Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2084/24.7T8LLE.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
AUDIÊNCIA DO REQUERIDO
Data do Acordão: 09/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O procedimento cautelar de restituição provisória de posse, o texto do art. 378º do CPC não contém qualquer vocábulo que permita fundar a tese de que, antes de proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente, o juiz tenha de ouvir a parte contrária quando tal for solicitado pelo requerente da providência.
II - O que se prevê nesse normativo é que o juiz só decretará a providência se, pelo exame das provas, sem citação nem audiência do requerido, reconhecer que o requerente tinha a posse e dela foi esbulhado violentamente. E, por aplicação do disposto nos art. 376º, nº 3 e 366º, nº 6, do CPC, se for decretada a providência, será depois notificado o requerido para exercer o contraditório.
III - Trata-se, pois, de um caso excecional previsto na lei, permitindo-se a tomada da providencia em causa contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida (art. 3º, n º2, do CPC).
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 2084/24.7T8LLE.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou o presente procedimento cautelar contra BB e CC, pedindo a restituição provisória da posse do anexo que os requeridos receberam em comodato, existente no prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...20 da freguesia ... e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...95 e na matriz urbana sob o artigo ...69.
Alegou, em síntese, ser comproprietário do referido prédio, tendo permitido aos requeridos usarem um “anexo” deste prédio para sua própria habitação, sendo que os requeridos têm um cão que já agrediu o cão e outros animais pertencentes ao requerente, fecharam a cadeado “dependência” do mesmo prédio que não lhe foi permitida usar, mudaram fechadura do “anexo” e, notificados de que deveriam sair até 30.06.2024, os mesmos não o fizeram.
Após inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente, foi proferida decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar.
Inconformado, o requerente apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«1. A sentença recorrida só pode ter sido redigida por quem não teve tempo, ou não o quis desperdiçar, a ler o requerimento inicial.
2. A sentença recorrida ignorou o princípio de que o processo está na disponibilidade das partes.
3. A sentença recorrida violou o princípio do contraditório.
4. A sentença recorrida é nula por violação do princípio da igualdade das partes.
5. Mesmo que não o tenha internalizado a Magistrada que proferiu a sentença recorrida é titular de um órgão de soberania, tem por função administrar a justiça em nome do povo, de acordo com as fontes de direito a que deva recorrer nos termos da Constituição e da lei (artigo 3º, nº 1, do EMJ) e, nessa função, deveria assegura a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados e garantir a igualdade processual dos interessados nas causas que lhes são submetidas.
6. Para honrar o cargo e a função, a Senhora Magistrada teria de dedicar algum tempo a ler aquilo que ao tribunal foi pedido. Coisa que, manifestamente, não fez.
7. No requerimento inicial foi expressamente requerida a citação dos requeridos e o seu depoimento de parte a todos os factos articulados. O juiz omitiu pronunciar-se sobre esta parte do pedido, o que consubstancia a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
8. Ninguém pediu ao juiz que julgasse a providência cautelar sem audição da parte contrária. Ao fazê-lo, fez incorrer a sentença recorrida na nulidade prevista na última parte da alínea d) do nº 1 do art. 15º do CPC.
9. A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação - alínea b) do nº 1 do art. 615º do CPC.
10. A Magistrada que proferiu a decisão recorrida cometeu o crime de denegação de justiça, tipificado no artigo 369º do Código Penal.
11. O Estado, para garantir o direito à tutela jurisdicional efetiva tem de proporcionar, aos cidadãos, a confiança de que a administração da justiça é justa, cumprindo assim o dever enunciado pelo TEDH através da teoria das aparências – de que num Estado de Direito a administração da justiça para além de ser justa deve parecer justa, sob pena de desconfiança no próprio Estado de Direito democrático.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas., como sempre, doutamente suprirão, deverá a decisão recorrida ser declarada nula, com as legais consequências.»

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se houve violação dos princípios do contraditório e de igualdade das partes;
- se a decisão recorrida enferma de nulidade;

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na decisão recorrida foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos:
1. O Requerente é comproprietário do prédio misto sito em ..., registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...20 da freguesia ... e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...95 e na matriz urbana sob o artigo ...69.
