Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
171/19.2IDFAR.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CRIMES TRIBUTÁRIOS PUNIDOS APENAS COM PENA DE PRISÃO
ARTIGO 14º DO RGIT
IMPERATIVIDADE DA CONDIÇÃO
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Sumário: I - A densificação da estatuição do artigo 14º do RGIT impõe a conclusão de que, em caso de condenação por crime tributário que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haver que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica, conforme superiormente decidido no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro.
II - Os crimes tributários punidos apenas com pena de prisão, entre os quais se inclui o crime de fraude fiscal qualificada, encontram-se fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, sendo que o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de desaplicação de lei expressa.

III - São diferentes, inconfundíveis e não excludentes entre si os fundamentos que suportaram a condenação no pagamento das quantias devidas a título de condição da suspensão da execução das penas de prisão, nos termos do artigo 14º do RGIT e a título de ressarcimento dos prejuízos causados com a prática dos crimes tributários respetivos, sendo que uma vez cumprida a condição, naturalmente que o valor da condenação no pedido cível se considerará igualmente liquidado, inexistindo, por isso, qualquer duplicação de condenações.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum coletivo que correm termos no Juízo Central Criminal de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 171/19.2IDFAR, foram os arguidos AA, filho de BB e de CC, nascido em …1974, natural de …, casado, gerente, residente em …, titular do cartão de cidadão n.º … e DD, filha de EE e de FF, nascida em …1973, natural da freguesia de …, concelho de …, casada, gerente, residente em …, titular do cartão de cidadão n.º …, condenados nos seguintes termos:

- Pela prática de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, previstos e punidos pelos artigos 7.º, n.º 1 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b) do RGIT nas penas parcelares de 2 anos e 4 meses, 3 anos, 1 ano e 8 meses e 1 ano e 8 meses, para cada um deles, por cada um dos referidos crimes;

- Em consequência de cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, nas penas únicas de 5 (cinco) anos de prisão, suspensas nas suas execuções pelo período de 5 anos, sob a condição de os arguidos pagarem, em tal período, a quantia de 286 046,16 € em partes iguais, cabendo a cada um deles o pagamento o pagamento da quantia de 143 023,08 €;

- No pagamento ao Estado - Fazenda Nacional da quantia de 254 831,74 € (duzentos e cinquenta e quatro mil, oitocentos e trinta e um euros e setenta e quatro cêntimos) acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal, a título de ressarcimento dos prejuízos causados com a prática dos crimes.

*

Inconformados com tal decisão, vieram os arguidos interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1- Os arguidos, ora recorrentes foram condenados pelo Tribunal “a quo” como autores materiais pela prática de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art. 7º, n.º 1 e 3, art. 103º, n.º 1 e art. 104º, n.º 2, al. a) e b) do RGIT, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, na condição de os arguidos, no mesmo período temporal pagarem a quantia de € 286.046,16 (duzentos e oitenta e seis mil e quarenta e seis euros e dezasseis cêntimos), em partes iguais.

Foram ainda aos arguidos condenados no pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado- Fazenda Nacional, no valor de € 254.831,74 (duzentos e cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e quatro cêntimos), acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal.

2-Foi dado como provada em sede de Audiência de Discussão e Julgamento que os arguidos “beneficiam da solidariedade e interajuda dos pais da arguida e do filho de … anos de idade, que explora uma empresa de …” e que “Actualmente, os arguidos DD e AA vivem sozinhos, auferem, cada um, cerca de 300€ a 350€ euros mensais pelo trabalho que prestam na empresa do filho.

O arguido AA esporadicamente também presta serviços na área da construção civil.”

3- Ora, tendo em conta a situação económica dos arguidos provada nos autos, e dado como provado que a arguida DD, aufere mensalmente a quantia de € 300,00 mensais e o arguido AA, a quantia de €350,00, realizando também este último, alguns trabalhos esporádicos na construção civil, podemos facilmente constatar que os mesmos não têm qualquer hipótese de fazer face ao pagamento do valor fixado a título de condição de suspensão da pena de prisão. Sabendo-se de antemão que, decorrido este período de 5 anos, os arguidos terão então que cumprir pena de prisão efectiva.

Pois, esta condenação sujeita a tal condição é, salvo o devido respeito, completamente desproporcional em relação à condição económica dos mesmos e logo, impossível de cumprir.

4- Estabelece o n.º 1 do art. 51º do Código Penal que: “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (…)”

5- Porém, também estabelece o n.º 2 da mesma disposição legal que tais deveres não podem, em caso algum, representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

6- Pois, se o princípio da razoabilidade, por um lado impõe que não se exija mais do que o necessário para atingir o fim pretendido, por outro, também obriga a que não se estabeleçam condições desmesuradas em relação à capacidade financeira dos condenados.

7- De acordo com o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 13/12/2006, “(…) este princípio da razoabilidade, previsto no n.º 2 do art. 51º do Código penal, consagra o princípio da razoabilidade, que significa que a imposição de deveres deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, para não frustrar, logo à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, mas cuidando de não cair do extremo de fixar uma condição atendendo apenas às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.”

8- Mas aqui não se trata sequer do facto de estar a impor-se um sacrifício ou um grande esforço aos arguidos, está-se a aplicar como contrapartida à suspensão da pena, salvo o devido respeito, uma condição impossível ou irrazoável.

9- Até porque um grande sacrifício seria sempre exigível, estando subjacente às funções da suspensão da pena de prisão, mas no presente caso, exige-se algo que é completamente impossível.

10-Pois sabe-se, à partida, que os arguidos não teriam, por muitos esforços ou grandes sacrifícios que fizessem, qualquer capacidade de a vir a cumprir.

11- O que leva assim por arrasto o juízo de prognose no sentido de os arguidos reunirem condições para pagar tais valores e da ameaça do cumprimento da pena de prisão, pois neste caso, esta “ameaça” constitui já uma certeza, dado que os arguidos, sabem à partida, que não conseguirão cumprir esta condição.

12- Dado que, os arguidos com uma casa penhorada e com rendimentos na ordem dos € 300,00 e de € 350,00 mensais, cada um, não têm qualquer forma de proceder ao pagamento dos valores fixados como condição da suspensão desta pena de 5 anos de prisão.

13 - De acordo com o decidido por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/10/2018, no âmbito do Processo n.º 3420/16.5T9GDM.P1, “a medida só poderá ser aplicada na “medida das forças” do condenado, e mais precisamente em obediência ao princípio da razoabilidade do dever imposto, conforme resultou determinado no nº 2 do art.º 51º, ao estabelecer que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir. Não devendo, portanto, ser determinado tal dever se o condenado, logo à partida, não estiver em condições de pagar qualquer quantia. Ou seja, fixando-se o dever dentro dos parâmetros “da finalidade da punição, da proporcionalidade e da exigibilidade.” Tal preceito tem necessariamente ínsito o princípio da proporcionalidade, consagrado no art.º 18º da CRP, que transposto para o âmbito das decisões judiciais, tem o sentido de que qualquer imposição restritiva de um direito fundamental, ainda que baseado na lei, e justificada pela necessidade de proteção de bens jurídicos fundamentais, só poderá ocorrer, ademais como uma correta aplicação dessa mesma lei, se no caso concreto se verificar a necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, de uma tal restrição.” Face ao exposto, e considerando a factualidade dada como provada nos presentes autos, somos levados a concluir que não é proporcionado nem razoável exigir-se, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art.º 51º do CP, o pagamento de indemnização, cujo cumprimento, face ao rendimento disponível se afigura como impossível (…)”

14- Também no mesmo sentido, o Acórdão 8/2012, do Supremo Tribunal de Justiça de 12/09/2012, publicado no DR I, série nº 206 de 24/10/2012, veio fixar a seguinte jurisprudência: no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia. (Processo n.º 139/09.7IDPRT.P1-A. S1 - 3.ª Secção).”

