Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
130/12.6GBTVR-A.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
PENA EXTINTA
Data do Acordão: 10/17/2017
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: NÃO DEFERIR A ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Sumário:
I – Ainda que se verifique uma relação de concurso de crimes que, em princípio, levaria à realização de cúmulo jurídico no tribunal que proferiu a última condenação, deixou de subsistir fundamento para tal, por a pena neste aplicada (pena suspensa) já ter sido declarada extinta, sem ter sido cumprida a pena de prisão substituída, sendo certo que tal englobamento, a realizar-se, só agravaria injustificadamente a pena única final.
Decisão Texto Integral:
A Meritíssima Juíza do Juízo de Competência Genérica de Tavira da comarca de Faro veio suscitar a resolução do conflito de competência relativamente a decisões proferidas no âmbito do processo comum singular n.º 130/12.6GBTVR (que ali corre termos) e no processo comum n.º 400/13.6TASLV (a correr termos no ora denominado Juízo de competência genérica de Silves da comarca de Faro) quanto à realização, ou não, do cúmulo jurídico das penas em que, no âmbito desses processos, foi condenado o arguido CR, melhor identificado nos autos.

As decisões cujo conflito há que dirimir são os seguintes:

a) - O despacho datado de 05-02-2016, proferido no processo n.º 400/13.6TASLV, reiterado pelo despacho de 26-05-2017, no qual foi adotado o entendimento de que naquele processo não iria ser realizado o cúmulo jurídico de penas, por se entender ali que os factos que foram objeto de julgamento no processo n.º130/12.6GBTVR (que datam de 22-03-2012), não se encontravam em relação de concurso com os apreciados naquele processo n.º 400/13.6TASLV (ocorridos em 13-07-2013), mas sim com os factos julgados no âmbito do processo n.º 467/11.1GTABF (que datam de 24-05-2011, tendo a decisão condenatória transitado em julgado em 20 de Setembro de 2012) e factos do processo n.º 404/10.0GFAR, que datam de 30-06-2010.

b) O despacho de 09-02-2017, proferido no âmbito do processo n.º132/12.6GBTVR, que conclui que há lugar a cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido CR em ambos os processos e no processo 1983/12.3SILSB da Secção de Pequena Criminalidade - Juiz 5 da Instância Local da Comarca de Lisboa (atualmente denominado de Juízo Local de Pequena Criminalidade), mas esse cúmulo deve ser realizado no processo n.º400/13.6TASLV, por ser o tribunal da última condenação conhecida, nos termos do disposto no artigo 471.º, n.º2, do CPP.

Tais decisões transitaram em julgado.

Determinou-se a instrução do processo com elementos que foram considerados em falta.

Cumprido o disposto no artº 36.º, n.º 1 do CPP, apenas o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação se pronunciou, tendo emitido parecer no sentido de que, tendo o arguido sido condenado, no âmbito do processo 400/13.6TASLV, numa pena de prisão suspensa na sua execução, a qual foi declarada extinta por despacho de 13-04-2016, não deve ser efectuado qualquer cúmulo jurídico no âmbito desse processo.

FUNDAMENTAÇÃO
Das certidões juntas aos autos resulta a seguinte factualidade, com relevância para a decisão:

1. Por sentença de 21 de Março de 2014, transitada em julgado em 18 de Dezembro de 2014, proferida no processo n.º132/12.6GBTVR, foi o arguido CR condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º do Código Penal e por factos de 22 de Março de 2012, na pena de 1 ano e seis meses de prisão efetiva.

2. Por sentença de 10 de Dezembro de 2014, transitada em julgado no dia 23 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 400/13.6TASLV, foi o referido arguido condenado pela prática, no dia 13 de Julho de 2013, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º1 e 145.º, n.º1, al. a) e n.º2, por referência ao n.º2, al. h) do artigo 132.º, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão, suspensa na respectiva execução. Esta pena foi declarada extinta, por despacho de 13-04-2016, pelo decurso do prazo de suspensão e sem que tenha ocorrido qualquer motivo que ditasse a sua revogação.

3. Por sentença de 30-12-2012, transitada em julgado em 31 de Janeiro de 2013, proferida no âmbito do processo n.º 1983/12.3SILSB do então 1.º Juízo, 2.ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (atualmente denominado de Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa) o mesmo arguido foi condenado pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e por factos de 15 de Outubro de 2012, na pena de 16 meses de prisão, suspensa por igual período.

Apreciando e decidindo:

Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente se existe uma situação de concurso de crimes entre aqueles que foram julgados nos processos supra identificados e, na afirmativa, no âmbito de que processo deve proceder-se à audiência para aplicação da pena única.

