Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
341/18.0T8ABT.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA
PARTILHA
MEAÇÃO
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
1 - Uma vez concretizado o divórcio por sentença transitada em julgado e ainda que o contrato-promessa de partilha não seja cumprido, os bens comuns do casal dissolvido não deixam de ser isso mesmo: os bens e os direitos qualificados como comuns pelas regras do regime de bens que vigorou durante aquela concreta relação matrimonial.
2 – Apenas com a realização da partilha é que pode a meação de cada um dos membros do ex-casal ser preenchida com bens certos e determinados pois até lá nenhum deles pode ser considerado proprietário exclusivo de um determinado bem.
3 – Com norma do art. 1730.º, n.º 1 do Código Civil visou o legislador evitar que um dos cônjuges tentasse obter do outro um acordo injusto no sentido de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre este. Sendo o acordo nulo, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo, mas tem o ónus de provar, nos termos gerais (art. 342.º do Código Civil), que o contrato-promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
BB, ré na ação declarativa sob a forma de processo comum que lhe foi movida por CC interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Abrantes, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou a ação procedente e, consequentemente:
(i) Declarou válido o contrato-promessa de compra de partilha outorgado entre o autor e a ré, em 16.04.1991;
(ii) Julgou procedente o pedido de execução específica do referido contrato-promessa e, em conformidade, adjudicou ao autor a fração autónoma designada pela letra G, correspondente ao ….º andar para habitação, composto por quatro divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, hall e duas varandas, terraço e com uma divisão no sótão de 50 m2, matricialmente inscrito sob o art. …-G da freguesia de S. Vicente e descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o n.º …-G e a fração autónoma designada pela letra correspondente a garagem na cave, definida pelo n.º … do mesmo prédio acima identificado, com a superfície coberta de 15 m2, inscrita sob o artigo matricial …-E e descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o n.º …-E;
(iii) Autorizou a realização, pelas partes, dos respetivos registos prediais, designadamente a aquisição do Autor em consequência da adjudicação em partilha.

O autor havia pedido ao tribunal que declarasse válido o contrato-promessa de partilha celebrado com a ré, em 16.04.1991, e condenasse esta última no cumprimento específico desse contrato-promessa e, em substituição da vontade dela, que fosse declarada efetivada a adjudicação ao autor dos imóveis identificados na relação de bens junta aos autos, designadamente as frações supra descritas, e autorizasse a realização dos respetivos registos prediais; subsidiariamente, o autor peticionou a condenação da ré a pagar-lhe a quantia que viesse a ser liquidada em execução de sentença correspondente a metade dos valores que ele pagou ao Montepio Geral em reembolso do empréstimo hipotecário contraído para aquisição dos imóveis acima descritos, acrescido de juros legais, contados desde a data do respetivo vencimento e até integral pagamento bem como o reconhecimento do seu direito de retenção sobre os referidos imóveis como garantia dos créditos que detém sobre a ré e a manter-se na posse dos mesmos enquanto não for ressarcido e pagos dos créditos que detém sobre aquela.
Para sustentar os seus pedidos o autor alegou, em síntese, que celebrou com a ré, no dia 16.04.1991, um contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal na perspetiva do divórcio entre ambos, o qual já se encontrava em curso, visando tal contrato-promessa a celebração da escritura de partilha daqueles bens; do referido contrato-promessa consta, designadamente, que à ré ficava a pertencer e seria adjudicada a fração correspondente à letra “D” do imóvel inscrito sob o art. …-D, da freguesia de S. Vicente e que a ele-autor ficariam a pertencer e ser-lhe-iam adjudicadas as frações autónomas correspondentes às letras “G” e “E” do prédio urbano matricialmente inscrito sob o art. … da freguesia de S. Vicente; consta também do contrato-promessa de partilha que o autor/segundo outorgante liquidou à ré/primeira outorgante a quantia de esc. 900.000$00 «referente a bens de natureza imóvel que o primeiro levou a mais na partilha ora acordada», tendo aquela dado a correspondente quitação; e consta, ainda, que o autor/segundo outorgante assumiu a responsabilidade pela liquidação do passivo no valor de esc. 4.590.613$00 resultante de empréstimo bancário hipotecário contraído pelo casal para aquisição dos imóveis que seriam adjudicados ao autor o qual também ali se comprometeu a liquidar as prestações que se fossem vencendo até à outorga da escritura definitiva de partilhas; o autor procedeu ao pagamento do montante de esc. 4.590.613$00 ao Montepio Geral por conta do empréstimo hipotecário; por sentença transitada em julgado em 24.01.1992 foi decretado o divórcio entre autor e a ré, mas esta recusa-se a dar cumprimento ao contrato-promessa, declarando não pretender fazer a partilha nos termos ali acordados.
Citada, a ré contestou, por exceção e impugnação.
Alegou, em síntese, que o contrato-promessa é nulo por impossibilidade do objeto e por ofensa da regra da metade prevista no art. 1730.º, do Código Civil, bem como a prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa.
Foi realizada uma audiência prévia, no âmbito da qual foi fixado o valor da causa e o autor convidado a aperfeiçoar a petição inicial, o que este fez, tendo sido concedido à ré prazo para o exercício do respetivo contraditório, faculdade que aquela exerceu.
Ainda no âmbito da audiência prévia o tribunal de primeira instância proferiu despacho-saneador, relegando para a fase da sentença o conhecimento das exceções invocadas, proferiu despacho a fixar o objeto do litígio e enunciou os temas de prova, após o que se pronunciou sobre os requerimentos probatórios apresentados pelas partes.
