Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
747/18.5T8PTM.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RESERVA DA VIDA PRIVADA
PROCESSO DISCIPLINAR
PROVA PROÍBIDA
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- As mensagens emitidas pelo trabalhador num grupo privado e fechado do WhatsApp, que chegaram ao conhecimento da empregadora, por via indireta, uma vez que não era destinatária das mesmas, nas concretas circunstâncias apuradas e na especifica situação dos autos, não poderiam ser utilizadas em sede de procedimento disciplinar, por se tratarem de comunicações pessoais e privadas.
II- O meio de prova em causa, utilizado no procedimento disciplinar, é nulo porque viola o direito fundamental de reserva da intimidade da vida privada e a tutela legal e constitucional da confidencialidade da mensagem pessoal.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
M... (autor/apelado) veio intentar ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra “R...” (ré/apelante).
O tribunal de 1.ª instância julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, declarou ilícito o despedimento, condenando a ré a pagar ao autor a quantia bruta de €5.744,00 (cinco mil, setecentos e quarenta e quatro euros) e a quantia líquida de €1.923,08 (mil, novecentos e vinte e três euros e oito cêntimos), a que acresce o montante cuja fixação foi relegada para incidente de liquidação, onde se apurarão as perdas que o autor suportou com o despedimento e ligadas à data em que encontrou novo emprego remunerado, tudo com o limite máximo de €40.910,68.
Foi fixado o valor da causa em €7.667,08.

Não se conformando com o decidido, veio a ré interpor recurso, extraindo das suas alegações, as seguintes conclusões:
«A) Vem o presente Recurso interposto contra a Sentença de fls., que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R., ora Recorrente, a pagar ao A., “a quantia bruta de € 5.744,00 (cinco mil, setecentos e quarenta e quatro euros) e a quantia líquida de € 1.923,08 (mil, novecentos e vinte e três euros e oito cêntimos), a que acresce o montante cuja fixação se relega para incidente de liquidação, onde se apurarão as perdas que o autor suportou com o despedimento e ligadas à data em que encontrou novo emprego remunerado, tudo com o limite máximo de € 40.910,68”.
B) A procedência parcial da ação assenta exclusivamente na fundamentação de Direito explanada na Sentença (capítulo C da mesma), a qual conclui, em resumo, que o conteúdo das mensagens publicadas pelo Recorrido, num grupo da rede social WhatsApp, denominado “Trocas de CMDT FAO”, composto por Comandantes e Pilotos da Recorrente, que operam de e para o Aeroporto de Faro, “não pode servir como meio de prova nestes autos”, sendo que o “direito à prova não é um direito absoluto e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva na vertente do direito à produção de prova não pode sobrepor-se ao direito à privacidade e reserva da intimidade dos cidadãos”.
C) Concluindo a Sentença que: “Não se provando, por isso, qual o teor das mensagens (porque o Tribunal não poderia – sem violar o direito do autor – perpetuar essa violação expondo mais uma vez as mesmas), perde qualquer relevância saber se elas têm a conotação que a ré alega”.
“Por outras palavras, não vai o Tribunal pronunciar-se sobre a questão de saber se o teor das mensagens constitui um motivo substancial para justificar um despedimento”.
D) Entende, porém, a ora Recorrente que o Tribunal a quo errou na aplicação do Direito e, nestes termos, deverá a Sentença ser parcialmente revogada e substituída por decisão que, aceitando o teor das mensagens publicadas pelo ora Recorrido, como um dos meios de prova, confirme a justa causa do despedimento, ou melhor, o “fair dismissal” do Recorrido, devido a “gross misconduct”, absolvendo inteiramente a Recorrente de todos os pedidos.
E) A Recorrente provou os factos que fundamentaram o despedimento do Recorrido, factos esses, de que teve conhecimento sem violação dos direitos daquele, mas o Tribunal a quo, erradamente, nem sequer apreciou a gravidade da conduta do Recorrido, nem o seu impacto e consequências, designadamente em termos da manutenção da relação laboral.
F) O artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 7º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, invocados pela Sentença Recorrida, para sustentarem a sua decisão, não têm cabimento no caso dos autos, sendo certo que a Recorrente não violou tais disposições, nem o mesmo resulta da factualidade provada.
G) Não está em causa nos presentes autos o direito de reserva da intimidade da vida privada do Recorrido, que não foi violado, nem o respeito pela sua vida privada e familiar, que não foi beliscado, nem, tão pouco, do seu domicilio ou correspondência. A Recorrente não teve ingerência em quaisquer destes direitos – inquestionáveis – do Recorrido, como resulta da factualidade provada.
H) A Recorrente não praticou qualquer ato que consubstancie ingerência na correspondência e comunicações do Recorrido ou violação do respeito devido pela sua privacidade, pelo que não foram beliscadas as disposições constitucionais Irlandesas referidas na Sentença recorrida (nem as Portuguesas, diga-se), que versam sobre esta matéria.
I) É preciso distinguir entre o acesso a informações pessoais dos trabalhadores, o que pressupõe uma postura ativa do empregador de ter acesso a informação da qual não é destinatário – o que não aconteceu no caso dos autos – das situações, como se verificam nas redes sociais online, em que as informações estão disponíveis e acessíveis a qualquer interessado e a qualquer pessoa que possa ter acesso às mesmas.
J) A Recorrente não teve qualquer papel ativo para ter acesso às mensagens que o Recorrido publicou num grupo da rede social WhatsApp, denominado “Trocas de CMDT FAO”, do qual faziam parte Comandantes e Pilotos da Recorrente, baseados no Aeroporto de Faro, como decorre do ponto 4. da Fundamentação de Facto da Sentença recorrida: “em 17 de Novembro de 2017 chegou ao conhecimento da ré um conjunto de mensagens enviadas num grupo fechado e privado de WhatsApp de que faziam parte comandantes e pilotos trabalhadores da ré que operam de e para o Aeroporto de Faro”
K) O mesmo resulta do documento (não impugnado) constante a fls. 12 do Procedimento Disciplinar, que constitui o Doc. nº 1 anexo ao Articulado Motivador do Despedimento, junto aos autos a fls, cuja tradução certificada Portuguesa foi, igualmente, junta aos autos, por requerimento com a ref. 29111614, de 11 de Maio de 2018 (também a fls. 12 dessa tradução).