O condenado tem direito a uma pena única, resultante da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que concorram efectivamente entre si.

A realização do cúmulo jurídico de penas visa permitir que, num certo momento, se conheça da responsabilidade do arguido quanto a factos do passado, no sentido em que todos esses factos, caso fossem conhecidos e houvesse contemporaneidade processual, poderiam ter sido apreciados (e sobre eles proferida decisão) em conjunto (e num só processo ou num único momento).

O caso de cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de concurso de crimes, tem lugar quando posteriormente à condenação no processo de que se trata, o da última condenação, se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes.

Como é dominantemente entendido, e resulta do novel AUJ n.º 9/2016, de 28-04-2016, publicado no DR, 1-ª Série, n.º111, de 9 de Junho de 2016, “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.”

O trânsito em julgado obstará a que com essa infração ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite. [1]

Paulo Dá Mesquita, em Concurso de Penas, a págs. 45, defende igualmente que o trânsito em julgado da primeira das condenações é o pressuposto temporal do concurso de penas, o que se compreende, porque só depois do trânsito a condenação adquire a sua função de solene advertência ao arguido. O trânsito em julgado da primeira condenação é o momento determinante em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico; só se podem cumular juridicamente penas relativas a infrações que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78.º não pode ser interpretado cindido do art. 77.º do Código Penal - fls. 64/7.

Defende ainda que o sistema de cúmulo jurídico das penas deve ser aplicado somente nos casos de concurso de penas e já não nos de sucessão de penas, já que a generalização de tal sistema em todos os casos de pluralidade de penas traduzir-se-ia num perverter do sistema penal no seu todo dando-se carta branca a determinados agentes para a prática de novos crimes - fls. 65.

Em conclusão poderá dizer-se que o momento temporal decisivo para o estabelecimento de relação de concurso (ou a sua exclusão) é o do trânsito em julgado da primeira condenação, sendo esse o momento em que surge, de modo definitivo e seguro, a solene advertência ao arguido, pelo que, o cometimento de qualquer crime após esta solene advertência, quebra o concurso, não havendo já razão para esta pena ser englobada na pena única, tratando-se antes de uma situação de sucessão de crimes.

De facto, o trânsito em julgado de uma sentença condenatória delimita a conexão das condutas a considerar no concurso de crimes, ficando afastados do concurso os cometidos posteriormente.

É esta a jurisprudência que temos seguido.

No caso, as condenações sofridas pelo arguido espelham a existência de uma relação de concurso de infrações em relação aos crimes apreciados nos processos supra mencionados em 1 e 3 (vide fls.1 e 2), sendo que a última condenação ocorreu em 21 de Março de 2014, no processo n.º 132/12.6GBTVR.

Porém, a pena mencionada em 3 foi suspensa e o prazo de suspensão há muito decorreu, pelo que face à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, onde se formou um claro consenso no entendimento de que em caso de conhecimento superveniente de concurso, as penas suspensas só entrarão no cúmulo se ainda não tiverem decorrido os respetivos prazos, ou se tiver sido revogada a suspensão. Consequentemente, serão excluídas as penas extintas, bem como as penas suspensas cujo prazo findou, enquanto não houver decisão sobre a extinção da pena.

Tem-se considerado também que, se o tribunal que incluir no cúmulo jurídico uma pena de execução suspensa em relação à qual não foi averiguado se a mesma foi declarada extinta, tendo passado o respectivo período de suspensão, revogada ou prorrogada a suspensão, incorre em omissão de pronúncia determinante de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.

Não se vislumbra, face aos elementos carreados para os autos, que o crime julgado no âmbito do processo n.º 404/10.0GFAR respeite ao mesmo arguido, pois os elementos de identificação não coincidem, sendo certo também que a questão que se impõe resolver aqui primariamente não é quais os processos que devem integrar o cúmulo jurídico, mas antes se há que efetuar cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos onde foram proferidos os despachos em conflito e, em caso afirmativo, qual o tribunal competente.

Em relação aos crimes que foram objeto de julgamento nos processos referidos supra em 2 e 3 não existe qualquer situação de cúmulo jurídico, mas antes de sucessão de crimes, pois, quando foi praticado o crime referido em 2. já havia transitado em julgado a condenação referida em 3.

Há, contudo, uma relação de concurso em relação aos crimes referidos em 1 e 2, porquanto ambos foram praticados antes do trânsito em julgado da 1.ª condenação, que ocorreu no processo referido em 1.

