, sem sinais de ser habitado, designadamente por não se encontrarem luzes acesas e ainda com abundantes panfletos de publicidade, em avançado estado de degradação, na porta», invocando nesse sentido o depoimento da testemunha Cátia B…, na audiência de discussão e julgamento de 13/02/2019, registado com início pelas 11:08:07 e termo pelas 11:15:13 horas, em que esta refere expressamente que: “Há cerca de quatro anos passa 15 dias de férias em Agosto em Sesimbra e desde aí que verifica que no locado não mora ninguém, uma vez que as portadas da porta principal, único ponto de luz do imóvel, estão sempre da mesma forma, ou seja, permanentemente fechadas. (nas concretas passagens 02:45 a 04:20). Esclareceu esta testemunha que a porta apresenta teias de aranha que indiciam que não é aberta (nas concretas passagens 04:50 a 05:02). Mais esclareceu que das vezes que lá passou à noite nunca viu qualquer luz no interior do locado, estando sempre a porta da mesma forma (nas concretas passagens 05:45 a 06:08)”.
Do mesmo modo é certo que a irmã do Réu e do Interveniente, a testemunha Fernanda L…, referiu expressamente que os seus irmãos, Réu e Chamado não recebem pessoas em casa (nas concretas passagens 04:03 a 04:11), e bem assim, que as facturas da água de fls 272 a 290 apresentam consumos médios de 0m3.
Mas, na concreta situação em presença pode do antedito retirar-se a ilação pretendida pelas Apelantes de que são sinais reveladores que a casa não é habitada?
Pensamos que não.
Em primeiro lugar, porque os depoimentos das testemunhas não são sopesados isoladamente, mas no seu conjunto, e ainda em conjugação com a prova documental existente, tudo apreciado de acordo com as regras da experiência comum, por seu turno enquadradas com as concretas circunstâncias do caso em presença.
Significa o que vimos de dizer, que ouvidos os depoimentos das testemunhas indicadas, e ainda da tia paterna dos Réu e Chamado, Maria L…, e da vizinha Maria da Conceição P…, conjugados com as fotografias juntas aos autos, especialmente com aquelas que foram juntas com o requerimento do próprio chamado, de 03.07.2015, por serem mais visíveis, articuladas ainda com o depoimento do Engenheiro César O… - perito que realizou o relatório de avaliação do estado do imóvel -, e com este documento, e tudo sopesado tendo como enquadramento o relatório médico junto em 04.07.2017, e as facturas, não só de consumo de água mas também de electricidade, juntas com o requerimento de 24.02.2019, a nossa convicção é a de que efectivamente o Réu e o Chamado, continuam, pelo menos, a dormir no local arrendado.
Vejamos.
A testemunha Cátia B… referiu realmente o antedito, mas disse igualmente que se desloca a Sesimbra em Agosto para o gozo de 15 dias de férias, altura em que passa no local porque vai a um supermercado próximo do arrendado. Sabendo do litígio, bateu à porta em duas ocasiões. No primeiro ano (2016), aguardou e ninguém lhe respondeu, tendo uma vizinha (não identificada) afirmado o que consta provado em 31., e no ano seguinte, ninguém lhe respondeu. Referiu igualmente que nunca viu sinal de movimento na casa, nem a cortina da porta aberta ou luz acesa, referiu-se à existência de teias de aranha na porta mas não à existência de publicidade acumulada. De igual modo o Senhor perito, perguntado sobre se do que viu aquando da deslocação ao local (2013), lhe parecia que ali morava alguém, referiu “se habitava, não devia habitar porque a casa não tinha condições de uso”.