L) Foi o Comandante de Base, B... (CB FAO) – que fazia parte do referido Grupo do WhatsApp, “Trocas de CMDT FAO”, sendo, portanto, um dos destinatários das mensagens do Recorrido – que, tendo ficado preocupado com o conteúdo intimidatório e ameaçador das mensagens em causa, e com o impacto das mesmas no colega co-Piloto visado, as deu a conhecer à sua hierarquia na Recorrente.
M) Consciente das suas especiais responsabilidades, enquanto Comandante da Base de Faro, foi este que entendeu que devia dar a conhecer à Recorrente o teor das mensagens postadas pelo Recorrido no grupo do WhatsApp, considerando o respetivo teor, a sua gravidade e efeitos, no bom nome e na carreira do colega de trabalho visado e em toda a organização da Empresa.
N) Tal circunstância encontra-se provada pelo documento (aliás, não impugnado), constante a fls. 18 do Procedimento Disciplinar instaurado ao ora Recorrido, que constitui o Doc. nº 1 junto ao Articulado Motivador do Despedimento, junto aos autos a fls, cuja tradução certificada Portuguesa foi, igualmente, junta aos autos, por requerimento com a ref. 29111614, de 11 de Maio de 2018 (também a fls. 18).
O) Não houve, pois, intromissão da Recorrente em mensagens de natureza pessoal do Recorrido, como sustenta, com o devido respeito, errada e precipitadamente, a Sentença.
P) A Recorrente não teve acesso ao Smartphone ou ao Ipad (ou similar) utilizado pelo Recorrido para o envio das mensagens em apreço, não violou a sua correspondência, nem a sua conta de e-mail, nem leu os seus sms.
Q) A Recorrente apenas tomou conhecimento das mensagens do Recorrido, porque um dos destinatários das mesmas, B..., atentas as suas especiais responsabilidades de Comandante de Base, entendeu que devia dar conhecimento daquelas à Recorrente, considerando que as mesmas tinham caracter grave, constituindo assédio moral censurável e eram vexatórias e atentatórias da dignidade de com colega de trabalho mais júnior, podendo até comprometer a carreira deste.
R) A intervenção de um terceiro – da forma como, no caso, se verificou – torna licito o conhecimento pela Recorrente do teor das mensagens publicadas pelo Recorrido.
S) A Recorrente não podia ignorar as mensagens do Recorrido, pelo seu teor e da forma em que foram publicadas, pois tem um dever, como Empregadora, de, por um lado, proteger os seus trabalhadores vitimas de assédio e intimidação e, por outro, assegurar um ambiente de trabalho saudável, onde impere o respeito e a urbanidade entre todos os colaboradores.
T) Acresce que a Recorrente é uma companhia de aviação, pelo que a segurança é um tema prioritário e tudo o que possa colocar minimamente em causa a segurança tem de ser devidamente acautelado e objeto de ações concretas.
U) A defesa do direito à reserva da vida privada do trabalhador não pode pôr em causa outros direitos do empregador, também eles constitucional e legalmente protegidos, forçando-o a ignorar factos que não tinha como desconhecer, como aconteceu no caso.
V) Veja-se que, atualmente, as entidades empregadoras são mesmo obrigadas a instaurar um procedimento disciplinar sempre que recebam uma denúncia de assédio sobre um trabalhador. Foi o que a Recorrente, licitamente, fez!
W) Como bem evidencia o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 9 de Agosto de 2014 (Processo nº 101/13.5TTMTS.P1, Juiz Relator Maria José Costa Pinto, in www.dgsi.pt), não é “aceitável que o empregador fique impedido de tomar em consideração os posts publicados num grupo com estas características que cheguem ao seu conhecimento e que revistam – ou possam traduzir – a violação de deveres laborais por parte dos utilizadores relativamente a questões conexas com a prestação de trabalho, sob pena de poder ficar gravemente comprometido o normal funcionamento da empresa, bem como a sua reputação ou a de colaboradores seus”.
X) Cumpre sublinhar, ainda, que as mensagens em causa não foram publicadas num grupo de amigos e/ou familiares, onde se trocam mensagens de natureza privada, mas, antes, de num grupo composto exclusivamente por profissionais da Recorrente (Comandantes e Pilotos) e para tratar de assuntos também profissionais (trocas de escalas horárias), pelo que andou mal a Sentença recorrida ao invocar o (suposto) caracter pessoal das mensagens do Recorrido.
Y) Por outro lado, o Tribunal a quo, na sua decisão, refere a natureza fechada ou privada do Grupo do WhatsApp em causa, como sendo um fator de reforço da sua privacidade, mas a verdade é que para aderir a um grupo desta natureza basta ser adicionado ou convidado por um dos seus membros, pelo que não há, ou não pode haver, efetiva expetativa de privacidade.
Z) Ao contrário do que a Douta Sentença recorrida refere, um grupo na rede social WhatsApp não tem qualquer semelhança com as mensagens de texto do telemóvel (sms), nem com o serviço de Messenger. Num grupo de WhatsApp não há a mesma expetativa de privacidade, já que é composto por um grupo maior ou menor de membros, que vão sendo adicionados, ao longo do tempo, por qualquer dos seus membros.
AA) Acresce que, muitas vezes, nem são percetíveis quem são, de facto, os membros do Grupo do WhatsApp, já que, para se ter acesso aos respetivos nomes, os mesmos têm de fazer parte da nossa lista de contactos, pois, caso não o façam, apenas surge como membro do grupo um determinado número de telefone, sem qualquer correspondência com um nome ou com uma fotografia.
BB) Nestas circunstâncias, não há expetativa e privacidade do utilizador de um grupo, ainda que supostamente fechado ou privado, do WhatsApp, sendo que estas denominações, dadas pelos gestores deste tipo de aplicações, apenas visam dar uma mera aparência de privacidade, que, na realidade, não existe.
CC) O Recorrido ao publicar mensagens e comentários de cariz profissional, num grupo profissional, está a prescindir de qualquer tutela de privacidade, bem sabendo não ter controlo real sobre o destino de tais mensagens.
DD) Qualquer membro do grupo – como foi o caso – pode divulgar, por qualquer meio, as mensagens postadas no grupo (nomeadamente, através de e-mail, fotografias ou print screen dessas mensagens, ou através de outras redes sociais, como o Facebook ou o Instagram, etc, etc.).