Realizou-se a audiência prévia, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«a) Existe contradição entre os factos provados nas alíneas E) e I), em compaginação com o que consta das alíneas D) e J), dado que nada se reporta, na decisão, ao que sucedeu quanto à habitação da fração após o segundo divórcio, ocorrido em 04 de Julho de 2013;
b) O Julgador considerou que não foi violada a regra da metade, prevista no artigo 1730 do CC, mas, paralelamente, inexiste, na matéria de facto assente, quaisquer elementos essenciais para que se possa concluir pela violação, ou não, da regra da metade;
c) Deste modo, não se afigura possível validar que o contrato-promessa não violou a regra da metade sem referências ao valor do ativo e do passivo, sendo a decisão nula nesse particular;
d) O contrato promessa em causa neste processo, foi outorgado antes da dissolução do primeiro matrimónio, mais exatamente em 16 de Abril de 1991,tendo o divórcio ocorrido em 08 de Janeiro de 1992, sendo que, conforme elementos juntos aos autos, em 2003 ocorreu novo casamento que perdurou até 04 de Julho de 2013;
e) Desde 1991 e até à data da propositura da ação, nenhuma das partes promoveu, ou diligenciou, pela marcação da escritura (alínea D), sendo que, ao contraírem novo matrimónio, os pressupostos fáticos em que assentou o objeto daquele contrato promessa, extinguiram-se, dado que se criou uma nova realidade por via da qual os bens voltaram a integrar um património comum, mas no âmbito do segundo casamento;
f) As obrigações resultantes desse contrato promessa extinguiram-se, sem chegar a haver prestação, dado que os interesses da Recorrente e do Recorrido se confundiram com a outorga do segundo casamento;
g) Sendo que, a função desse contrato promessa deixou de ter cabimento por motivos estruturais, funcionais e até de valor teológico, constituindo como que uma espécie de confusão imprópria, por aplicação analógica do artigo 865º, do CC;
h) Na decisão em apreciação, esta questão não foi avaliada, como se impunha, pelo que há uma omissão de pronúncia que conduz, igualmente, à nulidade da decisão;
i) O contrato promessa em apreciação nos autos foi celebrado há vinte e oito anos e, nessa época, o entendimento maioritário da doutrina e jurisprudência, era que o mesmo seria considerado nulo por violação do princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento, previsto no artigo 1714º, do CC e conforme resulta dos acórdãos citados a pág. 7 das presentes alegações e que se dão por reproduzidos;
j) Ora, entende a Recorrente que o mesmo deve ser analisado de acordo com esse entendimento jurisprudencial maioritário na época da sua celebração, nulidade essa que tem de ser declarada no caso concreto (nesse sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-04-2015, citado a fls. 8);
l) O Meritíssimo Juiz do processo não tomou em consideração a alteração anormal das circunstâncias advenientes da celebração de novo casamento, o que obrigaria à realização de um eventual contrato de partilhas atualizado, face às novas circunstâncias, dado que a obrigação decorrente do contrato de 1991 se extinguiu por se tornar impossível;
m) Aliás, a circunstância de durante 28 anos nenhuma das partes ter promovido diligências para marcação da escritura, é sinal mais do que evidente da perda de interesse no mesmo, nomeadamente por via da celebração do segundo casamento;
n) Efetivamente, o contrato promessa foi subscrito tendo em vista a realização do divórcio do primeiro casamento, mas extinguindo-se por via da celebração de novo matrimónio, tal contrato promessa não pode ser aproveitado para um segundo divórcio, cujos pressupostos e realidades assentaram em bases distintas, o que implica a inutilidade e extinção daquele contrato promessa;
o) Tal contrato não previa quem iria marcar a escritura e, a ser válido, o que se admite como mera hipótese, qualquer um dos intervenientes poderia interpelar o outro, marcando a data para a realização da escritura de partilhas e, só faltando à mesma se poderia criar o cenário de incumprimento ou mora;
p) Deste modo, não é concebível o ponto de vista de que só com a citação a Recorrente tomou conhecimento da pretensão do Recorrido e que, nesse momento entrou imediatamente em mora, sem lhe ter sido facultado um prazo para a outorga respetiva;
q) Nesta conformidade, não se verificou o incumprimento por parte da Recorrente e não se verificam os requisitos essenciais à admissibilidade da execução específica do contrato prometido, impondo-se a improcedência da pretensão formulada nos autos pelo Recorrido;
r) Acresce que, a Recorrente entende, finalmente, que o Recorrido já não se encontrava em tempo para vir invocar a execução específica, dado que o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, ou seja, quando o mesmo estiver em condição (objetiva) do titular poder exercita-lo por ser exigível do devedor o cumprimento da obrigação;
s) Assim, tendo em conta as referências jurisprudenciais constantes de folhas 13 a 15 e, se se considerar o contrato como válido, o que se admite como mera hipótese, o prazo prescricional iniciou-se com referência à data da respetiva celebração, sendo que há muito que já transcorreu o prazo prescricional;
t) Mostra-se violado o preceituado nos artigos 155º e 615º, nº 1- d), do CPC e 1730º, 1714º, 790º, 309º e 865º, do CC, pelo que, em consequência deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra, que indefira a pretensão do ora Recorrido, julgando a ação totalmente improcedente.
JUSTIÇA!»
I.3.
O recorrido apresentou resposta às alegações pugnando pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
FACTOS
II.2.1.
O tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos:
«A)- O Autor e a Ré contraíram casamento, entre si, no dia 16/4/1983, sem convenção antenupcial.