Apreciado ainda o relatório que esteve subjacente à comunicação de denúncia para a realização das obras necessárias no locado, acima descritas na matéria de facto, para além do estado de degradação genérico da casa, com humidade nas paredes (fotos 4, 5), verificamos que o esquentador no estado em que se encontra certamente não funciona (foto 19), estavam fios de electricidade pendurados, e descarnados (foto 24 - que levaram até o senhor perito a alertar para o perigo de incêndio que o estado de degradação da instalação eléctrica representava), e a cozinha apresenta um estado dificilmente compaginável com um uso regular da mesma (foto 18). Porém, podemos ver que no wc, igualmente com aspecto muito degradado (fotos 11 e 12) está uma toalha pendurada. Igualmente as fotos juntas pelo chamado com o requerimento de 03.07.2015 evidenciam o mau estado da cozinha, compatível com a sua não utilização regular, isto é, a bilha de gás não tem sequer ligação, a máquina de lavar roupa tem muita ferrugem, o fogão está tapado, o frigorífico apresenta ferrugem e não aparenta sinais de funcionamento já que não tem qualquer alimento.
Apesar do estado em que a casa se encontra, vemos da documentação junta que o réu e chamado mantêm consumos de electricidade e de alguma água (3m3) constam no consumo real antes da média, os quais se nos afiguram compatíveis com a descrição da sua vida efectuada pela respectiva irmã, e que tem suporte no relatório médico acima indicado.
Na verdade, tanto a irmã, Fernanda L…, como a tia Maria L…, com 83 anos, e a vizinha, Maria da Conceição, de 54 anos de idade, referiram que o réu e chamado ali vivem desde que nasceram, explicando a tia, que o irmão para ali foi morar quando casou e os 3 filhos nasceram e viveram no local. O réu e o chamado, têm o grau de incapacidade elevado acima descrito, que motivou a sua reforma, e igualmente a transmissão do direito ao arrendamento aquando do falecimento do primitivo arrendatário, pai de ambos. Neste quadro, é perfeitamente verosímil a versão de vida trazida aos autos pela irmã de ambos, que explicou que desde o falecimento do pai, há cerca de 15 anos (mais concretamente em 15.09.2002), é ela quem faz as refeições para os irmãos em sua casa, lhes leva a roupa para lavar e passar, sintetizando as suas rotinas diárias na casa, como reduzidas praticamente à pernoita de ambos na habitação e do irmão mais velho (o réu), também após o almoço, a ver televisão. Explicou também que os irmãos não recebem visitas (o que se nos afigura perfeitamente plausível se tivermos presente o estado da casa e a doença de que padecem), o mais novo ainda sai de tarde e vai aos cafés e fica por vezes em sua casa quando está pior dos problemas respiratórios, mas quando está melhor volta para casa. O mais velho fica sempre em casa, e normalmente está fechado em casa, não tem sequer por hábito abrir a cortina da porta – que é a única abertura para a rua – nem sair e não abre a porta a ninguém porque é surdo (está comprovado no relatório médico).
As únicas pessoas que, para além deles, entram no arrendado e para isso têm a chave, são a irmã e a tia, para fazerem a limpeza da casa, e, por vezes, a irmã leva-lhes ali o jantar. Se nos pareceu que o depoimento da tia e da vizinha deram conta de um uso da casa que, tudo indica, o réu e o chamado não fazem (por exemplo, tomarem ali duche - quando a irmã referiu que o mesmo estava avariado -, confeccionarem ali pequenas refeições, etc.), já se nos afigurou credível que ali durmam, comam pontualmente algo que venha feito, retirem água da torneira da cozinha para beberem (está uma garrafa colocada na mesma), e usem o wc para o estritamente necessário.
Pelo exposto, e tendo ainda presente que o ónus da prova da factualidade constante do articulado superveniente, cuja reapreciação é pretendida pelas Apelantes, sobre si impendia, a dúvida sobre a realidade de tais factos sempre seria resolvida contra as mesmas, em face do que dispõe o artigo 414.º do CPC.
Finalmente, não se vislumbra o interesse de aditar a factualidade indicada pelas Apelantes, na qual nada se refere a respeito da dormida no locado, e que, na essência, já consta provada em 15 a 24, porquanto não se vê qual a relevância de não ser prestado tal apoio no locado, se o mesmo continua a ser usado nos termos acima descritos.