2. Entre Requerente e Requeridos foi acordado verbalmente que o primeiro cedia aos segundos o uso de um anexo existente no prédio identificado em 1. sem que estes ficassem obrigados ao pagamento de qualquer quantia monetária.
3. Os Requeridos mudaram-se para o referido anexo, levando com eles um cão;
4. Esse cão atacou o cão que pertence e vive com o Requerente.
5. Deixando o cão solto e com acesso à zona onde estava o cão do Requerente, o cão dos Requeridos colocou-se sobre o cão do Requerente, este deitado de costas, e começou a morder-lhe o pescoço.
6. Como o Requerente e a sua mulher não se encontravam em casa, foi a intervenção duma vizinha que se apercebeu da agressão e começou a gritar, o que alertou os Requeridos, que conseguiram controlar o seu animal.
7. DD, prestador de serviços na área da jardinagem, informou o Requerente de que a cobertura plástica da estufa, que ele tinha preparado, tinha sido praticamente toda rasgada durante a noite.
8. Foi chamada a GNR, que abriu um inquérito por denúncia do Requerente contra os Requeridos por dano na cobertura da estufa.
9. O Requerido fechou a cadeado uma dependência do prédio identificado em 1., relativamente à qual o Requerente não lhe tinha permitido usar.

E foi considerado não provado que:
A. Foi em novembro de 2023 que sucedeu o descrito em 2. dos factos indiciariamente provados;
B. O anexo descrito em 2. dos factos indiciariamente provados é exatamente composto por 2 quartos, sala, hall, cozinha e casa de banho;
C. Foi sem consentimento prévio do Requerente que os Requeridos levaram consigo um cão;
D. O Requerido teve dificuldade em controlar o seu animal;
E. O cão dos Requeridos é agressivo para com pessoas e ataca igualmente qualquer animal que consiga alcançar, como galinhas, gansos e pavões, que vivem na propriedade.
F. Em 29.05.2023, o Requerente enviou ao requerido, via WhatsApp, uma mensagem com o seguinte teor: “Caro BB, Eu ajudo as pessoas, por razões filosóficas, sem exigir nada em troca a não ser respeito e que não me mintam (mentir é uma forma de faltar ao respeito a quem se mente). Sempre o tratei com respeito, como meu igual, e nunca lhe exigi nada em troca da casa que habita, de graça, sem pagar água nem eletricidade. Você teve liberdade para fazer o que achava que devia. Tolerei algumas mentiras, sem grande importância, e algumas faltas de respeito. Mas não tolero desaforos de quem tem idade para ser meu filho e a quem só fiz bem. Nem que me telefonem às 5 da manhã a queixar-se de que não tem água. A partir de agora não falo mais consigo, já que não é capaz de controlar a sua falta de educação. Receberá uma notificação para desocupar a casa até 30 de junho, com a fundamentação legal do direito que me assiste. Se quiser consultar um colega meu, advogado, está no seu direito. Está na casa desde novembro, e nos seis meses que decorreram deveria ter poupado cerca de 3.000 euros – a renda da casa que pagava mais a água e eletricidade dariam cerca de 500 euros por mês. Eu, por outro lado, poderia ter arrendado a casa por mais de 500 euros e poupava a água e eletricidade que vocês gastam – o que daria cerca de 3.900 euros. Daria para ter um trabalhador 2 vezes por semana, para tratar do jardim, e uma mulher dois dias por semana, para limpar a minha casa e a casa do meu irmão. Enfim, tiveram a vossa oportunidade e não a souberam aproveitar. Estava disposto a adiar por mais um mês as obras que eu e os meus irmãos decidimos fazer, por consideração para convosco, dando-lhes mais tempo para arranjar outra casa. Mas a sua falta de respeito levou-me a concluir que não merecem essa tolerância. Quanto ao cão, parece que não têm consciência de que ter um animal de estimação implica responsabilidades – ter um chip registado, ter as vacinas em dia, especialmente contra a raiva. A falta das vacinas constitui um risco para as pessoas e para os outros animais. Agradeço que me mande, pelo WhatsApp uma foto do “Boletim Sanitário” do Snoopy. Quanto à falta de água, deveu-se à rotura de um cano, que terá de ser substituído. Se quiser contribuir para a resolução mais rápida do problema, poderá abrir a vala para pôr o tubo roto a descoberto. AA”
