Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1424/23.0T8FAR.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
SUCESSÃO NO ARRENDAMENTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25.10, podia ser substituída por um acordo, expresso ou tácito, entre o senhorio e a pessoa com direito a adquirir a posição contratual do arrendatário nos termos do artigo 23.º do mesmo diploma legal, no sentido de essa aquisição se verificar.
2 – É de concluir pela existência de tal acordo se, durante mais de vinte anos após a morte do último dos dois primitivos arrendatários, o filho destes permaneceu no prédio, sem oposição dos então senhorios, e pagou a respectiva renda, por estes últimos recebida.
3 – A simples falta de prova de alguns dos factos alegados por uma parte não permite concluir, sem mais, que esta litigou de má fé.
4 – Salvo se existir norma legal nesse sentido, não é exigível, a quem pretende propor uma acção, tomar previamente a iniciativa de resolver o litígio extrajudicialmente, dirigindo-se às pessoas envolvidas, indagando das suas razões e fazendo-lhes uma proposta de resolução amigável.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1424/23.0T8FAR.E1

Autora/recorrente: (…), S.A..

Réu/recorrido: (…).

Pedidos da autora: a) Declarar-se a autora como dona e legítima proprietária do imóvel em apreço nos autos; b) Condenar-se o réu a restituir à autora o imóvel em causa livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições; c) Condenar-se o réu a cessar de imediato a intromissão e a prática de qualquer acto que viole o direito de propriedade da autora sobre aquele imóvel; d) Condenar-se o réu ao pagamento de uma indemnização à autora, correspondente ao valor pela ocupação ilegítima do imóvel e aos danos patrimoniais, calculada nos termos do artigo. 661.º, n.º 2, do CPC, que nunca poderá ser inferior a € 24.000,00; e) Condenar-se o réu ao pagamento de sanção pecuniária compulsória, que se mostre adequada a assegurar a efectividade da decisão, e que o tribunal equitativamente fixará, mas não inferior a € 100 diários.

Pedidos do réu: a) Na hipótese de a acção ser julgada procedente, condenação da autora a pagar, ao réu, uma indemnização de € 1.150,05 por benfeitorias realizadas no prédio; b) Condenação da autora, por litigância de má fé, em multa e no pagamento de uma indemnização não inferior a € 3.500,00.

Sentença recorrida: Reconheceu o direito de propriedade da autora sobre o prédio dos autos, absolveu o réu de tudo o mais peticionado pela autora e condenou esta última, por litigância de má fé, no pagamento de uma indemnização de € 500,00 e de uma multa de € 1.530,00.

Conclusões do recurso:

1. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Juiz 2 do Juízo Central Cível de Portimão em sede dos autos com o número supra referenciado, a qual julgou improcedente o pedido de restituição da posse do imóvel objecto dos presentes autos por entender que o réu e recorrido tem um título válido de ocupação do imóvel, sendo arrendatário do mesmo.

2. Nos termos do artigo 24.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, na sua primeira versão, a transmissão do contrato de arrendamento via mortis causa do seu primeiro titular, só opera se o segundo titular que queira exercer aquele direito, comunique por escrito essa pretensão ao senhorio no prazo de 180 dias após a morte do arrendatário inicial.

3. Resulta provado nos presentes autos que o réu e recorrido não procedeu à comunicação por escrito ao senhorio, 180 dias após o óbito da sua mãe e titular do contrato de arrendamento em 28 de Agosto de 1992, da sua manifestação de interesse em adquirir a titularidade do contrato de arrendamento.

4. O contrato de arrendamento rural caduca por morte do arrendatário se, no prazo de 180 dias após a morte deste, os titulares do direito à transmissão do arrendamento não comunicarem por escrito ao senhorio a sua vontade de continuar como arrendatários.

5. Uma vez que o réu e recorrido nunca procedeu a esta comunicação por escrito, o contrato de arrendamento outrora existente caducou aquando o falecimento da sua titular em Agosto de 1992.

