Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1149/22.4T8STB-A.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PARTILHA SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
QUOTA IDEAL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos – artigo 1790.º do CC;
- embora os bens comuns não se transmutem em bens próprios nem o regime de bens se altere por força do divórcio, há que proceder ao confronto do resultado que advém para cada um dos cônjuges da aplicação do regime convencionado ou legalmente fixado com o que se obteria mediante a aplicação do regime da comunhão de adquiridos;
- no caso de o primeiro ser mais favorável do que o segundo relativamente a qualquer um dos cônjuges, a quota do cônjuge beneficiado deverá ser reduzida ao valor da respetiva quota decorrente da aplicação do regime da comunhão de adquiridos, aumentando-se correspondentemente a quota do outro cônjuge.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Requerente: (…)
Recorrida / Requerida: (…)

No âmbito do processo de inventário subsequente ao divórcio para partilha dos bens comuns, foi apresentada Relação de Bens que contempla o seguinte:
Bens Móveis
Verba n.º 1: berbequim, serra elétrica, aparafusadora e diverso material de bricolage, no montante de € 150,00.
Verba n.º 2: Coleção de moedas e selos, no montante de € 100,00.
Verba n.º 3: Recheio da casa de morada de família, no montante de € 6000,00.
Bens Imóveis
Verba n.º 4: Fração autónoma designada pelas letras (…) correspondente ao primeiro andar letra G do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), Lote 2, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…), com o valor patrimonial de € 54.261,90.
PASSIVO
Verba n.º 1: Dívida à Caixa Económica Montepio Geral referente ao contrato de mútuo outorgado para aquisição do imóvel contante da verba n.º 4 da presente relação de bens, no montante de € 38.506,93.

II – O Objeto do Recurso
Os Interessados foram notificados para se pronunciarem sobre a forma à partilha.
O Interessado (…), apelando ao facto de o regime de bens ser o da comunhão geral, mencionando ter sido decretado o divórcio do casal, que todos os bens relacionados fazem parte do património comum do dissolvido casal, que o imóvel relacionado foi por si adquirido em data anterior ao casamento, salientou o regime inserto no artigo 1790.º do CC, nos termos do qual em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.
Então, sustentou que a partilha deve fazer-se segundo o regime da comunhão de adquiridos, não obstante a natureza comum dos bens, comparando-se o valor obtido com o que resulta se a partilha se fizer pelo regime da comunhão geral; caso o valor apurado nesta última exceda o valor da quota de algum dos cônjuges naquela, deverá ser operada a redução correspondente, aumentando correspondentemente a quota do outro cônjuge, procedendo-se então ao preenchimento dos quinhões. Conclui que o valor da sua quota é de € 57.386,90 enquanto que o valor da quota da Requerida é de € 3.125,00, e que ao valor de cada uma delas se há de subtrair o valor da ½ de cada um no passivo, no montante de € 19.253,465.
A Interessada (…) requereu a avaliação do bem imóvel relacionado e não se pronunciou sobre a forma à partilha.
Foi proferido despacho conforme segue:
«Procede-se a inventário para partilha dos bens comuns do casal em consequência do divórcio decretado entre (…) e (…), em que desempenha funções de cabeça-de-casal o primeiro.
Os interessados contraíram casamento em 23/1/1998, com convenção antenupcial, no regime da comunhão geral de bens; embora face ao divórcio seja caso de aplicação do disposto no artigo 1790.º do Código Civil.
O casamento foi dissolvido por decisão da Conservatória do Registo Civil de Palmela proferida em 16/2/2012, e transitada em julgado no mesmo dia.
Há passivo relacionado.
*
Proceder-se-á à partilha da seguinte forma: soma-se o valor dos bens relacionados na relação de bens – cfr. requerimento junto em 3/11/2022, onde se reconhece, e sempre reconheceu o cabeça-de-casal nestes autos que o imóvel, pelo seu valor total, faz parte dos bens comuns do casal, não podendo agora vir o mesmo pugnar pela remoção de tal bem dos bens comuns do casal, considerando-o mero bem próprio seu, por força do disposto no artigo 1790.º do Código Civil, o que se indefere, sendo já intempestivo suscitar tal questão nesta fase processual –, e abate-se o valor do passivo aprovado e reconhecido (artigo 1106.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
O resultado assim obtido será divido em partes iguais (cfr. artigo 1730.º do Código Civil):
- uma dessas partes cabe, a título da sua meação, à interessada (…);
- a outra parte cabe, a título da sua meação, ao interessado (…).
Os quinhões de cada interessado serão preenchidos por acordo (cfr. artigo 1111.º do Código de Processo Civil), ou nos termos do disposto no artigo 1120.º do Código de Processo Civil.
O passivo será pago pelos dois interessados na proporção do respetivo quinhão, ou seja, a meias (cfr. artigo 2098.º, n.º 1, do Código Civil).»

Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação do despacho recorrido. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1 – Conforme ficou demonstrado e em sede de conclusões se passa a sintetizar, o douto Tribunal a quo violou o disposto no artigo 1790.º. Com efeito,
2 – No douto despacho de que ora se recorre o Mmº Juiz a quo decidiu que a partilha deve ser feita somando o valor dos bens relacionados na relação de bens, abatendo a este resultado o valor do passivo aprovado e reconhecido, mais decidindo que o resultado assim obtido será dividido em duas partes iguais, correspondendo uma à meação da interessada e outra igual à meação do cabeça de casal.
3 – Mais entendeu o Mmº. Juiz a quo que o Cabeça de Casal pretendeu remover dos bens comuns do casal o bem imóvel, considerando-o como próprio, embora sempre tenha reconhecido que o imóvel faz parte dos bens comuns do casal.
4 – Salvo o devido respeito, tal entendimento é errado.
5 – O Cabeça de Casal e a Interessada foram casados entre si no regime da comunhão geral de bens,
6 – O bem imóvel relacionado na verba n.º 4 da relação de bens foi adquirido pelo Cabeça de Casal em data anterior ao matrimónio,
7 – Dispõe o artigo 1790.º do Código Civil que “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode receber na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”
8 – Ao indicar a forma à partilha o Cabeça de Casal pretendeu efetuar a partilha nos termos do disposto no artigo 1790.º do Código Civil.
9 – Conforme vertido no douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 02/05/2019, no âmbito do Proc. n.º 712/08.0TMFUN-A.L1-6, “(…) IV – O legislador teve em vista estabelecer o principio de que os cônjuges não podem receber maior valor do que lhes caberia receber se o casamento tivesse sido contraído sob o regime da comunhão de adquiridos, e não subtrair da comunhão da massa de bens comuns os bens que cada um levou para o casamento ou adquiriu, na constância deste, a título gratuito.”
10 – Por aplicação do artigo 1790.º CC, a partilha continua a fazer-se tratando como bens comuns aqueles que o são de acordo com o regime da comunhão geral de bens, pois
11 – O artigo 1790.º rege os termos da partilha, definindo o que cada cônjuge pode receber na sequência da mesma, no entanto, não altera o regime de bens existente.
12 – Os bens que até ao momento do divórcio faziam parte da comunhão mantêm essa natureza jurídica, não a alteram.
13 – Como bens comuns estão sujeitos a partilha e a toda a tramitação do processo de inventário, designadamente, as licitações e o modo de compor o quinhão de cada cônjuge.
14 – A pretensão do Cabeça de Casal não é remover o imóvel do património comum do casal, tanto mais que sempre o relacionou como bem comum,
15 – O que o ora recorrente pretende é que a partilha se faça nos termos previstos no artigo 1790.º do CC.
16 – In casu, o casamento foi celebrado segundo o regime da comunhão geral de bens, pelo que a fração autónoma é bem comum do casal e, por isso, tinha de ser relacionada na relação de bens, independentemente da sua proveniência. Só que,
17 – A fração autónoma foi adquirida pelo Cabeça de Casal em data anterior ao matrimónio (vide certidão predial junta com o requerimento inicial de inventário – ref.ª 94225670) pelo que a partilha tem de ser efetuada observando o disposto no artigo 1790.º do Código Civil.
18 – Como vertido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 14/10/2021, no Proc. 1635/20.0T8VCT.G1, “Para efetuar a partilha aplicando a norma do artigo 1790.º do Código Civil, uma vez apurado o valor que corresponde ao quinhão (meação) de cada um dos cônjuges nos bens comuns a partilhar, tem de se comparar esse valor com aquele que resultaria da sua partilha como se o regime de bens fosse a comunhão de adquiridos; para o efeito simula-se a partilha de acordo com este regime de bens, separando os bens que de acordo com esse regime seriam próprios e encontrando a hipotética quota (meação) de cada um dos cônjuges nos bens que mesmo nesse regime seriam comuns; finalmente, comparando os valores apurados na partilha segundo o regime efetivo e na partilha segundo o regime hipotético, caso aquele valor exceda este, deverá ser reduzido a este valor, aumentando correspondentemente a quota do outro cônjuge, procedendo-se então ao preenchimento dos quinhões.”
19 – Ora, nos presentes autos, a meação da Interessada no regime hipotético da comunhão de adquiridos seria fixada em € 3.125,00, pelo que não pode o Mmº Juiz a quo, salvo o devido respeito, entender que a sua meação da Interessada corresponde a metade do resultado do valor do ativo, abatido o passivo, sob pena de violação do disposto no artigo 1790.º do CC,
20 – Se assim fosse, a Interessada receberia mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado no regime da comunhão de adquiridos.
21 – Pelo exposto, ao decidir que a partilha deve ser feita somando-se o valor dos bens relacionados na relação de bens e abatendo o valor do passivo e dividindo o resultado obtido em partes iguais, correspondendo uma dessas partes à meação da Interessada e a outra à meação do Cabeça de Casal, o douto despacho violou o disposto no artigo 1790.º do CC.»