EE) A este respeito, atente-se na seguinte passagem, relevante a aplicável ao caso dos autos, extraída do já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 9 de Agosto de 2014 (Processo nº 101/13.5TTMTS.P1, Juiz Relator Maria José Costa Pinto, in www.dgsi.pt):
“Em tal apreciação, cremos ser de fundamental relevância a ponderação dos fatores enunciados – e de outros que se perfilem como pertinentes em cada caso a analisar -, de molde a poder concluir-se se na situação em causa havia uma legitima expectativa de que o circulo estabelecido era privado e fechado, ou, por outras palavras, se havia um laço estreito entre os membros do grupo, que não era expetável que fosse quebrado, contando aqueles membros com a descrição dos seus interlocutores para a confidencialidade dos posts publicados e estando convictos de que mais ninguém teria acesso e conhecimento, em tempo real ou diferido, ao seu teor.
Não havendo essa expetativa de privacidade e estando o trabalhador ciente de que publicações com eventuais implicações de natureza profissional, designadamente porque difamatórias para o empregador, colegas de trabalho ou superiores hierárquicos, chegariam ao universo de pessoas que constituem o grupo e poderiam extravasar as suas fronteiras, cremos que não lhe assiste o direito de invocar o caracter privado do grupo e a natureza “pessoal” das publicações, não beneficiando da tutela de confidencialidade prevista no artigo 22º do Código do Trabalho”.
FF) Este é que, quase exatamente, o caso dos autos: não havia qualquer laço estreito entre os membros do grupo (o laço era profissional, até porque o grupo em causa destinava-se a trocas de horários entre os Comandantes e Pilotos da Base de Faro) e o Recorrido não tinha, nem podia ter, qualquer convicção de que as suas mensagens não fossem conhecidas, em tempo real ou diferido, por outras pessoas fora do grupo.
GG) As mensagens publicadas nestas plataformas online podem sempre ser replicadas pelos seus destinatários noutras plataformas e por outros meios, chegando, assim, ao conhecimento de terceiros, pelo que a expetativa de privacidade é inexistente.
HH) Como é referido no citado Acórdão do TRP, “um dado que fica online, muito dificilmente desaparecerá”. “A rede social é uma plataforma aberta, logo pode ser de acesso generalizado, isto significa que são factos suscetíveis de serem conhecidos por todos. Tudo o que for colocado na internet deixa de ser privado e as redes sociais não serão exceção”.
II) Referindo, ainda, o mesmo Acórdão – com toda a adequação ao caso dos presentes autos – que, “mesmo que o perfil esteja definido como privado, nada impede a quem tenha acesso autorizado ao mesmo de copiar os conteúdos e enviá-los a terceiros”.
“Na análise a efetuar, não pode também perder-se de vista que o conteúdo dos posts publicados nas redes sociais, além de poder ser copiado para papel e exportado para outros sítios na internet ou para correios eletrónicos privados, se mantém online por um período indeterminado de tempo”.
JJ) O Recorrido não tinha expetativa de privacidade ou, pelo menos, não poderia tê-la, pois não sabia sequer que o Comandante de Base fazia parte do Grupo (fls. 15 do Procedimento Disciplinar, que constitui do Doc. 1 anexo ao Articulado Motivador do Despedimento, a fls, cuja tradução certificada Portuguesa foi, igualmente, junta aos autos, pelo requerimento, com a ref. 29111614, de 11 de Maio de 2018).
KK) Ou seja, o Recorrido nem sabia exatamente quem eram os membros do grupo, “Trocas de CMDT FAO”, destinatários, portanto, das suas mensagens, pelo que não há aqui qualquer efetiva expetativa de privacidade.
LL) Podendo qualquer membro do grupo adicionar, outros membros, não há controlo absoluto sobre quem participa no grupo e, por conseguinte, quem visiona as publicações efetuadas ou o que faz com as mesmas.
MM) A partir do momento em que o Recorrido opta por publicar comentários num grupo de uma rede social, composta apenas por colegas de trabalho, visando, exatamente, um outro colega de trabalho, todos da mesma profissão, não podia ignorar que qualquer um deles – como aconteceu – poderia dar conhecimento das suas publicações à Recorrente, havendo até uma probabilidade séria de tal acontecer, considerando o teor grave daquelas, que atingiam a dignidade pessoal de um colega de trabalho.
NN) Estando em causa mensagens de natureza profissional, a que tiveram acesso vários colegas de trabalho (sendo certo que o Recorrido nem sabia exatamente quem eram em concreto), não se pode considerar que o Recorrido tivesse uma expetativa de privacidade e que entendesse que não seria, em circunstância alguma, expetável que a Recorrente viesse a ter conhecimento do conteúdo de tais publicações, atento o facto de o mesmo ser facilmente reproduzido e divulgado.
OO) Ao contrário do que conclui a fundamentação da Sentença (página 13), não há, nas mensagens publicadas pelo Recorrido, nada de pessoal ou privado, protegido pelos princípios da confidencialidade ou da reserva da intimidade da vida privada.
PP) Pelo que, as mensagens de WhatsApp publicadas pelo Recorrido podem servir – e deverão ser aceites – como meio de prova das (graves) infrações disciplinares cometidas pelo Recorrido, justificativas do seu despedimento, ao contrário do decidido pela Tribunal a quo.
QQ) As mensagens do Recorrido atingem um colega de trabalho menos experiente, que depende de si funcionalmente, ofendem-no no seu bom nome e dignidade, através de palavrões e expressões injuriosas, fazem referências ao facto de este não ter aderido ao sindicato e estar a trabalhar em dias de folga para ajudar a empresa e, ainda, ameaçam-no em termos da sua carreira profissional. Tudo exclusivamente profissional!
RR) Aliás, era o Recorrido – um Comandante experiente - que deveria ter tido uma atenção especial àquilo que publicava – em cumprimento, de resto, com a politica da Recorrente sobre utilização de redes sociais (Doc. 3 junto ao Articulado Motivador do Despedimento), a que estava obrigado e que infringiu grosseiramente – em particular, quando as suas acusações e comentários, depreciativos e ofensivos, dirigiam-se a um colega de trabalho.