15- Ora, e salvo o devido respeito por diversa opinião, o valor fixado como condição de suspensão da pena de prisão, não se adequa à situação económica dos arguidos, e coloca, desde logo, em causa o juízo de prognose de razoabilidade do cumprimento desta condição de suspensão, que não teve em conta estes critérios.

16- Conforme decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, em 26 de fevereiro de 2014, no acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1467/11.7IDLSB.L1-3, “naqueles casos onde, da formulação do juízo de prognose, resulte a conclusão de que o arguido não tem qualquer possibilidade de cumprir o dever que lhe é imposto, tal imposição representaria para o arguido uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, contrariando o disposto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.”

17- Logo, como aplicável nos demais tipos de crime, nos crimes tributários também só poderá ser imposta a condição prevista no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, caso, formulado o juízo de prognose, se conclua pela existência de condições para o seu cumprimento, o que, no presente caso não se verifica.

18- Pois outra solução iria sempre colidir com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mormente os princípios da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, ínsitos na Constituição da República Portuguesa.

19- Para além de que, o Tribunal “a quo” ao condenar os arguidos no pagamento de € 254.831,74 (duzentos e cinquenta e quatro mil oitocentos e trinta e um euros e setenta e quatro cêntimos), a título de Indemnização Civil, a favor da Fazenda Nacional, aqui representada pelo Ministério Público, está também, e salvo o devido respeito por diversa opinião, a condenar os arguidos no pagamento destes valores em duplicado.

20- Considerando-se assim, na nossa modesta opinião, que a condenação dos arguidos/recorrentes na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita ao pagamento dos valores em causa, mostra-se, e salvo o devido respeito, desadequada, e foi fixada sem ter sido feito um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte dos arguidos, ora recorrentes, baseado na concreta situação económica, presente e futura dos mesmos.

21- Sendo assim, em nosso modesto entender e salvo o devido respeito, violados, o princípio da culpa, do direito à liberdade, igualdade e proporcionalidade, devendo por isso, a decisão recorrida ser substituída por outra que não condicione a pena de prisão ao dever de pagamento, ou, em alternativa que fixe aos recorrentes a prestação de um dever compatível com as suas possibilidades económicas.

22- Pelas razões amplamente deduzidas, foram, em nosso modesto entender, violadas as disposições do art. 13º e do art. 18º da Constituição da República Portuguesa e dos art. 50º, n.º 1 e 2, 51º, 52º e 71º do Código Penal.”

Terminam pedindo a revogação do decisão recorrida na parte em que condicionou a suspensão da execução das penas de prisão que lhes foram aplicadas ao pagamento, por cada um dos arguidos, das quantias de €143.023,08 (cento e quarenta e três mil e vinte e três euros e oito cêntimos) ou, subsidiariamente, a fixação de um dever “compatível com as suas possibilidades económicas.”

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. Os arguidos DD e AA interpuseram recurso do acórdão condenatório proferido nos presentes autos, alegando, em síntese, o seguinte:

a) Em face da situação económica dos arguidos, constata-se ser impossível aos mesmos cumprir com o pagamento da quantia fixada a título de condição da suspensão da execução da pena de prisão, razão pela qual, foram violados os princípios da culpa, do direito à liberdade, igualdade e proporcionalidade;

b) Condenação em duplicado, porquanto, os arguidos recorrentes foram também condenados a pagar a quantia de €254.831,74 à Fazenda Nacional.

2. In casu, os arguidos foram condenados pela prática de 4 crimes de fraude fiscal qualificada, sendo que, a este ilícito e, no que tange às pessoas singulares, corresponde a pena abstracta de 1 a 5 anos de prisão. Quer isto dizer que, estando em causa ilícito punível apenas com pena de prisão, o mesmo caí fora do âmbito de aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2012 e, por conseguinte, sendo aplicada a pena de prisão suspensa na sua execução é peremptório que a mesma seja condicionada ao pagamento da «prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos» (cfr. artigo 14.º, do RGIT e acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/05/2022, cuja relatora foi a Exm.ª Desembargadora MARIA CLARA FIGUEIREDO e que se mostra disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

3. De resto, tal interpretação tem sido caucionada por diversos acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente no acórdão n.º 51/2020 de 16 de Janeiro (cuja relatora foi a Exm.ª Conselheira MARIA RANGEL MESQUITA), nos termos do qual se decidiu:

«Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 14.º, do RGIT, conjugado com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão fica obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respetivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição;»

4. De resto, embora, in casu, o Tribunal não tivesse obrigado a efectuar o sobredito juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição, todavia, a verdade é que o efectuou, conforme se alcança do seguinte excerto que se transcreve:

«Os arguidos têm nesta data 49 e 50 anos de idade, estão inseridos social e familiarmente, o que tudo se reflecte nas exigências de prevenção especial que neste momento se fazem sentir, reduzindo-as, e não se descortina razão bastante para concluir que à opção pela suspensão da execução se oponham exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.

O que nos permite realizar um juízo de prognóstico favorável no sentido de a censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão constituírem motivação bastante para os arguidos se afastarem da criminalidade, isto é, motivação bastante para os arguidos regerem as suas condutas futuras dentro dos parâmetros socialmente adequados, ou seja, sem cometer novos crimes, cf. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

Por outro lado, os dois arguidos estão a trabalhar, vivem em casa própria, dispõem de rendimentos e beneficiam do apoio de familiares, ou seja, para já, entende-se poder formular um juízo de prognose no sentido de os arguidos AA e DD reunirem condições para poderem pagar os benefícios indevidamente obtidos, ainda que num período de tempo alargado.

Razão porque o Tribunal entende fixar o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão.»

5. Ao contrário do que parece ser o entendimento dos arguidos recorrentes, não existe qualquer “duplicação condenatória” ao serem condenados a pagar a quantia de €254.831,74 à Fazenda Nacional e, ao mesmo tempo, ser-lhes imposto como condição da suspensão da execução da pena de prisão, o pagamento dos benefícios indevidamente obtidos com a prática dos crimes de fraude fiscal qualificada pelo qual foram condenados.

6. Com efeito, o que a aludida condição impõe é o pagamento do valor monetário a que se reporta o acima transcrito artigo 14.º do RGIT e, sendo tal satisfeito, naturalmente que o valor do PIC se mostra liquidado, inexistindo, por isso qualquer duplicação. No fundo, a condição só não se reconduz ao pagamento do valor do PIC, porquanto, neste se peticionou um valor inferior àquele que foi apurado consistirem os valores relevantes para efeitos daquela norma legal.

7. Termos em que, por não ter ocorrido a violação dos princípios e normas alegados, assim como, por ser justa e criteriosa a pena de prisão suspensa na sua execução na condição de ser efectuado o pagamento da quantia relativa aos benefícios ilegitimamente obtidos em que foram condenados os arguidos DD e AA, sendo julgado improcedente o recurso, deverá ser mantido na integra o douto acórdão proferido nos presentes autos..”

*

Tendo tido vista do processo, a Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso, atendendo às conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação e considerando as questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

- Determinar se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento da matéria de direito em virtude de:

A) Não ter respeitado os princípios e regras legalmente previstos para a determinação das medidas das penas – concretamente no que diz respeito ao juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte dos condenados, tendo em conta a sua concreta situação económica – ao ter condenado os recorrentes nas penas de substituição de suspensão da execução das penas de prisão pelo período de 5 anos, sob a condição de pagarem, em tal período, as quantias de 143 023,08 € cada um;

B) Ter condenado “duplamente” os recorrentes, ao tê-los condenado concomitantemente no pagamento das referidas quantias, a título de condição da suspensão da execução das penas de prisão, e no pagamento ao Estado - Fazenda Nacional da quantia de € 254 831,74, a título de ressarcimento dos prejuízos causados com a prática dos crimes.