G. Como o Requerido não mandou a fotografia do boletim sanitário do cão, chamado Snoopy, foi-lhe enviado em 31.05.2024 a seguinte mensagem: “Exmª senhor BB, Não me mandou a foto do boletim do Snoopy, pelo que deduzo que não tenha. A posse de um cão, em Portugal, impõe ao dono responsabilidades legais, nomeadamente a necessidade do registo, licenciamento e de identificação eletrónica (microchip) do animal. O registo e o licenciamento são obrigatórios para todos os cães entre os 3 e os 6 meses de idade e devem ser efetuados na junta de freguesia da área de residência do dono ou detentor do animal. A licença é renovada anualmente, mediante o pagamento de uma taxa. Para proceder ao licenciamento do seu cão são condições prévias obrigatórias, a identificação eletrónica (aplicável a cães nascidos a partir de 01 de julho de 2008) e a vacina da raiva. Deverá, pois, fazer-se acompanhar do boletim de saúde do seu cão. Os cães são registados, nas Juntas de freguesia, mediante as seguintes categorias: • Categoria A - Cão de companhia • Categoria B - Cão com fins económicos • Categoria C - Cão para fins militares • Categoria D - Cão para investigação científica • Categoria E - Cão de caça • Categoria F - Cão guia • Categoria G - Cão potencialmente perigoso • Categoria H - Cão perigoso Para as categorias H (cães perigosos) e G (potencialmente perigosos), existe uma legislação específica que deve conhecer: Decreto-Lei n° 312/2003, de 17 de dezembro; Decreto de lei Nº315/2009 de 29 de outubro, Portaria Nº422/2004 de 24 de abril; Portaria Nº585/2004 de 29 de maio; Despacho n.º 10819/2008 de 14 de abril. Entende-se por “animal perigoso” qualquer animal que independentemente da sua raça, se encontre nas seguintes condições: • Tenha mordido ou atacado uma pessoa; • Tenha ferido gravemente ou morto um outro animal fora da propriedade do dono do animal; • Tenha sido declarado voluntariamente pelo seu dono à junta de freguesia da sua área de residência que tem um carácter e comportamento agressivos; • Tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais. Requisitos para obtenção da licença: • Transversal a todos os cães - Boletim sanitário, vacina da raiva em dia e microchip (A colocação do microchip é obrigatória para todos os cães nascidos a partir de 1 de julho de 2008) • Cães potencialmente perigosos (Raças ou cruzamentos de raças de cães potencialmente perigosas: Cão de Fila Brasileiro, Dogue Argentino, Pit Bull Terrier, Rottweiller, Staffordshire Terrier Americano, Staffordshire Bull Terrier e Tosa Inu) – termo de responsabilidade, registo criminal, seguro de responsabilidade civil, exame de aptidão física e psíquica, esterilização/castração. Se o cão tem microchip e boletim, poderá aproveitar a campanha de vacinação pelo veterinário municipal de Loulé, que vai estar na Soalheira e no Parragil, no dia 6 de junho, às 9,00 e 9,30, para vacinar os cães. Poderá comprovar as datas, locais e horas na Junta de Freguesia, onde deve registar o cão. Se não tem microchip, deverá levá-lo a um veterinário, que tratará do assunto e dará um boletim sanitário. Anexo Portaria 264/2013, de 16 de agosto, sobre o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal. Se no dia 6 de junho não me comprovar que o Snoopy está vacinado e registado, tomarei medidas para que seja removido da minha propriedade. Como advogado, tenho a responsabilidade de evitar que o Snoopy, na minha propriedade, ponha em risco pessoas e outros animais.