SS) O Recorrido podia, e devia, ter previsto as consequências da sua atuação, violadora dos deveres laborais, levada a cabo na presença de vários outros colegas de trabalho que sempre o poderiam denunciar à Recorrente, atenta a gravidade do que escreveu.
TT) Independentemente do meio, as acusações e comentários do Recorrido não poderão deixar de constituir uma infração disciplinar grave, por implicarem a violação de deveres laborais a que qualquer trabalhador está sujeito.
UU) Um trabalhador não pode, sem mais, ofender, difamar e intimidar um colega de trabalho. Uma conduta desta natureza é sempre suscetível de sancionamento disciplinar, independentemente do meio em que a mesma ocorre. O facto de as ofensas e as ameaças serem publicadas numa rede social não as torna válidas ou legitimas.
VV) O Tribunal a quo não levou em linha de conta, como devia, a Jurisprudência nacional (ainda que, no caso, seja aplicável a Lei Irlandesa, que, no essencial e quanto a esta matéria especifica, não diverge da Portuguesa), nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE), de 30 de Janeiro de 2014 (Processo nº 8/13.6TTFAR, Juiz Relator José Feteira, in www.dgsi.pt), o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 9 de Agosto de 2014 (Processo nº 101/13.5TTMTS.P1, Juiz Relator Maria José Costa Pinto, in www.dgsi.pt) e, ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de 24 de Setembro de 2014 (Processo nº 431/13.6TTFUN.L1-4, Juiz Relator Jerónimo Freitas, in www.dgsi.pt).
WW) Não se tendo verificado, no caso, nenhuma intromissão abusiva da Recorrente na vida privada do Recorrido, as mensagens publicadas por este, no grupo “Trocas CMDT FAO” do WhatsApp, deverão ser atendidas, porque a sua utilização como meio de prova é válida.
XX) Acresce que, a não aceitação pelo Tribunal a quo das mensagens do Recorrido como meio de prova e, em consequência, a rejeição da prova documental e testemunhal que sobre as mesmas foi amplamente produzida, significa uma secundarização do principio da descoberta da verdade material, que, particularmente no processo civil/laboral, deverá ter sempre a primazia.
YY) Por todo o exposto, deverá a Sentença recorrida ser parcialmente revogada, sendo substituída por decisão que, efetivamente, aprecie toda a prova junta aos autos e dela se retire a confirmação de que a extrema gravidade do comportamento do Recorrido e a sua elevada culpabilidade justificaram, plenamente, o seu despedimento.
Nestes termos,
Com o douto suprimento de V. Exas., deverá dar-se provimento à presente Apelação e, em consequência, revogar-se parcialmente a Sentença recorrida na parte assinalada, devendo esta ser substituída por decisão que admita todos os meios de prova trazidos aos autos pela Recorrente, confirme a validade do despedimento do Recorrido e absolva a Recorrente de todos os pedidos, como é de plena e inteira JUSTIÇA!»

Contra-alegou o apelado, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, por ter sido prestada caução.
Tendo o processo subido à Relação, a Exma, Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso.
A apelante respondeu, reiterando o alegado no recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, importa apreciar se o tribunal a quo errou ao decidir que as mensagens publicadas pelo apelado no grupo WhatsApp não poderiam ser utilizadas como meio de prova em processo disciplinar, extraindo-se do que se vier a decidir as devidas consequências.
*
III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos relevantes para a boa decisão da causa:
1. O autor/trabalhador foi admitido ao serviço da R... em 5 de Dezembro de 2014 para exercer, nas aeronaves da R..., as funções de comandante, inicialmente operando voos de e para o Aeroporto do Porto e, a partir de 1 de Abril de 2016, de e para o Aeroporto de Faro.
2. Consta dos contratos assinados por autor e ré que a lei aplicável aos mesmos é a lei irlandesa.
3. Em Outubro de 2017 o autor auferia da ré o salário base anual ilíquido de €68.672,00, auferia um prémio de produtividade por cada hora de voo que em 2017 foi de, pelo menos, da quantia anual líquida de €25.000,00 e auferia um abono correspondente à quantia anual ilíquida de €6.000,00.
4. Em 17 de Novembro de 2017 chegou ao conhecimento da ré um conjunto de mensagens enviadas num grupo fechado e privado de “WhatsApp” de que faziam parte comandantes e pilotos trabalhadores da ré que operam de e para o Aeroporto de Faro.
5. O autor enviou mensagem no “WhatsApp”.
6. O grupo de “WhatsApp” é fechado a pilotos da base de Faro e não é organizado pela ré.
7. No referido grupo de “WhatsApp” as mensagens não são todas relacionadas com o trabalho.
8. A ré comunicou ao autor, por escrito, a sua acusação disciplinar com intenção de despedimento com descrição dos factos imputados, em 28 de Novembro de 2017.
9. A ré anexou a esse escrito uma fotografia de mensagens publicadas no referido grupo de “WhatsApp” e o normativo interno da ré que rege o procedimento disciplinar na empresa.
10. Foi comunicado ao autor para comparecer a uma audiência disciplinar a ter lugar no dia 30 de Novembro de 2017, para apresentar a sua defesa aos factos de que era acusado.
11. O autor e o gestor de recursos humanos da ré, S..., mantiveram conversa telefónica sobre os factos objeto do procedimento disciplinar no dia 28 de Novembro de 2017.
12. O autor compareceu e apresentou defesa em audiência disciplinar ocorrida em 30 de Novembro de 2017, nas instalações da ré em Dublin, na qual estiveram presentes R..., C..., N... e A..., testemunha do autor.
13. Na sequência da referida audiência disciplinar ficou agendada reunião com o autor para o dia 1 de Dezembro de 2017, na qual lhe seria comunicada a decisão do seu procedimento disciplinar, conforme carta enviada ao autor, por e-mail, em 30 de Novembro de 2017, na qual foi ainda o autor informado de que poderia escolher um colega para o acompanhar na dita reunião.
14. Em 1 de Dezembro de 2017 foi proferida e comunicada ao autor a decisão escrita e fundamentada do seu despedimento.
15. Nessa carta de 1 de Dezembro de 2017 a ré menciona, no final, que o autor tem o direito de recorrer da decisão de despedimento de acordo com o regulamento interno da R....