*** II.II - A sentença recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferido acórdão que deu como provados e não provados os seguintes factos:

“A. MATÉRIA DE FACTO PROVADA.

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos relevantes para o objecto do processo, com exclusão das conclusões, repetições e inocuidades:

1.º Os arguidos DD e AA são casados um com o outro e à data dos factos infra descritos viviam em comunhão de mesa, cama e habitação.

2.º A arguida “GG, Lda.” é uma sociedade por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, enquadrada no regime normal trimestral de IVA desde 1 de janeiro de 2017, com o NIPC ….

E tem como único gerente desde 15 de dezembro de 2016, o arguido AA.

3.º A arguida “HH, Lda.” é uma sociedade por quotas, constituída em 2009, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, enquadrada no regime normal trimestral de IVA desde 1 de Setembro de 2011, com o NIPC ….

E tem como único gerente desde 16 de dezembro de 2016, o arguido AA.

4.º A arguida “II, Lda.” é uma sociedade por quotas, constituída em 2002, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, enquadrada no regime normal trimestral de IVA desde 1 de Janeiro de 2012, com o NIPC ….

E tem como único gerente desde 14 de dezembro de 2016, após a renúncia da arguida DD, o arguido AA.

5.º A arguida “JJ, Lda.” é uma sociedade por quotas, constituída em 2009, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …, que se encontrou enquadrada no regime normal trimestral de IVA até ao final do ano de 2018 e desde 1 de Janeiro de 2019 que se encontra enquadrada no regime normal mensal de IVA, com o NIPC ….

E tem como única gerente desde 14 de dezembro de 2016, após a renúncia também do arguido AA, a arguida DD.

6.º Não obstante cada uma das sociedades ter, à data da prática dos factos que se vão descrever, um(a) gerente nomeado(a), todas decisões relativas à gestão das quatro sociedades, nomeadamente, a contratação de trabalhadores, o pagamento dos vencimentos, as ordens de trabalho, a organização e funcionamento das empresas, a contratação e pagamento a fornecedores, a contabilidade, a emissão de facturas, eram tomadas de comum acordo pelo casal, isto é, pelos arguidos DD e AA.

7.º No período compreendido entre os anos de 2016 e 2019 as sociedades arguidas “GG”, “HH” e “II” não tiveram qualquer actividade.

Apenas a sociedade arguida “JJ” desenvolvia actividade.

8.º A sociedade arguida “JJ” apesar de ser a única das sociedades que efectivamente desenvolvia actividade não teve qualquer funcionário nos seus quadros.

9.º Antes utilizava os trabalhadores que mantinham contratos com aquelas três outras sociedades, os quais recebiam ordens e instruções dos arguidos AA e DD.

10.º O salário desses trabalhadores era realizado com dinheiro de caixa proveniente das vendas realizadas pela sociedade arguida “JJ”.

11.º As rendas das lojas cujos contratos haviam sido celebrados anteriormente por aquelas outras três sociedades foram pagas pela sociedade arguida “JJ”.

12.º Em data não concretamente apurada do ano de 2016, os arguidos AA e DD engendraram um esquema executado através das sociedades arguidas por estes representadas, segundo o qual as arguidas “GG”, “HH” e “II” iriam emitir facturas à arguida “JJ” com IVA liquidado, não correspondentes a quaisquer bens ou serviços prestados e não entregando o correspondente IVA à Autoridade Tributária,

13.º Facturas que a arguida “JJ” comunicaria à Autoridade Tributária, deduziria o IVA inscrito nessas facturas ao IVA que teria a entregar, apesar de nunca ter pago os valores inscritos nas mesmas, tudo com o intuito de solicitar subsequentemente reembolsos de IVA indevidos.

Assim,

14.º Em 30 de Dezembro de 2016:

i) A arguida “GG” emitiu à arguida “JJ” a factura n.º … no valor de € 178.735,85, com a descrição "Transporte de Passageiros" (€ 168.618,73 acrescido de IVA à taxa reduzida de 6 % do valor de € 10.117,12);

ii) A arguida “HH” emitiu à arguida “JJ” a factura n.º … no valor de € 17.397,31, com a descrição "Transporte de Passageiros" (€ 16.412,56 acrescido de IVA à taxa reduzida de 6 % do valor de € 984,75);

iii) A arguida “II” emitiu à arguida “JJ” a factura n.º … no valor de € 16.681,44, com a descrição "Transporte de Passageiros" (€ 15.737,21 acrescido de IVA à taxa reduzida de 6 % do valor de € 944,23).

15.º Os valores do IVA constantes das facturas referidas em 14.º foram deduzidos pela arguida “JJ”, mas não foi declarada a correspondente liquidação pelas arguidas “GG”, “HH” e “II”, tendo sido abertas inspecções a estas três sociedades e corrigido o correspondente IVA liquidado.

16.º As sociedades “GG”, “HH” e “II” não prestaram à “JJ” os serviços documentados nas facturas referidas em 14.º, nem a “JJ” pagou os valores constantes de qualquer uma dessas facturas.

17.º Em 30 de Dezembro de 2017:

i) A arguida “GG” emitiu à arguida “JJ”, a fatura n.º …, do valor de € 398.740,05 (do valor de € 324.178,90 acrescido de IVA, à taxa normal de 23%, no montante de € 74.561,15, com a descrição "Prestação de Serviços");

ii) A arguida “HH” emitiu à arguida “JJ” a factura n.º … no valor de € 32.482,58 (€ 26.408,60 acrescido de IVA, à taxa normal de 23%, no montante de 6.073,98);

iii) A arguida “II” emitiu à arguida “JJ” a factura n.º … no valor de € 62.579,30 (€ 50.877,48 acrescido de IVA à taxa de 23% no montante de € 11.701,82), relativamente a bens e serviços não prestados.

18.º Os valores do IVA constantes das facturas referidas em 17.º foram deduzidos pela arguida “JJ”, mas não foi declarada a correspondente liquidação pelas arguidas “GG”,“HH” e “II”, o que apenas sucedeu no decurso das acções inspectivas a estas três sociedades.

19.º As sociedades “GG”, “HH” e “II” não prestaram à “JJ” os serviços documentados nas facturas referidas em 17.º, nem a “JJ” pagou os valores constantes de qualquer uma dessas facturas.

20.º Em Dezembro de 2018:

i) A arguida “GG” emitiu à arguida “JJ” as facturas n.ºs. … e …, respectivamente, nos valores de € 334.518,64 (€ 271.966,37 acrescido de IVA à taxa de 23% no montante de € 62.552,27) e de 109.086,06 (€ 88.687,85 acrescido de IVA à taxa de 23% no montante de € 20.398,21);

ii) Foi registado na contabilidade da arguida “JJ” prestação de serviços pela arguida “HH” no valor de € 43.492,95 (€ 35.360,12 acrescidos de IVA no montante de € 8.132,83);

iii) Foi registado na contabilidade da arguida “JJ” prestação de serviços pela arguida “II” no valor de € 83.321,27 (€ 67.740,87 acrescidos de IVA no montante de € 15.580,40).

21.º Os valores do IVA constantes da factura e registos referidos em 20.º foram deduzidos pela arguida “JJ”.

22.º As sociedades “GG”, “HH” e “II” não prestaram à “JJ” os serviços documentados na factura e registos referidos em 20.º, nem a “JJ” pagou os valores ali mencionados.