Tudo visto, não se verifica uma incorrecta apreciação pela primeira instância da prova produzida, mas antes uma adequada valoração da mesma que, por isso, se mantém nos termos em que foi assente como provada e não provada, improcedendo a sua pretendida modificação.
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III.2.2. - Da resolução do contrato de arrendamento
As autoras intentaram a presente acção para que fosse declarado extinto o contrato de arrendamento em vigor, pelo exercício do direito de denúncia com fundamento na realização de obras de remodelação/restauro profundas que obrigam à desocupação do locado. Em articulado superveniente vieram ainda peticionar a cessação do contrato de arrendamento, por resolução, com fundamento no não uso do arrendado.
Atento o disposto nos artigos 1079.º e 1080.º do CC, que regem sobre as formas de cessação do contrato de arrendamento urbano para fim habitacional, e a respectiva imperatividade, o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei, encontrando-se esta matéria «subtraída à disponibilidade das partes, que assim não o podem alterar, excepto no caso da revogação»[6].
Provado o grau de deficiência que afecta tanto o Réu como o Interveniente, na Apelação as Autoras não questionaram o segmento da decisão recorrida que julgou improcedente o indicado pedido inicial, restringindo o recurso ao pedido de resolução do contrato que veio a ser efectuado em articulado superveniente, com o fundamento no não uso do locado.
Porém, mantendo-se inalterada a matéria de facto não provada, adianta-se desde já que a sua pretensão não pode proceder.
Vejamos.
Nos termos dos artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil[7], o contrato de arrendamento é o acordo mediante o qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição, emergindo do mesmo para cada uma delas obrigações, de entre as quais avultam as previstas para o senhorio no artigo 1031.º do CC - de entregar a coisa e assegurar o gozo desta para os fins a que se destina; e para o arrendatário no artigo 1038.º do CC, e em outros preceitos do mesmo diploma, avultando, para o que ora importa, o disposto no artigo 1072.º, com a epígrafe “uso efectivo do locado” cujo n.º 1 estatui que “o arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano”, constituindo o incumprimento deste dever causa de resolução do contrato de arrendamento, em face do disposto no artigo 1083.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CC.
Conforme constitui entendimento que actualmente cremos prevalecente, o artigo 1083.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano[8], prevê um conceito genérico e indeterminado de incumprimento como fundamento da resolução do contrato tanto pelo arrendatário como pelo senhorio, efectuando nas várias alíneas do seu n.º 2 uma enumeração meramente exemplificativa dos fundamentos de resolução pelo senhorio, através do uso de exemplos-padrão[9], desde que, como no corpo do preceito estabelece, se trate de um incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
Assim, em face da redacção do art.º 1083.º, entendemos que a simples alegação e prova de factos, à primeira vista, subsumíveis em qualquer uma das situações exemplificativamente enunciadas, pode não bastar para o imediato e indispensável preenchimento da cláusula geral do n.º 2 do artigo, que exige um incumprimento qualificado, incumbindo ao senhorio, autor na acção de despejo, o ónus da alegação e da prova, nos termos gerais do artigo 342.º do CC, de factualidade subsumível, não apenas nas diferentes alíneas do n.º 2 mas também (e sempre) na cláusula geral constante da 1.ª parte deste número, pese embora situações existam, como a invocação do não uso do locado em que, à partida, a sua verificação objectiva, sem que ocorra nenhuma situação enquadrável numa das “causas de justificação” consagradas no n.º 2 do artigo 1072.º, preencherá o referido standard de incumprimento grave, justificativo da resolução do contrato.
No confronto das alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º com as situações anteriormente reguladas nas alíneas h) e i) do n.º 1 do art.º 64.º do RAU, verificamos que se deixou de prever expressamente como fundamento de resolução do contrato “a falta de residência permanente”, pese embora o conceito não seja desconhecido do legislador, que ao mesmo aludia logo no artigo 14.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2006, a respeito da acção de despejo e no artigo 39.º que se referia ao regime transitório de actualização das denominadas “rendas antigas”.