A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que, nesta fase processual, não pode o Recorrente requerer a remoção do imóvel do rol dos bens comuns, como é sua intenção.

Cumpre apreciar se o despacho determinativo da partilha violou o regime inserto no artigo 1790.º do CC.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os acima versados.

B – A questão do Recurso
Temos sob apreciação o despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados – cfr. artigo 1110.º/2, alínea a), do CPC. Trata-se do instrumento em que, com base nas normas de direito substantivo, se estabelecem as operações a realizar para determinar a quota de cada interessado, embora ainda sem especificação ou concretização dos bens que irão compor cada um dos quinhões.[1] Essas operações concretizam-se subsequentemente no mapa de partilha, conforme estatui o artigo 1120.º/3, do CPC, começando por se determinar a importância total do ativo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim faz-se o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados.
O ponto de partida é o regime de bens que vigorou na pendência da relação matrimonial, a par da relação de bens constante dos autos.
Importa, assim, considerar que os Interessados, divorciados, foram casados no regime da comunhão geral, e que os bens relacionados são bens comuns.
Os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão – artigo 1730.º, n.º 1, conjugado ainda com o artigo 1734.º do CC.
Por se tratar de partilha subsequente a divórcio, cabe levar em conta o regime inserto no artigo 1790.º do CC: em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.
Ora, tal comando legal não determina que a partilha se opere sempre segundo as regras da comunhão de bens adquiridos nem transmuta bens comuns em bens próprios. Neste sentido, cfr. Ac. STJ de 26/03/2019 (Fernando Samões):
«Esta norma não modifica o regime de bens pré-existente e, no caso em apreço, estabelece a comunhão de todos os bens dos cônjuges, inclusive, os bens doados apenas a um deles na constância do casamento.
A alteração legislativa apenas rege para os termos da partilha, sem colidir com o regime de bens vigente na constância do matrimónio.
Definido o regime de bens, este não se altera em virtude de ocorrer o divórcio.
Apenas a partilha se efetuará no sentido de os cônjuges não receberem mais do que receberiam se o regime fosse o da comunhão de adquiridos.
Sem prejuízo da oportuna aplicação do preceituado no citado artigo 1790.º, o regime da comunhão geral de bens mantém-se.»
Importa, antes, proceder ao confronto do resultado que advém para cada um dos cônjuges da aplicação do regime convencionado ou legalmente fixado com o que se obteria mediante a aplicação do regime da comunhão de adquiridos. Só no caso de o primeiro ser mais favorável a qualquer um dos cônjuges do que o segundo é que a lei determina a aplicação deste último.[2] Ou seja,