23.º Em Outubro e Dezembro de 2019:

i) Foi registada na contabilidade da arguida “JJ” fornecimento de serviços pela arguida “GG”, no mês de Outubro, no valor de € 118.080,00 (€ 96.000,00 acrescido de IVA no montante de € 22.080,00) e, no mês de Dezembro, no valor de € 39.360,00 (€ 32.000,00 acrescido de IVA no montante de € 7.360,00);

ii) Foi registada na contabilidade da arguida “JJ” fornecimento de serviços pela arguida “HH”, no mês de Outubro, no valor de € 23.192,63 (€ 18.855,80 acrescido de IVA no montante de € 4.336,83) e, no mês de Dezembro, no valor de € 24.600,00 (€ 20.000,00 acrescido de IVA no montante de € 4.600,00);

iii) Foi registada na contabilidade da arguida “JJ” fornecimento de serviços pela arguida “II”, no mês de Outubro, no valor de € 35.405,01 (€ 28.784,56 acrescido de IVA no montante de € 6.620,45) e, no mês de Dezembro, no valor de € 28.923,45 (€ 23.515,00 acrescido de IVA no montante de € 5.408,45).

24.º Os valores do IVA constantes dos registos referidos em 23.º foram deduzidos pela arguida “JJ”.

25.º As sociedades “GG”, “HH” e “II” não prestaram à “JJ” os serviços documentados nos registos referidos em 23.º, nem a “JJ” pagou os valores ali mencionados.

26.º As sociedades arguidas “GG”, “HH” e “II” nunca procederam a qualquer pagamento à Autoridade Tributária relativo aos valores IVA supra referidos que liquidaram à sociedade arguida “JJ”.

27.º A sociedade arguida “JJ” deduziu o IVA liquidado nas facturas emitidas pelas arguidas “GG”, “HH” e “II” e nos registos das prestações de serviços, ao longo dos anos de 2016 a 2019, exatamente nos mesmos montantes liquidados pelas outras 3 empresas e discriminados no quadro seguinte, no total de € 254.832,04, para subsequentemente solicitar reembolsos à Autoridade Tributária.

2016 2017 2018 2019

GG 10.117,12 74.561,15 82.950.48 29.440,00

HH 984,75 6.073,98 8.132,83 8.936,83

II 944,23 11.701,82 15.580,40 5.408,45

Total 12.046,10 92.336,95 106.663,71 43.785,28

(12.046,10 + 92.336,95 + 106.663,71 + 43.785,28 = 254.832,04)

28.º Com a dedução do imposto a sociedade arguida “JJ” foi aumentando o valor de IVA a reportar.

29.º Em 14 de Novembro de 2018, a sociedade arguida “JJ”, por intermédio dos arguidos AA e DD, pediu um reembolso de IVA no montante de € 50.000,00, apesar de apresentar, nessa data, um crédito de imposto de € 173.098,98.

30.º O reembolso de forma automática não foi analisado e consequentemente concedido porque a sociedade arguida “JJ” não havia ainda aderido ao sistema de notificações eletrónicas.

31.º Em 14 de fevereiro de 2019, a arguida “JJ” solicitou reembolso de IVA no montante de € 100.000,00, apesar de apresentar, nessa data, um crédito de imposto de € 294.175,46.

32.º Imediatamente antes do pedido de reembolso os arguidos DD e AA, em representação da arguida “JJ”, de modo a garantir esse reembolso, haviam solicitado o pagamento em prestações de quantias em dívida à Autoridade Tributária por parte dessa arguida, o que foi deferido em 4 de Janeiro de 2019.

33.º O reembolso foi deferido em 30 de Abril de 2019, tendo a Autoridade Tributária determinado que fosse efectuada compensação nos termos do artigo 89.º do CPPT com as dívidas da responsabilidade da arguida “JJ”, o que aconteceu não obstante o acordo de pagamento celebrado.

34.º Com o recebimento, ainda que indireto, de € 100.000,00, a arguida “JJ” beneficiou de € 16.871,30, tendo em conta que, à data do pedido de reembolso, a sociedade só deveria ter um crédito de imposto de € 83.128,70, não fosse o esquema fiscal descrito posto em prática pelos arguidos.

De facto:

i) O Valor do crédito de imposto a recuperar era de 294.175,46€;

ii) O valor das facturas e registos por serviços não prestados nos anos de 2016, 2017 e 2018 era de 211.046,76€;

iii) A subtração ao valor do crédito de imposto a recuperar do valor dos serviços não prestados perfaz a quantia de 83.128,70€;

iv) O pedido de reembolso foi de 100.000,00;

v) Mas sociedade só teria direito a 83.128,70 € (expurgado o valor dos serviços não prestados);

vi) Assim, com o deferimento do pedido de reembolso solicitado a sociedade “JJ” veio a beneficiar de 16.871,30€ (100.000€ - 83.128,70 € = 16.871,30€).

35.º Em 10 de Abril de 2019, com a entrega da declaração periódica do mês de Fevereiro de 2019, a sociedade arguida “JJ” pediu novo reembolso de IVA, agora no montante de € 120.000,00, apesar de apresentar, nessa data, um crédito de imposto de € 197.620,39.

36.º Este reembolso foi deferido, de forma automática, em 29 de Abril de 2019,

37.º E em 25 de Junho de 2019, foi pago à sociedade arguida “JJ” o montante de € 117.407,32 (diferença entre o valor deferido de € 120.000,00 e o de € 2.500,00 acrescido de € 92,38 relativo a uma penhora no âmbito do processo n.º 781/18.5…), através de transferência bancária para a conta com o NIB ….

A sociedade beneficiou do capital (117.407,32€) e do abatimento da dívida (2.592,38€).

38.º Com a entrega em 9 de Julho de 2019 da declaração periódica de IVA do mês de Maio de 2019 a sociedade “JJ” voltou a solicitar um reembolso, desta feita no valor de € 75.000,00.

39.º Este reembolso foi deferido de forma automática.

40.º Em 23 de Setembro de 2019, foi pago à sociedade arguida “JJ” o montante de € 75.000,00, através de transferência bancária para a conta com o NIB ….

41.º No entanto apesar de, em 23 de Setembro de 2019, os arguidos terem recebido o montante de € 75.000,00, apenas € 74.175,46 foram recebidos indevidamente em virtude do esquema fiscal posto em prática [211.046,76€ (valor das facturas e registos por serviços não prestados nos anos de 2016, 2017 e 2018) - 16.871,30€ (benefício referido no artigo 34.º) - 120.000,00€ (valor do 2º reembolso referido nos artigos 35.º e 37.º) = 74.175,46€].

42.º A sociedade arguida “JJ” em 15 de Maio de 2020 solicitou o reembolso de IVA no valor de € 75.000,00.

43.º O pedido foi deferido de forma automática.

44.º E em 23 de Julho de 2020 foi pago à sociedade arguida “JJ”, através de transferência bancária para a conta com o NIB …, o montante de € 41.280.70 (diferença entre o valor deferido de 75.000,00€ e o de € 30.000,00 acrescido de € 3.719,30 relativo a uma penhora de terceiros no processo 4064/11.3…).

A sociedade beneficiou do capital (41.280,70€) e do abatimento da dívida (33.719,30€).

45.º Do modo supra descrito, os arguidos AA, DD e a sociedade “JJ” receberam da Autoridade Tributária e apropriaram-se das quantias de 117.407,32 €, 74.175,46 € e 41.280,70 €, no valor global de 232.863,48 €, quantias que não eram devidas à sociedade arguida “JJ”.

46.º Os arguidos AA, DD e a sociedade “JJ” beneficiaram ainda de uma redução de uma dívida fiscal do montante de € 16.871,30, bem como da redução do montante de € 30.000,00 acrescido de € 3.719,30 da dívida relativa ao processo n.º 4064/11.3…, e do montante de € 2.592,38 da dívida relativa ao processo n.º 781/18.5….