Porém, tendo a pena sido declarado extinta, nos termos dos artigos 57.º do CP e 475.º do CPP, por despacho de 13 de Abril de 2016, transitado em julgado, não subsiste fundamento para operar o cúmulo jurídico de penas no âmbito do processo n.º 400/13.6TASLV.

Não há, pois, que realizar qualquer cúmulo jurídico no âmbito do processo n.º 400/13.6TASLV, pois a pena neste aplicada já se encontra extinta, não tendo sido cumprida a pena de prisão substituída e, portanto, não podendo a mesma ser descontada na pena única, tal englobamento só agravaria injustificadamente a pena única final.

DECISÃO

Nestes termos, sem necessidade de mais considerações, devo concluir que não se impõe realizar cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido no âmbito dos processos n.ºs 130/12.6GBTVR e 400/13.6TASLV, assim decidindo o conflito suscitado.

Cumpra-se o n.º 3 do artigo 36.º citado, devendo ser efetuadas por fax as respectivas notificações, assim como ao Ministério Público e ao arguido.

Comunique-se também ao Exmo. Juiz-Presidente da Comarca de Faro.

Sem tributação.

(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator)

Évora, 17 de Outubro de 2017


Fernando Ribeiro Cardoso (Juiz Presidente da Secção Criminal)

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[1] - Para efeito de aplicação de uma pena única, o limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes anteriormente praticados – cf. Acs. do STJ de 02-06-2004, Proc. n.º 1391/04 - 3.ª, CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 217, e de 10-01-2007, Proc. n.º 4051/06 - 3.ª. Apenas não há que proceder a cúmulo jurídico das penas quando os crimes foram cometidos depois de transitadas em julgado as anteriores condenações (AC. do STJ, 3ª Secção, de 23 de Junho de 1994, proc. nº 46860). Ou seja, as penas dos crimes cometidos depois de uma condenação transitada em julgado não podem cumular-se com as penas dos crimes cometidos anteriormente a essa condenação (v. ac. do STJ de 20 de Junho de 1996 in BMJ, 458, 119).

Como se escreveu no acórdão do STJ de 29-03-2012, proferido no processo n.º 316/07.5GBSTS, de que foi relator o Exmo. Conselheiro Raul Borges, “O trânsito em julgado obstará a que com a infração a que respeita ou outras cometido até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite. A primeira decisão transitada será assim o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando as respectivas penas em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objeto de unificação. A partir desta data, em função dessa condenação transitada, deixam de valer discursos desculpabilizantes das condutas posteriores, pois que o(a) arguido(a) tendo respondido e sido condenado(a) em pena de prisão por decisão passada em julgado, não pode invocar ignorância acerca do funcionamento da justiça penal, e porque lhe foi dirigida uma solene advertência, teria de agir em termos conformes com o direito, “cortando” com as anteriores condutas. Persistindo, se se mostrarem preenchidos os demais requisitos, o/a arguido(a) poderá inclusive ser considerado(a) reincidente. Esta data marca o fim de um ciclo e o início de um novo período de consideração de relação de concurso para efeito de fixação de pena única. A partir de então, havendo novos crimes cometidos desde tal data, desde que estejam em relação de concurso, terá de ser elaborado com as novas penas um outro cúmulo e assim sucessivamente. A partir desta barreira inultrapassável afastada fica a unificação, formando-se outras penas autónomas, de execução sucessiva, que poderão integrar outros cúmulos. (...)

Nestes casos de cúmulo por conhecimento superveniente há que ter em consideração o imprescindível requisito do trânsito em julgado, elemento essencial, incontornável e imprescindível, que determina, simultaneamente, o fecho, o encerramento de um ciclo, e o ponto de partida para uma nova fase, para o encetar de um outro/novo agrupamento de infrações, interligadas/conexionadas por um elo de contemporaneidade, e o início de um outro/novo ciclo de atividade delitiva, em que o prevaricador - sucumbindo, na sequência de uma intervenção/solene advertência do sistema de justiça punitivo, que se revelará, na presença da repetição, como ineficaz - não poderá invocar o estatuto de homem fiel ao direito.

Em caso de pluralidade de crimes praticados pelo mesmo arguido é de unificar as penas aplicadas por tais crimes, desde que cometidos antes de transitar a condenação por qualquer deles.

A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, havendo a separação nítida de uma primeira fase, em que o agente não é censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiências do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema, de uma outra que se lhe segue, abrindo-se um ciclo novo, autónomo. “ (sublinhado, negrito e itálico do ora relator)