B)- No dia 16/4/1991, o ora Autor e a ora Ré celebraram um contrato, que denominaram de «contrato promessa de partilhas», na perspetiva de um divórcio por mútuo consentimento, e tendo em vista a partilha após o divórcio, com as seguintes cláusulas :
- cláusula primeira : Os outorgantes acabam de assinar a documentação necessária tendo em vista a decretação do divórcio por mútuo consentimento entre ambos;
- cláusula segunda : A relação dos bens do casal é a que consta do documento nº 6 junto à petição de divórcio, e cujo duplicado, devidamente assinado por ambos os outorgantes, fica fazendo parte integrante do presente acordo;
- cláusula terceira : Ambos acordam na divisão dos bens nos seguintes termos : à ora Ré ficarão a caber os seguintes bens móveis, que se encontram já na sua posse, melhor identificados na cláusula 3.1-A do contrato-promessa junto aos autos, com a petição inicial, enquanto documento nº 2, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido; - cláusula quarta: Os bens imóveis serão partilhados do seguinte modo :
- à ora Ré, ficará a caber e será adjudicado o imóvel indicado na relação em terceiro lugar, ou seja, a fração autónoma correspondente à letra « D » do imóvel inscrito sob o artº …- D da freguesia de S. Vicente; - ao ora Autor, ficará a pertencer e serão adjudicados os imóveis indicados em primeiro e segundo lugar, a saber, as frações autónomas correspondentes às letras « G » e « E » do prédio urbano, matricialmente inscrito sob o artº … da freguesia de S. Vicente;
- cláusula quinta : O ora Autor liquidou, nesta data, à ora Ré, a quantia de 900.000$00 (novecentos mil escudos), pela qual esta lhe confere a correspondente a integral quitação, nada mais tendo a reclamar a este título, referente a bens de natureza imóvel que o primeiro levou a mais da partilha ora acordada;
- cláusula sexta : Em face da adjudicação acordada, o ora Autor assume, nesta data, a responsabilidade total pela liquidação do passivo que, neste momento, ascende a 4.590.613$00 (quatro milhões, quinhentos e noventa mil, seiscentos e treze escudos), resultante de empréstimo hipotecário contraído pelo casal na aquisição dos imóveis indicados em primeiro e segundo lugar ma relação dos bens imóveis, comprometendo-se expressamente a liquidar as prestações que se forem vencendo até à outorga da escritura definitiva de partilhas;
- cláusula sétima : a escritura terá lugar no prazo máximo de um mês após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio entre ambos, ou se por motivos registrais tal não for possível, no prazo máximo de um mês após a conclusão do registo dos prédios a favor dos outorgantes;
- cláusula oitava: ambos os contraentes se declaram de boa-fé e se obrigam a assinar toda a documentação registral e notarial ou de qualquer outra espécie que se mostre necessária ao bom cumprimento do presente acordo».
C) - Os imóveis que seriam adjudicados, ao ora Autor, e que constam da cláusula quatro do contrato-promessa aludido em B), correspondem respetivamente à fração autónoma, designada pela letra «G», correspondente ao primeiro andar para habitação, composto por 4 divisões assoalhadas (sala e 3 quartos), cozinha, duas casas de banho, hall e 2 varandas na frente, terraço na retaguarda com uma divisão no sótão com 50 m2, matricialmente inscrito sob o artº …-G da freguesia de S. Vicente e descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o nº …-G e à fração autónoma, designada pela letra « E », correspondente a garagem na cave, definida pela número seis, do mesmo prédio urbano acima identificado, com a superfície coberta de 15 m2, inscrito sob o artigo matricial …-E e descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes com o nº …-E.
D)- Por sentença proferida em 8/1/1992, na ação de divórcio por mútuo consentimento nº 49/91 do Tribunal Judicial de Abrantes, transitada em julgado em 20/1/1992, foi decretado o divórcio entre o Autor e a Ré. E)- O ora Autor tem residido na fração « G », identificada na al. C) dos factos provados, ininterruptamente, desde 16/4/1991, até ao momento.
F)- As partes nunca celebraram a escritura de partilha referente ao contrato-promessa aludido na al. B) dos factos provados.
G)- Nem nenhuma delas promoveu ou diligenciou pela marcação da escritura.
H)- Pese embora cada uma delas tenha começado, a seguir à celebração do contrato-promessa, a usar e a fruir exclusivamente dos bens que lhes haveriam de caber por partilha.
I)- Ambas as partes, após o divórcio aludido na al. D) dos factos provados, começaram a viver juntos, na mesma casa, tendo-se reconciliado.
J)- Autor e Ré casaram novamente, entre si, em 16/4/2003, mas divorciaram-se por sentença proferida pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes em 4/7/2013, transitada em julgado em 19/9/2013».

II.2.2.
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:
«A) Que a Ré, até ser citada para a presente causa, se tivesse recusado a celebrar a escritura de partilha referente ao contrato-promessa de partilha aludido na al. B) dos factos provados.
B)- Que o Autor, ao longo do período de tempo decorrido entre Fevereiro de 1992, até à data do segundo casamento contraído entre o mesmo e a Ré, por diversas vezes, ciclicamente, foi informando a Ré da necessidade de realização da escritura, pedindo que se dirigissem, para tanto, ao advogado ou, diretamente, ao cartório notarial.
C)- Que o Autor, após o segundo divórcio, tornasse a informar a Ré da necessidade de realização da escritura de partilha.
D)- Que o Autor nunca tivesse promovido, ele próprio, a marcação da escritura de partilha, porque estava convencido que o advogado de ambas as partes o faria.
E)- Que a escritura nunca tivesse sido marcada, porque o Autor e a Ré, após o primeiro divórcio, voltaram a viver juntos e tivessem entendido que, nesse contexto de reconciliação, não houvesse lugar a qualquer partilha dos bens comuns do casal.