6. O facto da anterior proprietária «(…)» ter emitido um suposto recibo de renda em 2013 não pressupõe que tenha ocorrido uma verdadeira transmissão do contrato de arrendamento em data anterior, nem permite concluir, nos termos do artigo 762.º do Código Civil, que existia vínculo válido na altura, não podendo esta emissão de recibo ser considerada um comportamento concludente para os devidos efeitos legais.

7. Da prova documental produzida em sede dos presentes autos, resulta claro que o recorrido limitou-se a apresentar recibos avulsos que nada comprovam quanto ao pagamento contínuo e atempado das rendas ao longo dos anos.

8. Nos autos em apreço não está em causa o pagamento de rendas em falta, nem a cessão de uma posição contratual, pelo que não estamos perante uma acção de despejo, mas antes perante uma acção de reivindicação do direito de propriedade e restituição da propriedade, que pressupõe o não reconhecimento de um contrato de arrendamento pré-existente e a ausência de um título válido de ocupação do imóvel.

9. O artigo 20.º, n.º 1, da CRP garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legalmente protegidos», estabelecendo que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos.

10. Os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

11. Cada uma das partes intervenientes no processo tem que lhe ver conferido o direito de exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, de modo a apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questão que lhes digam respeito, bem como deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras.

12. Pelo que, não aceita a recorrente como justo os montantes da indemnização e da multa a que foi condenada a liquidar como litigante de má-fé, devendo a multa ser revogada ou ser substancialmente reduzida a condenação.

13. Dispõe o artigo 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil: «Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

14. O comportamento processual contrário à lei, desde que se conclua que foi adoptado pelo agente com dolo ou negligência grave na prossecução de uma finalidade inadmissível e susceptível de afectar seriamente, de forma injustificada, os interesses da parte contrária, consubstancia uma conduta reprovável e sancionada no âmbito do instituto da litigância de má fé.

15. Na situação sub judice, afigura-se-nos injustificada e totalmente incompreensível a aplicação da condenação da recorrente como litigante de má fé, pois a apelante apenas recorreu aos tribunais para que fosse discutida a reivindicação da propriedade do imóvel em questão, não se encontram preenchidos os requisitos da má fé processual.

16. A recorrente nunca teve qualquer conhecimento da existência de qualquer contrato de arrendamento ou outro ónus associado ao imóvel em questão nos presentes autos, porque nunca existiram.

17. Não pode a recorrente, proprietária com registo de aquisição a seu favor do imóvel objecto dos presentes autos, conforme resultou provado nos presentes autos, ser considerada litigante de má fé, quando se limita apenas a fazer valer judicialmente os seus direitos, pondo cobro a largos anos de prejuízos e reivindicando para si a propriedade do imóvel ilegalmente ocupado, que lhe pertence, exigindo a sua desocupação e o pagamento da justa compensação pela ocupação ilegal que o recorrido tem feito ao longo dos anos.

Questões a decidir:

1 – Aquisição da qualidade de arrendatário pelo recorrido;

2 – Litigância de má-fé.

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1. O Banco de Portugal, a 20.12.2015, deliberou aplicar medidas de resolução ao Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., as quais consistiram (i) na alienação da globalidade da actividade prosseguida pelo Banif e da maior parte dos seus activos e passivos ao Banco Santander Totta, S.A. e (ii) na constituição de um veículo de gestão de activos e transferência para o mesmo de um conjunto seleccionado de activos.

2. É neste contexto que ocorre a constituição da ora autora, conforme deliberação do conselho de administração do Banco de Portugal de 20.12.2015 (23.30h).

3. A autora, inicialmente denominada (…), S.A., é um veículo de gestão de activos constituído nos termos do artigo 145.º-S do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, tendo por objecto a administração dos direitos e obrigações, que constituíam activos do Banif e que lhe forem transferidos, em cada momento, por decisão do Banco de Portugal, conforme consta dos artigos 1º e 3º dos seus estatutos constantes do anexo 1 à deliberação doc. 1 e respectiva certidão permanente junta como doc. n.º 2.

4. Os específicos activos que lhe foram transferidos e que estão dependentes da sua gestão são os que constam do anexo 2 da acima identificada deliberação (doc. 1), a qual foi mais tarde clarificada, rectificada e consolidada por deliberação do Banco de Portugal de 04.01.2017.