H. O Requerido respondeu com um lacónico “OK”, mas nunca informou se o cão estava vacinado e registado.
I. Em 16.04.2024, o Requerente e a mulher regressaram de uma viagem a Marrocos, enquanto os Requeridos tinham acabado de partir para o Brasil, e o Requerente enviou-lhes via WhatsApp, a seguinte mensagem: “16.04.2024 Já tivemos tempo de nos instalarmos de novo e de ver o que está bem ou menos bem. Tivemos um problema na ida para Marrocos: o carro foi apreendido pela polícia espanhola na fronteira de Algeciras porque havia um alerta na Interpol, de 2020, de que o carro tinha sido roubado. Ora eu comprei o carro diretamente a ... em setembro de 2022, pelo que só podia ser um erro. De qualquer forma a polícia não me devolvia a viatura sem que o alerta fosse cancelado. Ficamos à espera num hotel, em Algeciras, e como na quarta-feira o assunto continuava sem solução voltamos a casa, apanhámos o ... e fomos para Marrocos nele. A polícia espanhola até foi simpática, deixaram-nos mudar a tralha toda do ... para o ... e até ajudaram. No sábado à tarde, no regresso, recuperamos o ... e voltamos com os dois carros, com a EE a conduzir o ... e eu o .... Eu e a minha mulher tivemos um desgosto enorme com o desaparecimento do ninho da pavoa. A incubação devia terminar no dia da nossa chegada ou no dia anterior. No ano passado, ela chocou num sítio que nós nunca descobrimos. Um dia apareceu no jardim com os filhotes atrás. No dia 29, antes de viajarmos, tinha tirado as fotografias anexas quando ela abandonou o ninho para comer. Felizmente ela não desapareceu. Está viva, embora ferida e com falta de penas nas costas. Não houve raposa nenhuma. O vosso cão descobriu o ninho, atacou-a, mas ela conseguiu escapar deixando-lhe as penas das costas na boca. Parece evidente que o vosso cão não tem lugar na minha propriedade e vocês deveriam ter sido os primeiros a verificar isso. A minha filosofia de vida é simples – viver em paz, feliz, rodeado de gente, animais e plantas também felizes, se possível. Um cão de que a minha mulher tem medo, que ataca o meu próprio cão e que mata os meus animais não encaixa no meu mundo. Eu próprio tinha vários cães grandes, de raça Rafeiro Alentejano, de que gostava muito. Mas tive de me desfazer deles porque iam para o caminho e, embora não fizessem mal a ninguém, assustavam quem passava. Tive imensa pena, mas não podia impor às outras pessoas a presença de animais que lhes causavam medo. A vizinha da frente, que no outro dia telefonou aflita quando o Snoopy atacou o FF, ajudou-me a encontrar quem os adotasse. Quando voltarem têm de resolver este problema. Quanto às plantas, morreram muitas que eu tinha semeado para plantar quando voltasse, por falta de rega - melões, melancias, pepinos, alfaces etc. Mas vou plantar de novo. Vocês têm aqui uma casa, água, eletricidade e um bom espaço e eu não exijo muito em troca. Só quero que se sintam bem e sejam felizes – mas não têm o direito de me impor a presença do vosso cão. Já me causou demasiados desgostos. Há uma condição, de que eu não abdico, para que aqui continuem: não aceito que me mintam. Considero uma falta de respeito que não voltarei a tolerar. Cumprimentos e uma boa estadia no Brasil.”.
J. Porque a questão do cão não foi resolvida, e por outras menos graves, os Requeridos foram informados verbalmente de que não existiam condições para que permanecessem na propriedade.
K. Os Requeridos não levaram a sério a informação, dizendo malcriadamente que permaneceriam na casa emprestada até arranjarem outra, por uma renda que pudessem pagar, o que levaria muito tempo.
L. O Requerente informou o Requerido, por mensagem via WhatsApp, de que iria receber uma notificação para deixar a casa até 30 de Junho.
M. O Requerido reagiu mal, desmontou uma mangueira de regar o jardim, arrancou e partiu um abacateiro semeado pela mulher do Requerente num vaso, em 2021, e rasgou a cobertura plástica da estufa.