F)- Que apenas em 2011, já em contexto de iminente rutura do segundo casamento entre ambos, o Autor tivesse solicitado, à Ré, que lhe facultasse uma cópia do contrato-promessa de partilha, dizendo, à Ré, que havia perdido o seu exemplar».

II.3.
As questões que importa decidir são as seguintes:
1 – Nulidade da sentença.
2 - Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
3 – Erro de julgamento quanto à aplicação do direito

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
II.4.1.
Nulidade da sentença
A recorrente alega que existe uma omissão de pronúncia do juiz a quo quanto à invocada «extinção das obrigações resultantes do contrato-promessa por via da celebração de um segundo matrimónio entre os outorgantes daquele contrato, os quais, ao casarem pela segunda vez, entre si, sem terem chegado a realizar a escritura de partilha, fizeram com que os bens voltassem a integrar o património comum, mas no âmbito do segundo matrimónio».
Defende a recorrente que o contrato-promessa se extinguiu por «impossibilidade do seu objeto», questão que diz não ter sido apreciada e julgada pelo tribunal de primeira instância.
A nulidade de sentença arguida pela recorrente está prevista na primeira parte da alínea d), do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil, o qual dispõe que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
O normativo supra citado deve ser concatenado com o art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; […]».
Ou seja, o juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e exceções invocadas, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, ainda, de todas as exceções de conhecimento oficioso.
Na sua contestação, a ré alegou que, após o divórcio ocorrido em 1992, ela e o autor casaram novamente em 2003 (e divorciaram-se, de novo, em 2013) e que ao casarem-se pela segunda vez, sem que tivessem realizado o contrato definitivo a que aludia o contrato-promessa, «manifestaram claramente a sua intenção de que os bens ora em causa permanecessem no património comum. Integrando assim os bens no património comum do novo casal, por via do casamento de 2003, resulta claro que se torna impossível a realização do contrato-promessa realizado, por manifesta alteração dos pressupostos que serviram de base ao mesmo. […] nos termos do art. 280.º do Código Civil, o objeto do contrato-promessa é um objeto inexistente, por legalmente impossível, tornando assim nulo o referido negócio jurídico».
Extrai-se da fundamentação jurídica da sentença recorrida que o juiz a quo não se pronunciou sobre a questão ora em apreço, apenas tendo apreciado a (outra) nulidade arguida consistente numa alegada violação do princípio da metade plasmado no art. 1730.º, do Código Civil.
Pelo que se verifica efetivamente uma omissão de pronúncia, padecendo a sentença daquela concreta nulidade arguida pela recorrente.
Por conseguinte, incumbirá a este tribunal de recurso suprir tal nulidade, em conformidade com o art. 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, conhecendo da exceção invocada por os autos conterem os elementos necessários a tal desiderato, o que fará infra.
A outra nulidade de sentença arguida pela recorrente consiste no facto de o tribunal a quo ter julgado que não foi violada a regra da metade prevista no art. 1730.º, n.º 1, do Código Civil sem que dispusesse de elementos suficientes para tal desiderato, designadamente sem ter referências ao valor do ativo e do passivo.
Quid juris?
Aquilo que a recorrente alega é uma insuficiência da matéria de facto para que o tribunal a quo pudesse decidir sobre a validade do contrato-promessa na vertente da sua conformidade com o princípio da metade plasmado no art. 1730.º, do CC.
Contudo, a consequência de uma eventual insuficiência da matéria de facto não é suscetível de gerar a nulidade da sentença mas sim a anulação da decisão da primeira instância e apenas no caso de não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes (art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC); ao invés, se estes estiverem acessíveis ao tribunal de segunda instância, este deverá proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de factos as modificações que forem consideradas oportunas[1].
Por conseguinte, não se verifica o vício imputado à sentença pela recorrente.
Sem prejuízo, dir-se-á o seguinte:
A insuficiência da matéria de facto para que o tribunal a quo possa decidir sobre determinada questão pode conduzir à necessidade de ampliação da matéria de facto e, consequentemente, à anulação da sentença com a subsequente repetição (ainda que parcial) do julgamento em primeira instância.
A ampliação da matéria de facto prevista no art. 662.º, n.º 2, a. c), do Código de Processo Civil pressupõe que haja sido omitida dos temas de prova matéria de facto alegada pelas partes e que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegure enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo[2].
In casu, na sua contestação a recorrente, a propósito da «ofensa da regra da metade prevista no art. 1730.º do Código Civil», alegou tão só que «analisando o teor do referido contrato, facilmente se constata que a regra ínsita no referido preceito legal não foi cumprida, constituindo assim causa da nulidade do negócio que, para todos os efeitos se invoca, mais uma vez proceder a exceção invocada, absolvendo a ré do pedido.» (art. 16.º). E foi a partir (apenas) da análise do contrato-promessa que o tribunal a quo julgou não violada a regra da metade. Com efeito, lê-se na respetiva fundamentação que:
«[…] ficou definida a forma do pagamento do passivo e para que não existissem dúvidas sobre a igualação das meações, foi estabelecida uma cláusula sobre tornas, segundo a qual (cláusula quinta) «O ora Autor liquidou, nesta data, à ora Ré, a quantia de 900.000$00 (novecentos mil escudos), pela qual esta lhe confere a correspondente integral quitação, nada mais tendo a reclamar a este título, referente a bens de natureza imóvel que o primeiro levou a mais na partilha ora acordada».
Ou seja, o tribunal a quo julgou aquela concreta questão com base nos factos alegados pelas partes pelo que nunca haveria fundamento para a ampliação da matéria de facto.
*
Improcede, pois, este segmento do recurso pois a sentença não padece dos vícios de nulidade arguidos pela recorrente.