16. O autor apresentou recurso, recebido pela ré em 11 de Dezembro de 2017.
17. Por carta enviada ao autor, datada de 25 de Janeiro de 2018 e assinada por P..., diretor de operações da ré, é apreciado o recurso apresentado pelo autor e é comunicada a manutenção da decisão de despedimento.
18. Os co-pilotos, como H..., têm menos experiência e compete aos comandantes, como o autor, avaliar o seu desempenho e decidir quais os sectores de voo de que ficarão responsáveis.
19. Consta expressamente da política de redes sociais da empresa que os seus utilizadores têm de fazer uma utilização responsável e dotada de bom senso das redes sociais, constando a proibição de revelar informações confidenciais ou privadas e de publicar declarações sobre a ré ou sobre colegas, que possam afetar a reputação da empresa, mais consta a proibição de fazer comentários depreciativos, incluindo admoestações ou insultos pessoais, contra qualquer trabalhador da ré ou seu prestador de serviços e mais consta a previsão de que qualquer infração à política de redes sociais será investigada e pode resultar em sanções disciplinares, incluindo o despedimento.
*
IV. Enquadramento jurídico
Conforme anteriormente referido, importa apreciar se o tribunal a quo errou ao decidir que as mensagens publicadas pelo apelado no grupo WhatsApp não poderiam ser utilizadas como meio de prova no âmbito do procedimento disciplinar contra o mesmo instaurado e que culminou com a aplicação da sanção mais gravosa – o despedimento.
Para melhor compreensão, transcreve-se o segmento da sentença recorrida que analisou a matéria em questão [incluem-se as notas de rodapé]:
«Como se deixou bem expresso numa fase preliminar dos autos (antes, por isso, da produção de prova – bem a tempo de as partes adequarem a sua estratégia processual – ver ata da audiência prévia de fls. 556 e ss.), uma das principais questões que se colocavam nos autos seria a de saber se a ré poderia ter acesso aos factos que invocou para fundar o despedimento, sem violação da confidencialidade e privacidade do autor.
Resulta de forma clara da legislação irlandesa aplicável ao caso dos autos que cabe ao empregador o ónus de provar que o despedimento foi justificado (secção 6, subsecção 6 do “Unfair Dismissals Act, 1977” Com o seguinte teor: “In determining for the purposes of this Act whether the dismissal of an employee was an unfair dismissal or not, it shall be for the employer to show that the dismissal resulted wholly or mainly from one or more of the matters specified in subsection (4) of this section or that there were other substantial grounds justifying the dismissal”.
) (nessa parte não se afastando da regra geral constante do direito substantivo português).
Assim sendo, caberia à ora ré provar que os factos que alegou para fundar o despedimento tinham ocorrido e, para isso, teria de provar (e antes disso alegar) que tinha tido conhecimento dos factos sem violação dos direitos do trabalhador.
Como se deixou dito (e agora se reproduz, por facilidade de entendimento), dispõe a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (aprovada em Roma, em 4/11/1950), no seu artigo 8.º (intitulado: Direito ao respeito pela vida privada e familiar) que:
“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
A República da Irlanda e a República Portuguesa são partes dessa Convenção.
Por seu turno, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (proclamada pelo Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão em Nice, em 7 de Dezembro de 2000), que tanto vincula a Irlanda como Portugal, dispõe no seu artigo 7.º (intitulado: “Respeito pela vida privada e familiar”) que:
“Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações”.
O respeito pelo sigilo da correspondência e das comunicações é, por isso, imposto em todos os Estados membros do Conselho da Europa e da União Europeia.
A vinculação dos Estados a esses instrumentos fundamentais e, sobretudo, no domínio do necessário respeito pela privacidade dos cidadãos contra ingerências na sua correspondência e comunicações tem sido recorrentemente enunciada quer pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a título de exemplo ver, entre outros, Acórdãos do TEDH “Margareta et Roger Andersson contra Suécia”, “Copland contra Reino Unido”, “Halford contra Reino Unido” e, especialmente, “Bărbulescu contra Roménia” Acessível em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-185006.
), quer pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (a título de exemplo, o Acórdão do TJUE nos processos C293/12 e C594/126).
A nível nacional, várias constituições estabelecem os mesmos princípios (no sistema constitucional irlandês, por exemplo, o direito à privacidade – designadamente nas comunicações escritas e conversas telefónicas – tem sido enunciado pelos Tribunais irlandeses como um direito fundamental dos cidadãosVer http://www.citizensinformation.ie/en/government_in_ireland/irish_constitution_1/constitution_fundamental_rights.html).
Em Portugal, a qualquer cidadão nacional ou estrangeiro que aqui resida (cf. Artigos 12º e 15º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), é reconhecido o direito à privacidade nas comunicações.
Estabelece-se, na verdade, no artigo 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa que:
“O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”.
Os trabalhadores, como quaisquer cidadãos, têm uma expectativa legítima de privacidade nas suas comunicações pessoais e, por isso, a sua correspondência não pode ser lida pelo seu empregador (sobretudo, como foi o caso, quando se tratam de mensagens que não foram enviadas através de rede informática da ré ou, sequer, de meios informáticos da ré).
O tipo de comunicação em causa nos autos (mensagem num grupo de “WhatsApp” – basta ver a descrição relativa à privacidade que nessa plataforma se faz, dizendo-se que todas as comunicações ali inseridas são privadas, encriptadas, e que nem mesmo a sociedade gestora da aplicação as pode ler) é semelhante às mensagens de texto de telemóvel e ao serviço “Messenger”: tem um carácter privado, pois não é expectável (ao contrário do que ocorre noutros serviços, mais densos, como o “Facebook”, o “Twitter” ou o “Instagram”) que as mensagens sejam visualizadas por mais ninguém além dos seus destinatários.
Tendo as mensagens natureza pessoal, não só o empregador não pode aceder às mesmas como não podem servir, sem mais, como meio de prova da prática de infrações disciplinares (neste sentido Alice Ferreira de Campos “Infrações Disciplinares em Redes Sociais Online”, in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Editora Universidade Católica Portuguesa, Vol. I, pág. 119.).
Concluindo, como princípio o empregador não deve poder aceder, por qualquer meio, ao conteúdo de mensagens de natureza pessoal do trabalhador, transmitidas através de rede que não inclua o próprio empregador no círculo ou esfera de contactos do trabalhador (neste sentido, Maria Regina Redinha Redes Sociais: Incidência Laboral”, in Prontuário de Direito do Trabalho, nº 87, pág. 40.).