N. Foi exactamente no dia 3 de Junho que sucedeu descrito em 7. dos factos indiciariamente provados.
O. O Requerente enviou outra mensagem por WhatsApp: regime do comodato.pdf “Exmº Senhor BB, Reparei que tomou a liberdade de fechar a cadeado uma dependência de que não lhe foi facultado o uso. Foi um abuso da sua parte. Como V. Exa. parece não ter formação jurídica, deixe-me esclarecer as regras da sua permanência na minha propriedade. O contrato que estabelecemos, pelo qual V. Exa poderia habitar, gratuitamente, o anexo da minha propriedade, tem um nome, tanto no direito português como brasileiro: comodato. É o nome jurídico para o empréstimo de coisas, móveis ou imóveis, não consumíveis, que devem ser restituídas após o uso. No direito português, o comodato rege-se pelo disposto nos artigos 1129º a 1141ºdo Código Civil. No direito brasileiro, o regime deste contrato encontra-se nos artigos 579º a 585º do Código Civil Brasileiro. Anexo os artigos do Código Civil Português aplicável, para que V. Exa tenha a noção da sua posição e deixe de pensar e dizer disparates. O objeto do nosso contrato foi, exclusivamente, o anexo para habitação e não o terreno ou os outros anexos. E a finalidade foi habitação, e não outra, nomeadamente depósito e manuseamento de lixo e ferro velho. Assim, deverá V. Exa retirar da propriedade o ferro velho que tem acumulado, uma vez que não lhe foi concedido o uso do terreno. Relativamente aos restantes anexos, deverá V. Exa. retirar todos os bens que lhe pertencem, nomeadamente bicicleta, roupa e cadeado abusivamente colocado, restringindo-se ao espaço cujo uso lhe foi concedido. Tomo a liberdade de chamar a sua atenção para os artigos 1135º (obrigações do comodatário, isto é, suas) e o nº 2 do artigo 1132º - Se não foi convencionado prazo para a restituição (como é o caso) nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida. Por uma questão de respeito para com todas as pessoas, que faço questão de manter em todas as situações, mesmo quando não merecem, foi-lhe dado um prazo para desocupar a casa. Espero que o respeite porque, a partir dessa data, deixará de ter água e eletricidade, e a casa vai entrar em obras.”.
P. Os Requeridos foram notificados de que o contrato de comodato terminava em 30 de Junho de 2024, por carta regista datada de 29 de Maio de 2024, por eles recebida a 3 de Junho de 2024.
Q. No dia 5 de Junho, o Requerido enviou ao Requerente a seguinte mensagem: “Fechei está área que usamos como lavandaria e também porque andou sumindo alguns objetos meu. … Quanto ao ferro já tirei quase tudo. Vou terminar de limpar hoje… Bom dia seu GG, ontem a lavandaria estava fechada. Peço para que o senhor abra a porta para podermos lavar roupas”.
R. Essa mensagem teve a seguinte resposta: “Exmº Senhor BB, O anexo a que chama “lavandaria” foi por mim mandado fazer para servir de minha oficina e não de sua lavandaria. É um dos anexos cujo uso não lhe foi concedido e a que me referi na minha mensagem anterior, em que escrevi: Relativamente aos restantes anexos, deverá V. Exa. retirar todos os bens que lhe pertencem, nomeadamente bicicleta, roupa e cadeado abusivamente colocado, restringindo-se ao espaço cujo uso lhe foi concedido. Abrirei a porta para que retire a máquina de lavar e mais alguma coisa que lhe pertença. Não para que a use como sua lavandaria.”.
S. O Requerido respondeu com várias mensagens estranhas, entre as quais: “O senhor nos deu permissão sim. Falou que podíamos usar até a garagem Vamos continuar lavando roupa lá sim Senão vou ter que usar a sua máquina Eu queria entender por que mudaste tão drasticamente. Você parecia ser uma pessoa tão boa. Mas agora está mostrando o que és realmente O que posso esperar de uma pessoa que destrói seu próprio bem para acusar uma pessoa inocente. Cada um dá o que tem O que o senhor quer é que eu brigue para ter algo a dizer contra mim. Mas isso jamais acontecerá porque sou uma pessoa do bem”.