II.4.2.
Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Prescreve o art. 662.º, n.º 1, do CPC que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
O Tribunal de segunda instância deve formar a sua própria convicção acerca dos elementos probatórios disponíveis (os indicados pelas partes e os obtidos oficiosamente) a qual deve ser obtida através de uma ponderação crítica dos mesmos, quando sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova (como sucede, no caso vertente). Ou, dito de outra forma, a segunda instância deve funcionar como um efetivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
No caso concreto, o recorrente defende que existe contradição entre os factos provados nas alíneas E) e I), em compaginação com o que consta das alíneas D) e J), «dado que nada se reporta, na decisão, ao que sucedeu quanto à habitação da fração após o segundo divórcio, ocorrido em 4 de julho de 2013».
Vejamos se lhe assiste razão.
Os factos alegadamente em contradição são os seguintes:
«O ora autor tem residido na fração G identificada na al. C) dos factos provados, ininterruptamente, desde 16.04.1991, até ao momento.» (al. E))
«Ambas as partes, após o divórcio aludido na alínea D) dos factos provados, começaram a viver juntos na mesma casa, tendo-se reconciliado» (al. I).
Por sua vez, a alínea D) dos Factos provados tem a seguinte redação: «Por sentença proferida em 08.01.1992, na ação de divórcio por mútuo consentimento n.º 49/91, do tribunal judicial de Abrantes, transitada em julgado em 20.01.1992, foi decretado o divórcio entre o autor e a ré.» e a alínea J) tem o seguinte teor: «Autor e ré casaram novamente, entre si, em 16.04.2003, mas divorciaram-se por sentença proferida pelo 3.º juízo judicia de Abrantes, em 04.07.2013, transitada em julgado em 19.09.2013».
Não vislumbramos qualquer contradição entre os dois factos provados supra referidos, resultando da conjugação dos mesmos que o autor viveu na fração “G” ininterruptamente desde 16.04.1991 e até ao momento e que, após o primeiro divórcio, a recorrente também ali viveu em virtude da sua reconciliação com o recorrido.
O que terá sucedido – no que respeita à fração “G” – após o segundo divórcio não foi sequer alegado por qualquer das partes.
Não se verifica, por conseguinte, a alegada contradição entre factos provados, julgando-se improcedente este segmento do recurso.

II.4.3.
O Direito
CC pediu ao tribunal que declarasse válido o contrato-promessa de partilha outorgado entre ele e a ré/recorrente e, invocando o incumprimento do mesmo por banda desta última, que o tribunal suprisse a manifestação de vontade da segunda no sentido da outorga do contrato prometido, a saber, a partilha dos bens comuns do casal dissolvido por divórcio decretado em janeiro de 1992.
O tribunal de primeira instância julgou válido o contrato-promessa de partilha outorgado entre autor/recorrido e a ré/recorrente e, apesar de ter considerado que «não existem factos provados que revelem que a ré alguma vez tenha entrado em mora em relação ao cumprimento do contrato-promessa» e que «resulta dos factos provados que só com a instauração da ação e, consequentemente, com a citação para os termos da causa, a ré ficou a conhecer a pretensão do autor», entendeu que aquela «entrou em mora quando foi citada para os termos da causa» e, consequentemente, julgou procedente o pedido de execução específica do contrato-promessa e partilha, adjudicando ao autor/recorrido os bens melhor identificados na sentença sob recurso.
O tribunal a quo considerou, ainda, que não se verifica a exceção de prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa na medida em que o prazo de prescrição em causa é de 20 anos previsto no art. 309.º, do Código Civil e que esse prazo começou a contar apenas com a citação da ré para a ação, dado que até àquele momento aquela nunca havia sido interpelada, quer judicial quer extrajudicialmente, para cumprir o contrato-promessa.
A recorrente entende, pelo contrário, que: (i) o contrato-promessa em causa nos autos deveria ter sido analisado à luz do entendimento jurisprudencial maioritário à data em que aquele foi outorgado e que defendia que o contrato-promessa de partilha era nulo por violação do principio da metade, (ii) o julgador da primeira instância não tinha elementos de facto suficientes para aquilatar da violação, ou não, da regra da metade, (iii) a função do contrato-promessa deixou de ter cabimento por motivos estruturais, funcionais e até de valor teleológico, (iv) o contrato-promessa extinguiu-se por via da celebração de um segundo matrimónio, não podendo ser aproveitado para um segundo divórcio, (v) o contrato-promessa não previa quem iria marcar a escritura-pública, pelo que qualquer um dos outorgantes poderia interpelar o outro, marcando a data para a realização da escritura de partilhas e só faltando a esta é que se poderia criar o cenário de incumprimento ou mora, o que nunca ocorreu pelo que não se verificou qualquer incumprimento por parte da recorrente, (vi) o prazo de prescrição começa a correr quando o direito poder ser exercido, tendo-se iniciado com referência à data da respetiva celebração, pelo que há muito que decorreu o prazo de prescrição.
Apreciando, de per si, as questões suscitadas pela recorrente.
Não é controvertido que as partes (recorrente e recorrido) outorgaram entre si um contrato-promessa, o qual é definido na lei como a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (art. 410.º, n.º 1, do Código Civil).
O contrato-promessa é, por conseguinte, um acordo preliminar que tem por objeto uma convenção futura, ou seja, o contrato prometido.
No caso em apreço estamos perante um contrato-promessa bilateral porque ambos os outorgantes se obrigaram à celebração do contrato de partilha dos bens que integravam a meação de cada um deles no património comum do casal dissolvido pelo divórcio ocorrido em 1992.