47.º Por intermédio das sociedades arguidas “GG”, “HH” e “II” os arguidos AA e DD emitiram facturas à arguida “JJ” onde discriminavam serviços que não haviam sido prestados liquidando IVA que não receberam, não entregaram, nem pretendiam entregar à Autoridade Tributária, bem como, registaram na contabilidade da sociedade arguida “JJ” valores de prestações de serviços por parte daquelas sociedades, com IVA que deduziram, pese embora tais prestações de serviços nunca tivessem ocorrido, nem a “JJ” tivesse pago os respectivos valores.

48.º Os arguidos AA e DD apesar de estarem cientes da falsidade das facturas emitidas pelas sociedades “GG”, “HH” e “II” e dos registos das prestações de serviços a estas atribuídos realizados na contabilidade da “JJ”, de tudo fizeram uso, deduzindo o IVA liquidado nas facturas e nos registos ao IVA a suportar pela arguida “JJ”, de modo a obter um excedente que permitisse solicitar reembolsos que sabiam serem indevidos, como de facto, o fizeram.

49.º Não obstante os arguidos AA e DD terem conhecimento da falsidade dos factos declarados nas facturas emitidas pelas suas representadas, os arguidos ainda assim fizeram uso das mesmas junto da Autoridade Tributária, cientes da falsidade do conteúdo desses documentos e da sua declaração e de que ao fazer uso daqueles colocavam em crise a fé pública depositada nos mesmos.

50.º As arguidas “GG”, “HH” e “II” foram utilizadas pelos arguidos AA e DD como o meio necessário para a obtenção dos reembolsos indevidos.

51.º Os arguidos AA e DD, por si e em representação das arguidas “GG”, “HH” e “II”, agiram de forma concertada, deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas e eram punidas por lei.

52.º Os arguidos AA e DD ao actuarem do modo descrito, emitindo facturas relativas a serviços que não haviam sido prestados e registando na contabilidade prestações de serviços que não ocorreram, declarando pagamentos que não haviam sido realizados, de modo a obter um excedente que permitisse solicitar reembolsos de IVA que sabiam serem indevidos, actuaram mediante um plano por ambos previamente gizado com o intuito de obter para os próprios e para a arguida “JJ” um benefício que sabiam ser ilegítimo, o qual lograram conseguir, causando prejuízo ao Estado.

53.º Os arguidos AA e DD agiram sempre de forma concertada, deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou:

54.º No certificado do registo criminal do arguido AA estão averbadas as seguintes decisões:

- Por decisão proferida em 29/04/2013, transitada em julgado no dia 04/06/2013, no âmbito do processo 394/12.5…, do ….º Juízo do Tribunal Judicial de …, foi o arguido condenado na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 6€, por factos praticados em 22/05/2012, consubstanciadores de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º do Código Penal.

Ocorreu o pagamento da multa em 28/11/2013 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 04/12/2013;

- Por decisão proferida em 03/04/2014, transitada em julgado no dia 14/05/2014, no âmbito do processo 684/11.4…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi o arguido condenado na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 7€, por factos praticados em 16/11/2010 e 16/11/2011, consubstanciadores, respectivamente, de um crime falsificação ou contrafacção de documento e de um crime de desobediência qualificada, ps. e ps. pelos artigos 256.º, n.º 1, al. b) e n.º 3 e 348.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

Ocorreu o pagamento da multa em 11/09/2015 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 16/11/2015;

- Por decisão proferida em 16/03/2018, transitada em julgado no dia 16/03/2018, no âmbito do processo sumaríssimo 86/15.3…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi o arguido condenado na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 6€, por factos praticados em 07/02/2015, consubstanciadores de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal.

Ocorreu o pagamento da multa em 02/05/2019 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 17/05/2019;

- Por decisão proferida em 03/12/2021, transitada em julgado no dia 19/01/2022, no âmbito do processo 115/20.9…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi o arguido condenado na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,50€, por factos praticados em 23/10/2019, consubstanciadores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT.

Ocorreu o pagamento da multa em 18/04/2023 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 11/05/2023;

- Por decisão proferida em 03/03/2022, transitada em julgado no dia 05/04/2022, no âmbito do processo 1028/18.0…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi o arguido condenado na pena de 13 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com a condição de proceder ao pagamento do montante dos benefícios indevidamente obtidos no valor de 5.796,77€, por factos praticados em 24/07/2018, consubstanciadores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT.

*

55.º No certificado do registo criminal da arguida DD estão averbadas as seguintes decisões:

- Por decisão proferida em 03/03/2022, transitada em julgado no dia 05/04/2022, no âmbito do processo 1028/18.0…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi a arguida condenada na pena de 130 dias de multa à taxa diária de 6€, por factos praticados em 24/07/2018, consubstanciadores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT.

Ocorreu o pagamento da multa em 09/12/2022 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 13/02/2023.

*

56.º No certificado do registo criminal da sociedade arguida «GG» estão averbadas as seguintes decisões:

- Por decisão proferida em 03/12/2021, transitada em julgado no dia 19/01/2022, no âmbito do processo 115/20.9…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi a arguida condenada na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00€, por factos praticados em 23/10/2019, consubstanciadores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT.

Ocorreu o pagamento da multa em 18/04/2023 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 11/05/2023.

*

57.º Do certificado do registo criminal da sociedade arguida «HH»:

Nada consta;

*

58.º No certificado do registo criminal da sociedade arguida «II», estão averbadas as seguintes decisões:

- Por decisão proferida em 03/03/2022, transitada em julgado no dia 05/04/2022, no âmbito do processo 1028/18.0…, do Juízo Local Criminal de … (Juiz …), foi a arguida condenada na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5€, por factos praticados em 24/07/2018, consubstanciadores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT.

Ocorreu o pagamento da multa em 09/12/2022 e a pena foi declarada extinta por decisão proferida em 13/02/2023.

*

59.º Do certificado do registo criminal da sociedade arguida «JJ»:

Nada consta.

**

60.º Os arguidos DD e AA são casados um com o outro, têm dois filhos maiores de idade e vivem numa moradia de tipologia V3, propriedade do casal desde 1997.

Os arguidos DD e AA beneficiam da solidariedade e interajuda dos pais da arguida e do filho de … anos de idade, que explora uma empresa de excursões/passeios terrestres denominada “KK”.

A arguida DD tem o 12.º ano de escolaridade, concluiu ação de formação promovida pelo Centro de Emprego na área de auxiliar educativa e ingressou na Licenciatura em Gestão na Universidade do … aos … anos de idade, como estudante-trabalhadora, tendo, contudo, desistido do projeto académico face aos compromissos familiares (matrimónio com o arguido com cerca de … anos de idade) e laborais.

A arguida DD trabalhou ainda como repositora numa superfície comercial (durante cerca de 3 anos) e numa unidade hoteleira, na área de contabilidade, durante cerca de 2 anos.

A arguida DD, por volta dos 29 anos de idade, começou a colaborar na atividade desenvolvida pelo cônjuge (o arguido AA), havia cerca de 4 anos, como gerente da empresa «II».

O arguido AA estudou até aos … anos, concluindo o 7.º ano de escolaridade.

Aos 17 anos entrou como voluntário para as Forças Armadas. Posteriormente e após casar, trabalhou durante 4 anos como empregado de armazém e motorista na empresa “LL”. A partir dos 24 anos passou a trabalhar por conta própria no setor dos transportes e turismo.

Actualmente, os arguidos DD e AA vivem sozinhos, auferem, cada um, cerca de 300€ a 350€ euros mensais pelo trabalho que prestam na empresa do filho.

O arguido AA esporadicamente também presta serviços na área da construção civil.

A dinâmica familiar é funcional e assenta num relacionamento com 37 anos, descrito como positivo, com partilha e entreajuda.

***

61.º A sociedade “JJ” foi declarada insolvente.