T. Foi-lhe enviada a seguinte resposta: “Exmº Senhor BB, Eu não falo consigo por dois motivos: 1 – Não tenho de aturar insultos nem faltas de respeito de ninguém e o Senhor mostrou ser incapaz de falar sem recorrer a insultos; 2 – O Senhor não compreende a sua situação, julga ter direitos que não tem. Parece não entender que não tem o direito de viver numa casa alheia emprestada, gastando água e eletricidade pagas por outra pessoa, durante o tempo que quiser, sem fazer absolutamente nada. O empréstimo de coisas, sejam casas, carros ou bicicletas, é sempre temporário. Se emprestar o seu automóvel a alguém não esperará que esse alguém pense que tem o direito de utilizar o seu carro durante o tempo que entender. Diz que eu parecia bom e que mudei. Explico-lhe porquê: 1 – O Senhor e a sua mulher acham que me podem impor a presença de um cão que é perigoso. Aos domingos, enquanto descansavam em casa, deixavam o cão solto pela propriedade. Num domingo, matou um casal de frangos meus, de estimação. Na semana seguinte, matou a mãe desses frangos. Num outro, arrancou a cauda a um pavão. Num outro, ia matando o FF, durante a minha ausência, o que só não aconteceu graças à vizinha HH, que se apercebeu e deu o alerta.. Finalmente, durante a minha estadia em Marrocos, destruiu o ninho da pavoa, que chocava 6 ovos, e quase que a matava. Deveriam ter sido os primeiros a concluir que o cão não tem lugar nesta propriedade. Não só não o fizeram como ignoraram o meu pedido para que resolvessem a situação. 2 – A primeira vez que pedi alguma coisa à sua mulher, que ajudasse a minha cunhada, de 80 anos, a limpar a casa, mediante o pagamento das horas que fizesse, o que aconteceu foi surreal: a) Combinou ir falar com a minha cunhada às 15, acompanhada por mim para a apresentar. e apareceu quase às 17. b) Disse à minha cunhada que não tinha tempo para a ajudar, mas, se precisasse mesmo muito, poderia fazer umas horas mediante o pagamento de 12,5 euros por hora. Primeiro, é uma falta de respeito chegar quase duas horas atrasada a uma reunião, com a desculpa de que se deixou dormir. Foi uma perda de tempo perfeitamente desnecessária e inútil e o tempo de vida das pessoas é precioso. Todos temos o nosso tempo de vida, sempre limitado, e a natureza bem sequer é justa, porque uns têm mais e outros têm menos. Mas a vida pode ser medida em tempo e fazer perder tempo a alguém é fazê-lo perder vida. Ninguém tem esse direito. Segundo, é um insulto dizer a quem é também proprietário da casa que habita de graça (a propriedade é minha e dos meus dois irmãos), que não tem tempo para ajudar, mesmo mediante remuneração, porque trabalha, é muito ocupada, e ganha 12,5 euros por hora. Se assim é, não precisa da casa emprestada, pode perfeitamente arrendar uma e deixar esta para quem realmente precise. Além de que a casa é mal-empregada num casal sem filhos, dá perfeitamente para uma família com dois ou três filhos. O Senhor e a sua mulher são como crianças egoístas: pensam que tudo lhes é devido, e não têm respeito nem consideração por quem os ajuda. Quanto ao que faz ou não faz, como desmontar a torneira de rega em frente da sua porta, arrancar e partir o abacateiro que estava num vaso, ou a cobertura da estufa, não irei discutir isso consigo. Parece ser religioso, pelo que, certamente, acreditará que o Senhor Deus o recompensará pelo mal ou bem que faz. A ideia de usar a minha máquina de lavar parece ser mais uma sua ideia insensata e irrealista, de direitos que não tem. Fica expressamente proibido de passar o portão que divide a minha casa e o jardim do resto da propriedade. Deverá restringir-se ao acesso à casa que ocupa, temporariamente, enquanto durar essa ocupação. Aconselho-o vivamente a que consulte um advogado que o instrua sobre os direitos que efetivamente tem, e o esclareça sobre aqueles que não tem.”.
U. Em 27.06.2024, de Marrocos, onde se encontrava, o Requerente enviou ao Requerido a seguinte mensagem: “Exmº Senhor, quando sair da casa agradeço que ponha as chaves e os comandos do portão na minha caixa do correio. Relembro que a casa vai ficar sem água e sem eletricidade a partir de 1 de julho, se não houver atraso no início das obras. Se eu tiver que recorrer ao tribunal para o obrigar a sair vou exigir 50 euros de indemnização por cada dia de atraso na entrega das chaves. Cumprimentos, AA.”.
V. Alegando que não saía por não conseguir arranjar casa, o Requerido acabou por informar que arranjava casa por 1.000 euros mensais, pelo que “Tem casa de 1000 euros eu pagava 350 o senhor vai pagar a diferença”, em mensagem do mesmo dia 27.05.