Assim, não terá sido intenção do legislador eliminar a possibilidade de despejo com fundamento na falta de residência permanente do arrendatário no locado mas sim harmonizar o preceito com o maior espaço para a liberdade contratual que pretendeu introduzir, mormente no que respeita ao fim do contrato (cfr. art.ºs 1027.º e 1067.º do CC), que pode logo ser estabelecido, por exemplo, como habitação não permanente, tanto secundária ou alternada[10], devendo agora as partes estipular com clareza no contrato de arrendamento a finalidade pretendida, sob pena de poderem surgir dificuldades em aplicar o fundamento de resolução previsto no art.º 1083.º, n.º 2, al. d), do CC, incumbindo igualmente ao senhorio, nos casos duvidosos, o ónus de provar que o locado se destina a habitação permanente.
Tem sido entendido que “o conceito de residência permanente pressupõe uma permanência estável e duradoura no local, com instalação do lar, logística e economicamente organizado para centro de vida do próprio e do seu agregado familiar”[11], mas tal nem sequer impede que a mesma pessoa possa ter residências alternadas que ainda assim sejam residências permanentes, isto desde que exista “estabilidade, habitualidade, continuidade e efectividade de estabelecimento em determinados locais do centro da vida familiar”[12].
Em jeito de síntese, da aplicação destas considerações ao caso dos autos, invocado pelas senhorias o direito à resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente do arrendatário no locado, uma vez que tal situação corresponde a um não uso do locado (cfr. art.º 1072.º do CC), e não se questionando que o primitivo arrendamento - do qual tanto senhorias como inquilinos são sucessores -, foi celebrado para habitação permanente, afigura-se-nos ser evidente que as mesmas não lograram demonstrar sequer o “não uso” do imóvel, e muito menos, durante mais de um ano.
Na verdade, sendo certo que o fim contratado é a habitação permanente, o que em regra inculca que no arrendado são realizadas todas as actividades habitualmente associadas à residência num determinado local, como sejam a preparação das refeições, a realização da higiene diária, o pernoitar e receber amigos, não é difícil conjecturar situações - bem diferentes e provavelmente até mais frequentes daquela que é no caso a razão justificativa porque tal ocorre na situação em presença -, em que, mesmo sem as precárias condições de salubridade que esta casa apresenta, e até no polo oposto, os arrendatários não preparem refeições no locado, por exemplo, porque comem em restaurante, não tomem ali o seu banho, por hipótese, porque o fazem no ginásio ou no local de trabalho, e não recebem visitas, por exemplo, porque preferem encontrar-se em outros espaços.
Isto para dizer que a conclusão de que não existe uso ou residência no locado não depende de se demonstrar que ali não se praticam todas as actividades ditas normais, que habitualmente se encontram elencadas nas petições de acções deste tipo, mas sim que o arrendatário não tem no local o centro da sua vida.
Ora, no caso em presença, pese embora a situação de comprovada doença - o Réu e o Chamado padecem de uma incapacidade permanente geral avaliada em 71 pontos, a qual já existia à data de 31.05.2014 -, que implica que se encontram em situação de incapacidade para autonomamente exercerem as tarefas diárias necessárias à sua sobrevivência, nomeadamente no que respeita à própria alimentação, tarefas de limpeza da habitação e higiene pessoal, sendo a sua irmã quem providencia pelo bem-estar dos mesmos, auxiliando-os nos seus cuidados e tarefas do quotidiano.
Assim, o facto de esses cuidados serem, por regra, prestados em sua casa, não inculca que exista um “não uso do locado”, quando o réu e o chamado ali continuam, pelo menos, a pernoitar, ou seja, a ter no locado o centro de vida que lhes é ainda possível fazer com a autonomia de que dispõem.
Pelo exposto, não se verifica o invocado fundamento de resolução do contrato de arrendamento, por não uso do locado, improcedendo ou mostrando-se deslocadas todas as conclusões da apelação, e sendo de manter a decisão recorrida.