A primeira questão suscitada pela recorrente, em matéria de aplicação do direito, prende-se com a licitude do contrato-promessa em causa nos autos.
Como foi acima referido, a recorrente sustenta que o contrato-promessa em causa deveria ter sido apreciado pelo tribunal a quo em conformidade com a jurisprudência maioritária à data da respetiva outorga, a qual considerava que tais contratos-promessa eram nulos por violarem o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento.
O tribunal a quo, sufragando a jurisprudência e a doutrina dominantes na atualidade, enveredou pela admissibilidade legal dos contratos-promessa de partilha desde que: (i) os mesmos respeitem a regra da metade prevista no art. 1730.º, do Código Civil, (ii) o objeto do contrato for determinado ou determinável; e (iii) for subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio. E, entendeu, também, que o contrato-promessa em causa nos autos cumpria aqueles requisitos.
Ao contrário do que sucede nos países da Common Law, em que a orientação assumida por certos tribunais na decisão de casos concretos fica a vincular os mesmos ou outros tribunais no julgamento de casos futuros do mesmo tipo (regra do precedente), na nossa ordem jurídica as decisões dos tribunais só têm força vinculativa nos limites do caso julgado, pelo que as respetivas rationes decididendi não vinculam - como se fossem normas gerais - outros tribunais para diferentes casos concretos análogos.
A “jurisprudência e doutrina maioritárias” não constituem, assim, fonte de direito, como resulta do disposto nos arts. 1.º, 2.º e 4.º, do Código Civil.
Pelo que a argumentação da recorrente no sentido de dever ter sido julgado nulo o contrato-promessa por ser esse o entendimento jurisprudencial maioritário à data em que aquele foi outorgado, não pode, por isso, proceder.
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Na sua contestação a ré/recorrente alegou que «ao casarem, em 2003, novamente entre si, sem que tivessem realizado o contrato definitivo a que aludia o contrato-promessa, o autor e a ré manifestaram claramente a sua intenção de que os bens ora em causa permanecessem no património comum, integrando assim os bens no património comum do novo casal […] os bens objeto do contrato-promessa deixaram de existir enquanto património de um casal em processo de divórcio, mas sim como património comum de um casal unido pelo matrimónio», tendo concluído que «nos termos do art. 280.º do CC, o objeto do contrato-promessa é um objeto inexistente por legalmente impossível, tornando assim nulo o referido negócio jurídico […]».
A recorrente invoca o artigo 280.º, do CC - normativo que prevê os requisitos do objeto negocial, abrangendo quer «os efeitos jurídicos a que o negócio tende» (objeto imediato ou conteúdo), quer o «quid» sobre que incidem os efeitos do negócio (objeto mediato ou objeto stricto sensu).
Porém, se bem compreendemos o raciocínio da recorrente, esta quererá referir, ao invés, a uma impossibilidade superveniente da prestação decorrente da celebração de um segundo matrimónio dos outorgantes, entre si, por via do qual, e na sua perspetiva, os bens comuns do casal relativos ao primeiro casamento se «confundiram» com os bens do casal relativos ao segundo matrimónio.
A “impossibilidade superveniente da prestação” está prevista no art. 790.º, do Código Civil, gerando - quando não seja imputável ao devedor - a extinção da obrigação com a consequente exoneração do obrigado[3].
A prestação torna-se “impossível” quando, por qualquer circunstância (legal, natural ou humana), o comportamento exigível ao devedor, segundo o conteúdo da obrigação, torna-se inviável.
Está provado que a recorrente e o recorrido se divorciaram uma primeira vez, em 1992, e voltaram a casar um com o outro, desta feita, em 16.04.2003.
Está ainda provado que o contrato-promessa de partilha foi outorgado em 16.04.1991 (antes do primeiro divórcio) e nenhuma das partes promoveu ou diligenciou pela marcação da escritura de partilha que, por conseguinte, nunca se realizou (apesar da concretização do divórcio).
Sustenta a recorrente que as obrigações decorrentes do contrato-promessa se extinguiram porque os bens do património do casal em processo de divórcio passaram a integrar um património comum, mas o do segundo matrimónio. Ou seja, na sua perspetiva os mesmos bens terão transitado do património comum do primeiro casamento para o património comum do segundo casamento, ficando, por isso, sem razão de ser a partilha objeto do contrato-promessa na medida em que aquela visava partilhar entre os outorgantes os bens do património comum fruto do primeiro casamento dos outorgantes.
Salvo o devido respeito, a recorrente não tem razão.
O contrato-promessa de partilha em causa nos autos foi outorgado pelas partes em 16.04.1991, na perspetiva de um divórcio por mútuo consentimento, logo tendo em vista a partilha de bens comuns da relação matrimonial que se constituiu em 1983. Através do referido contrato-promessa, recorrente e recorrido, ali outorgantes, comprometeram-se a dividir os bens comuns de uma determinada forma. Os efeitos reais do contrato-promessa só se produzem por força do contrato prometido (contrato de partilha), embora estejam predeterminados pelo contrato-promessa realizado antes do trânsito em julgado da sentença de divórcio.
As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento (art. 1688.º do Código Civil) e, uma vez cessadas aquelas, precede-se à partilha dos bens do casal. Com efeito, dispõe o art. 1689.º, do CC que «Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.»
Uma vez concretizado o divórcio por sentença transitada em julgado e ainda que o contrato-promessa de partilha não seja cumprido, os bens comuns do casal dissolvido não deixam de ser isso mesmo: os bens e os direitos qualificados como comuns pelas regras do regime de bens que vigorou durante aquela concreta relação matrimonial.