«Para efetuar a partilha aplicando a norma do artigo 1790.º do Código Civil, uma vez apurado o valor que corresponde ao quinhão (meação) de cada um dos cônjuges nos bens comuns a partilhar, tem de se comparar esse valor com aquele que resultaria da sua partilha como se o regime de bens fosse a comunhão de adquiridos; para o efeito simula-se a partilha de acordo com este regime de bens, separando os bens que de acordo com esse regime seriam próprios e encontrando a hipotética quota (meação) de cada um dos cônjuges nos bens que mesmo nesse regime seriam comuns; finalmente, comparando os valores apurados na partilha segundo o regime efetivo e na partilha segundo o regime hipotético, caso aquele valor exceda este, deverá ser reduzido a este valor, aumentando correspondentemente a quota do outro cônjuge, procedendo-se então ao preenchimento dos quinhões.»[3]
No caso em apreço, o bem comum de valor relevante a partilhar foi adquirido pelo Recorrente em data anterior ao casamento. À luz do regime da comunhão de adquiridos seria bem próprio do Recorrente – cfr. artigo 1722.º/1, alínea a), do CC. Tal circunstância determina se proceda à comparação da partilha segundo ambos os regimes de bens para que seja observado o disposto no artigo 1790.º do CC.
Assim:
A partilha segundo o regime da comunhão geral de bens implicaria na quota de cada um dos cônjuges no valor de € 11.002,48 (onze mil, dois euros e quarenta e oito cêntimos), pois ao valor total do ativo (€ 60.511,90) é de abater o valor do passivo (€ 38.506,93), dividindo-se o resultado obtido de € 22.004,97 em duas partes iguais.
A partilha segundo o regime da comunhão de adquiridos implicaria na quota de € 3.125,00 para a Recorrida (metade do valor do ativo comum), e na quota de € 18.879,97 para o Recorrido (o valor do bem que tinha à data do casamento a que se abate o valor do passivo[4], somando-se a sua participação no valor do ativo comum).
Uma vez que, na partilha subsequente a divórcio, nenhum dos cônjuges pode receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, a quota da Recorrida deverá ser reduzida a € 3.125,00, aumentando-se correspondentemente a quota do Recorrente, procedendo-se então ao preenchimento dos respetivos quinhões.
Acolhem-se, assim, as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga o despacho recorrido, determinando a sua substituição por outro que conforme a partilha aos termos indicados.
Custas pela Recorrida.
*

Évora, 8 de fevereiro de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Mário João Canelas Brás
Ana Margarida Pinheiro Leite

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. II, 2020, pág. 585.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, 2.ª ed., pág. 562.
[3] Ac. TRG de 14/10/2021 (Maria Cristina Cerdeira), secundando o que consta no Ac. STJ acima citado e este, por sua vez, o Ac. TRP de 06/02/2014 (Aristides Rodrigues de Almeida).
[4] Cfr. artigo 2100.º do CC.