Vencidas, as Apelantes, suportam as custas do recurso, na vertente de custas de parte, de harmonia com o princípio da causalidade e o vertido nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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III.3. - Síntese conclusiva
I - Em face da redacção do art.º 1083.º, n.º 2, do CC, a simples alegação e prova de factos, à primeira vista, subsumíveis em qualquer uma das situações exemplificativamente enunciadas, pode não bastar para o imediato e indispensável preenchimento da cláusula geral do n.º 2 do artigo, que exige um incumprimento qualificado, incumbindo ao senhorio, autor na acção de despejo, o ónus da alegação e da prova, nos termos gerais do artigo 342.º do CC, de factualidade subsumível, não apenas nas diferentes alíneas do n.º 2 mas também na cláusula geral constante da 1.ª parte deste número.
II - A invocação e prova do não uso do locado, por mais de um ano, sem que ocorra nenhuma situação enquadrável numa das “causas de justificação” consagradas no n.º 2 do artigo 1072.º, preencherá, em princípio, o referido standard de incumprimento grave, justificativo da resolução do contrato.
III - A conclusão de que não existe uso ou residência no locado não depende de se demonstrar que ali não se praticam todas as actividades ditas normais, que habitualmente se encontram elencadas nas petições de acções deste tipo, mas sim que o arrendatário não tem no local o centro da sua vida.
IV - Provado que o Réu e o Chamado padecem de uma incapacidade permanente geral avaliada em 71 pontos, que implica que se encontram em situação de incapacidade para autonomamente exercerem as tarefas diárias necessárias à sua sobrevivência, nomeadamente no que respeita à própria alimentação, tarefas de limpeza da habitação e higiene pessoal, sendo a sua irmã quem providencia pelo bem-estar dos mesmos, auxiliando-os nos seus cuidados e tarefas do quotidiano, o facto de esses cuidados serem, por regra, prestados em sua casa, não inculca que exista um “não uso do locado”, quando aqueles ali continuam, pelo menos, a pernoitar, ou seja, a ter no locado o centro de vida que lhes é ainda possível fazer com a autonomia de que dispõem.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelas Apelantes.
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Évora, 24 de Outubro de 2019
Albertina Pedroso [13]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

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[1] Juízo de Competência Genérica de Sesimbra - Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Transcrevem-se apenas as necessárias à compreensão do objecto do recurso, mantendo a numeração original.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Cfr. neste sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. LAURINDA GEMAS, ALBERTINA PEDROSO, (ora Relatora), e JOÃO CALDEIRA JORGE, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, Quid Juris, 2009, nota 10, pág. 360. Neste mesmo sentido os autores ali citados na nota 1: TEIXEIRA DE SOUSA, A Acção de Despejo, 2.ª ed., Lex, págs. 48 e 49, e PEDRO ROMANO MARTINEZ afirmando que “No arrendamento urbano, o regime estabelecido para a cessação do contrato tem natureza imperativa (art.º 1080.º do CC), não estando na autonomia das partes alterar o padrão fixado. Excluindo a revogação, que assenta no acordo das partes, não cabe aos contraentes conformar o regime das restantes normas de cessação do vínculo.” - in Da Cessação do Contrato, 2.ª ed., Almedina, pág. 317.
[7] Doravante abreviadamente designado CC.
[8] Doravanete abreviadamente designado NRAU.
[9] Cfr. para mais desenvolvimento quanto às teses em confronto a este respeito, a obra citada na nota de rodapé 6, anotação 2. ao artigo em referência, que seguiremos de perto.
[10] Para mais desenvolvimento, cfr. nota 7 ao artigo 1083.º do CC.
[11] Cfr. Ac. STJ de 12.02.2009, proferido no processo n.º 09A144, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. STJ de 10.20.2002, Revista n.º 2062/02 – 2.ª secção, disponível em www.stj.pt.
[13] Texto elaborado e revisto pela Relatora.