62.º A sociedade “GG” apresentou declaração de cessação de actividade em IVA no dia 25/02/2021 com efeitos a 31/12/2020, ao abrigo do disposto no artigo 34.º, n.º 1, al. b), do CIVA.

63.º A sociedade “II” apresentou declaração de cessação de actividade em IVA no dia 25/02/2021 com efeitos a 31/12/2020, ao abrigo do disposto no artigo 34.º, n.º 1, al. b), do CIVA.

64.º A sociedade “HH” apresentou declaração de cessação de actividade em IVA no dia 12/06/2022 com efeitos a 31/12/2021, ao abrigo do disposto no artigo 34.º, n.º 1, al. b), do CIVA.

*

B. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.

Com interesse para a decisão não se provaram os seguintes factos:

a) Que a arguida “”JJ” beneficiou de uma redução de dívida no valor de 2.504,58€ no processo n.º 4064/11.3…;

b) Que tivessem sido emitidas as facturas referidas nos artigos 38.º, 39.º, 41.º a 43.º da acusação;

c) Que as sociedades “GG”, “II” e “HH” tenham aderido ao Plano Peres e que este esteja a ser cumprido;

d) Que as sociedades “GG”, “II” e “HH” desenvolvessem actividades comerciais no período temporal referido na acusação.

Ao demais não se responde por se tratar de matéria conclusiva, de direito, de alegações repetidas ou sem relevo para o objecto do processo.”

* II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da alegada obrigatoriedade de realização do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte dos condenados e do erro na sua formulação tendo em conta a concreta situação económica daqueles.

Alegam a este propósito os recorrentes que:

“(…) como aplicável nos demais tipos de crime, nos crimes tributários também só poderá ser imposta a condição prevista no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, caso, formulado o juízo de prognose, se conclua pela existência de condições para o seu cumprimento, o que, no presente caso não se verifica.

18- Pois outra solução iria sempre colidir com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mormente os princípios da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, ínsitos na Constituição da República Portuguesa. (…)”

Vejamos se lhe assiste razão.

*

Nos presentes autos foram os arguidos recorrentes condenados pela prática de quatro crimes de fraude fiscal qualificada, previstos e punidos pelos artigos 7.º, n.º 1 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b) do RGIT, nas penas parcelares de 2 anos e 4 meses, 3 anos, 1 ano e 8 meses e 1 ano e 8 meses, para cada um deles, por cada um dos referidos crimes e, em consequência do cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, nas penas únicas de 5 (cinco) anos de prisão, suspensas nas suas execuções pelo período de 5 anos, sob a condição de pagarem, em tal período, a quantia de 286 046,16 € em partes iguais, cabendo a cada um deles o pagamento o pagamento da quantia de 143 023,08 €.

As normas penais constantes do RGIT que sustentaram a condenação dos recorrentes dispõem da seguinte forma:

“Artigo 103.º

Fraude

1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas. (…)”

Fraude qualificada

1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

(…)

2 - A mesma pena é aplicável quando:

a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de faturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou

b) A vantagem patrimonial for de valor superior a (euro) 50 000. (…)”

Artigo 14.º

Suspensão da execução da pena de prisão

1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

a) Exigir garantias de cumprimento;

b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

c) Revogar a suspensão da pena de prisão.

* A temática da aplicação da condição da suspensão da execução da pena de prisão legalmente imposta pelo artigo 14º do RGIT relativamente aos crimes de natureza tributária e que agora constitui o objeto da nossa análise (1), tem merecido abundante tratamento jurisprudencial nos tribunais superiores, importando, antes de mais, convocar a jurisprudência obrigatória constante do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012 de 12 de setembro, com o seguinte conteúdo:

“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia”.

Radica o cerne da primeira questão colocada pelos recorrentes na circunstância de, em seu entender, o juízo de prognose acerca da satisfação da condição legal fixada pelo artigo 14º do RGIT, tendo em conta as suas concretas situações económicas, não ter sido corretamente efetuado nos termos estabelecidos no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência que acabámos de citar.

A este propósito se pronunciou já amplamente a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, tendo-se formado entendimento, que subscrevemos – e que cremos ser maioritário – no sentido de a densificação da estatuição do artigo 14º do RGIT impor a conclusão de que, em caso de condenação por crimes tributários que prevejam em alternativa pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão e optando-se depois pela suspensão da execução de tal pena, haver que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica.

Dito de outro modo, tem vindo a entender-se que, pese embora se não questione o caráter imperativo da imposição da condição expressamente estabelecida pelo artigo 14º do RGIT, a articulação entre tal norma especial e a norma geral estabelecida no artigo 51º, nº 2 do CP para a imposição de deveres associados à pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão deixa ainda alguma margem de liberdade ao julgador, devendo o mesmo, aquando da imposição da condição prevista no artigo 14º do RGIT, ter em conta o princípio da razoabilidade previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, sendo que a desconsideração de tal princípio originará a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Por outro lado, a conclusão de que se não revela razoável impor ao condenado a mencionada condição deverá conduzir à alteração da escolha, previamente realizada, do tipo de pena a aplicar, optando-se pela aplicação da pena alternativa de multa, por se concluir que a opção pela aplicação da pena de prisão suspensa na sua execução subordinada à condição de pagamento da quantia em dívida, face ao juízo negativo de prognose do respetivo pagamento, não realiza de forma adequada as finalidades da punição. (2)

Tal posicionamento, corresponde ao entendimento formulado no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de setembro e encontrava-se, desde logo, plasmado no acórdão fundamento que esteve na origem da oposição de julgados (acórdão do STJ de 23.10.2003).

A idiossincrasia da situação dos autos – encontrando-se os recorrentes condenados pela prática dos crimes de fraude fiscal qualificada, previstos e punidos pelos artigos 7.º, n.º 1 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b) do RGIT e punidos apenas com pena de prisão (concretamente pena de prisão de um a cinco anos estatuída pelo artigo 104º, nº 2, alíneas a) e b) do RGIT) – conduz-nos, porém, necessariamente, à apreciação e delimitação do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada em tal aresto, cabendo questionar se a mesma se aplica a todos os crimes tributários ou apenas aos que são punidos com penas alternativas de prisão e de multa.

Analisemos um pouco mais de perto a fundamentação do referido Acórdão do STJ Fixação de Jurisprudência, que passamos a transcrever parcialmente por se nos afigurar de primordial importância a sua leitura para compreensão do posicionamento aí fixado e da sua aplicabilidade à questão que nos ocupa. Aí se refere, entre o mais, e no que à referida matéria diz respeito, que:

“(…)No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.º 7 do artigo 11.º daquele condicionava e o artigo 14.º, n.º 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.

Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal. (…)

Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP. (…)

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.

A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente. Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta?(…)

A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.

Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação. (…)

A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção. Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.

Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.

Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.(…)” (3)

Tendo tal entendimento sido fixado em relação ao crime de abuso de confiança fiscal poderá colocar-se a questão de saber se o mesmo tem aplicação ao um crime de fraude fiscal em causa nos presentes autos. A resposta a tal questão não poderá deixar de ser afirmativa, pois que ambos os crimes integram a categoria de crimes fiscais, pertencentes aos tributários, concretamente previstos no capítulo III (artigos 103º a 105º) do Título I do RGIT, divergindo quando ao modo de execução, mas coincidindo na sua génese de incumprimento de obrigações tributárias.

*

De acordo com o regime estabelecido no artigo 445.º do Código de Processo Penal, que regula a eficácia de decisão dos recursos extraordinários de fixação de jurisprudência, como é o caso do indicado Acórdão do STJ n.º 1/2003, concretamente nos termos do seu nº 3 “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.”