W. Aos Requeridos foi-lhes enviada a seguinte mensagem no dia 01.07: “Exmº Senhor BB, Passou o prazo para entregar as chaves da casa que vos foi emprestada. Vou ter que recorrer aos meios legais para vos obrigar a sair, o que, infelizmente, vos vai causar incómodos e despesas. O Senhor parece pensar que eu tenho, para consigo, as obrigações de um pai. Ora eu não sou seu pai biológico e, mesmo que o fosse, não teria obrigação nenhuma de lhe satisfazer os desejos ou necessidades. Porque o senhor já é adulto. Por outro lado, o Senhor parece não ter a noção de que também tem obrigações, entre elas a de respeitar as outras pessoas, quer estas lhe façam bem, não façam nada ou, até, que lhe façam mal. Todos os seres humanos devem respeitar os outros seres humanos. O Senhor nunca entenderá uma pessoa como eu, porque não sabe o significado do altruísmo, conceito que eu procuro praticar – quando tenho mais do que preciso, partilho aquilo que tenho a mais ou que não me faz falta com quem não tem, ou não tem o suficiente para uma vida digna. Sem exigir nada em troca. A sua mulher até disse, quando entraram para a casa, que eu não existia, que uma pessoa como eu não existia. Porque, de facto, vocês não concebem que existam pessoas como eu. Eu até estou habituado a essa incompreensão, e há um ditado português que se aplica a esta situação: quando a esmola é grande, o pobre desconfia. E parece que vocês estavam desconfiados, com medo de dar mais do que aquilo que recebiam. Daí os disparates que escreveu, como aquele de que eu procuraria um escravo. A verdade é que eu não preciso rigorosamente nada de si ou da sua esposa. Não têm nada para oferecer que eu não possa obter noutro lado. Além de advogado, fui professor universitário durante muitos anos, o tempo suficiente para aprender que há coisas que não se conseguem ensinar. Uma delas é o respeito devido aos outros. Se, com a vossa idade, não sabem o que isso é, não serei que vos vou ensinar. Será a própria vida a ensinar-vos. Ou não, se não forem capazes de aprender. Mas, essa vida, terão de a viver longe de mim porque, com já escrevi antes, não tenho que aturar faltas de respeito de ninguém. AA”.
X. Os Requeridos mudaram a fechadura da porta de entrada e passaram a deixar o cão Snoopy dentro dela, quando saem para trabalhar, cão que atacará qualquer pessoa que tentar entrar na habitação.
Y. Os Requeridos deixavam o cão num canil existente na propriedade do Requerente e que este lhes tinha disponibilizado.

O DIREITO
Da nulidade decorrente da /violação dos princípios do contraditório e de igualdade de partes
Na petição inicial, entrada em juízo em 24.07.2024, foi pedido o decretamento da providência cautelar de restituição provisória de posse, requerendo-se a final a citação dos requeridos.
Em 29.07.2024 foi proferido despacho no qual se exarou:
«Para inquirição das testemunhas arroladas pelo Requerente, designa-se o dia 21.08.2024, pelas 14:0 horas – artigo 378º do Código de Processo Civil.»
O art. 154º, nº 1, do CPC[1] prevê:
«As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.».
E o art. 615º - aplicável aos despachos, ex vi art. 613º, nº 2, dispõe:
«1. É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)».
O despacho proferido em 29.07.2024 a designar data para a inquirição de testemunhas, ao fazer menção ao art. 378º, não deixa dúvidas de que a providência seria decidida sem citação nem audiência dos esbulhados.
A este respeito diremos que se é certo não ter a decisão recorrida conhecido desta questão, não menos certo é estarmos perante uma omissão que não tem a virtualidade de acarretar a nulidade de tal decisão, por não se tratar de questão que devesse ser, obrigatoriamente, nela decidida.
É que, configurando a falta de audição prévia à decisão, nos termos do art. 3º, nº 3, uma mera nulidade processual, sujeita ao regime de arguição estabelecido no art. 195º e ss., a mesma sempre teria de ser considerada sanada por não ter sido arguida, perante o Tribunal de 1ª Instância, no prazo de 10 dias a contar da notificação do aludido despacho, ou eventualmente, num entendimento mais abrangente, aquando da inquirição das testemunhas (art. 198º, nº 1].