De acordo com o disposto no art. 1730.º, n.º 1, do Código Civil cada um dos cônjuges tem o direito a metade do valor do património comum. Quer isto dizer que ambos comungam na mesma proporção naquele património, no seu todo considerado, mas que, até à realização da partilha, não são cotitulares de cada um dos bens que o compõem (arts. 1403.º, 1404.º e 1730.º, todos do CC). Com o trânsito em julgado da sentença que decretou o primeiro divórcio entre recorrente e recorrido, cada um deles passou a ter direito a metade do valor do património comum do ex-casal, independentemente da realização da partilha. E só com esta última é que pode a meação de cada um deles ser preenchida com bens certos e determinados pois até lá nem a recorrente nem o recorrido podem ser considerados proprietários exclusivos de um determinado bem.
Por conseguinte, os bens objeto do contrato-promessa fazem parte do património comum da recorrente e do recorrido fruto do primeiro casamento de ambos, pelo que aquilo que cada um deles «levou» para o segundo matrimónio foi tão só o direito da meação respetiva no património comum do primeiro casamento.
Assim sendo, não se pode afirmar, como faz a recorrente, que o objeto do contrato-promessa se tornou impossível por “alteração das circunstâncias”, a saber, a celebração do segundo matrimónio, ou que o contrato-promessa de partilha perdeu o seu objeto, pois o direito de meação de cada um dos outorgantes (recorrente e recorrido) no património comum da primeira relação matrimonial não se extinguiu com a celebração do segundo matrimónio. Eventualmente, poderia ter ocorrido uma recíproca perda de interesse dos outorgantes na realização da partilha prometida, o que, todavia, não se confunde quer com a falta de objeto do negócio jurídico quer com a impossibilidade do objeto do negócio jurídico.
Em face do exposto, não procede a argumentação de que «a função do contrato-promessa deixou de ter cabimento por motivos estruturais, funcionais e até de valor teleológico» e que «o contrato-promessa se extinguiu por via da celebração de um segundo matrimónio».
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A recorrente defende que «inexiste matéria de facto assente, quaisquer elementos que fixem o valor do ativo e do passivo, elementos essenciais para que se possa concluir pela violação, ou não, da regra da metade», que «nada resulta dos autos relativamente à segunda relação conjugal e à eventual desvalorização, valorização, melhoramento ou até desaparecimento de quaisquer bens comuns do casal». Pelo que, no seu entendimento, não se afigura possível validar que contrato-promessa não violou a regra da metade, sendo a decisão nula nesse particular.»
Já referimos (cfr. supra II.4.1.1) que o tribunal a quo analisou o contrato-promessa de partilha no confronto com a norma do art. 1730.º, do Código Civil que consagra o chamado princípio/regra da metade, julgando que aquela regra não foi violada e que a sua decisão foi guiada pelo teor do contrato-promessa pois que as partes não alegaram quaisquer outros factos.
Segundo a norma do art. 1730.º, n.º 1 do Código Civil, «os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso».
Com aquela regra visou o legislador evitar que um dos cônjuges tentasse obter do outro um acordo injusto no sentido de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre este.
Sendo o acordo nulo, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo, mas tem o ónus de provar, nos termos gerais (art. 342.º, do Código Civil) que o contrato-promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade. O que, in casu, nem foi alegado nem foi provado pela ré/recorrente.
Pelo que também não procede este argumento invocado pela recorrente.
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O incumprimento do contrato-promessa está sujeito ao regime geral da falta de cumprimento das obrigações mas com uma especialidade: ser possível a execução específica do contrato-promessa. Isto é, no caso de promessa bilateral, como é o caso em apreço, se um dos promitentes deixar de cumprir o contrato, poderá a outra parte «obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso» (art. 830.º, n.º 1, do CC). Assim, a sentença, baseada em pedido da parte cujo direito foi ofendido, supre a manifestação de vontade da parte ofensora, constituindo um sucedâneo ou substitutivo do contrato-prometido[4].
Não é questão controvertida que a execução específica se compatibiliza com a mora, constituindo esta «o habitat natural da execução específica por ser característica desse estado de subsistência do interesse do credor na realização da prestação» – assim, Januário Gomes, ob. cit., p. 59.
A mora constitui uma modalidade de incumprimento das obrigações, definindo-se como o atraso/retardamento no cumprimento da obrigação. Assim, a prestação devida não é realizada no momento próprio mas ainda é possível por continuar a corresponder ao interesse do credor (cfr. art. 804.º, n.º 2, do CC).
No caso concreto, a cláusula sétima do contrato-promessa tem a seguinte redação: «a escritura terá lugar no prazo máximo de um mês após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio entre ambos, ou se por motivo registral não for possível, no prazo máximo de um mês após a conclusão do registo dos prédios a favor dos outorgantes».
Os prazos para a celebração da escritura pública de partilha previstos na cláusula acima descrita estavam dependentes de um acontecimento futuro mas certo: o trânsito em julgado da sentença que decretasse o divórcio ou a conclusão do registo dos prédios a favor dos outorgantes. Quer dizer, os efeitos do contrato-promessa só começam ou se tornam exercitáveis a partir dos momentos ali previstos (termo suspensivo ou inicial).
O termo diz-se essencial quando a prestação deve ser efetuada até à data estipulada pelas partes ou até certo momento, tendo em conta a natureza do negócio e/ou a lei.
A essencialidade do termo diz respeito à influência deste sobre os efeitos do contrato, muito em especial sobre a redução ou desaparecimento da utilidade da prestação para o credor após o vencimento do termo[5]. Ultrapassada a data estipulada pelas partes, o não cumprimento é equiparado à impossibilidade da prestação (arts. 801.º e ss. do Código Civil).