5. De acordo com as referidas deliberações do Banco de Portugal, para a autora foram transferidos, entre outros, todos os activos imobiliários que eram da propriedade do Banif à data da resolução, com excepção daqueles que estivessem a ser utilizados ou ocupados por este na sua actividade.

6. Por sua vez, para o Banco Santander foram transferidos todos os outros activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banif, registados na sua contabilidade, que não resultem excluídos do anexo 3 à deliberação.

7. Ora, resulta do texto das deliberações acima juntas, que houve uma cisão do património do Banif, assumindo o Banco Santander a qualidade de verdadeira entidade sucessora daquela e, por sua vez, a autora, o veículo para o qual foram transferidos os activos imobiliários que eram propriedade do Banif e que não estivessem a ser utilizados ou ocupados por este no exercício da sua actividade comercial, à data da medida de resolução, com «o objetivo de maximizar o seu valor com vista a uma posterior alienação ou liquidação».

8. Em 04.12.2013, no âmbito do processo executivo n.º 2522/12.1TBPTM, que correu seus termos no Tribunal de Família e Menores da Comarca de Portimão – 3.º Juízo Cível, o então Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. adjudicou o prédio misto, composto de parte rústica com terras de semear e árvores de fruto, inscrito na matriz rústica sob o artigo (…), secção (…) e parte urbana com 19 casas de habitação, inscrita na matriz sob os artigos (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), sito em (…), freguesia e Concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), conforme título de transmissão junto como doc. n.º 4.

9. Ora, a autora tornou-se a dona e legítima proprietária do referido imóvel, já se encontrando registada como sua proprietária pela inscrição Ap. (…), de (…), conforme certidão da Conservatória do Registo Predial de Portimão junta como doc. n.º 5.

10. A titularidade da propriedade do imóvel está averbada a seu favor, na qual consta como único proprietário do mesmo, conforme caderneta predial urbana junta como doc. n.º 6.

11. Antes, o bem foi da titularidade de «(…)» por permuta em Abril de 2005 a (…); e depois então do Banif por adjudicação em execução por si movida.

12. Quando a autora se preparava para efectivar a tomada de posse do imóvel, sito na Av. (…), no Bairro do (…), conhecido como Bairro do (…), referente à casa n.º 12-D, a que corresponde o prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, inscrito na matriz predial sob o n.º … (apesar da referência a …), verificou que o mesmo se encontrava ocupado pelo réu, que detém as chaves de acesso à casa correspondente ao 12-D.

13. A autora nunca chegou a usufruir integralmente do imóvel.

14. A autora nunca reconheceu ao réu qualquer direito derivado da ocupação do imóvel, não se conformando com a sua ocupação.

15. O réu não suporta o pagamento de impostos, taxas e seguros com o imóvel.

16. A autora está impedida de proceder ao arrendamento da casa usada pelo réu, pelo que poderia obter € 300,00/mês, tendo como referência os preços de arrendamento praticados na zona relativamente a imóveis com áreas semelhantes ao supra-identificado.

17. O réu tem a sua residência na casa 12-D, onde vive com o filho (fls. 82 verso) e onde veio a ser citado e nunca a autora notificou ou contactou com o réu para lhe dar conta do seu direito sobre o imóvel.

18. O réu é filho de (…) e de (…), conforme certidão de nascimento de fls. 107.

19. E, o prédio que constitui a morada postal e residência efectiva e permanente do réu, era propriedade de (…), em 1[6] de outubro de 1970, data em que este celebrou com (…) e (…), pai e mãe do réu (falecidos respectivamente em 18 de Fevereiro de 1988 e 28 de Agosto de 1992 – fls. 80 verso/81 verso), um contrato de arrendamento ao cultivador directo, conforme doc. 3.

20. E desde Outubro de 1975, o referido prédio passou a ser da propriedade de herdeiros de (…), data em que estes realizaram a participação do mesmo junto da Secção de Finanças de Portimão, conforme resulta do mesmo doc. 3.