Ora, não descortinamos qualquer divergência relativamente à jurisprudência fixada em tal acórdão e subscrevemos integralmente os argumentos expendidos na sua fundamentação, que, por clareza de exposição e atendendo à sua relevância para o caso dos autos, optámos por transcrever em parte. O que sucede é que a doutrina do AUJ não tem aplicação à situação dos presentes autos por inexistência de um dos pressupostos básicos em que tal aresto faz assentar a solução final propugnada, qual seja o da estatuição para o crime de penas alternativas de prisão e de multa. É, aliás, a própria fundamentação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que legitima tal conclusão, revelando-se absolutamente elucidativas das situações que pretende abranger, as seguintes passagens de tal aresto:

“(…) Em ambos os casos em causa está a questão de saber se ao condenar por crime de abuso de confiança fiscal, escolhida a pena de prisão e determinada a suspensão da respetiva execução, sabido que esta está subordinada sempre ao pagamento do imposto em dívida e acréscimos legais, o juiz deve ou não ponderar a capacidade do condenado em pagar a quantia condicionante da suspensão da execução da pena de prisão e se a falta dessa ponderação gera nulidade por omissão de pronúncia.(…)

Em ambos os casos, em termos de subsunção jurídico-criminal da conduta de um e outro dos arguidos, foi considerado que tal omissão integrava um crime de abuso de confiança fiscal, tendo optado, uma e outra das decisões, perante a prevista alternativa pena de multa/pena de prisão, por aplicação de pena de prisão. Em ambos os casos, efetuada essa opção, e ultrapassado esse primeiro plano, foi considerado que na particular situação concreta submetida a juízo se impunha substituir essa decretada pena de prisão por pena suspensa na respetiva execução. (…)

A questão central em debate num e noutro dos processos em confronto gira em torno da questão de saber se, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal, que prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa, escolhida a pena de prisão, e optando-se depois pela substitutiva suspensão da execução de tal pena, o que acarreta face ao artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, incontornavelmente, necessariamente, a imposição de condição de pagamento da prestação em dívida e legais acréscimos, há que ponderar ou não a razoabilidade da condição imposta, na consideração de que, face ao concreto/real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, máxime, situação económica, será de exigir o cumprimento.(…)

(…) nos dois processos donde emergiram os acórdãos em oposição houve condenação dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 15/2001, de 15 de Junho (…)” (4)

Afigura-se-nos, pois, que encontrando-se os crimes tributários punidos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra (5) em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão. Por determinação de tal preceito legal (6), atendendo a que nos crimes a que agora nos reportamos – nos quais se inclui o crime de fraude fiscal qualificada em causa nos presentes autos, de natureza mais gravosa decorrente do valor mais elevado das quantias em dívida – o julgador não pode optar entre a aplicação da pena de prisão e da pena de multa, não lhe é conferida a margem de liberdade a que acima aludimos consubstanciada na realização do juízo de prognose acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado tendo em conta a sua concreta situação económica.

Outra não poderá ser, a nosso ver, a solução a adotar nas referidas situações, pois que, permitir-se a realização de tal juízo de razoabilidade em todos os crimes de natureza tributária – quer nos punidos alternativamente com prisão e multa, quer nos punidos apenas com pena de prisão – conforme tem sido defendido em alguma jurisprudência (7), conduziria à desaplicação de lei expressa nos casos em que, estatuindo o tipo legal apenas a aplicação da pena de prisão, o tribunal concluísse pela desrazoabilidade da imposição da condição atendendo à formulação de juízo de prognose negativo. Tal conclusão conduziria à solução, a nosso ver inaceitável, consubstanciada na aplicação, nos crimes de natureza mais grave, da suspensão da execução da pena de prisão sem sujeição à condição de pagamento imposta imperativamente pelo artigo 14º do RGIT. (8)

Ora, a não aplicação de normas legais de direito ordinário apenas encontra legitimação na sua natureza contrária à lei hierarquicamente superior, à qual aquelas devem obediência, a Constituição da República Portuguesa. Sucede que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a confluir no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT, concretamente no que tange à interpretação segundo a qual a imposição da condição tem caráter imperativo e não depende da realização de qualquer juízo de razoabilidade por parte do julgador (9). Tal como claramente se consigna no texto do AUJ nº 8/2012 relativamente à posição assumida pelo TC, “(…) O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por na matéria reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.

As três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa, são: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena (dos Acórdãos n.os 256/03 e 427/08).(…)”.

Mais recentemente se pronunciou, de novo, o Tribunal Constitucional sobre a questão em apreço no acórdão n° 51/2020 de 16 de janeiro, relatado pela Conselheira Maria José Rangel Mesquita, reafirmando a posição já anteriormente assumida em vários arestos –

em especial no acórdão nº 256/2003 aí citado e transcrito – que aqui se convoca e no qual podemos ler:

“(…)7. Defende o recorrente que a interpretação do «art. 14.° do R.G.I.T., devidamente conjugado com os arts. 50.° e 5l.° do C.P., no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão (…) deverá ficar obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respetivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição», «é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, ínsitos ao Estado de Direito Democrático e consagrados pelos artigos 2.°,13.° e 18.° da CRP».

O recorrente dá ênfase à impossibilidade de proceder a um juízo de prognose sobre a possibilidade da satisfação das condições impostas pelo artigo 14.º do RGIT, para criticar a opção legislativa de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida ao Estado em qualquer caso – aí incluídos os casos em que os arguidos não detêm os meios necessários para satisfazer essa condição.

Ora, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, em face de diversos casos, pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do RGIT. Desde logo, no Acórdão n.º 256/2003, em que o problema foi apreciado em face da jurisprudência constitucional sobre questões afins, o Tribunal Constitucional concluiu (cf. II – Fundamentação, n.º 10.8 e seguintes):

«(…) [P]odendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”, veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173). 10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos. Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer. Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou. Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena. Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível. Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente. Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida. A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação. Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 10.4.). Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.»

Ora, este juízo é inteiramente transponível para o caso dos autos. Aliás, o recorrente não aduz qualquer argumento que motive a reapreciação desta posição, que foi reafirmada nos Acórdãos n.os 335/2003, 376/2003 e em diversas pronúncias posteriormente adotadas por este Tribunal (v., entre outros, os Acórdãos n.os 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias n.os 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016).

8. Sendo a norma objeto do presente recurso idêntica à apreciada nos arestos e decisões citadas e, no essencial, transponível para o caso dos autos a fundamentação do Acórdão n.º 256/2003, é igualmente de concluir no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso.”

*

Aqui chegados, no que diz respeito à imposição da condição estabelecida artigo 14.º do RGIT, podemos assentar nos seguintes pontos:

- Tal imposição, sem que o tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação da condição, consubstancia uma opção legislativa que não atenta contra os direitos fundamentais do condenado e que não padece de inconstitucionalidade;

- Exige-se da parte do julgador a realização de um juízo sobre a razoabilidade da condição nos crimes tributários punidos alternativamente com pena de prisão ou de multa em que esteja em causa a suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, conforme superiormente decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 8/2012 de 12 de setembro publicado no DR, I série, n.º 206, de 24.10.2012, que fixou jurisprudência nesse sentido.

- Nos crimes tributários punidos apenas com pena de prisão, se o tribunal optar pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, encontra-se vinculado à aplicação da condição de pagamento da quantia em dívida, independentemente da situação económica do condenado ou do juízo de razoabilidade a que alude o artigo 51º do CP.

*

Importa ter em conta que quando o artigo 14.º do RGIT foi aprovado já existia o atual artigo 51.º, n.º 2 do CP, o que suporta a interpretação de tal preceito no sentido de que a opção feita pelo legislador terá sido plenamente consciente, tendo assentado no entendimento de que, atendendo aos interesses em causa, o pagamento dos valores em dívida ao Estado pelo condenado constitui sempre uma exigência “razoável”, que se encontra numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins que a norma visa prosseguir.