Assim sendo, o conteúdo das mensagens de “WhatsApp” não pode servir como meio de prova nestes autos.
O direito à prova não é um direito absoluto e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva na vertente do direito à produção de prova não pode sobrepor-se ao direito à privacidade e reserva da intimidade dos cidadãos.
Não se provando, por isso, qual o teor das mensagens (porque o Tribunal não poderia – sem violar o direito do autor – perpetuar essa violação expondo mais uma vez as mesmas), perde qualquer relevância saber se elas têm a conotação que a ré alega.
Por outras palavras, não vai o Tribunal pronunciar-se sobre a questão de saber se o teor das mensagens constitui um motivo substancial para justificar um despedimento.
Em boa verdade, não se pode deixar sem pronúncia um argumento (ainda que apresentado de forma potencial, conclusiva, sem apoio em factos concretos) invocado pela ré para agir da forma que o fez (despedindo o autor): necessidade de segurança de tão importante meio de transporte operado pela ré.
A legislação referida dá clara resposta a estas preocupações: estando em causa o risco de segurança (risco de vida de terceiros ou, de forma genérica, a prática de um crime ou risco da sua prática) sempre o empregador (ou um terceiro) que tivesse conhecimento de alguma intenção por parte de um trabalhador (basta recordar exemplos extremos relativos à segurança, como o do “voo Germanwings 9525” e seu co-piloto Andreas Lubitz Cf., entre outras notícias, o relatório oficial em https://www.bea.aero/docspa/2015/d-px150324.en/pdf/d-px150324.en.pdf (preliminar)
e https://www.bea.aero/en/investigation-reports/notified-events/detail/event/accident-to-the-airbus-a320-211-registered-d-aipx-flight-gwi18g-on-24-march-2015/ (final).) deveria comunicar o facto a uma autoridade de polícia criminal que saberia munir-se das necessárias autorizações judiciais para, eventualmente e caso necessário, aceder às suas comunicações pessoais (serão as autoridades judiciais as competentes para decidir em que casos o direito à privacidade pode ceder em detrimento de outros valores ou direitos).
No caso, a ré não poderia, sem mais (pois que não o provou), aceder ao conteúdo das mensagens.
E não provou, como lhe competia, os factos que alegou para fundar o despedimento.
Por ser assim, o despedimento do autor decidido pela ré só pode considerar-se ilícito e, nessa medida, deve proceder nessa parte o pedido do autor.»

Apreciemos, então.
Em primeiro lugar, importa destacar que do conjunto dos factos provados se extrai que a apelante, na qualidade de empregadora do apelado, instaurou-lhe um processo disciplinar que teve na sua origem o conhecimento adquirido de um conjunto de mensagens enviadas pelo mesmo num grupo fechado e privado do WhatsApp.
A acusação disciplinar com intenção de despedimento, comunicada ao trabalhador, foi acompanhada de uma fotografia com as mensagens publicadas no referido grupo de WhatsApp.
E foi precisamente a emissão e conteúdo das aludidas mensagens que conduziu à aplicação da sanção disciplinar de despedimento por justa causa.
Poderia a apelante ter feito uso do meio de prova que chegou ao seu conhecimento, para instaurar um procedimento disciplinar contra o trabalhador?
Por outras palavras, poderia o conteúdo das mensagens escritas pelo trabalhador no grupo do WhatsApp ser utilizado em procedimento disciplinar?
Principiemos por tentar perceber o que é o WhatsApp.
O WhatsApp é uma aplicação (app) que pode ser instalada num dispositivo eletrónico móvel e que permite, gratuitamente, o envio de mensagens instantâneas escritas, imagens, vídeos e documentos e chamadas de voz.
Tal aplicação viabiliza a troca de mensagens/informação/chamadas entre duas ou mais pessoas, sendo utilizada, muitas vezes, para a partilha de conversas (“chat”) em grupo.
Nessa medida, pode considerar-se uma rede social, pois permite a ligação em rede de um conjunto de pessoas ou organizações que partilham interesses, conhecimentos e valores comuns por meio da internet A Infopédia –Dicionário Porto Editora, disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/rede+social, define “Rede Social”, como o «conjunto de relações entre pessoas ou organizações que partilham interesses, conhecimentos e valores comuns, por meio da internet»..
A crescente utilização das redes sociais on line como forma de expressão e comunicação, deu origem a novas problemáticas sociais e jurídicas, em todos os domínios da vida, nomeadamente na área do direito do trabalho.
Trata-se, naturalmente, de um fenómeno mundial e que já originou, na Europa, a intervenção do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos “Margareta et Roger Andersson contra Suécia”; “Copland contra Reino Unido”; “Halford contra reino Unido”; e, “Barbulescu contra Roménia” .
Também o Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou sobre as emergentes problemáticas da realidade virtual no âmbito laboral, nos Acórdãos proferidos nos processos C-293/12 e C-594/12.
Disso mesmo nos dá conta a sentença recorrida.
E, em complemento, poder-se-á consultar a nota de rodapé n.º 3 do artigo “Até que o facebook nos separe. Análise dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 8 de setembro de 2014 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de setembro de 2014”, de Teresa Coelho Moreira Publicado no Prontuário do Direito do Trabalho, 2016-I, pág. 239 e segs., que refere várias decisões proferidas por tribunais franceses e italianos.
O caso vertente integra-se, assim, nesta realidade contemporânea.
Importa então solucionar a concreta questão jurídica que se debate nos autos.

Quid juris?
Na específica situação que se aprecia, não obstante no contrato de trabalho celebrado entre as partes processuais tenha ficado convencionado que a lei aplicável ao contrato é a lei irlandesa, como se refere na sentença recorrida, com clara e acertada fundamentação, para a qual se remete, por força da aplicação do artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento Roma I Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), publicado no Jornal Oficial da União Europeia L 177, de 4 de julho de 2008.
, a escolha da lei reguladora do contrato individual de trabalho, «não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do presente artigo».
E, na falta de escolha, seria aplicável ao contrato de trabalho «a lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do seu contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato».