A “essencialidade do termo” pode ser convencionada expressamente pelas partes ou pode induzir-se das circunstâncias objetivas do contrato, isto é, da sua economia.
O termo diz-se não essencial quando, depois de ultrapassado, não acarreta logo a impossibilidade da prestação, apenas gerando uma situação de mora do devedor (cfr. arts. 804.º e ss. do CC). Neste caso, o credor pode, nos termos da lei (art. 808.º, do CC) fixar um termo essencial.
No caso sub judice, a sentença que decretou o primeiro divórcio entre os outorgantes do contrato-promessa transitou em julgado em 20.01.1992 mas nenhuma das partes diligenciou pela marcação da escritura de partilha a qual nunca se concretizou (não foi alegado qualquer óbice registral à realização da partilha).
Consta do teor do contrato-promessa que o autor/recorrido liquidou à ré/recorrente a quantia de esc. 900.000$00, a título de tornas referente a bens de natureza imóvel que o primeiro levou a mais na partilha, tendo a segundo conferido a respetiva quitação. Consta igualmente do teor do contrato-promessa que o recorrente assumiu o pagamento do passivo bancário do ex-casal decorrente de empréstimo hipotecário para aquisição dos imóveis que, nos termos da partilha, seriam adjudicados ao autor/recorrido.
Documento que não foi impugnado.
Está também provado que após ambos os divórcios o autor/recorrido ficou a viver na fração na fração “G” que, nos termos da partilha prometida outorgar, ser-lhe-ia adjudicada.
As circunstâncias acabadas de referir indiciam que as partes não quiseram atribuir ao termo fixado no contrato-promessa a natureza de termo essencial (nem tal foi alegado).
Assim sendo, decorrido um mês sobre o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, a obrigação de marcação e de celebração da escritura de partilha ficou sem prazo, ficando, consequentemente, dependente de interpelação da parte interessada ao outro outorgante. Isto é, a parte interessada na outorga da partilha deveria diligenciar pela marcação da escritura de partilha e convocar o outro outorgante para a concretização da mesma, informando-o da data e local da sua realização.
Na sua petição inicial, o autor/recorrido alegou que:
- «a ré recusa dar cumprimento à obrigação assumida, declarando não pretender fazer a partilha nos termos em que acordou no contrato-promessa […]» (art. 12.º);
- «O autor, ao longo do tempo decorrido entre fevereiro de 1992 e até ao segundo casamento, contraído com a ré em 2003, por variadas vezes, ciclicamente, foi informando a ré da necessidade da realização da escritura de partilha, pedindo que se dirigissem, para tanto, ao advogado, ou diretamente ao cartório notarial» e «após o divórcio decretado, por referência ao segundo casamento, tornou a informar a ré da necessidade da realização da escritura de partilha, para, assim, cumprir a parte dela, relativamente aos termos do contrato-promessa de partilha celebrado para efeitos do primeiro divórcio» e que «nunca promoveu, por si próprio a marcação da escritura referente ao contrato-prometido porque estava convencido que o advogado de ambos o faria» (cfr. ata de audiência prévia, de 26.10.2018)
Todos os factos mencionados foram impugnados pela ré/recorrente, incumbindo ao autor/recorrido a prova dos mesmos, enquanto facto constitutivo do direito à execução específica do contrato-promessa (art. 342.º, n.º 1, do CC). Prova que o autor/recorrido não logrou fazer (cfr. elenco dos factos não provados). Tão pouco o autor alegou que, alguma vez, ele ou o seu advogado tivessem diligenciado pela marcação da escritura de partilha e convocado a ré/recorrente para a mesma.
Pelo que não se pode concluir pela verificação de um incumprimento culposo do contrato-promessa por banda da requerente, o que obsta à execução específica do contrato.
Considerando que não se provou a falta de cumprimento pela recorrente/ré da obrigação de outorga do contrato-promessa, fica prejudicado o conhecimento da exceção de prescrição invocada pela recorrente.

Sumário:
1 - Uma vez concretizado o divórcio por sentença transitada em julgado e ainda que o contrato-promessa de partilha não seja cumprido, os bens comuns do casal dissolvido não deixam de ser isso mesmo: os bens e os direitos qualificados como comuns pelas regras do regime de bens que vigorou durante aquela concreta relação matrimonial.
2 – Apenas com a realização da partilha é que pode a meação de cada um dos membros do ex-casal ser preenchida com bens certos e determinados pois até lá nenhum deles pode ser considerado proprietário exclusivo de um determinado bem.
3 – Com norma do art. 1730.º, n.º 1 do Código Civil visou o legislador evitar que um dos cônjuges tentasse obter do outro um acordo injusto no sentido de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre este. Sendo o acordo nulo, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo, mas tem o ónus de provar, nos termos gerais (art. 342.º do Código Civil), que o contrato-promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a presente apelação, revogando a sentença da primeira instância na parte em que declara o incumprimento do contrato-promessa por parte da ré e julga procedente o pedido de execução específica do mesmo e de adjudicação ao autor dos bens ali discriminados, absolvendo-se a ré de tais pedidos.
As custas de parte na presente instância recursiva são da responsabilidade do recorrido (arts. 607.º, n.º 6, 527.º, 529.º, 530.º, 533.º e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
Notifique.
DN.

Évora, 21 de novembro de 2019,
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato
Mata Ribeiro
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[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, 2018, pp. 307-308.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 307.
[3] Já a impossibilidade originária da prestação gera a nulidade do negócio jurídico donde a obrigação procede, nos termos do art. 401.º, do CC.
[4] Manuel Januário da Costa Gomes, Em Tema de Contrato-Promessa, 6.ª Reimpressão, Lisboa, 2005, p. 58.
[5] Batista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1979.