No sentido em que agora decidimos, decidiram igualmente os acórdãos da Relação do Porto de 20.02.2013, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e, mais recentemente, o acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2018, relatado pelo Desembargador José Adriano (10), no qual se consignou, com especial relevância para a questão que nos ocupa que:

“(…) De salientar que a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, publicado no Diário da República nº 206, Iª série, de 24/10/2012, no sentido de que «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.» não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade.

Seguiremos neste aspeto muito de perto o Ac.R.Porto de 20/2/2013, proc. n.º 131/08.9IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato, por concordarmos inteiramente com o raciocínio no mesmo explanado: «O que resulta do acórdão [referindo-se ao AFJ n.º8/2012] é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura.(…)

O caso sobre o qual se debruçou aquele acórdão de fixação de jurisprudência respeitava a crime punível com prisão ou multa, tendo-se entendido que, ao ponderar a suspensão da execução da prisão e perante a incapacidade financeira do arguido, deveria o tribunal voltar ao momento anterior, da escolha da pena, reconhecendo não haver condições para tal suspensão, e optar, eventualmente, pela pena de multa, em vez da prisão.

Ora, tal procedimento não é possível no presente caso, por um lado, porque o crime fiscal aqui em causa, quando cometido por pessoa singular, é punível apenas com prisão, por outro, porque a suspensão da execução da pena já foi concedida sem que o arguido a tenha impugnado.

(…) Esta interpretação não só é admissível face à jurisprudência fixada pelo acórdão citado, como ela se impõe, sendo a única compatível com a redacção das aludidas normas. (…)”

*

As explanações acima consignadas conduzem, inequivocamente, à conclusão de que, optando o julgador pela suspensão da execução da pena de prisão imposta ao arguido pela prática de crime tributário, é obrigatória a imposição da condição de pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, nos termos estabelecidos pelo artigo 14.º, n.º 1, do RGIT.

Assim, subsumindo a situação em análise no recurso ao entendimento exposto – e pese embora a decisão da primeira instância tenha formulado um juízo positivo sobre a possibilidade do pagamento das quantias impostas como condições das suspensões, tendo concluído pela razoabilidade da imposição – a apreciação do mérito do juízo de prognose realizado na decisão recorrida não se nos afigura relevante, conquanto, tendo os recorrentes sido condenados pela prática de quatro crimes de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos artigos 7.º, n.º 1 e 3, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, alíneas a) e b) do RGIT, punidos apenas com pena de prisão, não se encontrava o tribunal recorrido vinculado à realização de tal juízo de razoabilidade.

Improcede, pois o recurso nesta parte.

*

B) Da alegada “duplicação” da condenação dos recorrentes

Ressalvado o devido respeito, a segunda questão colocada no recurso revela-se manifestamente improcedente. Com efeito, e tal como bem se fez notar, quer na reposta ao recurso apresentada elo Ministério Público na 1ª instância, quer no douto parecer elaborado pela Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação, são diferentes, inconfundíveis e não excludentes entre si os fundamentos que suportaram a condenação no pagamento das quantias devidas a título de condição da suspensão da execução das penas de prisão e a título de ressarcimento dos prejuízos causados com a prática dos crimes.

Com efeito, se o estabelecimento da condição resulta de um imperativo legal estabelecido pelo artigo 14º do RGIT, decorrente da opção pela aplicação da suspensão das execuções das penas de prisão, conforme acima explanámos – opção suportada pelo juízo de prognose favorável realizado na decisão recorrida, nos termos do artigo 50º do CP – a condenação no pedido de indemnização civil visa ressarcir o demandante pelos prejuízos causados pelos factos que integram a prática dos crimes de fraude fiscal e que são geradores de responsabilidade civil factos ilícitos, cuja regulação encontra assento no artigo 483º, nº 1 co Código Civil.

Acresce que, uma vez cumprida a condição, ou seja, uma vez realizado o pagamento do valor monetário a que se reporta o acima transcrito artigo 14.º do RGIT, naturalmente que o valor da condenação no pedido cível se considerará igualmente liquidado, inexistindo, por isso, qualquer duplicação de condenações. (11)

Improcede, pois, o recurso também nesta parte.

Nesta conformidade e pelas razões expostas, concluímos não assistir razão aos recorrentes, não se mostrando vulnerados os artigos 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa, nem os artigos 50.º, n.ºs 1 e 2, 51.º, 52.º e 71.º do Código Penal, pelo que o recurso improcederá na totalidade.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, decidindo consequentemente manter integralmente a sentença recorrida.

*

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 19 de março de 2024

Maria Clara Figueiredo

Laura Maurício

Jorge Antunes

***

Declaração de voto:

Tendo, em tempos, assumido posição diferente, uma mais ponderada análise dos termos da Lei, a que procedi na sequência da leitura da profunda fundamentação deste Acórdão, leva-me a entender que do artigo 14º, nº 1, do RGIT, decorre a obrigatoriedade da sujeição da suspensão da pena de prisão aplicada a cada um dos arguidos ao pagamento integral da prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, independentemente da situação económica do condenado, sem que se possa proceder a avaliação da atual situação económica dos arguidos e, em função desta, reduzir o montante a pagar. Nessa conformidade, concordando com a fundamentação expendida, voto favoravelmente a decisão.

Jorge Antunes

..............................................................................................................

1 Tivemos já ocasião de nos pronunciar sobre tal temática no acórdão desta Relação, por nós relatado com data de 24.05.2022, citado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, disponível em www.dgsi.pt, cuja argumentação, por se mostrar adequada à situação dos autos, convocaremos em grande parte no presente acórdão.

2 Neste mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt: acórdão do STJ de 06.04.2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, acórdão da Relação de Coimbra de 20.03.2018, relatado pelo Desembargador Orlando Gonçalves; acórdãos da Relação de Évora de 13.07.2017, relatado pela Desembargadora Maria Isabel Duarte; de 16.10.2020, relatado pelo Desembargador Martinho Cardoso; de 14.07.2020, relatado pela Desembargadora Laura Goulart Maurício; acórdãos da Relação de Lisboa de 15.02.2018, relatado pela Desembargadora Filipa Costa Lourenço, de 05.03.2014, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo; acórdãos da Relação do Porto de 09.10.2019, relatado pelo Desembargador Nuno Pires Salpico e de 27.06.2018, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.

3 Negritos acrescentados.

4 Negritos acrescentados.

5 Imperatividade, aliás, expressa e claramente propugnada no AUJ 8/2012.

6 Independentemente da posição que entendamos assumir no plano dos princípios, com eventual relevância em sede de direito a constituir.

7 Neste sentido decidiram os acórdãos da Relação de Lisboa de 26.02.2014, relatado pelo Desembargador Carlos Almeida; de 18.02.2016, relatado pelo Desembargador Calheiros da Gama e, mais recentemente, da Relação de Guimarães de 08.02.2021, relatado pela Desembargadora Teresa Cambra e da Relação de Évora, de 09.01.2024, relatado pelo Desembargador Gomes de Sousa.

8 Com vista à fixação de jurisprudência relativamente à concreta questão da necessidade de realização do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, em todos os crimes de natureza tributária ou apenas nos que são punidos alternativamente com prisão e multa, foi recentemente interposto recurso para o STJ, tendo sido proferido o Acórdão do STJ de 27.01.2021, relatado pelo Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha que determinou que o recurso prosseguisse, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, 2.ª parte do CPP.

9 Neste sentido decidiram os Acórdãos do TC nºs 335/2003, 376/2003 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias nºs 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt

10 Ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

11 Registamos que, conforme resulta da leitura integral da decisão recorrida, a condição da suspensão da execução da pena não poderia reconduzir-se ao pagamento do valor do PIC, porquanto neste se peticionou um valor inferior ao dos valores relevantes para efeitos do artigo 14º do RGIT.