Ora, conforme já se apreciou no acórdão proferido por esta Secção Social no apenso A do processo:
«…tendo presente os diversos indícios analisados e, nunca é demais recordá-lo, não olvidando que as regras do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 têm por objetivo proteger a parte mais fraca, o mesmo é dizer o trabalhador, somos a concluir que para os efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 1, alínea b), i), do referido Regulamento, bem como, em termos similares, do n.º 2 do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, situa-se em Portugal o lugar onde o Autor/recorrido efetua habitualmente o seu trabalho (…)».
Nesta conformidade, a escolha da lei irlandesa para regular o contrato de trabalho celebrado «não priva o autor das normas não derrogáveis (ou só derrogáveis a favor do trabalhador) constantes da lei portuguesa (perante os factos provados, o autor foi contratado para operar voos de e para o Aeroporto do Porto e, a partir de 1 de Abril de 2016, de e para o Aeroporto de Faro, pelo que a lei portuguesa seria sempre aquela que seria aplicável caso as partes a não escolhessem)», conforme se refere, sem merecer censura, na decisão recorrida.
Vejamos então qual o quadro legal nacional a ter em consideração, em função do caso concreto.
O ordenamento jurídico português consagra como direitos fundamentais, o direito à reserva da vida privada e à inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada – artigos 26.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa.
O Código Civil, no artigo 80.º estipula que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem, sendo a extensão da reserva definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.
Mais estipula que o destinatário de cartas-missivas de natureza confidencial deve guardar reserva sobre o seu conteúdo, não lhe sendo lícito aproveitar os elementos de informação que por tal via tenham chegado ao seu conhecimento, e que a publicação das mesmas só pode ser realizada com o consentimento do seu autor ou com o suprimento judicial desse consentimento, não havendo lugar ao suprimento quando se trate de utilizar as cartas como documento literário, histórico ou biográfico – artigos 75.º e 76.º do Código Civil. Estas regras estendem-se, com as necessárias adaptações, às memórias familiares e pessoais e a outros escritos que tenham carácter confidencial ou se refiram à intimidade da vida privada – artigo 77.º do Código Civil.
Quanto às cartas-missivas não confidenciais, o destinatário só pode fazer uso das mesmas em termos que não contrariem a expetativa do seu autor – artigo 78.º do Código Civil.
Entendemos que a referência a “cartas” e “missivas”, utilizada no Código Civil, deve ser atualmente interpretada em sentido amplo e moderno, atendendo à evolução tecnológica dos meios de comunicação, no século XXI.
Os referidos direitos de personalidade mostram-se igualmente consagrados no Código do Trabalho/2009, respetivamente nos artigos 16.º [Reserva da intimidade da vida privada] e 22.ª [Confidencialidade de mensagem e de acesso a informação].
O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso quer a divulgação de aspetos atinentes à vida pessoal, íntima e familiar do trabalhador.
No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 355/97 Publicado no Diário da República n.º 131, I Série A, de 7-6-1997., refere-se que inexistindo uma definição legal de “vida privada” dever-se-á entender que tal designação corresponde «a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respetivo titular».
Pode igualmente ler-se, com interesse, no Acórdão da Relação do Porto, de 08-09-2014, P. 101/13.5TTMTS.P1:
«O direito constitucional à reserva da vida privada e familiar analisa-se principalmente em dois direitos menores: o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem. Mas, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “[n]ão é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade”, avançando que o “critério constitucional deve talvez arrancar dos conceitos de «privacidade» (n.º 1, in fine) e «dignidade humana», de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea”[11].
A extensão da reserva será, assim, variável em função de circunstâncias concretas que terão que ser analisadas casuisticamente.
Em tal tarefa de determinação, em cada caso concreto, do que deve entender-se que integra o conceito de vida privada a chamada, é útil lançar mão, como fez a sentença da 1.ª instância, da «teoria dos três graus ou das três esferas», de criação jurisprudencial alemã. Segundo essa construção, podem diferenciar-se: a esfera da vida íntima ou da intimidade, correspondente a um domínio inviolável e intangível da vida privada, subtraído ao conhecimento de outrem; a esfera da vida privada propriamente dita, que abrange factos que cada um partilha com um núcleo limitado de pessoas, e a esfera da vida pública ou da vida normal de relação, envolvendo factos suscetíveis de serem conhecidos por todos, que respeita à participação de cada um na vida da coletividade.»

Quanto à tutela da inviolabilidade dos meios de comunicação, a mesma tem, necessariamente, de ser interpretada de acordo com a estonteante evolução dos meios de comunicação no mundo em que vivemos.
A vida é dinâmica e a interpretação e aplicação do direito tem de se adaptar e atualizar, sem que se desvirtue ou adultere a regra jurídica vigente.
O dever de sigilo constitucionalmente protegido reporta-se, quer à proibição de violação ou devassa das comunicações privadas, quer ao dever dos terceiros que a elas tenham acesso de não as divulgar, respeitando, assim, a sua natureza sigilosa.
Qualquer prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada, na correspondência ou nas telecomunicações é nula, de harmonia com o preceituado no n.º 8 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Ainda que esta norma se refira às garantias do processo criminal, entende-se que a mesma tem igualmente aplicabilidade ao procedimento disciplinar, tendo em consideração a sua finalidade sancionatória.
Neste sentido, pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto supra citado:
«Em face da proibição constitucional da ingerência na reserva da vida privada (art. 26.º), perante a própria tutela que agora lhe é expressamente conferida pela lei laboral (especificamente os artigos 16.º e 22.º), e tendo ainda em consideração a similitude do procedimento disciplinar com o criminal, é de considerar que o assinalado artigo 32.º, n.º 8 da lei fundamental impede que no procedimento disciplinar instaurado com vista ao despedimento do trabalhador e, ulteriormente, na ação instaurada pelo trabalhador com vista à impugnação da regularidade e licitude de tal despedimento, se lance mão de provas obtidas mediante uma intromissão abusiva na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.»
Tal posição foi igualmente sustentada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-2017, proferido no P. 07S043.
Posto isto, é o momento de regressarmos à concreta questão que importa responder.