21. Foi emitido recibo de fls. 79 verso.

22. O mencionado contrato foi reduzido a escrito, pelos Herdeiros de (…), na qualidade de donos e legítimos proprietários do prédio rústico, sito no Sítio do (…), freguesia e concelho de Portimão e teve por objecto aquele prédio, que, segundo se escreve no contrato à data, se compõe de terras de semear e diversas árvores de fruto e do prédio faz parte 1 casa de habitação com 4 divisões, retrete e quintal com porta para a fazenda e que confronta do poente com (…) e outros; do sul com Estrada (…); do norte e nascente com Herdeiros de (…). Faz parte do artigo (…).

23. Verifica-se do clausulado, anexo ao mencionado contrato, que o arrendamento não caduca por morte do senhorio, nem pela transmissão do prédio, nem quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração, com base nos quais, o contrato foi celebrado.

24. A família do réu e o réu residiram no prédio, objecto do citado contrato que celebraram e em causa nos presentes autos.

25. O réu sempre aqui residiu, depois com a mulher e depois com o filho, nascido em 1997.

26. Desde a morte da mãe que o réu tem efectuado o pagamento da renda, sendo que a partir de 2005 passou a fazê-lo à (…) – Promoção de Habitação Cooperativa (Região do Algarve) até 2013 – fls. 83 (recibo de 2023) e fls. 115 verso (aquisição constante do registo com data de 2005 até 2013, data em que é adquirido pelo Banif).

27. O réu realizou o depósito da renda na conta n.º (…), indicada pela (…) – Promoção de Habitação Cooperativa (Região do Algarve) UCRL, para o efeito e titulada junto do Novobanco, em Dezembro de 2023, pois não lhe tinha sido comunicada alteração de proprietário – fls. 83 v., doc. 10.

28. O réu realizou obras na casa a nível de construção de um novo telhado, colocando palete e telha e ripa de pinho, substituição da porta de entrada, remodelação do chão da habitação e conservação das paredes, com pintura, no que despendeu em materiais € 1.150,05 – docs. 11 e 12, fls. 84/84 verso.

29. O réu foi citado nesta acção no dia 13 de Maio de 2024, altura em que teve conhecimento da (…) – fls. 64 verso.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

- Que o réu não tenha qualquer título para permanecer no imóvel;

- Que o réu esteja a lesar direito da autora e que o saiba;

- Que a autora tenha tentado por diversas ocasiões solicitar que o réu saísse do imóvel, com vista à entrega voluntária do mesmo, todavia, sem sucesso;

- Que a autora esteja privada de obter rendimentos com o imóvel;

- Que o réu não proceda ao pagamento de qualquer remuneração pela ocupação do imóvel;

- Que o réu não suporte despesas com a manutenção da casa onde habita.


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1 – Aquisição da qualidade de arrendatário pelo recorrido:

Resulta do enunciado dos factos provados (EFP) que:

- Em 1970, os pais do recorrido celebraram um contrato de arrendamento rural com um antecessor da recorrente na titularidade do direito de propriedade sobre o prédio, ulteriormente reduzido a escrito;

- O recorrido sempre residiu no prédio;

- O pai do recorrido morreu em 18.02.1988;

- A mãe do recorrido morreu em 28.08.1992;

- Desde a data da morte de sua mãe, o recorrido tem efectuado o pagamento da renda;

- Entre 2005 e 2013, o recorrido pagou a renda a (…) – Promoção de Habitação Cooperativa (Região do Algarve).

Com base nestes factos, o tribunal a quo concluiu que:

- A proprietária do prédio à data da morte da mãe do recorrido aceitou que este assumisse a posição de arrendatário;

- Sendo assim, nos termos dos artigos 405.º e 406.º do CC, deverá prevalecer a vontade das partes, que foi a de o contrato de arrendamento se manter e de o recorrido passar a ocupar a posição de arrendatário;

- Consequentemente, o recorrido está legitimado a ocupar o prédio, improcedendo a pretensão reivindicatória da recorrente.

A recorrente contrapõe, sucintamente, o seguinte:

- Na sequência da morte de sua mãe, o recorrido não comunicou, por escrito, a pretensão de que a posição de arrendatário para si se transmitisse, nos termos do n.º 2 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25.10;

- Consequentemente, o contrato de arrendamento caducou por morte da mãe do recorrido;

- A emissão de um recibo de renda por uma anterior proprietária do prédio, em 2013, não permite concluir que, nessa altura, existisse um vínculo válido.