Sem prejuízo, e para que dúvidas não existam, sempre se dirá que não foi cometida nulidade processual tendo como consequência a anulação de todo o processado de harmonia com o disposto no art. 195º, nºs 1 e 2.
O art. 3º, nº 3, estatui que «[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.».
O art. 366º, nº 1, inserido no capítulo com a epígrafe «Procedimento cautelar comum», estabelece: «O tribunal ouve o requerido, exceto quando a providência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.».
Por sua vez, o art. 378º prescreve: «Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.» (destaque e sublinhado nossos).
Portanto, estes dois últimos normativos - tal como o art. 393º, referente ao arresto - admitem que não seja observado o contraditório antes de ser decretada a providência cautelar.
Parece decorrer da prolixa alegação do recorrente, ser entendimento deste que a providência cautelar de restituição provisória de posse não tem como regra geral a não audição da parte requerida, designadamente se tal audição for pedida pelo próprio requerente.
Mas não tem razão.
De harmonia com o disposto no art. 9º do Código Civil não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que perfeitamente expresso.
Ora, o texto do art. 378º não contém qualquer vocábulo que permita fundar a tese de que, antes de proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente, o juiz tenha de ouvir a parte contrária quando tal for solicitado pelo requerente da providência. O que se prevê nesse normativo é que o juiz só decretará a providência se, pelo exame das provas, sem citação nem audiência do requerido[2], reconhecer que o requerente tinha a posse e dela foi esbulhado violentamente. E, por aplicação do disposto nos art. 376º, nº 3 e 366º, nº 6, se for decretada a providência, será depois notificado o requerido para exercer o contraditório.
Trata-se, pois, de um caso excecional previsto na lei, permitindo-se a tomada da providencia em causa contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida (art. 3º, n º2)
Sendo recusada a providência e interposto recurso pelo requerente, como sucedeu in casu, o requerido não deve ser citado para os respetivos termos, visto que se mantém a razão de ser do secretismo do procedimento: por aplicação do art. 641º, nº 7, o recurso seguirá sem contraditório[3].
Deste modo, sempre improcederia a arguição de nulidade por violação do princípio do contraditório e de igualdade de armas,

Da nulidade da decisão recorrida
Ao invés do que sustenta o recorrente, a decisão recorrida não enferma de nenhuma das nulidades invocadas.
A causa de nulidade da sentença tipificada na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão.
Ora, basta uma leitura minimamente atenta, para se ver que na decisão recorrida se mostram especificados os factos provados e não provados, a motivação da decisão de facto e a subsunção dos factos ao direito, pelo que é manifesto que a decisão recorrida não enferma de tal nulidade.
Por sua vez, de acordo com a alínea d) do nº 1 do artigo 615º, temos que a sentença é nula «Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Ora, a decisão recorrida pronunciou-se sobre tudo o que tinha de apreciar, como a sua simples leitura demonstra, sendo certo que não tinha de pronunciar-se sobre a requerida audiência dos requeridos, pelas razões já expostas.
Em suma, a decisão recorrida não enferma de nenhuma das nulidades invocadas pelo recorrente.

Uma última palavra a propósito da alegada prática, pela Sr.ª Juíza de turno que proferiu a decisão recorrida, do crime de denegação de justiça p. e p. pelo art. 369º, nº 1, do Código Penal[4].
Não sendo esta a sede própria, como é evidente, para analisar a eventual prática desse putativo crime – ou de qualquer outro -, sempre se dirá que a questão da nulidade da decisão recorrida foi já apreciada supra, cabendo apenas salientar que a Sr.ª Juíza se limitou a cumprir com o determinado na lei adjetiva.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencido no recurso, suportará o requerente/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Évora, 26 de setembro de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Maria João Sousa e Faro
Elisabete Valente
(documento com assinaturas eletrónicas)

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[1] São deste Código todos os preceitos adiante indicados sem menção de origem.
[2] No que pode ver-se uma penalização dirigida ao esbulhador e, em simultâneo, o interesse na rápida emissão de uma decisão judicial, mas também um maior risco – cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Vol. I, 2ª edição, p. 467.
[3] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Almedina, Vol. III, pp. 269-270 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, p. 100.
[4] No despacho que admitiu o recurso foi mandado dar conhecimento do mesmo à Sr.ª Juíza.