Impõe-se, porém, que salientemos previamente que tem sido entendimento pacifico da jurisprudência e doutrina portuguesas, que as “novas realidades” emergentes das redes sociais, que tanta controvérsia jurídica suscitam, têm de ser sempre apreciadas casuisticamente, não podendo existir uma resposta apriorística Acórdão da Relação do Porto de 08-09-2014, P. 101/13.5TTMTS.P1; Acórdão da Relação de Lisboa de 24-04-2014, P. 431/13.6TTFUN.L1-4; João Leal Amado, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 145, n.º 39994, Setembro/Outubro 2015, págs. 45 a 64; Teresa Coelho Moreira, Prontuário do Direito do Trabalho, 2016-I, pág. 239 e segs.
No caso vertente, o que resulta da factualidade assente, com relevância, é o seguinte:
- O apelado exerce as funções de comandante de aeronaves da apelante operando de e para o Aeroporto de Faro.
- O mesmo integra um grupo do WhatsApp que é fechado a pilotos da base de Faro.
- Fazem parte deste grupo comandantes e pilotos trabalhadores da apelante.
- Trata-se de um grupo privado que não foi organizado pela apelante.
- Neste grupo de WhatsApp, nem todas as mensagens são relacionadas com o trabalho.
Depreende-se desta materialidade que um determinado número (que desconhecemos) de pessoas, que têm em comum a profissão e o local onde habitualmente a exercem, criaram, a título privado, um grupo fechado, para troca de informações, algumas sem qualquer relação com o trabalho.
Sendo um grupo privado e fechado, restrito aos pilotos da base de Faro, afigura-se-nos que existiria uma expetativa de privacidade por parte dos membros do grupo.
É certo que num relacionamento virtual em rede, qualquer utilizador minimamente informado sabe que a expetativa de privacidade pode frustrar-se, pois é sempre possível que a informação que circule no grupo seja conhecida, quer por intrusão ilícita na mesma, quer por acesso indireto, através dos membros do grupo (que podem mostrar as mensagens a um terceiro).
Ou seja, a expetativa de privacidade nas redes on line, nunca poderá ser absoluta.
Mas é esperável, no âmbito de um grupo de restrito, privado e fechado, como era o caso, que se conte com a discrição dos seus membros.
Existe um princípio de confiança subjacente à circunstância de se ter optado por um grupo privado e fechado.
Ademais, sobre a “Política de privacidade do WhatsApp, pode ler-se nas suas definições:
«O respeito pela sua privacidade faz parte do nosso ADN. Desde que iniciámos o WhatsApp que foi nossa intenção criar os nossos Serviços com base em princípios de privacidade sólida.
(…)
.As suas mensagens. Não guardamos as suas mensagens quando lhe prestamos os nossos Serviços. Assim que as suas mensagens (incluindo as conversas, fotografias, vídeos, mensagens de voz, ficheiros e informações de partilha da localização) são entregues, elas são eliminadas dos nossos servidores. As suas mensagens são armazenadas no seu próprio dispositivo. Se uma mensagem não puder ser entregue de imediato (por exemplo, se estiver offline), podemos mantê-la nos nossos servidores até 30 dias enquanto tentamos entrega-la. Se a mensagem não for entregue, após 30 dias será eliminada. Para melhorarmos o desempenho e entregarmos mensagens multimédia de uma forma mais eficiente, como quando uma fotografia ou vídeo popular está a ser partilhado por muitas pessoas podemos guardar esse conteúdo nos nossos servidores por mais tempo. Também oferecemos uma encriptação ponto a ponto nos nossos Serviços, que está ativada por predefinição quando o utilizador e as pessoas a quem envia mensagens utilizam uma versão da nossa aplicação após o dia 2 de abril de 2016. A encriptação ponto a ponto significa que as suas mensagens são encriptadas de forma a não poderem ser lidas por nós nem por terceiros»
Depreende-se do texto que o WhatsApp se trata de uma aplicação cujas mensagens apenas se destinam a ser visualizadas pelos seus destinatários.
Assim sendo, as mensagens do apelado no aludido grupo WhatsApp situar-se-iam no plano da clássica «esfera da vida privada (…), que abrange factos que cada um partilha com um núcleo limitado de pessoas» Acórdão da Relação do Porto citado., não estando em causa o «domínio inviolável e intangível da vida privada» Idem., mas também não estando em causa «a esfera da vida pública ou da vida normal de relação, envolvendo factos suscetíveis de serem conhecidos por todos, que respeita à participação de cada um na vida da coletividade.» Idem.
Nesta conformidade, tendo as mensagens em causa sido emitidas num ambiente privado, e tendo como destinatários os membros do grupo restrito, afigura-se-nos que as mesmas tem carácter pessoal e privado e, como tal, a apelante não poderia fazer uso de tais mensagens para efeitos disciplinares, porque tal lhe estava vedado pelo protegido direito de reserva da intimidade da vida privada e pela tutela legal e constitucional da confidencialidade da mensagem pessoal.
Por conseguinte, a resposta à pergunta inicial é negativa, ou seja, no caso concreto e face às específicas circunstâncias do caso, a apelante não poderia utilizar o conteúdo das mensagens escritas pelo trabalhador no grupo do WhatsApp em sede disciplinar.
Conforme se refere na sentença recorrida «[o] direito à prova não é um direito absoluto e o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva na vertente do direito à produção de prova não pode sobrepor-se ao direito à privacidade e reserva da intimidade dos cidadãos.»
Acresce referir que, nos termos do n.º 2 do artigo 22.º do Código do Trabalho, o poder do empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação, reporta-se ao espaço dominado pela empresa no âmbito da gestão empresarial e do poder regulamentar, e não à vida privada do trabalhador.
E mesmo no âmbito do poder regulamentar, o incumprimento das regras de utilização fixadas nos termos do aludido n.º 2 não legitimam a violação, pelo empregador, do direito à confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal Código do Trabalho anotado por Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira Brito, Guilherme Dray e Luís Gonçalves Silva, 10.ª edição, 2016, pág, 162, nota IV..
Finalmente, quanto ao argumento do “risco de segurança”, concorda-se inteiramente com a análise efetuada pelo tribunal a quo, pelo que subscrevemos, sem reservas, os fundamentos expostos.
Nesta conformidade, a sentença recorrida não nos merece censura, pelo que se confirma a mesma.
Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.
*
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando-se consequentemente a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Évora, 28 de março de 2019
Paula do Paço (relatora)
Emília Costa Ramos
Moisés Silva