Está, portanto, em causa saber se, na sequência da morte de sua mãe, o recorrido adquiriu a posição contratual desta.

À data da morte da mãe do recorrido (28.08.1992), vigorava o Decreto-Lei n.º 385/88, de 25.10 (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem indicação da sua origem). O n.º 1 do seu artigo 23.º estabelecia que o arrendamento rural não caducava por morte do arrendatário, antes se transmitindo: i) ao cônjuge sobrevivo, desde que não separado judicialmente ou de facto; ii) a parentes ou afins, na linha recta, que vivessem habitualmente com o arrendatário em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo; iii) àquele que, no momento da sua morte, vivesse com o arrendatário, há mais de cinco anos, em condições análogas às dos cônjuges. O n.º 2 do artigo 24.º estabelecia que, sob pena de caducidade, os titulares do direito à transmissão conferido pelo artigo 23.º que quisessem exercê-lo, teriam de o fazer, comunicando essa vontade ao senhorio, por escrito, no prazo de 180 dias após a morte do arrendatário.

O recorrido encontrava-se nas condições previstas no n.º 1 do artigo 23.º, mas não se provou que ele haja efectuado a comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º. Não obstante, o contrato de arrendamento não caducou.

O n.º 2 do artigo 24.º não visava salvaguardar qualquer interesse público. Tinha, sim, em vista regular interesses das partes da relação jurídica de arrendamento rural, estabelecendo um regime que o legislador considerou equilibrado no que concerne à transmissão da posição contratual do arrendatário na sequência da morte deste. Esse regime era imperativo, no sentido de que as partes não podiam, previamente (por exemplo, aquando da celebração do contrato), estipular um regime diverso, como seriam um prazo inferior a 180 dias ou requisitos formais diferentes para a comunicação da vontade de exercer o direito à transmissão. Contudo, nada impedia que, após a morte do arrendatário, uma das pessoas previstas no n.º 1 do artigo 23.º (respeitando, obviamente, a ordem estabelecida no n.º 2 do mesmo artigo) e o senhorio acordassem, expressa ou tacitamente, a transmissão da posição do arrendatário para a primeira, apesar da ausência da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º. Permitia-o o disposto nos artigos 405.º e 406.º, n.º 1, do CC. Tratar-se-ia de um contrato complementar do primeiro, mediante o qual uma das partes deste e uma pessoa a quem a lei conferia o direito de adquirir a posição contratual por morte da outra operariam esta última transmissão.

Foi precisamente isso que se passou no caso dos autos. Não ficou provado que o recorrido efectuou a comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º. Todavia, ficou provado que, entre 1992 e 2013, ano em que, no âmbito de um processo executivo, o prédio foi adjudicado ao Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., o recorrido pagou a renda devida a quem, em cada momento, foi o proprietário do mesmo prédio. Entre 2005 e 2013, esse pagamento foi feito a (…) – Promoção de Habitação Cooperativa (Região do Algarve), que emitiu, seguramente, o recibo referido no ponto 26 do EFP.

Destes mais de vinte anos de ininterrupto pagamento e recebimento da renda e de continuidade do gozo do prédio pelo recorrido, é lícito inferir-se que, em 1992, este último e o então senhorio acordaram, ao menos tacitamente, que o primeiro adquiriria a posição contratual ocupada por sua mãe até à data da morte desta. A comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º foi substituída por um acordo, entre os referidos sujeitos, no sentido da manutenção do contrato, passando o recorrido a ocupar a posição que fora de sua mãe. Mais de 20 anos de pagamento de rendas pelo recorrido e de recebimento das mesmas rendas por, pelo menos, dois senhorios sucessivos, bem como de permanência do gozo do prédio pelo primeiro sem oposição dos segundos, demonstram claramente que todos quiseram que o contrato se mantivesse em vigor, cumprindo os direitos e as obrigações dele decorrentes.

Carece, pois, de fundamento a tese da recorrente segundo a qual o contrato caducou em 1992 devido à falta de prova da realização da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 24.º. O facto de a renda ser paga e recebida e de o gozo do prédio continuar a ser permitido ao recorrido durante mais de vinte anos demonstra que o contrato se manteve em vigor por acordo das partes, que continuaram a respeitá-lo e a executá-lo. Acordo esse perfeitamente válido, pelas razões supra referidas.

Mantendo-se em vigor o contrato de arrendamento rural invocado pelo recorrido, concluímos, como o tribunal a quo, que este último tem um título que legitima a sua permanência no prédio, o que determina a improcedência da pretensão reivindicatória da recorrente.

2 – Litigância de má-fé:

O tribunal a quo condenou a recorrente em multa e indemnização por litigância de má-fé, com fundamentação que assim se resume:

- A recorrente alegou ter-se apresentado ao recorrido como proprietária do prédio e ter-lhe pedido que deste saísse; porém, não se provou que o tenha feito;

- Apesar de saber que não se apresentou ao recorrido nos termos descritos, não lhe permitindo assim apresentar-se como arrendatário, a recorrente propôs a presente acção, «onde logo pede a condenação do réu no pagamento de indemnização na sua perspetiva devida desde a inscrição no registo, o que não era do conhecimento do réu (faltando-lhe, pois, qualquer dolo ou negligência, pois que só vem a ter conhecimento da autora em 2024, aquando da citação)», actuação esta abusiva.

A recorrente contrapõe, em síntese, que:

- Se o contrato de arrendamento rural não subsistiu após a morte da mãe do recorrido e se a recorrente nunca reconheceu qualquer título de ocupação válido do prédio por este, não poderia abordá-lo e exigir-lhe o pagamento de rendas ou a saída do prédio;

- A recorrente nunca teve qualquer conhecimento da existência de um contrato de arrendamento ou outro ónus sobre o prédio.

Analisemos a questão.

O n.º 2 do artigo 542.º do CPC estabelece que litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

O tribunal a quo não especificou em qual destas alíneas integrou a actuação da recorrente com fundamento na qual a condenou em multa e indemnização por litigância de má fé. Na realidade, tal integração não é possível.

A simples falta de prova de alguns dos factos alegados por uma parte não permite concluir, sem mais, que esta litigou de má fé. Desde logo porque inúmeros factos que na realidade ocorreram são julgados não provados pela exclusiva circunstância de não haver meios suficientes para fazer essa prova. Acresce que não é qualquer alegação de facto sem correspondência com a realidade que pode determinar a qualificação de quem a produz como litigante de má fé, uma vez que o n.º 2 do artigo 542.º do CPC exige que as condutas tipificadas nas suas alíneas sejam levadas a cabo com dolo ou negligência grave. O que não ficou demonstrado no caso dos autos.

Por outro lado, salvo se existir norma legal nesse sentido, não é exigível, a quem pretende propor uma acção, tomar previamente a iniciativa de resolver o litígio extrajudicialmente, dirigindo-se às pessoas envolvidas, indagando das suas razões e fazendo-lhes uma proposta de resolução amigável. A regra é a da liberdade de recurso imediato aos tribunais. Por outro lado, mesmo quando a lei exigir tal iniciativa, a consequência da sua omissão não será a condenação por litigância de má fé, por impossibilidade de enquadramento no n.º 2 do artigo 542.º do CPC, mas sim a verificação de uma excepção dilatória e, consequentemente, a absolvição do réu da instância.

Sendo assim, nenhum dos fundamentos da condenação da recorrente como litigante de má fé se verifica, impondo-se a revogação da sentença recorrida nessa parte.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso parcialmente procedente, nos seguintes termos:

- Confirma-se a sentença recorrida na parte em que absolveu o recorrido dos pedidos descritos no relatório deste acórdão sob as alíneas b) a e);

- Revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente em multa e indemnização por litigância de má fé.

Custas a cargo da recorrente e do recorrido, na proporção do seu decaimento.

Notifique.


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Sumário: (…)

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27.11.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Anabela Raimundo Fialho (1ª adjunta)

Ana Margarida Leite (2ª adjunta)